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HISTORIA

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PROSTITUIÇÃO

EM TODOS OS POVOS DO MUNDO

DESDE A MAIS REMOTA ANTIGUIDADE ATÉ AOS NOSSOS DIAS

AOS MORALISTAS, DTIL AOS HOMENS DB SCIliElA B LBTTRAS E IMERESSANfB PARA TODAS AS CLASSES

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:eKIiRO DUFOXJH

MEMBRO DE DIVERSAS ACADEMUS E SOCIEDADES SCIENTIFICAS

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E OUTROS ESCRIPTORES. E SEGUIDA DE UM IMPORTANH TRABALHO

SOBRE A HISTORIA

PROSTITUIÇÃO EM PORTU&ÂL

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DESDE 03 TEMPOS MAIS OBSCUROS DA LUSITÂNIA ATÉ NOSSOS DIAS

ILLUSTRADA COM Pf^IMOROSAS ORAVtJRAS

JTDMO SEGUNUOC

LXSBOA

EMPREZÂ LITTERÂRIA LUSQ-BRAZILEIRÂ- EDITORA

ESCRIPTDRIO E OFFICINA TVPOGRAPHICA 6 I^A-TEO E)0 A.L.J-UBE. J^ 5

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1968

LISBOA TYP. DA EMPREZA LITTERARIA LDSO-BRAZILEIRA

5 PATEO no ALJfllE 5 1885

HISTORIA DA PROSTITUIÇÃO

SKaiffNDÀ paete;

A. PROSTIXXJIÇ^VO E»I FRAT^ÇA

CAPITULO I

SUMMARIO

Os gaulczes e os klmiis aotes Oa conriuista de Júlio César. A prostituição entre estes não podia ter uma í^iistencia regular e permanente.— De que modo trata%-am os germanos as mulheres cpie se prostituíam.— O matri- monio entre os cellas.— Senado feminino.— Superioridade concedida pelos gaulezes ao sexo feniinino Piova da paternidade duvidosa.— O Hlieno, juiz e vinírador do nialriínonio.— Vida particular das gaulezas.— Princípios regu- ladores do seu proi-eiler.— A virtuosa Cliiomara.— Tribunal de mulheres encarregailas de julgar as causas de hom^ao de pronunciar-se sohre os delictos de injuria.— Horror dos ganiezes e germanos para com as prostitutas. —Hospitali- dade entre os gaulezes. Druidismo, sacerdotes e sacerdotizas druidas. As divindades secutidarias dos ganiezes. Theogonia gallica.— ,A deusa Ononava.— O ovo da serpente.— O deus (iourm.— A deusa do amor pliysico.- O deus Ma- rum.— Costumes dos deuses da Galha. —Os Gaurios.— Os Sylphos.- Os Thusos e os Drusios Victoria da formosa Cara- ma.— Abnegai,-ão de Eponina para com seu marido Sabino.— Costumes dissolutos dos gaulezes.— Couipnsta da Uailia por JuIio César. O paganismo nas Gallias. A prostituição entre os gallos-ronianos.— Corrupção social das i'aças cél- ticas.—A coitezã Crispa.— Invasão dos francos.— Pureza dos costumes do povo franco.— .\ lei salica.

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nuAsi impo.ssivel por iniliicyões históricas estabelecer o cara- cter niíiral dos gaulezes c ilos kimris que povoaram a Gallia, quinze ou dezascis séculos antes da era christã; nem mesmo sabemos d'unia maneira positiva a origem d'esfes povos selva- gens, que os mais doutos investigadores suppõem mais oriundos do norte, do que do Oriente. Não podendo retroceder até á sua origem para descobrir-llies os instinctos e hábitos sob o ponto de vista social, mister é recorrer a hypotheses mais ou menos valiosas para encontrar em tão remotas épocas alguns vestígios indecisos da prostituição na vida particular dos gaulezes, anteriormente á conquista de Júlio César.

Estudado o pequeno numero d'auctoridadcs gregas c latinas, conservailo- ras das tradivões dos primeiros habitantes da (lallia, não se pode deixar de af- firmar que entre ellcs não existiu a prostituição sob um estado legal, mas sup-

6 HISTORIA

pomos ter encontrado na religião druldica vesfigios evidentes da prostituição sagrada; em (juanto á pr(istiliii(,'ão iiospitaiar, parece não ter-se misturado com as ideias generosas e nidjres com que aquelles esforçados povos compreiíendiam a hospitalidade. Comtudo os costumes dos gaulezes estão mui longe de serem austeros e irrepreliensiveis.

A ])roslituição propriamente dita poderia ter uma existência permanente cm uma nação, que tinha feito da mulher um ser privilegiado, uma espécie de divindade terrestre, um laço entre o terra e o ceu ? N'esta condição excepcio- nal, a mulher não tinha o direito de dar-se ou vender-se, soh pena de perder a sua aureola divina, e o homem que fora cúmplice d'esla espécie de attentado á dignidade feminina seria tido como um sacrílego. A prostituição era então ape- nas um facto isolado, mui raro e sempre rodeado d'uin mysterio, que a segu- rança dos cúmplices tornava impenetrável.

Sem duvida, entre os gaulezes e os kimris houve mulheres viciosas por temperamento e houve tamhem homens ardentes e libertinos, para os quaes não eram sulfieientes o género de compensações sensuaes que os velhos e os novos sem rubor gosavam, deshonrando-se uns aos outros para respeitarem o sexo fe- minino ; mas os actos de prostituição consumavam-se, dentro da espessura dos bosques, acobertados pelas sombras. Nunca houve prostitutas de profissão que publicamente exercessem tão vergonhoso mister, ou que mostrassem exer- cel-o, porque com ignominia seria expulsa e tratada a mulher infamada a que assim^se despojasse do seu caracter divino, abandonando-se voluntariamente ao despreso publico.

Os germanos, irmãos dos gaulezes, apesar dos seus ódios e guerras, de ou- tro modo não procediam para com as mulheres surprehendidas em flagrante de- licto de prostituição, ou convictas de a isso não serem estranhas: obrigavam-as a sahir da localidade que manchavam com a sua presença e toda a tribu as apedrejava. Ordinariamente deivavam fugir essas miseráveis, que não ousavam mais tornar a apparccer c que iam nas profundezas das matlas virgens esconder a sua vergonha ; mas ás vezes a infeliz, feiúila por uma pedra no momento de ser perseguida, cabia, e era alli, entre gritos de ódio e de escarneo, assassi- nada. Segundo os germanos, este castigo era igual ao delicto ; de modo que a corlezã, que tinha vivido das dadivas de todos, morria esmagada pela ira de todos, animados pelos gritos das mulheres ([ue liie não perdoavam o ter es- quecido os seus deveres. Os celtas tinham |)elas mulheres um respeito que excluia toda a ideia de prostituição. Na maior parte das suas tribus as donzel- las escoliiiam livremente os seus maridos. N'um festim dado aos mancebos em idade de casar, os pães da nubente apresentavam-a para que fizesse a sua escolha entre os pretendentes, que contavam as suas façanhas guerreiras, as suas virtudes domesticas e cantavam velhas canções nacionaes, bebendo cidra e hydromcl. Concluído o banquete, a nubente declarava o cs])oso que escolhera como mais bello e mais bravo, aeereando-se do escolhido com agua de lavar, para em|)regar a expressão que acavallaria usou para designar esta usança. Pro- vável c (|ue esta ablução manual, na linguagem íigui-ada dos celtas, significasse o esquecimento do passado e a jtureza da vida conjugal.

A muliicr casada exercia uma espécie de sacerdócio na Irihu, o (jue não deve surprehender, pois que ao sexo feminino se altribuiam dons pruphetieos, esperando-se sempre encontrar na mais vulgar mulher uma deusa ; a opinião da mulher prevalecia nas assembleias (pie tratavam da guerra ou da paz ; in- terpunlia-se citmo medianeira |)ara acalmar a irrilação de ânimos e inimizades, despci-ladas no calor da (irgia. MCsle povo até chegou a haver um senado de mulheres, composto de sessenta, reprcscniando as sessenta tribus das (lallias e este senado, (|ue s(í julga remontar ao duodécimo século antes de Jesus Christo, governava soberanamente as confederações gaulezas.

I)A PROSTITUIÇÃO 7

Esfa superioriflade concodida ao sexo feminino c\clue a hypothese de uma prostituição organisada, tolerada, ou confessada o reconhecida. As mullieres as- sim respeitadas não podiam ser consideradas como instrumentos de prazeres ve- néreos, nem destinadas ás necessidades da liljertinagem.

Comtudo o marido tinlia sobre a mulher e os filhos direito de vida e de morte, e deve suppòr-se que cm determinadas circumstancias delicadas fez cruel applicação d'cste supremo direito. Assim, quando concebia duvidas acerca da sua paternidade, agarrava no rccemnascido e collocando-o sobre um escudo aban- donava-o à corrente do rio próximo. Se a corrente levava o escudo com a creança á margem, em que a mãe lhe estendia os hraços, esta nada tinha a receiar, por- que o génio do rio provava assim a legitimidade do filho e a innocencia da mãe ; mas se, ao contrario, o filho se submergia, como se o rio não quizesse levar o fructo do adultério, a mãe devia também morrer, convicta de ter faltado á fc conjugal, e com efleito o marido ultrajado matava-a com as suas próprias mãos, ou submergia-a no seio das aguas, que tinham afogado o filho.

Esta terrível prova da paternidade duvidosa faz crer que as gaulezas Ucão eram isemptas dos erros do coração, nem dos arrebatamentos, inconscientes e apaixonados dos sentidos. De todos os rios foi o Rheno o mais famoso, pela sua aversão á bastardia; por isso marido algum ousaria duvidar de sua mulher, de- pois da sentença absolutória dada por este rio sagrado, salvando uma creança.

O imperador .luiiano, n'uma das suas cartas, narra esta velha superstição ligada ao Rheno, rio que os celtas tinham divinisado.

«O Rheno, diz a Antologia, esse .no de impetuosa corrente provava entre os gaulezes a pureza do thalamo. Apenas nascia a creança, o marido apode- rava-se d'ella, deitava-a sobre um escudo e confiava-a ao capricho das aguas, porque não sentiria no seu peito pulsar o coração de pae, cmquanto que o rio, juiz e vingador do matrimonio, não tivesse preferido a sua fatal sentença.»

Os adultérios deviam ter sido raros entre os gaulezes e germânicos : Se- vera illic matrimonia, diz Tácito; e o marido não tinha necessidade de recla- mar justiça perante os tribunacs, pois que elle era ao mesmo tempo o juiz e o algoz.

Geralmente os gaulezes tinham uma mulher; todavia, os chefes e os notáveis das tribus tinham muitas mulheres, não por libertinagem, mas por ostentação, como signal de grandeza {non Ubidine, sed nohilitate, diz Tácito.) Com etleito o clima da Gallia, coberta então de bosques e pântanos, era hú- mido e frio, e naturalmente o temperamento dos seus habitantes resentia-se d'aquella athmosphera ennevoada e se aquecia com a intemperança das co- midas. As mulheres, além d'isso, viviam retiradas e oecultas, longe da vista dos homens; excepto nas cerenionias publicas, religiosas ou guerreiras, por que então deixavam os seus retiros de mães de família.

Estas mulheres, preoceupadas com os seus deveres caseiros, não entreviam horisontes mais extensos do que a sua familia, e assim permaneciam fielmente agrilhoadas á obediência dos severos esposos. Aec ulla cogilatio ultra, diz Tá- cito, nec longior cupiditas. Tinham principalmente uma alma independente e nobre e teriam preferido a morte á vergonha. Comprehender-se-ha que foram boas depositarias, umas da sua virgindade, outras da honra conjugal, recor- dando esle principio que servia de base á sua moralidade: «A mulher que se entrega a um hnniem não pôde passar aos braços d'outro.» Em virtude d'este principio regulador do seu proceder, nem mesmo se julgavam auctorisadas a contrabir segundas núpcias. Todavia, a lei não lh'o prohibia, especialmente em certas tribus, em que o uso estava auctorisado por este provérbio : «.A mu- lher que conheceu dois homens é criminosa,- se os dois estão vivos.»

A virtuosa Chiomara, citada por Plutarcho no seu Tratado de mulheres illustres, preferiu faltar ás disposições sagradas do direito das gentes, a deixar

HISTORIA

viver o auctor e testemunha da sua doslr>nra. Cliiomara era esposa de Ortia- gonfe, chefe dos gaulezos asiáticos, derrotados e suíjmcttidos pelos romanos no anno oGii. Plutarcho, sem nos dizer se Chiomara era formosa, diz-nos apenas que ella tinha sido violada pelo centurião romano, que a aprisionara. Ella teve de apparentar resignar-se com a atfronta, e quando os emhaixadores de seu marido vieram resgatal-a, Chiomara disse-lhes em lingua gauleza que tam- hem ella tinha um resgate a exigir. Com este propósito teve a liabilidade de attrahir a um ponto retirado da cidade ao centurião que a ultrajara, e alli lhe fez cortar a cabeia pelos seus súbditos, que a conduziram a Ortiagonte. Este, a quem Chiomara apresentou a cai)eça ensanguentada do centurião, indignou-se com o assassinio commettido em despreso da jurada.

«Sou, é verdade, perjura, exclamou Chiomara, mas não queria que so- bre a terra existisse vivo um outro homem que jactar se podesse de me ter possuído.»

Se o adultério era quasi desconhecido entre os gaulezes, pôde crér-se que a prostituição ainda mais rara era; porque o adultério sii ultrajara o marido, emquanto que a prostituição estendia a sua infâmia a todas as mulheres, que se sentiam oITendidas igualmente com o mau proceder d'uma d'ellas.

A lei dos druidas dava ás mulheres o direito de julgar as injurias. Du- elos que refere este facto n'uma memoria sobre os druidas, accrescenta que era um tratado concluído entre os gaulezes e os carthaginezes do tempo d'Annibal se estabelecia, que se um gaulez se queixasse de ser injuriado por um carthaginez a causa fosse derimida ante um magistrado de Carthago, mas que sendo o con- trario os juizes do processo seriam as mulheres gaulezas. Existia, portanto, um tribunal de mulheres, encarregado dejulgar as causas de honra e de pronunciar-se sobre delictos de injuria. Os povos bárbaros não eram menos meticulosos sobre este ponto, do que o eram os gregos e os romanos e de todas as injurias que se poderiam dirigir a uma mulher, a mais grave era chamar-lhe prostituta. Mais tarde vemos que Rotaris, rei dos lombardos, puniu esta injuria com forte multa, tanto maior quanto mais calumniosa.

As gaulezas foram pois naturalmente os juizes de tudo o que tinha um caracter injurioso para as pessoas, e tiveram portanto de conhecer também dos factos de prostituição. Por exemplo, quando um gaulez, nobre ou plebeu, se casava consciente ou inconscientemente com uma mulher de vida, as mu- lheres reuniam-se para tomar informações sobre o procedimento da esposa. Tácito observara entre os germanos estes escrúpulos, escrúpulos também tidos pelos gaulezes. (Mon solam senalorihus, diz elle, sed et phbeis hominibus me- retrices uxores dacendi jus deneijabalur cum cirgines soluin diici posse.) Sem duvida, as mulheres reunidas eram ás vezes chamadas a julgar sobre questões de galanteria e de sentimento, tribunaes que reappareceram na edadc média sob o nome de Cortes d'amor.

A hospitalidade, como atraz o dissemos, estava entre os gaulezes melhor definida, que entre os demais povos, pois que tinham como um crime digno dos raios celestes o fechar a porta a um estrangeiro, ou fazer-lhe mal depois de ter recebido. O hospede era considerado como um irmão, como um amigo, como um deposito sagrado; mas o seu primeiro dever era respeitar o thalamo do que o recebia de boa vontade. O gaulez era em demasia zeloso da sua honra conjugal, para jamais se prestar ás indignas concessões da pi'ostiluiçào hospi- talar.

.\ jiroslituição sagrada não tinha certamente logar na religião dos druidas, religião com|)letatnente metaphysica, que mantinha o.s dogmas mais elevados das religiões do Egypto e da índia, ci>lto mvsterioso que se rodeava de trevas e de terror, sem oíTerccer seducrões materiaes aos seus sacerdotes, nem aos fieis. Os druidas eram pliilosophos, a maior parle desilludidos pela idade, e retira-

DA PROSTITUlÇAíO 9

dos cm coinmunidadcs para o fundo de solidões impenetráveis; não communica- vam com os profanos, senão cm mui raras circumstancias, na época das festas solemnes, que nada tinham de attrahentes nem de voluptuosas, e que frequen- temente terminavam com sacrifícios humanos.

Além d'isso, os druidas não eram unicamente os mwiistros do culto; a clles pertencia a legislaí'ão, o governo, a educação publica; ensinavam as sciencias exactas e as sciencias sagradas ou philosophicas. A sua vida, assim como a sua doutrina, não podiam deixar de ser austera, e tinham o máximo cuidado em não desmerecer da veneração de que eram objecto, misturando a libertinagem ou i)razer com o culto religioso. Tinham também nos seus collegios de prophe- tizas, virgens, que quiçá não se limitavam a unicamente servir nas ceremonias religiosas.

Estas sacerdotisas, que por aqui e ali se vêem passar atravez da historia gauleza, como sombrios phantasmas, occultavam-se nas grutas e nos troncos escavados de arvores seculares ; fugiam do convívio e da vista dos homens, e apenas davam os seus oráculos de noite, á luz dos relâmpagos, acompanhados pelos roncos cavos do trovão e pelo fragor sinistro da tempestade.

Apesar do prestigio de que tinham rodeado a bella Valeda, pndc afTir- mar-se que estas racies eram ordinariamente velhas e feias, á similiiança das syhillas do paganismo romano. Segundo parece, tinham esquecido o seu sexo e todos os sentimentos de pudor, pois que em certas ceremonias druidicas se apresentavam completamente nuas, untadas com azeite e pintadas de preto para imitar a côr da pelie etliiopica (Tofa corpore oblitce, diz Plínio no livro xii da . historia natural, quibusdam in sacris et nudm incedunt elhiopum colorem imi- tantes.) Quando os romanos, depois da revolta dos icenios na Bretanha, quize- ram apoderar-se da ilha de Mona (Anglesey) um dos focos do druidismo, as mulheres da ilha, negras como fúrias, precipitaram-se nuas e de fachos incen- diados na mão entre os combatentes. Os romanos espantaram-se mais com esta apparição, do que com os gritos e desesperada resistência dos inimigos.

Se a prostituição não tinha razão de ser no culto superior dos druidas, culto elevado, manifestando-se nas lições philosíjphicas e metaphysicas, ou pa- tcnteando-sc nos augúrios arrancados das entranhas palpitantes das victimas, P'5de suppôr-se com muitas probabilidades que de facto existia no culto inferior, isto é em volta dos altares rústicos de certas divindade* secundarias, que tinham sido creadas pelo superstição do povo, e que os druidas não julgavam hostis á sua religião transcendente.

Posto que mais raros e menos cynicos do que em qualquer outro povo, sem duvrda entre os gaulezes havia também espíritos depravados, naturezas histéricas, instinctos sensuaes. Os que por excepção sentiam estes apettites, este vago desejo de libertinagem, inventaram deuses a quem o sacrifício da virgin- dade era uma ofíerenda agradável, e animavam os hábitos luxuriosos creando santuários e auctorisando-os a titulo de consagração divina. E' permittido sup- pòr que entre as vacies, que a tradição popular celebra sob o nome de fadas, havia algumas que, ao serem consultadas no fundo dos seus antros, exigiam uma prova de complacência, prova terrível altendendo á sua velhice, fealdade e ter- rível caracter. Todas as lendas da idade média attesfam estes singulares con- ti-atos, que as sacerdotizas druidas celebravam com ©s seus arrojados visila- dores.

O que aquellas velhas e feias sybillas gaulezas faziam, certos sacerdotes, certas sacerdotizas e certos membros degenerados dos collegios druidicos fa- ziam-no em proveito próprio, c por deliberação unicamente sua se tornavam deu- .ses protectores de rios, de fontes, de bosques, de montanhas e de pedras. Es- tabeleciam residência nos mesmos togares em que tinham estabelecido o seu culto e impunham um tributo obsceno a todos os imprud'entes, homens ou mu-

UuTOHiA DA PaesTiTuiçio Tomo ii— Folha 2.

1 o . HISTORIA

llicrcs, que atravessavam os seus domínios, ou (l'elles se approximavam. Guia- vam os viajantes perdidos nas planieies desertas, por entre os laliyrintos das montanlias, pelos desliladciros perigosos; tinham l)areos nos lagos mais som- brios o guardavam as pontes lançadas por de cima dos precipícios terríveis. Desgraçada da donzella, cuja estrclla a guiava para junto d'aquellcs seres. As nossas historias de fadas ainda hoje nos dão ideia das violências commetli- das pelos gnomos e pelas ondinas e mais génios das solidões célticas.

Todavia nada ha authentico n'estas antigas e singulares lendas da pros- tituição sagrada, que se teem conservado na memoria de todos depois de tantas gerações extinctas. Ha um vasto campo aberto ás hypotheses e conjecturas so- bre as fadas c gnomos, que certamente foram n'cssas remotissimas épocas os actores ou intermediários da prostituição sagrada.

Sobre a Iheogonia gauleza ha unicamente noções incertas e por tanto dif- ficil é averiguar as attribuiçôes eróticas das divindades, que apenas conhecemos pelo nome. Todavia por alguns monumentos descobertos se píuie presumir que estas divindades não eram mais decentes nas suas imagens e altributos, do que o eram as da Itália e (Irccia. Assim, a deusa Ononava, que os archcologos do século xvii confundiram com a Mithra dos persas, era representada por uma cabeça de mulher com duas grandes azas abertas, com duas largas escamas no sitio das orelhas e com duas serpentes, que a coroavam com as suas enormes roscas. Esta imagem representava allegoricamcnte a voluptuosidade (|ue revolu- tea por aqui c alli, tendo sempre os olhos abertos c cerrados os ouvidos, c que por toda a parte serpéa a iim de devorar as suas presas.

A's vezes também a voluptuosidade era representada por uma cabeça de mulher, sahindo de uma pedra bruta, sobre a qual se erguia uma cobra. A ser- pente emblemática tinha além d'isso uma significação muito importante na re- ligião dos druidas, e era também de bom agouro o achar-se um certo fóssil oval, de còr escura ou branca, que se chamava oro de serpente. Este ovo tinha a virtude supersliciosa de dar aos que o traziam um grande poder prolitico.

O deus Gourm era representado nú, hermaphrodita e com cabeça de cão. A deusa do amor pbysico, cujo nome gaulez os romanos transformaram em Murcia, quando confundiram d seu culto cum o de Vénus, era apenas represen- tada por |)edras de granito talhadas em cuniia c collocadas nos caminhos.

O deus Marunus, que os romanos também transformaram em Mercúrio, presidia ás viagens pelas montanhas, principalmente nos Alpes: tinha a tigura de um gaulez, com uma grosseii'a capa com uma espécie de capuz c sem man- gas. Era um idolo domestico, com os chamados mairs ou }wmes, que tinham por missão proteger o nascimento das crcanças e fadal-as no berço.

Emquanto aos costumes dos deuses gaulezes, não .são bastante conheci- dos para se apreciar se estavam, ou não, impregnados de prostituição. Unica- mente se sabe que os gnurics, monstruosos gigantes, que de noite se encon- travam, principalmente na Bretanha, praticavam entre si execráveis deprava- ções. Sabe-se que os sylphos {sidri ou suliiJii) eram génios imberbes, de voz doce e jicrsuasiva, que de noite espreitavam os viajantes, para d'ellcs ])cla força ou pelo medo obter caricias vergonhosas. Sabe-se emlim que os dusios {dusH} vinham durante o somno visitar c roubar a virgindade das donzellas, ou offe- reecr a qualquer mancebo ardente as tentações de um sonho amoroso c tam- bém em|)rcgnr o seu corruptor podei- em vis animaes.

«E' opinião geral, diz Santo Agostinho, na sua Cidade de Deus, (|ue cer- tos demónios pelos gaulezes chamados dusios praticam attentados com pessoas adormecidas (hanc assidue immundiam et tentare et ejjicere.)»

Santo Agostinho acerescenta que tantas feslemunhns certificavam a exis- leneia (fesles demónios libertinos, ((ue não havia dir("ilo a pòl-a em duvida. Com clfeito a Egri'ja admilliu no nuMicro das obras do diabo as surprozas no-

DA PROSTITUIÇÃO 1 I

cturnas dos incubos c succubus, ((uc tinham uma origem inteiramente gallica. Provável é, que apesar da rigida virtude das gaulezas, os demónios da lu- xuria lhes armassem tentações, a que não escaparam aqueiias virtuosas ma- tronas. Assim Estrabão (livro iv) nos falia na sua paixão pelas jóias, paixão a que também não foram indiílerentes os homens, pois uns e outros se enfeita- vam com cadeias, collares, braceletes, anncis e cintos de ouro. Os de mais elevadas dignidades e de mais illustre estirpe usavam também diademas, co- roas c mitras de ouro cravejadas de pedrarias. Pôde dizer-se que em todos os tempos, como em todos paizes é o luxo uma das mais poderosas armas da pros- tituição.

Pelo exemplo de Chiomara, se viu que a fidelidade conjugal era uma das virtudes ordinárias das gaulezas. Plutarcho conta também a historia de uma outra gauleza, cliamada Cumma, uma das mais formosas mulheres da sua tribu. O gaulcz Sinoris enamoruu-se d'ella, e sabendo que nem por vontade nem por força a faria render-sc ao seu amor, emquanto o marido vivo fosse, matou o marido que era romano, e se chamava Sinato. Cumma rcfugiou-se no templo de Diana, onde foi perseguida ainda pelo amor de Sinoris, que elia re- peliiu com horror. Todavia violenlando-se tingiu consentir em casar com o as- sassino de Sinato ; mas no dia do matrimonio apresentou ao noivo a taça nu- pcial cheia de um liquido envenenado e bebeu de um trago o que elle deixara na taça.

Grande deusa! exclamou Camma voltada para o altar de Diana; bem sabeis o quanto senti a morte de Sinato e não ignorais que o desejo de vin- gal-o me fez sobreviver-lhe. Agora morro contente. E tu, covarde, disse para Sinoris, não procures o thalamo, busca o tumulo!»

.4 abnegação de Eponina para com o seu marido Sabino, é ainda mais sublime, do que o sacrifício de Camma, pois se prolongou por espaço de dez annos.

E comtudo aquelles gaulezes, que inspiravam a suas mulheres um tal afíecto, um amor tão incorruptivel, não comprehendiam do mesmo modo a fi- delidade matrimonial.

O grande historiador Michclel dcscreve-os, na sua Hi^itoria de Franca, como homens levianos, e revolvendo-se cegamente em prazeres infames.

Com effeito, se os gaulezes respeitavam as suas mulheres, não se respei- tavam a si próprios, e á similhança d'alguns povos da Itália entregavam-se aos mais iiorriveis excessos, especialmente no iim dos festins, em que haviam feito uso imoderado das bebidas fermentadas. Estas desordens sensuaes não eram, como entre os romanos e os gregos, o producto d'uma civilisação exagerada c mais um vicio da imaginação do que dos sentidos; correspondiam á uma gros- seira necessidade de incontinência, despertada pela embriaguez e similhante a um aceesso de furiosa demência. O festim, prolongando-se por entre cânticos bachicos e obscenos, terminava em confusa orgia, em cuja treva reinava a igual- dade da prostituição.

Diodoro da Sicilia aífirma que os gaulezes associavam as suas concubi- nas áquellas scenas escandalosas. E' esta a traducção latina do texto grego, que demonstra a aberração do sentido moral d'aqueiles bárbaros.

«Ueminiv licet elcíjantos habebant, nlmium tamen illuruin consuetaitine a/ficiuntur, quin potius nefariis niasruloruDi strupis, et humi feraruin pelibns- incubanles, ab utruque lalere cum concubinis volutantur. Et quod omniuin in<U(jnissimum est, proprii decoris ralione proslliabita, corporis venuslalein aliis lecissime prostitiint, nec in vilio illud pronunt, sed potius unijuis obla- tinii ah Ipsis ijratiam nan acceperit, inhones-lum sibi id esse dicunt.»

No dia seguinte, á luz do dia ninguém se recordava do que .se h^ivia passado, e assim não se envergonhavam ao olhar uus para os outros. Mas nem

12 HISTORIA

sempre a inimunda bestialidade se escondia á luz do sol, porque os celtas de pura raça (ingenui) amavam as suas oguas e as suas cadellas como compa- nheiras idolatradas da sua vida aventureira e guerreira.

Tal era a situação moral da Gallia, quando Júlio César a subníetteu. Os gau- lezes de génio leviano e impressionavel tão depressa se amoldaram á domina- ção dos vencedores, que em breve vieram a ser romanos, conservando os seus vícios e virtudes n'aquella escravidão, .lá elics eram pela visinhança de Mar- selha alguma cousa gregos ; mas a iniluencia de Roma íez-se sentir até ao fundo da Gallia Bélgica, e todas as principaes cidades Lião, Antum, Bordeos, A'ienna, Lutecia em mui breve nada tiveram de gaulez, mui especialmente depois da destruição do druidismo e dos druidas. Todavia, por mais de dois séculos ainda se conservaram vestígios das instituições druidicas; ainda no fundo dos bos- ques se encontravam prophetisas ; os luinnes continuaram a dançar á luz da lua; mas a religião dos gregos e dos romanos tinha na Gallia mais fcrveroso culto do que em outra parte do grande império; a legislação seguiu de perto a reli- gião e todos os costumes gaulezes se foram modelando pelos dos gregos e ro- manos.

Não temos dado algum especial sobre o estado da prostituição gallo-ro- mana, mas podemos presumir que este estado em nada diferia do que era em Roma e nas províncias asiáticas ; unicamente as gaulezas conservavam o res- peito por si próprias, essa nobre altivez que as caracterisa na historia, e por tanto poucos elementos subministrariam á libertinagem publica.

Mas as estrangeiras não faltavam e os governadores, os magistrados e os chefes militares, que Roma enviava para as Gallias, traziam comsigo todos os requintes do luxo a que estavam acostumados. Como se privariam dos seus eunuchos, das suas bailarinas, das suas orchestras, de todo o seu pessoal de libertinagem? , Em seguida, ajudada pelo seu próprio gosto dos gaulezes, tanto na Gallia Toyata, como na Gallia Comata, houve uma recrudescência de luxo e os festins de Júlio Sabino em Langres nada tiveram que invejar aos de Lueulo em Roma.

A metamorphose, que a occupação romana produzia na Gallia, foi sem du- vida menos sensível nos campos do que nas cidades ; mas os deuses de Roma em todas as partes foram acolhidos com o mesmo entbusiasmo religioso. Al- guns d'estes deuses, como mais sjmpathicos ao caracter dos habitantes e aos costumes do paiz, mereceram preferencias. Hercules, Baccho, Vénus, Isis, Pria- po, tinham templos e estatuas que atrahiam numerosas otlerendas. O gaulez inclinou-se para as divindades menos severas, e que mais lhe fatiaram aos sen- tixlos; estava cançado dos terríveis mysterios de Teutates e queria diver- tir-se em honra dos novos deuses, que Roma lhe enviara.

Para a prostituição legal foi esta época mui brilhante e, cymo todos os povos que de repente se iniciam nos gosos da civilisação, as raças célticas ra- pidamente attingiram os últimos graus de corrupção social. E' preciso ler as poesias d'Ausonio, venerável professor de Bordéus, mestre do imperador Gra- ciano, para conhecer a profunda desmoralisação que se apoderou da sociedade gaulcza. Ausonio de modo algum approva os lúbricos exemplos, que otíerecc á consideração do leitor, mas desereve-os como homem que entende bem do assumpto de que se trata. Mesmo a maneira como os condemna é mais obs- cena ainda, do que as mais enérgicas passagens de Juvenal e Horácio; alli, se encontram sensualidades sórdidas e monstruosas, que ultrajam a natureza: tudo o que pôde inventar a preversão dos sentidos, tudo .se enumera em al- guns epigrammas do poeta gallo-romano, que dirigia preces em verso a Chrislo, a verdade da verdade, a luz da luz (ex vero verus, de lumine lúmen.) Depois de se lerem estas piedosas orações chrislãs, de admirar é que Ausonio não se te- nha enojado, descrevendo as lúbricas phantasias da famosa cortezã Cris,pa,

DA PROSTITUIÇÃO 13

Quando os sicambros se precipitaram da Germânia sobro a Gallia romana, quando os bárbaros do norte desceram até ás províncias mais florescentes do império, com os seus carros, conduzindo os seus deuses, suas mulberes e seus filhos, não se contaminaram com a civilisação que se espantava d'elies, e pare- cia exaurir-se á sua approximação, como um rio cujas nascentes tivessem se- cado.

Estas numerosas hordas, renovando-sc sem cessar á medida que se alas- travam pela Gallia, ameaçavam exterminar a população gallo-romana. A trihu salisca foi a ultima a marchar, mas quiz fixar-se no solo tão devastado por continuas invasões. Os saliscos, aquella terrível família dos francos, que tinha feito uma paragem junto das boccas do Isel, começaram a estabelecer-se na Gal- lia Bélgica por melados do século quinto e avançaram de cidade em cidade até Lutecia. Os saliscos eram formosos e nobres, de grande estatura, d'olhos azues e cabellos loiros e de expressão suave e intelligente. Comtudo, devastavam, destruíam, matavam ; mas não violavam. E isto era mais despreso do que com- paixão pela raça vencida.

Os costumes dos francos conservaram-se intactos por algum tempo sob a salvaguarda da sua religião e das suas leis, pois que se envergoniiariam de se tornarem germanos ou gaulezes, e assim se perservaiam da mancha da prosti- tuição, que nunca havia penetrado nem nos seus templos de Irmcnsui, nem nas suas tendas hospitaleiras, nem nas suas praças foi'liíicadas. A lei salica não re- conhecia cortezãs no povo franco.

CAPITULO II

SUjMíMARIO

Os francos As mulhures livros e as escravas.— Condirão das ingénuas ou mulheres livres dos francos.—

A prostituição legal não existe entre os francos.— As concubinas.— Vida particular das mulberes livres —A pro.sti- tuição sagrada desconhecida entre os francos.— Licenciosidades relifiiosas do mez de fevereiro.— Origem da festa dos Loucos.— As strias ou feiticeiras,- A hospitalidade franca.— Condição da viuva.— Preço da virgindade d'unia hur- gonds livre.— As moedas do matrimonio.— Lei protectora do pudor das mulheres.— O código de Rotharis.— Os mo- chos fi as gralhas.— Os contractos libertinos e as violências impudicas.— O mercado da prostituição.— Kigor da lei dos ripuarios contra os auctores das violências impuras nas mulheres.— Os dois graus de supplicio daca.stração.— Leis dos bárbaros contra o adultério. Lei do Slenvig sobre o incesto.- Jurisprudência dus bárbaros sobre a prostituição- —Decreto de Recaredo, rei dos visieodos.

s FRANCOS, cujo notiic ciii linguagom liHilonica não siíínifica livres, mas sim, ailivo, indomável, como a palavra latina ferox, corres- pondendo a frek ou frenk, não tinham acccitado como os germa- nos e os gaulczes, seus antepassados, o domínio das muliíercs, nem concediam a este sexo, (juc clles reputavam inferior ao seu, supremacia alguma. A mulher entre aquelles bárbaros, ávidos de guerra e indilTerentcs á morte, não era, pois, rodeada pelo prestigio ou respeito religioso, que desde os mais remotos tempos lhe era attribuido ])elos gaulczes e germanos; a nuíTiíer IVanca linha a consciência da sua fraqueza e era estranha á gerência dos negócios pú- blicos, sempre sujeita ao poder do pae ou do marido.

Portanto, a prostituição de qualquer classe não tinha razão de ser em uma sociedade regida por leis brutaes c cruéis, cheia de hábitos guerreiros, ignorante das artes corruptoras da civilisação, indidcrciitcs aos prazeres da inacção e des- denhosa de toda a concupiscência. I\lais adiante veremos que, se a prostituição alguma vez existiu, sempre se conservou occulta, sem se declarar a si mesma, por assim dizer.

A raça franca dividia-se em duas cafhegorias de individiws: as pessoas li- vres, os infjenuí dos latinos, e os escravos ou servos, servi. Estes últimos des- cendiam d'uma população saxónica ou tculonica, que os sicambros ou salicos tinham reduzido á escravidão e se misturara depois de muitas gerações com os vencedores.

Seja como fòr, a linha divisória entre mulheres livres e servas era muito aceentuada. Estas pertenciam aos senhores, aquellas aos aos pães ou aos ma- ridos. Uma mulher, donzella, ca.sada ou viuva, nunca tinha o direito de dis- por da sua pessoa. Quando a mulher não tinha pae ou marido, toda a tribu lho podia pedir contas do seu proceder.

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Em tal estado de submissão permanente, as mulheres livres nunca ousa- riam prostituir-se, o que as teria feito descer á cathegoria d'escravas ; e estas, tendo cada uma seu senhor, não podiam tão pouco prostituir-se sem expôr-se a penas corporacs, e sem fazer recahir sobre os seus cúmplices a grave respon- sabilidade dos seus actos.

Além d'isso, era todos os tempos e em todos os paizes, as mulheres não são mais do que os homens querem que ellas sejam ; e os francos, apesar da sua altivez, do seu ardor guerreiro e da sua vivacidade, não eram mui propen- sos por temperamento á satisfação dos sentidos. Os francos tinham uniões in- dissolúveis, cujo fim único era a procreação dos filhos varões. Comprehen- de-se que tendo em vista este fim, tivessem além das mulheres legitimas mui- tas concubinas ; estas barregãs, como diz o douto Bouquct (Historia dos Gau- [i'zes, tit. ir, pag. i22. Nota) ordinariamente eram escravas, que chegavam a ser honradas com o titulo de esposas, passando pelas nobres funo^'ões de mães de familia.

As mulheres francas viviam mui retiradas, no interior das suas casas, amamentando, educando os seus numerosos filhos, fiando o linho ou lã, tecendo uu cosendo e fazendo a cama e as refeições de seus esposos, a quem não acom- panhavam á guerra, nem á caça, nem ás assembleias jurídicas, nem aos jogos equestres. Apenas se atreviam a entreabrir as suas tendas e descortinar a dis- tancia, atravez das palissadas que as defendiam, p resultado dos combates, das justas, ou das caçadas. A iviam entre si, obscrvando-se, e guardando-se mutuamente, de tal modo, que nem o pensamento da incontinência lhes atraves- sava o espirito.

Cousa alguma também da religião dos francos favorecia a prostituição sa- grada. Esta religião era um grosseiro paganismo, que dera horríveis e monstruo- sas formas á representação dos elementos naturaes, a agua, o fogo, a terra, a fi-mpestade, a lua, o sol. Não adoravam outros deuses, e prestavam-lhes um culto extravagante, acompanhado de cantos, danças e momices.

Não se sabe em que consistia este culto, que Gregório de Tours qualifica de insensato (fannlicis cultihus) e legou ao christianismo varias superstições. Por exemplo: n'iim iTportorio das praticas pagãs, feito no Synodo de Leptines em Hainaut, no anno 743, vèem-se certas ceremonias do mez de fevereiro (De. spur- ralihns in februario) em que se pode reconhecer a origem do carnaval. Lé-se lambem no mesmo reportório: De pagano ciirsti quem ijrias nominant. «Nas Iv.dendas de janeiro, diz o abbade Derroches, nas memorias d'Academia de Bru- xellas, os homens disfarçavam-se em mullieres e as mulheres em homens, ou- fn)S, cobrindo-se com peiles e adornando-se de cornos, disfarçavam-se em ani- mies; todos corriam pelas ruas, saltando, grilando e praticando mil loucuras. Tal foi o ponto de partida da famosa festa dos loucos, que subsistiu na egreja cliristã até ao século decimo oitavo.

O Indiculus das superstições, que nos parecem mais francas, do que gau- ie/.as, falia das mullieres com poder na lua e que devoravam o coração dos ho- mens. Eram estas as bruxas ou feiticeiras, de quem os francos tanto se arre- cciavam de pactuar com os génios do mal. Em breve provaremos que estas fiitieeiras, graças ao medo que inspiravam, praticavam uma espécie de prosti- tuição que ellas tami)em se jactavam de fazer com os espíritos maléficos.

Os francos não respeitavam a jurada ifnmiliare esl ridendo fidem fran- f/n-e, diz Flávio Yopisco) e todavia, segundo Salviano, respeitavam a hospitali- dade. Comtudo a hospitalidade de modo algum auctorisava o commercio do hos- |ii'de com a esposa ou concubina; estas, emquanto o hospedeiro e o hospede b'biam pelo mesmo copo, trocavam os seus punhaes e os seus braceletes, se CMlretinham jogando jogos d'azar e dormiam na mesma cama, evitavam appa- rccer.

DA PROSTITUIÇÃO ^^

O viajante, que parava n'uma cidade ou campo salico, s6 desejava dcscan- çar, matar a fome ou a sede e estar disposto a continuar o caminlio no dia se- guinte. Este viajante, não tinlia pois necessidade de encontrar recreações sen- suaes, que lhe augmentariam a fadiga, e que tão pouco figuravam no programma da hospitalidade franca. queria evitar lodos os motivos de encontrar frente a frente como inimigo aquelle que generosamente o acolhia no seu lar. O franco não teria applaudido a prostituição de sua mulher, de sua filha, ou de sua es- crava em honra do hospede, a quem recehia como um irmão e amigo, pois que procurava tei-as afastadas c nem se quer permittia, com medo de lhes pertur- bar o pudor, o avistarem o estrangeiro.

As leis dos bárbaros provam-nos que eram mui zelosos da virtude das suas mulheres c que não teriam soíTrido n'estc ponto a menor oITensa. O ma- rido, o pae, o senhor tinham direito de vida e de morte sobre a esposa, filha e escrava, e os excessos d'esla auctoridadc eram puníveis. Por exemplo, um marido que matava a mulher para casar-se com outra incorria somente na pena de não trazer armas (armis depositis ;) matar uma mulher adultera era lei geral que não admiltia vacillação ou tardança; muitas vezes o marido não esperava pela consummação do acto, e vingava-se sem, ao certo, adquirir a cer- teza das suas desconfianças. A capitular conlentava-se em desarmar o franco, que matava sua mulher sem razão comprovada (sine causa.)

Não c demais insistir no principal obstáculo ao exercício da prostituição. A mulher nunca era senhora de si, mesmo quando viuva; seja não tinha os pães, marido ou filhos a pedir-lhc responsabilidade, ficava de certo modo sub- mettida a uma servidão commum, sujeita á fiscalisação de todos, que tinham o direito de lhe vigiar os actos.

Quando uma viuva queria casar-se cm segundas núpcias, tinha de pagar uma espécie de resgate ao parente mais próximo do defunto marido ou ao the- souro do príncipe, que reconhecia como senhor. Esla quantia era de três soldos de ouro. A lei dos burgondos diz que uma viuva que houver tido voluntaria- mente relações iilícitas com um homem (quod si mulier tidaa cuicumque se non inmta sed libidine victa sponte miscuerit,) não poderá reclamar índemnísa- ção alguma, nem obrigar o seu cúmplice a casar com ella, porque a prostitui- ção a tornou indigna de marido c de exigir indemnisação.

A mesma lei concedia á filha de um burgondo livre, seduzida por um bár- baro ou por um romano, o direito de reclamar quinze soldos de ouro ao seu seductor, em pagamento do seu desíloramento, mas ficava infamada pela perda que sofTrera, (illa rero facinoris sui deshonestala flagitio ainissi pudoris susti- nebrit infamiam.) Estes quinze soldos de ouro, que o cúmplice era obrigado a entregar á sua victima, representavam o preço da prostituição, e a mulher que ousava reclamal-os ficava equiparada a uma cortezã.

Todavia parece que a legislação dos bárbaros, sanccionando a escravidão do sexo feminino, reconhecia que a mulher, que não tivera conhecido homem, ficava interessada n'uma pequena parle, logo que era entregue ao seu marido, pois que este, segundo os antigos usos da lei salica, não contrahia matrimonio, senão depois de lhe ler dado a ella um soldo e um dinheiro, para pagar-lhc a virgindade, segundo a tarifa geral.

Esta pratica nupcial tem-se conservado até aos nossos dias, embora á cerimonia das moedas, que o sacerdote abençoa nos anneis nupciaes, se tenha dado uma interpretação christã. Este soldo c o dinheiro, que a mulher recebia ao casar-se, constituíam o preço do único bem (prwmium) que podia reivindi- car como cousa própria, e de que podia dispor, segundo a sua vontade. Exce- ptuando isto, não tinha nem terras, nem rendas, nem direito de concessão. O dote que o marido dava á mulher era apenas a garantia de alimental-a, e este dote passava á familia da mulher, no caso da morte d'esta.

HjsToaiA DA Prostituição. Tomo ii Folha 3.

1 8 HISTORIA

Ordinariamente os presentes, que a familia acceitava do futuro marido, representavam uma espécie de venda, em que a noiva era uma mercadoria pas- siva. O código dos barL)aros protegia as mulheres em todos os casos, em que o pudor podia ser aggravado; mas as muilieres, para terem direito a esta protecção permanente, deviam nierecei-a pelo seu procedimento lionrado. Alguns motivos temos para suppòr que as feiticeiras e libertinas não gosavam do beneficio da lei protectora, nem tinham por titulo algum o respeito de quem quer que fora. Esta investigação sobre a moralidade das partes fazia com que muitas vezes se não promovesse um processo de injuria, como medo da devassa.

Aqui apresentamos o texto da lei salica, em (|ue julgamos ver, que o de- lido de injurias com relação á mulher, estava subordinado á sua condição e cos- tumes, e de modo que esta podésse sempre justificar o seu comportamento.

«Se alguém chamar meretriz a uma mulher de raça nobre, sem o poder provar {Siquis melieriím ingemmm striam clamavark aut meretricem et con- vincere non poterit) será condemnado a pagar 7:300 dinheiros, ou 187 soldos de ouro.

E' claro, pelo theor dVste artigo, que quem era accusado de haver inju- riado uma mulher podia dcfender-se, allegando que essa mulher, como feiticeira ou meretriz, era indigna dos benefícios da lei, pois que uma mulher, exercendo um mister deshoncsto e criminoso, nunca podia ser ultrajada. lia a notar-se que as injurias mais graves que podiam fazer-se a uma mulher livre, eram cha- mar-lhe feiticeira ou cortezã.

O grande valor da multa, paga pelo auctor do ultraje á mulher que o re- cebia, prova que os francos nada despresavam, tanto como as feiticeiras e as li- bertinas.

Emquanto á maneira de fazer a prova, podemos fundar as nossas hy- potheses nos usos jurídicos da raça franca, que admittia o juramento, o com- bate singular c as testemunhas, para restabelecer uma verdade deante de um magistrado.

Ha muitas versões da lei salica, re^ligidas em diversas épocas e em dif- ferentes tribus. Em todas cilas o titulo De helnirgio (xxxiii,) que contém dis- posições severas sobre as maiores injurias (|ue a mulher pódc soifrer, tem va- riantes na quantidade da multa, (|ue parece ter diminuído, á maneira que a qualificação de feiticeira e cortezã ia inspirando menos horror. Assim, na lei sa- lica, modificada por Carlos Magno, a multa de 7:o00 dinheiros é reduzida a 800 e mesmo a (>00 cm outro código d'csla mesma lei. Segundo antigos manuscri- pliis, a injuria cortezã dirigida a um homem ou a uma mulher livre, era pu- nida com uma multa, oseillando entre ío e 15 soldos de ouro.

Todavia, por causa das variações continuas do valor da moeda, renun- ciamos a fazer uma apreciação exacta da importância d'esta multa. Tudo o que podemos fazer notar c que uma niulla de 7:-)00 dinheiros, equivalentes a 187 escudos de ouro, era excessi\'a, pois que uma feiticeira convencida de ler co- mido carne humana (.s;' stria hominem comederil) pagava 800 dinheiros, ou 20 soldos de ouro.

A lei salica reconhecia para o homem duas injurias, que equivaliam ás injurias feitas ás mulheres; mas a píMia (Testas injuiias não era tão rigo- rosa, provavelmente em vii-tude da frcípiencia do delicio: a primeira, cherriíi- bnrijm, ou strioporlius, significava servente de feiticeira, e era punida com a multa de 230 dinheiros, ou fiS soldos e meio ; a segunda, que encontramos na lei salica correcta por Carlos Magno, parece ser análoga ao nosso prejiiro, pois que fnlsnlor era a(|uelle que jurava cm vão. Tm artigo da lei salica carlo- vingia colloca f|uasi ao mesmo nivel a injuria de prejuro e meretriz, laxando a multa da primeira em (iOO dinheiros, ou quinze soldos de ouro : quis al- tennn falsalorem, et mulier alteram meretricem clamaverit.

DA PROSTITUIÇÃO 19

O slrioporíius, que desempenhava um papel terrível nos mysterios da pros- tituição magica, não era accusado de levar o caldeirão ás reuniões das feiti- ceiras, illum qui inium dicilur prosla.fsent strias cocinant, segundo uni texto da lei salica ; atlribuia-se-lhe também o poder de servir de besta áquellas in- fames, transportando-as ás suas assembleias atravez dos espaços. A feiticeira nem sempre cavalgava sobre os liombros do seu servidor; umas vezes ia a ellc abraçado, outras agarrava-se á cauda do personagem transloiniado em cão ou porco ; lambem se via ás vezes passar pelos ares, com a rapidez duma llexa, um enorme marcego, levando em cima duas e mesmo três feiticeiras.

Estas diversas injirrias eram tão atrozes, que não foram collocadas na ca- tegoria dos demais insultos e foram comprchendidas á parte, sob o titulo de hebunjium, que queria dizer um verdadeiro envenenamento.

Todos os legisladores bárbaros estavam de accordo sobre o caracter da inju- ria que se fazia a uma mulher livre, quando era infamada com o nome de cor- tezã ; mas todos reconheciam no ofíensor o direito de provar a verdade da ac- cusação. O texto da lei salica é muito conciso e obscuro; todavia sobre este ponto, para interpretal-o, dando-llie o desenvolvimento necessário, temos nas leis lombardas de Rotharis um capitulo, que com certeza contém toda a legis- lação (los francos, relativa ao hebunjium.

Rolbaris, que publicou o seu código em 643, compilou-o das leis barba- ras e especialmente da lei salica, que frequentemente nada mais fez do que commenlal-a. Segumlo o código Rotharis, se alguém chamava em alta voz a uma donzclla, ou mulher livre, prostiíuta (fornicariam ant slrigani) devia pagar uma multa, ou provar a alíirinação. No primeiro caso, deaíite de doze testemu- nhas fiadores do juramento, jurava ter proferido tão horrível injuria (nefan- dum crimen) sob o dominio da paixão e sem intenção de o sustentar perante a jusliça, e para punir-se a si próprio pagava uma multa de 20 soldos de ouro, prometlendo nunca mais repetir a calumnia, mas, se o auctor do ultrage insis- tia na accusação offcrecendo prova, era então admiltido o juizo de Deus e devia combater com o campeão, que lhe oppunha a mulher ultrajada.

Se o êxito do combate provava que a desgraçada era digna do nome de prostituta, era ella que pagava a multa dos vinte soldos de ouro. Se era o cam- peão da ultrajada o vencedor, o vencido, para resgatar a vida, pagava uma in- demnisação que variava, segundo o nascimento e condição da mulher calum- niada (V. Collection des lois des barbares, publicada por Paulo Camisani, tit. II, pag. 79;) na lei salica esta injuria (ineretrix) dirigida a uma mulher livre chamava-se em lingua rústica estrabo que se tem procurado traduzir em sa- xão por entroijas, mas que n'esta lingua não tem sentido.

As demais injurias, que se podiam dirigir a uma mulher honrada e que não precisavam prova, não estão especificadas na lei salica; a de mocho ou coruja, única especificada, corresponde á injuria de feiticeira, porque estas faziam de noite os seus malefícios.

A lei salica não era tanto das injurias verbaes, como dos factos ultrajo- sos, que, no interesse do sexo feminino, se occupava. Estas injurias referem-se a três cathegorias principaes, que podem assim ser designadas: o allentado ca- pilar, contactos libertinos e violências impudicas. Sabido é que o cabello, tanto na mulher como no homem da raça franca, tinha um caracter sagrado e invio- lável. Era menos criminoso aquelle que com um ponta-pé ou murro matava uma mulher gravida, do que o que a despenteava. Com efleito, se uma mulher gravida morria em consequência d'alguma violência corporal n'ella exercida, o assassino era apenas condemnado na multa de 22 soldos de ouro, emquanto que se a despenteava, de forma que o cabello lhe cahisse pelas costas, o reu de tal delicio incorria na multa de trinta soldos; mas se o toucado era apenas lançado ao chão, então a multa era limitada apenas a 15 soldos.

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Os contactos libertinos eram punidos com pesadas multas. O homem li- vre, que apertava (instrinxerit) a mão ou os dedos a uma muliicr livre, incor- ria na multa de GOO dinheiros ou 15 soldos; se a agarrava por um braço (des- trin.rerit) em 1:200 dinheiros ou 30 soldos; se lhe apertava o antc-braço, em 1:400 dinheiros ou 35 soldos; finalmente, se lhe locava no peito (mamilas capulareril) em 1:800 diniieiros ou 4o soldos de ouro. Era um capriciío, que custava duas vezes mais do que a morte d'uma mulher gravida; e (juem não tinha a somma exigida, pela alternativa da lei perdia o nariz, as orelhas ou ou- tra parte do seu corpo.

Ha todavia taes differenças nas multas indicadas pelos textos da lei sa- lica, que é forçoso confessar a impossibilidade de salisfactoriamente as explicar. Assim, n'uma das redacções d'essa lei, que muito bem pôde ser a mais antiga, a moi'te d'uma mulher gravida, provocaria por maus tratas, é punida Cf)m a multa de 28:000 dinheiros, ou 700 soldos de ouro, e se era unicamente o feto o que perdia a vida, a multa descia a 8:000 dinheiros, ou 200 soldos de ouro.

A violação deve ter-se dado mui raramente entre os povos tcutonieos, mui pouco susceptíveis de arrebatamentos. Mas nem por isso esse crime deixa de ser punido na legislação barbara. Se uma noivA (druthe, em saxão) indo em procura do noivo, se encontrava com um homem, que a violava, o auctor do attentado não podia fazer composição com a victima, a menos de liie pagar 8:000 dinheiros ou 200 soldos. (Si quis puellain sponsatam ducenlem ad mariliun et eam in via aliquis adsalierit et cuni ipsa violenter ))i(eehalus fuerit). Esta composição em lingua barbara ciiamava-se chaniijehaldo, que quer dizer preço de prostituição. Mas, se se reconhecia que a noiva cedera ao homem pela sua vontade, perdia esta a sua condição de ingénua, se era da classe livre.

A multa não era maior, quando um homem, viajando em companhia de uma mulher livre, attentava contra o seu pudor (adsalierit el vim ille inferre pnesumserit.) Desgraçado do criminoso, se não era de condição livre, porque, se era escravo ou liberto, era castrado ou morto!

A lei dos Ripuarios é ainda mais rigorosa contra os auctores de violên- cias praticadas em mulheres, do que a lei salica. O rapto d'uma mulher livre pop um escravo não admittia composição pecuniária. O nobre, (jue praticasse um rapto pagava 200 soldos. Um escravo, que seduzisse uma serva e lhe cau- sasse a morte (a lei ripuaria não diz como) solTria a castração, ou resgatava a pena por 6 soldos de ouro; se a serva não morria em consequência da seducção, ou o escravo recebia 120 açoites, ou pagava os G soldos ao senhor da serva.

O supplicio da castração, que com tanta frequência apparece nos códigos bárbaros, fazia-se de duas maneiras dilTcrentes, constituindo duas penalidades distinctas : ou eram apenas arrancados os testiculos, ou se sup|)rimiam comple- tamente os órgãos sexuaes. Esta cruel operação, que hoje produziria morle certa, não dava então logar a casos falaes, tal era a habilidade dos operadores e a robustez dos operados.

O adultério era entre os bárbaros castigado com a máxima severidade; mas de tal não se conclua que esses povos tinham uma ideia justa d'este crime, sob o ponto de vista moral e social. O bárbaro, visigodo, ripuario ou franco, não via no adultério senão um roubo carnal, c um ataque á posse legitima- mente adquirida. O roubo de 40 dinheiros, segundo a lei salica, era punido com a i)ena de castração, ou com a multa de O soldos de ouro; o roubo duma mulher a seu marido, na lei dos ripuari(js, exigia uma composição de 120 sol- dos de ouro. Se unia mulher durante a ausência de seu marido, (|ue podésse sup- pòr morto, conlraiúa relações concubinarias com outro, o marido no seu re- gresso tinha o direito, segundo o código dos visigodos, de dispor á sua vontade da sua mulher e do successor, que esta lhe houvesse dado, podendo vcndel-os, matal-os, ou perdoar-lhes.

DA PROSTITUIÇÃO 21

A lei dos ripuarios, no titulo De forbattudo, traça um quadro espantoso da vingança que o marido podia exercer contra o seu rival, sul) o pretexto de legitima defeza. Se surprchendia a mulher cm llagrante delicto de adultério, e SC o cúmplice pretendia resistir-llic, o esposo ultrajado tinha o direito de matar o homem que lhe roubava a honra; depois do que, chamando Icslemunhas, arrastava o cadáver até á esquina de uma rua ou praça, e ahi se quedava ao lado da sua victima por espaço de quarenta dias, relatando aos que passavam as circumstaneias do facto c proclamando a justiça do seu proceder. No liin dos quarenta dias entregava o cadáver á familia e ia jurar perante o juiz que matara, defendendo-se, a um homem, que o assassinaria a elle, e que o insul- tara, quando devia cahir-lhc <aos pés, implorando perdão.

O pae tinha igualmente o direito de morte sobre o homem, que surpre- hcndera deshonrando a filha. Se não o matava no acto, a lei salica chamava tlieodlidia á posse de uma iilha ingénua, sem o consentimento dos pães. O ho- mem, que se contentasse em obter o consentimento da Iilha, pagava aos pacs uma multa de 1:800 dinheiros ou 45 soldos de ouro.

A lei, todavia, não diz se, paga a multa, o violador adquirira o direito de continuar as relações illegitimas com a Iilha, ou se era obrigado a casar-se com a victima.

A lei dos burgondos parece esclarecer esta omissão da lei salica, dizendo que uma mulher, indo por livre vontade para a casa de um homem (dd viri cortem,) e voluntariamente cohabitando com elle, não o poderá deter contra von- tade d'clle n'csla espécie de adultério [is cui adulterii dicitur socielale pei-mi.v- ta), sendo o homem unicamente obrigado a pagar aos pães da concubina o imposto nupcial (nuptiale prelium,) licando livre para casar-se com quem queira, sem nada ter a receiar.

Na lei salica não ha disposição alguma especial relativa á prostituição propriamente dita; mas, segundo a lei dos bárbaros, pôde alllrmar-se que em parte alguma, n'essas remotas épocas da historia, esse vicio social era tole- rado, tendo que fugir ou esconder-se, logo que um facto d'esses era conhe- cido, n'um campo ou povoação d'aquelles povos austeros e selvagens. No antigo direito de Ileswig, no qual parece ler-se conservado o dos francos sicanibrios e salicos, diz-se que o incesto não era punido por lei, quando commctlido com uma mulher libertina. A que não era infame e não havia vendido o seu corpo {qum prkis scorlum non fecerit, nec infamis fuerit,) pertencia á familia, e devia guardar intactos os laços de parentesco; ao contrario, a que a todos se tivesse abandonado, íicava por este facto fora da lei.

O antigo direito dos godos, que também se refere lei salica, dispõe que a mulher, convencida de ter praticado. actos de prostituta, fosse expulsa da po- voação, como indigna de formar parle da ghilde e esta expulsão vergonhosa, (diz o commentador J. O. Sliernimok, no seu livro De jure Sueonum et (lathorum vetusto, '167i, pag. 321) era pena suíliciente para que a cortezã expiasse a tor- peza da sua profissão e a infâmia da sua vida.

A lei dos ripuarios não impõe desterro á mulher ingénua, que se aban- done a muitos homens, mas o que com ella fosse surprehendido (si quis cuni ingénua puella mcechatus fuerit) pagava pelos outros, e não pagava menos de 50 soldos de ouro; esta enorme multa ia de certo engrossar o thesouro do chefe da tribu ou do rei.

A jurisprudência dos bárbaros em matéria de prostituição é rigorosa na lei dos visigodos: um decreto do rei Reearedo, que subiu ao throno em 580, prohibe-a absolutamente, impondo-lhe severas penas.

Reearedo era catholico, e sem duvida os seus decretos foram submettidos á apreciação dos bispos, que ingeriam a jurisdição ecclesiastica em todos os po- deres tenjporaes, e que tinham sob sua lutella os soberanos que por elles eram

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convertidos; mas vimos, pelos concilios, (|iic a egreja catliolica se conformava com a legislação romana em muilos pontos de moral,' e que especialmente, sobre a prostitui(,-ão publica, fechava os olhos.

As leis dos bárbaros, ao contrario, não adniitliam esta tolerância corru- ptora e perseguiam de uma maneira implacável as mulheres de vida, que deshonravam a povoação onde residiam e onde faziam estendal dos seus vergo- nhosos hábitos.

O decreto de Recaredo é muito explicito: pôde considerar-se como o có- digo geral da prostituição entre os bárbaros, tanto eiilre os francos da Bélgica, como entre os visigodos da península hispânica. Se uma mulher de condição livre, exercendo publicamente a prostituição na cidade, era reconhecida como jiroslilula (meretrix agnoscatur) e frequentemente era surprehendida no crime d'a(iuiícrio; se esta desgraçada, sem pudor algum, mantinha relações illicitas com muitos homens, devia ser presa por ordem do conselho da cidade e ex- pulsa d'ella, em presença de todo o povo, depois de publicamente ter levado trezentos açoites.

Se ousava reapparccer na cidade e voltar ao seu antigo modo de vida, o conselho condcmnava-a á mesma pena e escravisava-a, pondo-a sob o domí- nio de qualquer miserável, que com rigorosa vigilância a impedia de percorrer a cidade.

Quando a mulher se dava á prostituição, com assentimento dos pães, es- tes pães infames, que viviam da deshonra da filha (pro hac iniqua conscientUi) recebiam cem açoites.

Toda a escrava de costumes dissolutos recebia trezentos açoites, e depois de, por ordem do juiz, lhe ler sido cortado o cabello, eraenlregue ao senhor, que era obrigado a reliral-a da cidade, guardando-a em logar seguro, para que alli nunca mais voltasse. No caso, em que o senhor não quizesse vender a escrava e lhe pcrmillisse o regresso á cidade, era o senhor condemnado a trezentos açoi- tes; a escrava tornava-se então propriedade do rei, do juiz, ou do conde, (jue a dava a qualquer pobre, com a condição da escrava não poder apparecer no lo- gar d'onde fora expulsa.

Se acontecia depois, que esta escrava se prostituía em proveito de seu amo, {adqnirens per fornicalionem pecuiiiam (loini)io ano) o senhor participava da vergonhosa pena da escrava, levando cUe lambem trezentos açoites.

Com o mesmo rigor eram tratadas as mulheres presas nas povoações de menos importância, e rés de iguaes crimes.

O juiz, (|ue por negligencia ou corrujição não applicasse o decreto de Re- caredo, incorria em rigorosa pena: depois de .ser demiltido, recebia por ordem do conselho da cidade cem açoites, c tinha de pagar ao seu successor 30 sol- dos.

CAPITULO III

SUMMARIO

Os francos Tencedores dos paulezes não foram influenciados pela cornipçlo patlo-romanana. Conversio do rei Clodovcu. Formarão da sociedade franceza. Estado da prostituição no reinado dos merovintrios. Os pryne- ceus. A prostituição concubinaria.— Retrato pliysico e moral dos francos.— Divindade-S prolificas dos francos. Frea ou Frigia, mulher de Vovau. Liher e Libera.— Estado moral dos francos depois da sua conversão ao cliristia- nismo. Os nobres.— Os plebeus.- Esforços do clero gaulez para moralisar os francos.- Condição das mulheres francas. Os matrimónios salicos. O presente da manhã. Humilhação voluntária das mulheres francas para com seus ma!"idos. A roca e a espada. Multiplicidade das relações concubinarias no reinado da primeira raça. Tole- rância forçada da egreja para com as escravas concubinas. Os differentes graus de associação conjugal. O serai-

matrímonio e o matrimonio da mão esquerda. Estado da familia na França. Os bastardos Descripção d'um gy-

neceu franco. Origem dos serralhos do mahometismo. Os gyneceus dos romanos no império do Oriente. Gy- neceus dos reis carlovingios.— Capitulares de Carlos Magno.— Diflerenles cjithegorias de gyneceus.

s FRANCOS, quo (Icsile meiados do século quinto aA-ançavam passo ] I a passo pelas Gallias, não se fundiram logo com os gallo-romanos ]|que submettiam ; os francos conservaram os seus costumes, a sua religião e os seus usos, sem se deixarem corromper pelo con- tacto da brilhante e voluptuosa civiiisação, que encontravam nas Uj cidades conqiiistailas; despresavam tudo que não provinlia dos seus maiores e pretendiam guardar a sua individualidade' entre as differentes raças, as difTerentes religiões e os diversos estados políticos, que se haviam agglomerado no território das Gallias. Mas, ao mesmo tempo, procuravam não transformar o género de vida e caracter dos primitivos possuidores do solo; nem lhes impozeram a obrigação de os imitar, nem mesmo lhes faziam sollrcr a influencia da visinhança e dos exemplos. A separação entre os gallo-romanos c os bárbaros conservou-se tão distincta, em todos os paizes onde se estabele- ceu o dominio franco, que se puniiaem vigora lei sádica simultaneamente com o código theodosiano, que tanto tempo vigorou nas Gallias, assim como uds restos do império romano. As duas legislações, que tinham força de lei sobre os ven- cedores e os vencidos, formavam um código especial de leis mundanas {lex nnnulana,) na qual cada um encontrava o seu direito, segundo a sua origem. Mais tarde, o código de Theodosio foi substituído peio de Alarico ir, rei dos visigodos, e este em seguida peio do imperador Justiniano, para a juris- prudência romana. Emquanto á jurisprudência barbara, foram accrcscenta- das á lei salica as leis dos allemães, dos bavaros e dos ripuarios. Esta união de duas jurisprudências tão diversas e oppostas suflicientemente demonstra que os francos não tinham pretendido sujeitar ao seu código nacional os povos com que evitavam misturar-se, e igualmente evidenceia que não acceitavani

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para a si auctoridade das leis dos povos que cscravisavam. Fica, pois, demons trado que a prostituiçião, tendo um regimen legal nas cidades gallo-romanas, con- tinuou existindo nas mesmas condições, depois da conquista dos francos, sem chegar a corromper a rude c altiva austeridade dos conquistadores.

Os principaes chefes das trihus francas tinham sido chamados ás dallias pelos bispos catholicos, que preferiam conservar a sua auctoridade soh o domi- nio dos bárbaros a luclar contra as perseguições romanas. Estes chefes fran- cos nada mais fizeram do que conformar-sc com um tratado secreto, ajustado com os membros influentes do clero gauiez, respeitando as cgrejas, os mosteiros e o culto chrislão. Não occupavam com as suas hordas guerreiras o interior das cidades, que haviam tomado pela força, ou que lhe haviam aberto as por- tas; acampavam em volta d'ellas, nas aldeias, nas quintas, nos campos fortifi- cados entre os seus carros carregados do producto do saque. Estavam sempre promplus para entrar em campanha, c a eniprciíendcr uma nova guerra; viviam isolados, e evitavam todas as relações com os indígenas gaulezes e com os co- lonos romanos.

A fusão das raças e dos costumes foi determinada pela conversão de Clodoveu c pela dos sicambros ao christianismo. Então pensaram os francos em fivar-se em a iXcustria e na .\ustrasia; então a divisão das terras c dos servos cm proveito dos chefes da nação franca creou uma sociedade nova, que não tardou em absorver completamente a sociedade gailo-romana.

Fazendo-se christãos, os francos fizeram-se também gallo-romanos, sem por isto perderem a sua individualidade barbara. Por espaço de mais de dois séculos, sob os auspícios das instituições merovingias, se desenvolveu aquella sociedade franceza, composta de tantos e tão diversos elementos e contendo em si os germens da civilisação christã.

Desde Clodoveu até Carlos Magno, os bispos foram os verdadeiros legisla- dores, e o código ccclesiastico dominou o código de .lustiniano e as leis teuto- nicas. A prostituição, condemnada pela egreja, não estava sob o império da legis- lação, e por isso mesmo a luxuria campeava mais desaforadamente. Nas cida- des governadas pelos bispos, não havia cortezãs, prostitutas que exercessem este vergonhoso mister; mas em toda a parte, em cada feudo {feudum) em cada vivenda campestre (mansio) havia uma espécie de serralho, ou gyneccu, cm que mulheres livres ou escravas trabalhavam de agulha ou fiavam, e em que o se- nhor encontrava prazeres fáceis, e sempre muita sollicitude em dispensar-lhe amorosas caricias. .4. prostituição concubinaria substituiu a outra, até que o ma- trimonio se pôde libertar dos escândalos que o deshonravam.

Os francos, o dissemos, desconheciam a sensualidade, quando invadiram as Ciallias: unicamente exerciam os seus dii-eitos conjugaes para procirar; para elles um dever sagrado era dar muitos combatentes á tribu; pois que, segundo as palavras de Libanio, no seu discurso ao imperador Constantino «toda a sua- felicidade é a guerra, o seu verdadeiro elemento; o repouso c-lhes insuppor- tavel, e nunca os seus vi.'Tinhos os poderam resolver ou obrigar a viver soec- gados.» E assim não tinham tempo para pensar cm voluptuosas distracções, aquelles, cujos costumes, segundo diz Eusébio, {]'ida de Conslnntino, liv. i, cap. xxv) se assimilhavam a animaes ferozes. Sidónio não os pinta com mais risonhas cores.

«O seu amor pela guerra, diz este auctor, nasce com elles. Se, esmaga- dos pelo numero ou peia desvantagem da posição, cedem á morte, nunca cedem ao medo. Mesmo na derrota, parecem invenciveis, e primeiro se lhes esvac a vida, (lo (|ue lhes foge o valor.»

Não tiniiam pois propensão para os enervantes prazeres do amor «nem amavam, nem procuravam ser amados pelas esposas», diz Tácito, faltando dos germanos, que em nada dilleriam dos francos do século quinto ; pensavam

DA PROSTITUrÇÃO 25

cm ser tcrrivcis cm parecerem altivos c dominadores aos seus inimigos. Para tal clTcilo produzirem, tingiam o cabello louro de vermelho, c cortavam-o atraz, puchando-o do alto da cabeça, cahindo-lhe na frente em fran(,'as, ou faziam dVllc um penacho, encimando o franco. (ísla abundância de cabello era um emblema da sua força pbysica e um jjrivilcgio de raça ; intiluiavam-se fiwrreiros ca- belluãos, e unicamente usavam bigodes, que muitas vezes lhes cabiam ate meio do peito.

O seu trajar ordinário também se não prestava a uma vida voluptuosa c dcscançada ; estreitos vestuários de couro de veado apertavam os seus vigoro- sos membros, prestando-se a todos os movimentos e nexões; um amplo tala- barte suspendia uma espa<la curva, chamada scramasax e uma acha de dois cortes pcndia-lhes da cintura. Nunca abandonavam as suas armas, nem mesmo nos festins nocturnos; a cerveja transbordava dos seus copos de barro negro ou vermelho todas as vezes que repetiam uma copla ou um canto de guerra. Clie- gavam sempre ébrios aos leitos das suas esposas ou escravas e, como se tives- sem vergonha de ver um arinian (heere inan) um homem- de armas nos braços de uma mulher, muito antes de amanhecer levantavam-sc.

Comtudo, os francos tinham uma divindade, que presidia aos matrimónios, ou antes geração, esta deusa era Frca ou Frigga, mulher de Wodan, o deus da guerra e da matança. Ella reparava os males causados pelo seu feroz es- poso ; dava a vida depois d'este ter dado a morte, distribuía pelos bravos o re- pouso e a voluptuosidade {pacem nolaplaleincjue lanjiens mortalibm-, diz Adam de Brema, na sua Historia eclesiástica.)

Adam de Brema aecrescenta que os adoradores d'esta Vénus do Norte a representavam, dando-lhe o attributo mais caracteristico do deus Priapo (ciijm eliam simulacnnn inijenti Priapo :) mas nenhum outro testemunho pôde ser citado cm apoio d'csta singular tigura da deusa Frca e vèr-nos-hiamos muito embaraçados, para justficar com aucloridades antigas esta opini.ão de Adam de Brema. Seja como fòr, esta deusa não era o symbolo da libertinagem e das pai- xões obscenas, mas do acto divino da geração, representando a natureza crea- dora.

Com mais visos de verdade se devem attribuir ao culto de Frca, do que ao de Priapo, a maior parte das tradições gallicas, que mui geralmente vogavam nos togares occupados pelos francos, e por esta razão, nos idolos, nos monu- mentos, nos troncos de arvore esculpido, se deve vèr antes a esta Vénus do norte do que a Priapo. Nas ruinas de muitos acampamentos de francos, nas margens de Rbeno, teem sido descobertas muitas ollcrendas de bronze c mar- fim, que deviam ter sido dons de mulheres á deusa Frca.

Nos fins do quarto século, quando a deusa Frca, adorada pelos francos de Yessel, introduzira talvez uma nova A'enus no paganismo romano, ergueram-sc templos ás divindades, que acaso eram de origem franca e que Santo Agostinho, na sua Cidade de Deus, nos apresenta como concorrendo uma e outra para os actos mais secretos da geração. Uma e outra occupavam o mesmo templo, o ór- gão sexual do homem estava collocado junto do órgão sexual feminino, á ma- neira d'essas divindidades, que se chamavam Pae e Mãe.

Santo Agostinho cita uma passagem de Varrão, a propósito das attribui- çõcs de Liber e Libera, cm que se não reconhece a Frca dos francos.

«Uberum á Liberamcnta appelatum volnut, diz elle, quod mares in coeu.ndo, per ejus beneficium, emisis seminebus, liberentur. lloc idem in feminis aijere Liberam, quani etiam ]'enerem putant, qaod et ipsas perhibeant semina emit- tere, et ab hoc Libere eamãem virilem corporis partem in templo poni femineam LibercR.»

Mas Clodoveu baptisado por S. Rcmigio destruiu os idolos que elle pró- prio adorara, e os francos seguindo-lhc o exemplo fizeram-sc baptisar e rcnun-

Hjsioru da Pbmtituiçío Tomo ii— Folha 4.

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ciaram .los deuses dos seus maiores. O calholicismo d"estes barljaros fui por muilo tempo Ião grosseiro couio o fora a sua idolalria; nem eomprehendiam o dogma, nem a moral, nem a religião, que iiaviam abraçado e que para elles se limitava a cerlas praticas e cercmonias.

Os bispos empregaram com bom êxito a sua auctoridadc ecciesiasliea para corrigir os costumes dos sicami)ros: estiveram em constante lucta contra estes bárbaros, que unicamente reconlieciam como leis os seus instintos c pai- xões brutaes: empregaram a cxcommunlião, c\pondo-sc a injurias, maus tra- ctos.c mesmo á morte, ao reprimir os seus neopbytos, que se entregavam com ardor selvagem a todos os excessos, escarnecendo do sacramento do matrimo- nio. >"aquelle tempo os reis tinham um gi-ande numero de concubinas, succe- dendo-se umas ás outras, e ás vezes sinuillaneamenle. A egrcja, lundando-se nas decisões unanimes dos concílios, permitlia a cada secular uma mulher, quer fosse esposa legitima, quer fosse concubina, segundo o uso da lei romana sobrevivente ao polvlhcismo. O clero gosava dos mesmos privilégios c era fre- quente ver um bispo com a sua esposa, e um sacerdote qualquer com a sua concubina.

Mas os francos não se contentavam com a tolerância cbristã, que a cada um ])ermillia uma esposa ou concubina; (|uçriam não si) mudar de mulheres frequentemente, formando novas uniões legitimas ou auctorisadas, mas lambem ler junto da esposa legitima muitas concubinas, que lhe comparlilhasscm do leito. Os francos tinham no ponto mais relirado da sua habilarão um gyneccu de escravas, que lhes davam lilhos, comparliliiando alIeiMialivamenle do leito do senhor. Era o costume de todos os bárbaros, que manifestavam a sua nobreza c riqueza com o numero das suas mulheres, dos seus cavallos c dos seus cães.

Na plebe, principilmentc entre os pobres, o matrimonio era monogamo, por falia de meios para sustentar muitas mulheiTs; mas a esposa ou concu- bina plelieia renovava-se frcfiuenlemenle, cedendo o logar a outra, visto que o divorcio não linha maiores formalidades do que o casamento.

Comprehendc-se bem o grande trabalho do clero gaulcz em combater os costumes licenciosos d'aquclles bárbaros, (jue se revoltavam contra toda a con- trariedade e (|ue viam um acto de escravidão iiiloleravel cm cada prescrip(;ão d;i lei divina e humana. Os francos não permil(i;nii que o sacerdolc julgasse e con- demnasse o (pie se occullava no seu lar: conlribuiam voluiilariamenle para as dcspe/.as do culto; dislribuiam muitas e avultadas csuKdas, davam ouro aos punhados para a construc,í.'ão e adorno das egrejas, para os relicários e scpulchros dos santos; mas eram indóceis c i-eheldes, quando o seu proceder era objecto das censuras e analhemas dos bispos.

Também se não eonforma\am como os preceitos do Evangelho, que pro- clamavam a igualdade da mulher ao homem; a mulher, segundo os bárbaros, era antes a sua escrava do que a sua companheira, c esta escrava não era eman- cipada pelo matrimonio, ficava por este facto sujeita a um jugo mais despó- tico.

Todas as mulheres entre os francos haviam aeceitado esta condição de servidão e inferioridade, que lhes era dada pelo sexo, e nem sequer podiam agra- decer a protecção do christianismo, porque a cxcommunlião que feria os ma- ridos ou senhores as alcançava também a ellas, e\pondo-as a ódios muitas ve- zes sanguinários. Com cnVito, o franco que repudiasse sua esposa preferia ma- tal-a a aceeilal-a novamente, obedecendo ás intimações dos bispos e curvan- do-se sob os analhemas da egreja.

Estes matrimónios ou concubinatos não eram todos consagrados pela ben- ção religiosa; mas sim auetorisados pela lei salica, mediante o soldo e o di- nheiro, que a mulher recebia, como .symbolo do contrato nupcial ; contraio feito deante de testemunhas, mas não escriplo, nem a.ssignado, se não no caso

DA PROSTITUIÇÃO 27

extraordinário, cm que o es|)oso no dia seguinte ao das núpcias confirmava o dote dado à esposa, dcitando-lhc um punhado de palha no seio e apertando-lhe o dedo niinimo da mão esíiucrda. O presevie da manhã (merijben ijabe) era quasi o único hiço da união conjugai, começado na véspera com a entrega d'um soldo de ouro e um dinlieiro de jirata, que o esposo depositava nas mãos da es- posa. Estas moedas parecem ter sido a tarifa (itramiion) geral e uniforme, que uma mulher, fosse qual fosse a sua classe, devia reclamar como preço da sua virgindade.

Depois de ter acceitado estas moedas, a mulher considerava-se vendida á(|U(lle homem e não se pertencia, cmquanto o divorcio ou a morte não rom- pesse as cadeias d'essa escravidão.

rode ajuizar-se da suhmissão de uma esposa a seu marido pelos termos que empregava, ao dirigir-líie a palavra. «Senhor e meu esposo, di/ia, cu tua humilde escrava.» (Doinini e iuijalis mei eijo ancilla tua). E' assim que, nas Formuliis de Marcolfi) (liv. ii, cap. 27,) falia a mulher a seu amo c senhor.

S() havia uma circumslancia, em (]Lie uma mulher casada podia suhtra- hir-sc á escravidão c erguer-sc do seu ahalimento. Quando a filha de pacs li- vres associava a sua vida á d'um escravo, entregando-se-lhe por amor ou por imprudência, seguia a condição d'csle espo.so indigno d'ella e tornava-se es- crava como elle. Mas a lei (los ripu.irios facultava-lhc sempre, em honra da sua familia, os meios de rcc(>n(|MÍ.^Iar a liherdade. A instancias de um parente ou amigo, a esposa requeria para ser citada perante o rei ou conde, que inda- gavam do .seu matrimonio deshonroso ; ella confessava o facto c entregava-sc á justiça do conde ou do rei. Este fazia comparecer o marido c acareava-o com a mulher, a quem em silencio offerecia uma roca e uma espada.

Sc a mulher oplava pela roca, ficava para sempre escrava e á mercê do homem, a quem amara o hastante para tudo lhe sacrificar; mas se escolhia a espada (içava novamente livre, matando o homem que a escravi.sara. I)'estc modo lavava a vergonha da sua prostituição com o sangue do culpado.

A conucnla era o emhicma ou symholo da condição servil (|ue o matri- monio imjiunha ás mulheres. Eslas não mais appai'eciam em puhlico; não man- tinham relações com homens; S(í sahiam veladas c cohertas com amplos ves- tidos, que nem sequer deixavam ver as mãos e os pés, passavam a vida fiando linhos e lã, tingindo tecidos c criando os tilhos. Sempre que os historiadores dos tempos merovingios nos introduzem nos aposentos das mulheres, apresen- tam-as, mesmo rainhas que sejam, occupadas nos trahalhos domésticos, longe dos olhares curiosos e dos desejos pivifanos.

As relações concuhinarias, que convinham aos costumes dos francos, che- garam a multiplicar-se tanto soh o reinado da primeira raça, que era preciso (jue um franco fosse muito pohre para não ter em sua casa mais do que uma mulher e duas escravas. A egreja fechava os olhos a estas licenciosidades em quanto podia fingir ignoral-as e em quanto a ella se não recorria para as fa- zer ces.sar. Levava a sua c^indcsccncia e respeito pelos senhores do paiz até pcrmittir-lhes relações amorosas com as suas escravas, sem formalidade al- guma matrimonial. Silvano, que era gaulez, e escreveu cm melado do século quinto, diz-nos que a tolerância ecciesiaslica para com as concuhinas fora tão mal interprctrada, que a maior parte dos que viviam em concubinato se julga- vam legitimamente casados, e tinham por esposas as escravas com quem cohahitavam maritalmente, (ad tantum res impnidentiam venit ut ancillas suas tDulti íixores putent, atque utinam sicut pxilantur esse quasi cônjuges ita sola haberenlur uã-ores.)

Mr. Cordemoy, apoiando-se na auctoridadc de Cujas, não se lembrou que este douto jurisconsulto estudara mais o direito romano que o direito bárbaro. O concubinato entre os francos c os gallo-romanos, que não tardaram muito em

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imilar os seus dominadores, nem sempre tinlia o caracter de seiui-malrimonio, dado pela jurisprudência romana, separava-sc d'elle extraordinariamente, pois qup sem cessar se renovava e mesmo compreliendia um numero avultado de mulheres, vivendo sol) o re^-imcn concuiiinario. Verdade é que em certas cir- cumstancias, um rei, um magnate, um nobre casado com uma mulher de baixa condirão, não lhe outhorgava o titulo d'esposa, mas o de concubina que não implicava a celebração do matrimonio chrislào. Ordinarimente, a concubina era uma escrava, que dormia no leito do senhor e que podia fazer pi-evalecer uma espécie de legitimidade nupcial, emquanto que o senhor não escolhesse nova concubina.

Os francos, principalmente os chefes, tomavam concubinas, casando se- gundo o ritual franco, dando o soldo e o dinheiro para não terem a impossibi- lidade de divorciar-se. A egreja nada tinha que ver com as uniões que ella não fizera, e se a seu pezar alguma vez intrevlnha, era quando um grande escân- dalo a obrigava a abandonar a sua neutralidade, mas fazia semj>rc isto com a maior prudência e tacto.

Insistimos, portanto, era acreditar que, sob o reinado da primeira e ainda da segunda raça dos nossos reis, chamava-sc eiífosa á mulher casatia, segundo o ceremonial da egreja e concubina á mulher casada, segundo a lei salica : Se- cundam leyem salicam et aniiqiiain cunsuetuãinem, dizem as Formulas de Mar- colfo sobre o soldo e o diniiciro, que constituíam o matrimonio civil entre os francos.

Sendo os concubinatos estranhos por sua natureza á sancção ecclcsias- tica, dependia do capricho dos interessados fazel-os e desfazel-os sem som- bras de escrúpulo. Tal foi por espaço de três séculos, o estado da familia em França ; ao lado da mulher legitima, única reconhecida pela egreja, havia uma ou duas concubinas, a quem o dono da casa dava maior ou menor considera- ção, conforme o seu proceder o as suas sympathias. A's vezes estas concubi- nas eram tão numerosas sob o mesmo tecto que o homem, que as mantinha, se via obrigado a despedir algumas, para que todas não morressem de fome.

O matrimonio salico foi usado para com as mulheres de prigeni franca, que concubinariamcnte casavam com liomens da sua raça. Estas concubinas, em geral, reconheciam a inferioridade da sua posição para com a mulher legi- tima, casada christãmente, e esta satisfeita com a sua superioridade, deixava-as cumprir os seus deveres concubinarios sem ciúmes nem despeitos.

Os filhos nascidos d'esle concutjiiiato não gosavam dos mesmos direitos auferidos pc los havidos de matrimónios legilimos ; mas comtudo tinham uma semi-legitimidade e a sua bastardia não lhe imijrimia nenhuma nódoa infa- mante, pois que com orgulho se intitulavam bastardos de casa. Viviam, sim, em estado de inferioridade e de respeitosa submissão para com seus irmãos, filhos da esposa legitima, os quaes exclusivamente represerilavam a linha here- dilaria e repartiam entre si os bens patrimoniacs.

Ao que parece, as concubinas tinham unicamente o lim de supprir as in- sufliciencias ou impedimentos da esposa, quando esta se afastava do leito con- jugal por cau.sa do menstruo, de enfermidades ou da lactação.

Havia muitas cathegorias ou graus de concubinas ; umas, de condição li- vre c da raça franca, julgavam-se tão bem casadas, como se a egreja ti- vesse santificado a sua união; outras, de condição servil e de origem estran- geira, nunca podiam ter a considei-ação da mulher legitima; a serva, que dor- mira com o seu senhor, apenas conservava uma certa auctoridade nas suas coni- ])anheiras, que de bom grado lira acatavam ; esta auctoridade augmentava á me- dida (|ue o tempo lha ia consagrand(» e que o senhor (^(/o//ííkíí.s) lh'a t:onlirmava com a sua bencvcdcncia.

Todas as mulheres, aggregadas a uma familia na qualidade de esposas, con-

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cubinas e escravas, viviam juntas no interior cia casa, onde homem nenhum podia entrar sem licença do senhor. Este logar reservado para as mulheres era chamado gyneceu entre os francos e entre os gallo-romanos {(jineceuin.) A pa- lavra corrompeu-sc de dillerentes modos, segundo o dialecto dos bárbaros que a adi)plaram, e por isso se encontra escripto genecium, (/enicium, (jenecoeum e (jenizeum, nos auclores escriptores do latim vulgar. O gyneceu era mais ou me- nos espaçoso, conforme a capacidade da casa; compunha-se de muitos compar- timentos, ou corpos de edifício e ordinariamente continha muitas ollicinas, onde as mulheres se entregavam aos trabalhos domésticos.

A dona da casa, a esposa ou concubina predilecta, tinha sob a sua di- reção os traballios do gyneceu, que mais particularmente diziam resjjcilo á in- dustria dos tecidos e á confecção de roupas. N'aiiuelle tempo, como em toda a antiguidade, os homens envergonhar-sc-hiam de pòr mãos em trabalhos feminis {muliere opuíi ;) se applicavam a trabalhos de martello.

Antigas chronicas estão de accordo n'este ponto: que os trabalhos cm per- tenciam especialmente ao gyneceu do norte ; e os trabalhos em seda ao gyne- ceu do meio dia. Papias diz que o gyneceu se chama lexlinuin «porque as mu- lheres, que n'elle se reúnem, trabalham em lã» {(juolibi conceiílius femiaaruin ad opas lanifici exercendum conveníal ;) e Pollux entende que ao gyneceu se poderia chamar sedaria, porque n'elle as mulheres se occupam nos trabalhos em seda.

Estes gyneceus com destino análogo existiam entre os romanos do impé- rio do Oriente,; em maior escala estavam generalisados em Constantinopla, e não pôde duvidar-se, portanto, que delles se originaram os serralhos que o mahometismo tornou menos laboriosos, desíinando-os unicamente ao amor.

Entre os romanos do Oriente havia gyneceus para os dois sexos, que n'elles trabalhavam separada, ou colleclivamcntc, segundo a vontade do senhor; mas n'esses gyneceus so eram admitlidos os escravos para sotlrereni castigo mais rigoroso.

Os gyneceus dos imperadores, dos magistrados e dos oíTiciaes imperiaes eram ollicinas penitenciarias, para onde se mandavam pelo tempo |)rehxado na sentença condemnatoria os pobres e vagabundos, que haviam comeltido um de- licio e não podiam pagar a multa imi)osla. Lé-se na Pauão de S. Romão, que ao santo foi vestida uma camisa de c encerrado n'um gyneceu em signal de dcsprcso {ad injuriam.) Lactancio no seu livro ^J5a morle dos perseguidores diz que as mães de familia e as patrícias, suspeitadas de chrislãs, eram ver- gonhosamente atiradas para os gyneceus {in yyiieceum rapiehantur.)

Imitando os imperadores de Bysancio, os reis merovingios e carlovingios tiveram gyneceus nos seus palácios de campo, e estes gyneceus continham uma grande população feminina, na qual os reis escolhiam para cada noite aquella que mais lhe appetecia. A capitular de Villis enumera as differentes obras exe- cutadas n'aqucilas ollicinas, onde trabalhavam também escravos e eunuchos.

«Oue em nossos gyneceus, diz Carlos Magno, haja tudo que é mister para trabalhar, isto é, linho, lã, cocheniliia, sabão, azeite, vasos e Iodas as coisas necessárias n'estes togares.»

Em outra capitular do anno 813, acerescenta:

«Que as mulheres empregadas em o nosso serviço (feminie noslrce qUiC ad opas nostrum servienles suul) tirem dos nossos armazéns a e o linho, com que façam capas e camisas.»

Lé-se no livro dos milagres de S. Bertino que as creanças eram manda- das para os gyneceus, onde aprendiam a fiar, tecer, coser e fazer todos os tra- balhos feminis {in genecio ipsius, nendi, cusandi, texandi, oinnique artificio muliebris operis edocteses.)

O dono de um d'estcs ealabelecimcnlos era em extremo solicito para com

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OS operários c a ninfjuem pormilfia a entrada no gyneceii, que pela legislação dos barharos era prolegido eomo um sanluai'io.

«Se alguém, di/ a lei dos alleniães, eoliabilar eom uma jmen de um gy- neccu, que lhe não pertença e isto eonlra a vontade d'ella, (|iie pague seis sol- dos d'ouro (Si cum piiella de (jenecio priore conciibufrii aliquis contra colunta- tem f//t.v.)»

O texto da lei dillerc nos dillerentes nianuseriplos, mas o sentido é quasi o mesmo. (>arlos Magno, n'uma nova redacção d'esla lei, cneor|)orada nas suas capitulares, lei ciu (|ue é castigada a violação consummada (s-i quis alterius puetlaiii de (jenecio violaverit) faz desappareeer a duvida sobre a espécie de vio- lência de que a mulher do gyiieceu podia ser victima contra sua vontnde.

Verdade é que nem todos os gyneceus eram da mesma ordom, ou pelo me- nos tinham diirerentes eathegorias, onde os trabalhos mais duros ou desagradá- veis estavam convenientemente regulados. Os trabalhos mais pesados eraiu fei- tos pelíjs escravos de inferior catlicgoria ou nos gyneceus penitenciários. O que Ducange pretende demonstrar no seu (llossnrio, palavra Gijneceuin, (|ue a maior parte dos gyneceus eram uma espécie de lupanares, é, portanto, uma falsidade. O próprio texto da lei dos lombardos, em que Dueange assenta a sua alliiMua- tiva, prova o contrario.

«lístabeleeemos (|ue, se uma mulher disfarçada por (|ual(|uer modo fòr surprehcndida em tlagi-aiite delicio de prostituição [si jendna, qn(C vsslfnt ha- bel mulatam, mcecha deprehen^a fnerit) não seja admittida no gyneeeu, como até aqui era costume, pois que, depois do se ter prostituído com um homem, não perderia a occasião de se pi'Oslituir com muitos.»

Este texto prova pelo eonti^ario que a lei velava pela jiureza dos costu- mes nos gyneceus; todavia, os gyneceos, taescomo os dos reis, fre(|uenlemenle mereceram essa i'eputação c ainda no decimo século o seu nome era syno- nimo de libertinagem. O proprietário do estabelecimento fazia um pacto con- cubinario com as operai-ias c estas disputavam entre si a honra de lhe perten- cer. «Se alguém, diz Ucginor) (De Eccks. disrip. liv. ii, cap. v) commcttcr adul- tério em sua propi-ia casa com as suas serventes ou gyneciarias.». . . Ksta pas- sagem parece indicar que r.os gyneceus, além das serventes, eram admitlidas pensionarias, ajustadas sub determinadas condições.

A sustentação de um gyneeeu era, portanto, muito dispendiosa: o capitulo 75 de um synodo de Meaux, citatlo por Ducange, falia de uns seculares, (|ue pos- suíam capellas e sob este pretexto cobravam dizimos gastos em sustentar cães e occorrer ás despezas dos seus gyneceus [inde de canes et (jijneciarias suax pascant.)

Os gyneceus foram-se restringindo ás suas proporções, á medida que se foram estab(decendo manufactiuMs, cíjue o eommcrcio, disti'ibuindo os seus pro- (luctos por toda a |)arte, tornou inútil o fabiico em casa de grande numero de tecidos e outros objectos. O viver das mulheres continuou todavia a ser em comnuim, e apesar da emancipação oHerecida pela cavallaria cm certas circums- tancias, a vida das mulheres continuou a ser reclusa. Mas então não havia concubinas n'aquelles santuários da família, onde a esposa legitima, rodeada dos seus lilhos e servas, lhes dava cxcmpl(»s de trabalho, de decência e de vir- tude.

CAPITULO IV

SUMMARIO

Liccnsiosidadcs concubinarias dos reis francos.— Clolario i.— Iniíumlac AregimMa.— Incoulinoncia ailiiHorade Caribcrto, rei de Paris. Marcovieva e MiToIlfda. Caribcrto repudia sua mullier In^niliurga.— Tcudcdiilda.— Os irmãos de Cariborto.— Goiítran, rei dOrlcans e r>(irf.'ojiha.— Cliilporico, rei doSoisson.— Audovera.— Frudogoiida.— Galovind. Dagdlicrlo i.— IVpino c a sua conculiina Alpais.— Assa.«;sinio de S. Lambei to piaticadu por Dodon, irmão dAlpais. Costumes dissolutos de lierlcbrain, bi.^^po de Bordeos.—lJruncquilda.— Carlos Ma^'no.— Suas concubinas Maltfi:arda, (iersuinda Regina c Adalinda.— Suas lillia.s.— O carlulario daldjadia de Lor.sch.— lenda dos amores de Eginhard c de Imma, Tdba de Carlos .Magno.— Capitular de Carlos Magno relativa aos cúmplices da pro.-lituieão.— Investigações mf Duciosas ordenadas por Carlos Magno sobre a prostituirão.- Castigo importante .is mulbercs de vida a seus cúm- plices.—Os judeus corretores da prostituição.- O pc do rei.— Estatura de Carlos Magiuj,— Os lioiuens nus.- Lenda de S. Lenngesilo. —O? successores de Carlos .Magno.- Luiz o benigno.— A prova da cruz.— A prova do rongre,';.';o.— A im- peratriz Judith.— Teubergn, mullicr de Lotliario, rei da Lorena, aceusada d'incesto.— O rampeão de Teuberga sabe triumpaute da prova da agua i|uente.— Jusiilicada Teubciga, comparece aute um consistório presulido por Lothario. - O concilio de Melz.— Excommunhão de LotUario.— O seu sacrilégio.— A sua morte.

s REIS da primeira raça o^livcram tlc conlimio cm lucta com a ('iiiTJa por causa ilas coiicui)iiias, <|iie tomavam c ccpclliam al- (crnalivamrnlc sem consullaros bispos, e estes, apesar das suas ameayas e analliemas, não eonst^iíuiam fazer respeitar a iiistitui- I ' vão religiosa do matrimonio |)elos francos, rccem-con verlidos, que eonliiiuavam seiulo pa<<ãos c sollViam violentados a doutrina do Evangellio. \ historia d'esscs reis é eiíeia de guerras, de crimes e excessos; mas os seus amores são principalmente a razão das suas grandes (]uci\as con- tra a cgreja, que lhes não deu paz nem tréguas, com o íim de lhes extirpar os maus exemplos da proslitui^-ão.

.4pesar de tudo, essas lieenciosidades continuam a esconder-sc no fundo dos gyneeeus c apenas o rumor publico revela algumas ircllas. Otiando o celio (fcsscs abusos luxuriosos chegava aos ouvidos dos confessores, estes, armados com os raios da excommunhão, afastavam da cgreja o j)eccador, att'- que purifi- cado rompesse com as tentavões da carne. Não se chegam a comprehender bem os excessos concubinarios dos reis francos, senão lendo em S. (Iregorio de Tours a singela narrativa dos matrimónios do rei Clotario, ([ue teve sete mulhe- i'es ou concubinas publicas.

«Clotario linha por esposa Ingunda e a ella amava, quando esta lhe fez esta supplica: .Meu senhor fez de mim tudo o que quiz, tcndo-mc feito sua companheira no leito: agora para rematar os seus favores digne-se o meu se- nhor escutar o que esta sua serva lhe pede. feço-vos tenhaes a bondade de procurar para minlia irmã, vossa escrava, um homem capaz e rico que me

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eleve e não me rebaixe, c que meios tenha para mais dcdicadamenle vos ser- vir.»

A estas palavras, Clotarío propenso á sensualidade, inflamina-se de amor por Aregunda, vae ao campo onde ella residia e com eila casa. Logo que cila se tornou sua, voltou para junto de Ingunda e disse-lhe:

Trabalhei para te satisfazer o supremo favor que me pediste e, procu- rando um homem prudente e rico, merecedor de unir-se a tua irmã, nenhum outro melhor do que eu encontrei. Fica sabendo, pois, que a tomei por esposa, esperando que isso não te seja desagradável.

O que bem parece aos olhos do meu senhor, respondeu Ingunda, por clle seja feito; mas que esta sua escrava viva sempre nas graças do rei.

Este curioso quadro de costumes faz-nos apreciar como "se passavam as cousas nos gyneceus dos reis.

Os íillios de Clotario i foram como seu pac polygamos e mais do que elle dados á incontinência adultera. O mais velho, Cariberlo, rei de Paris, era ca- sado com Ingobcrga, cuja estirpe a elevava acima das suas rivacs. Tinha a seu serviço duas jovens plcbcas; uma Mareovieva, freira; outra, Mcrofleda, fi- zera por ella apaixonar o rei. Ciumenta Ingobcrga, teve* um dia a infeliz lem- brança de deprimir as duas rivaes deanlc do rei, iançando-lhe em rosto a con- dição servil dos pães, que cardavam nas immcdiaçôes do palácio; mas o rei, irritado contra a esposa que o pretendera envergonhar, repudiou-a e tomou para esposa successivamente a Meroílcda e Mareovieva. Não se contentou com cilas todavia, c pouco depois abandonou-as por outra serva, Teudechilda, tilha de um pastor.

Esta, posto que concubina de iiifinia espécie, apoderou-se do Ihesouro de f.ariberto, quando, sem deixar herdeiros, este príncipe se finou nos braços das três plebeias.

Os irmãos de Cariberto tinham também o mesmo vicio da inconstância, ("loutran, rei d'Orleans e de Borgonha, apesar de passar por devoto, mudou de mulher tantas vezes como Cariberto, e teve concubinas de infima classe, sem que os bispos, que lhe chamavam o biim (loutran, {lionu.s) lhe perturbassem os amores, (^bilperico, rei de Soissons, é o polygamo, a quem os ciironistas attri- buem maior numero de mulheres, com quem casou, segundo a lei dos francos, dando o annel, o soldo c o dinheiro, lima d'estas mulheres, chamada Ando- wera, tinha a seu serviço Fredcgonda, joven de origem frnnca, extremamente notável pela sua belleza e astúcia. Mal Clnlperico a viu, por ella se apaixonou; mas Fredcgonda era muito ambiciosa para se contentar em ser uma concubina subalterna.

Tendo Andowcra dado á luz uma filha na ausência do esposo, Fredc- gonda, de accordo com um bispo, a (lucm comprara, abusou da ingenuidade da rainha, até persuadil-a de que devia ser madrinha da própria filha, e isso conseguiu.

(juando Chilperico voltou da guerra, todas as jovens do seu palácio sa- hiram a esperal-o, cantando e arremcçando-lhe llores. Fredcgonda ia na frente.

Com quem doimirá esla noile o meu senhor? pergunlou-lhe descarada- mente {('nm (pia (lotniuii.s wpus rex dormiel hac noclc?) pois que a rainha, minha senhora, accrescentou, c agora sua comadre, visto que é a madrinha de sua filha.

Ainda bem, respondeu o rei jovialmente: se não posso dormir com ella, dormirei comligo.

Andowcra, eliegcMi então c<im a tilha Uds braços.

Mulher, lhe disse o rei, eonimelleslc um crime por ignoi'ancia; és mi- nha comailrc, níio [xldes ser minha esposa.

DA PROSTITUIÇÃO 33

Repiidiou-a, c fel-a professar n'um convento. Fredegoncla poucos mezes lhe occiípou o logar. ('hilperico, pediu em casamento (lalessonida, filha do rei (hjs godos, e para obter a mão d'esla prineeza, repudiou as esposas e des- pediu as amantes, incluindo Fredegonda, a quem todavia não deixara de amar. Pouco depois, para se juntar com a sua querida Fredegonda, mandou estran- gular a rainha, çmquanfo cila dormia. Fredegonda, com quem cm seguida se casou, envolv(Hi-o ii'uma rede de voluptuosos prazeres, que o reduziram a com- pleta escravidão.

Tal é a historia de quasi todos os reis merovingios, que não se arreceia- vam de commctter crimes, oU de fazer guerras, para conseguirem os seus pro- pósitos amorosos. Viviam nos seus palácios reaes, longe da vista dos seus vas- sallos, que apenas chegavam a ouvir longínquos ruidos das orgias reaes, cm que os monarchas alternavam a luxuria com a embriaguez.

A vida intima dos palácios reaes era apenas um lodaçal de prostitui(."ão, em que, mais c mais, se ia atolando a realeza fiança. Dagoberto i, que apesar de tudo, leve algumas qualidades de rei, não foi mais casto que os seus pre- decessores, e o seu ministro. Santo Eloy, parece fer-se prcoccupado pouco com os costumes da vida privada do príncipe, que edificava egrejas, fundava mosteiros e cobria d'ouro as reli(iuias e sepulciíros dos santos; mas que ao mesmo tempo, á imita(,'ão de Salomão, tinha uma grande quantidade de concu- binas (^lii.ruriiV siipra)ii<)dnm dedilm, liabebat in.siar Salomoni.s reginas et plu- rimas concubinas, diz Fredegonda na sua chronica.) «Os bispos, todavia, eram incansáveis em anathematisar as liccnciosidades dos reis e dos príncipes ; vo- luntariamente se expunham á cólera d'estes grandes libertinos, quasi sempre incorrigivcis; não se arreceiavam do martyrio da morte, quando .se tratava de defender a santidade do matrimonio christão, contra as licenças do concubinato pagão. Prtrstat, bispo de Ruão, foi por causa d'isto assassinado por um emis- sário de Fredegonda: Didier, bispo de Vienna, foi apedrejado por ordem de Bru- neguilda; S. Lamberto foi assassinado por um tal Doudou, que não lhe per- doava ter querido separar o príncipe Pepino da sua concubina Alpais.

«S. Lamberto, conta-se nas cbronicas de S. Diniz, (em 708) reprebcndeu o príncipe Pepino, por estar amancei)ado com Alpais, em prejuízo de Plectonda, sua legitima esposa. O irmão da concubina, por nome Doudou, matou S. Lam- berto, por este ter censurado este peccado ao príncipe.»

Os bispos e sacerdotes, que combatiam a prostituição, nem .sempre esta- vam isentos das censuras que faziam. (Ircgorio de Tours descreve-nos com as cores mais hediondas (liv. viii e ix) Bcrtchram, bispo de Bordéus, que se- duzia servas e mulheres casadas, e (jue até chegou a deshonrar o thalamo real. Quando S. Columbano, abbade de Luxeuil, foi á corte de Frederico ii, rei de Borgonha, para o reprehcndcr dos seus adultérios e aconselhar a que expul- sasse as concubinas, o papa dregorio i escrevia á rainha Bruneguilda, incitan- do-a a que castigasse os sacerdotes impudicos e preversos {sacerdotes impndici ac nequiter conversantes,) e fora justamente esta rainha que preverlera, a inno- cencia de .seu neto Theodorieo ii, rodeando-o de amazias, e dando cila própria os mais infames exemplos de libertinagem.

As duas rainhas, Fredegonda e Bruneguilda, rivalisaram em crimes e ví- cios, mesmo na idade eni que a concupiscência se extingue; parecia que ao desafio queriam saber qual das duas teria mais amantes, qucin lhe correspon- deria com mais ardor, e quem mais farde síihiria das luctas amontsas. Brune- guilda foi a primeira a sahir, porque a morte a arrancou a esse lodaçal de ví- cios; morreu, atada k cauda d'um fogoso cavallo, arrastada e dilacerada por campos e fraguedos, depois de sobre um camello, durante três dias, ler sido o alvo dos ultrages e chascos dos soldados de ("Jotario ii, filho de Fredegonda. !Não acompanharemos os reis e as rainhas da primeira c segunda dynas-

liísioHiA DA Prostituição. Tomo ii— Folha 5.

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tia, na larga e monótona nomenclalura dos seus adultérios e escândalos; mas, para mostrar qiianlo os vicios do concubinato haviam relaxado os vínculos con- jugaes, recordaremos (|ue Carlos Ma^mo, o prudente e f^lorioso monarcha, sus- tentáculo c honra da egreja, teve qualro mulheres legitimas c cinco ou seis concubinas, sem contar as iununv^ras mulheres que passageiramente foram vi- ctimas da sua luxuria. As suas concubinas, que Enginhard nos faz conhecer, não eram, como as suas mulheres Icgilimas, nobres dVjrigem ; Enginhard s(5 enumera Mallegarda, Gcrsuinda, Regina c Adalinna, que lhe deram muitos fi- lhos, educados sob a sua vigilância, e caridosamente protegidos pelo impe- rador.

^A.s suas filhas eram mui formosas, diz o citado auctor, e foram sempre muito estimadas pelo pae. Singular é que não as tivesse querido casar, nem com nacionaes, nem com estrangeiros. Até morrer, teve-as sempre junto de si, dizendo que d'ellas não se podia sejtarar. l'osto que fosse feliz, solíreu com as calumnias assacadas ás filhas. Dissimulou todavia os seus desgostos, como se contra ellas nunca tivesse sido levantada suspeiia alguma injuriosa.»

Na verdade esta passagem, em que o historiador parece evidentemente cmbara(,'ado, não prova suiricienlemcnte que Carlos !\lagno tivesse tido relações incestuosas com as filhas, mas abre caminho a suspeitas nada favoráveis á mo- ralidade d'aqucile principe.

Todavia, a tradição pretende que uma das filhas de Carlos Magno, de nome Ymma, casara com Enginhard, que não teria deixado de se lisongear e envaidecer, se houvera sido genro do seu terrível senhor.

«Enginhard amava Ymma, (|ue tinha sido promcftida ao rei dos gregos, e era por ella amado com louca paixão. Uma noite, o amante bateu á porta do quarto de Ymma e esta abriu-Ih'a; c os dois, com os seus coUoquios e trans- portes amorosos esqueccram-se do tempo; (staline versa vice .soliis cnin sola secrelis nsus colloqiiiis et datis ampleribus cupito sati.ifecit amnre.)

«Mas o dia vem rompendo: Enginhard arranca-sc dos braços da amante e ia partir, quando viu todas as relinulas coitadas; durante a noite havia ne- vado, as suas pegadas s(d)re a neve seriam uma suspeita desfavorável á honra da sua amada.

«A joven, que o amor fizera tão audaz como ladina, imaginou um ex- pedienle, oITcrecendo-sc para levar ás costas o amante, até onde este linha o seu alojamento, e em seguida, por sobre as mesmas suas pegadas, voltaria para o seu quarto.

«Carlos Magno, que não dormira durante a noite, levantou-se ao amanhe- cer e olhou para o pateo do palácio. De repente, viu sua filha, que com difficul-^ dade caminhava, levando aos hombros o pesado fardo, c que em seguida volta- va já ligeira para o seu (|iiarlo. Carlos Magno, sur|)rehciidido e ferido no seu coração, calou-se sobre o que linha visto.

«Ymma recusava dar a sua mão ao rei dos gregos e Enginhard sollicitava do rei uma missão, que o afastasse da eòrte. Carlos Magno não pftde então contcr-se e levou-o perante o tribunal dos condes e barões, tendo todavia ten- ção de lhe perdoar.

«Este meu servidor, disse elle, não será castigado, pois (|ue assim se augmentaria a deshonra de minha lilba. Creio digno de nós e mais conveniente á gloria do nosso-iin|)erio perdoar-lhes e unil-os pelo legitimo matrimonio, fi- cando assim sob um veu de honestidade a vergonha da falta commettida.

«Enginhard então tremendo foi levado á presença do imperador.

«Já é tempo, disse-lhe Carlos Magno, de reconhecer os vossos serviços passados e de recompensar a vossa abnegação para com a minha pessoa, com o dom mais (lc-;liiiiibianle. Dou-vos a mão de minha (ilha, \ossii inirtatlora (res- tram sciiictl, purlraincem,) que, arregaçando as saias, leve o prazer de vos ser-

DA PROSTITUIÇÃO

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vir de cavalgadura ((jule ipiandoque alie succinla vesíre subcectione satis se moriyeram exhibuit.)»

Esta engraçada lenda, que se apoia n'uma tradição quasi contemporânea do facto (|iie perpcliia, parece-nos ter alguma analogia com a capitular, cm que llarlos Magno, desterrando <los seus dominios as nuillieres de vida, commu- nica ao imprudente ou liherlino que lhes [)rcslasse auxilio que sofireria a ver- gonha de as levar ás costas até á praça do mercado, onde ella seria açoitada. Quando Carlos Magno dizia a Enginhard que se casasse com a sua portadora, parece relerir-se á pena em que incorria aquelle que dava asylo a uma pros- tituta.

A aventura de Ymma e Enginhard, segundo a tradição, teve logar no ' palácio de Aix-la-Chapelle, e foi precisamente n'esta residência que Carlos Ma- gno decretou no anno 800 a capitular, em que impõe aos cúmplices da pros- tituição um castigo que traz à lembrança Vmma, levando ás costas Enginhard. Pião poderá suppòr-se que Carlos Magno fez esta capitular, depois de ter sido testemunha d'esse singular espectáculo da tempestuosa noite de neve, em que viu uma mulher levando ás costas um homem '! Não teria recordiecido os auctores d'este episodio amoroso? Seria provável não ter comprehendido os desígnios dos dois personagens mysteriosos, que lentamente caminliavam por sobre a neve? A nossa primeira conjectura é todavia licita, em vista de uma analogia histórica, suggc- lida pela capitular, dirigida aos olliciaes encarregados da guanla do palácio, ca- . pitular onde também se encontra a origem d'alguns funccionarios do palácio do rei. Carlos Magno ordena aos olliciaes palacianos (ininialerialis palatinun) que por meio dos seus agentes exercessem severa fiscalisação, para vèr se algum homem desconhecido ou mulher dissoluta se occultava entre os commensaes da casa. >'o caso em que se descobrisse uma mulher ou um homem d'esta classe, ser-lhes-hia impedida a fuga, e presos, até que o imperador fosse informado. O que fosse encontrado na companhia d'este homem ou mulher seria expulso do palácio, para não ser punido com pena mais affrontosa. O imperador dirige as mesmas recommendações aos officiaes ao serviço de sua amada esposa e de suas filhas.

Esta capitular, em que se trata de um desconhecido e de uma prostituta, que habitam sem direito o palácio, deve ter sido occasionada por circumstan- cias especiaes, que coincidem com a historia de Ymma e Enginhard. O homem desconliecido é decerto elle, e a prostituta ella.

O resto da capitular tem caracter mais geral, posto que também se refira a escrupulosas pe.squizas para conhecer o estado e posição dos habitantes do palácio imperial e da cidade de Aix-la-Cliapelle. Radberto, recebedor das rendas imperiaes, é encarregado de fazer minuciosas investigações nas casas dos ser- vos do imperador, tanto em Aix como nas quintas dependentes d'esta residên- cia. Pedro e (lunzo são encarregados de fazer igual visita nas casas e ciioças dos escravos; Ernaldo visitará também as lojas dos negociantes christãos e ju- deus, procurando para isso a occasião em que estes não estejam cm casa.

Estas escrupulosas pesquizas no palácio d'Aix e em suas dependências tinham por fim descobrir um ou muitos criminosos, e para tal conseguir (Carlos Magno pndiibe a todos, que tenham cargo no paço, o acolher ou occultar qual- quer homem, que commettera roubo, homicídio, adultério ou qualquer outro crime.

Quem ousasse contrariar a este respeito as ordens do imperador, devia, se fora homem livre, levar ás costas o reu até à praça do mercado, logar onde o paciente seria punido; mas se era um servo, este, como o nobre, levaria ás costas o reu e seria açoitado.

«Igualmente, no que se refere aos libertinos c prostitutas, (de gadalibus et meretricibxm) accrcscenta a capitular, queremos que estas sejam pelos que

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llies tenham dado asylo afé á pra^'a do mercado levadas ás cosias, onde serão açoitadas. Se o culpado se recusar a levar a mulher de vida, que lhe fòr encontrada em casa, ordenamos que, coiijunctamente com ella, seja açoitado no mesmo sitio.»

Esta capitular, estahelecendo a policia no interior do palácio, demonstra a repugnância de Carlos Magno pelas mulheres de maus costumes, pois que não as expulsa da sua residência e domínios, mas até da casa dos seus mais humildes servos e do domicilio dos judeus, tidos como intermediários na pros- tituição.

Como dissemos, Carlos Magno não era homem de uma moralidaiie exem- ' piar c tinha necessidades sensuaes a satisfazer.- Consta que este imperador, a quem os Cantos de Gesta representam como um gigante, não tinha com c(- leito menos de sete pés d'altura; a sua força era proporcionada, e pelo pe tio rei se poderá ajuizar qual era o comprimento do seu, que se converteu em me- dida linear, posta de parte pelo syslema métrico; todavia é-nos iiiipossivel, a projiosilo d'esta medida, [pedale, meus ara pedis) entrar n'uma delicada discus- são, cujo fim seria encontrar a verdadeira origem do do rei. Limitar-nos- hemos a dizer que na idade média se procuravam as relações de proporção entre as diversas partes do corpo, e que desde a mais remota antiguidade o revelava virilidade no homem, emquanto que na mulher tiniia uma signifi- cação ainda mais indiscreta. Neste sentido, falia Horácio na sua primeira sa- tyra de um. grande feminino : Depygis, nasuta, breri latera ac pede longo est. Aos curiosos do que se disse da estatura de ('arlos Magno e dos seus ae- cessorios, recommendamos o livro de Marquard Frecher, reimpresso por Duclies- ne, Bou(|uet e Pertz.

Esta monstruosa estatura justifica o que a tradição conta dos amores de Carlos Magno. Uma lenda muito original colhida por Petrarca em Aix-la-Cha- pelle, onde tudo está cheio de recordações do grande imperador, apresenta-nos este monarclia sujeito a tentações como Santo António e peccador pela malícia do demónio.

Teii(lo-se Carlos Magno enamorado loucamente d'uma mulher, cujo nome não é citado por Petrarca, esqueceu junto delia os interesses do seu povo e a gloria do seu reinado; o .seu único cuidado era viver para a mulher amada. A amante morre repentinamente e o imperador entrega-se a um desespero in- consolável, que noite e dia o tinha preso aos restos morlaes da que tanto aniára, e á qual não queria deixar dar sepultura, posto que a decomposição cor- res.se adiantada n'aquclle cadáver, que o imperador continuava estreitando nos braços.

Nem o arcebispo de Colónia, venerável prelado em quem o imperador ti- nha cega confiança, pôde arrancar dos seUs braços aquella adorada morta, nem ao menos mitigar-lhe a sua dòr; mas fazendo uma oração revelou Deus ao sa- cerdole a causa mysteriosa de tão grande dòr de Carlos. Na bocca d'aquella mulher havia um annel, tendo encastoada uma jiedra amorosa, c este talisman ligava invencivelmenteo imperador ao corpo vivo ou morto que o possuísse. Ape- nas tiraram o annel da boccá do cadáver, sentiu Carlos Magno desappare- cer-lhe o seu amor, e perguntou por(|ue por tanto tempo tinham deixado sob os seus olhos aquclle cadáver corrupto.

.Mas, de repente, sentiu-se invadido de uma ternura alguma coisa dilTe- rente pelo prelado (|ue tinha o talisman; não podia separar-se d'elle, nem con- sentia (|ue o sacerdote se afastasse. O arcebispo, <|ue conhecia a causa, atirou o talisman para um lago immediato a Aix-la-Clia|)elle; mas o annel, submergido no fundo do lago, conlinuou exercendo o seu poder allractivo, ins|)iraiulo a Car- los Magno a mesma jiaixão, uiiicamcnle dilíerentc no objecto.

Carlos enamorou-sc então do lago, e não querendo mais separar-se d'ellc

DA PROSTITUIÇÃO

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fi\ou alli a sua residência e a capital do seu império, e em testamento ordenou (jue alli fosse enterrado, para que no tumulo ainda podésse ouvir o lago mur- murar amor aos eccos do seu nome glorioso.

Carlos Magno estava em muito boas relações com a egreja para receiar as suas admoestações; evitava também com grande prudência o dar escândalo, e tudo que se referia aos seus amores era unicamente passado nos seus gyne- ceus. \ã(» tolerava entre os seus vassallos a relaxação dos costumes, que a au- ctoridade ecciesiaslica liie denunciava, declarando-se ellc impotente i)ara a cor- rigir. Para fortalecer a auctoridade eeclesiastica, em 80o fez uma capitular, pro- hibindo aos indivíduos d'um e d'outro sevo, sob pena de sacrilégio, o commet- lerem adultérios, sodomias, incestos e outros peccados contra o matrimonio.

O imperador motivava as suas probibições na observação de (|ue os pai- zes, cuja população se entregava a sensualidades illicitas, aos adultérios, ás tor- pezas de Sodoma e ao commercio da prostituição (muliai reijiones, quo: jain dieta inlicila et adulteria tel sodomicam luxuriam oel commi.rlioiífm meretri- cem sectatiC) neiíi tinbam constância na fé, nem valor na guerra.

Portanto, o reu d'aquelles excessos perderia a sua qualidade e direitos, sendo recídbido á prisão até ao dia da penitencia publica.

Sobremaneira nos causa extranbesa o não encontrarmos nas capitulares de Carlos Magno medida alguma de precaução ou de rigor contra os angariado- res de mulberes, mister cbamado lenonia, e ainda sobrevivente ás perseguições dos códigos de Tbeodosio c Justiniano. Ha, todavia, uma capitular, cuja data não é conbccida, que parece referir-se á Icnunia, posto que este vergonhoso mister não seja especialmente recommendado á attenção dos magistrados. N'esta capitular, em que os sacerdotes, os diáconos e os outros membros do clero são probibidos de admittir nos seus domicílios mulberes extranhas, em que a clé- rigos e frades se probibe o entrar, comer e beber em estalagens, nota-se o se- guinte artigo :

«/'í manfjones et cociones et nudi honiines, qui cum ferro vadunt, non sinantur va(jari et decopliones hominibus ayere.»

Não sabemos o que são estes homens nus de espada, posto que nos in- clinemos a crer que ba alteração no texto, na palavra nudi, que não tem sen- tido, e que pôde ser substituída por mnndi.

Esse artigo ficaria significando :

«Oue os corretores e negociantes francos, que andam com armas, não podem por aqui e alli andar enganando gente.»

Seria fácil demonstrar com uma dissertação philologica que a baixa lali- nidade empregava a palavra mnntjones no sentido de corretores e não na de larápios, ou ladrões: maniji tinha succedido a leiw. Cociones, que devia tra- duzír-se litteralmente por negociantes, eram os corretores da mais intima es- pécie. Um escriptor do decimo século, citado por Ducange, diz que os ladrões foram designados por inangones por aquella época. Ducange diz também que cociones é um svnonymo de revendedores, que corriam as feiras e que unica- mente se occupavam em negócios vergonhosos.

Os lenones certamente existiam, mas occultavam-se sob nomes e oc- cupações diversas; pôde provar-se, por exemplo, que em toda a idade média os negociantes de cavallos, mulas e burros negociavam também lucrativamente com a prostituição. Mas é notável que as expressões lowciniuin e lenonia, leno e lenarius, lena e lennria raras vezes são usadas pelos escriptores catho- licos da França merovingia e carlovingia. Da ausência da palavra não se deve deduzir todavia a ausência do facto. Applicando a critica histórica a uma lenda do sétimo século, descobre-se um leno no numero dos santos, sob o nome de Lenogesilo. Parece-nos inquestionável que este nome seja composto de leno e Gesilus, que seria o nome do personagem, e leno a sua qualidade. Este Leno-

38 HISTORIA

(jesilo, que vivia iio tempo de Ciclario ii (610,) attraliiu á sua vivenda uma virgem chamada Agnelleda, e fel-a professar: um e outro viviam juntos e mi- litavam valorosaujente no exercito do Senlior {strenue Domino militanl.) O diabo teve inveja da felicidade d'este par, e segredou aos ouvidos do rei (|ue um tal Lenogesiio seduzira uma virgem, vivendo com ella na im|)iedade e libertinagem i^inodu le<jiliina conjuyia violanle^, inter se invicent, nefandis studiis comniis- centur.)

Clotario mandou chamar os pretendidos cúmplices, mas por um milagre ficou convencido da innocencia de Lenogesiio. Este santo varão, ao chegar ao palácio do rei, que estava ausente, teve frio e mandou a sua companheira pe- dir algumas brazas a uns padeiros^, que alli perto a(|ueciam o Ibrno. Os tornei- ros, vendo (juc Agnelleda não tinha onde levasse as brazas, disseram-lhe mo- fando : «Leva-as no manto.» O que ella cHeclivamente fez, trazendo as brazas sem que o manto nem ao menos tivesse ficado chamuscado.

As testemunhas d'este milagre contaram-n'o ao rei, o qual os encheu de presentes, deixando-os ir em paz. I)'este modo o leno Gesilo veio a ser S. Le- nogesiio na lenda conservada pelos BoUandistas. A sua companheira Agnelleda não leve a dita de ser canonisada.

Os successores de Carlos Magno, provavelmente contra a prostituição, fi- zeram muitas capitulares, que nós não possuímos; pois que Dulillct, que tinha ao seu dispor o Tliesouro das lienes Cartas, e que redigiu a (lakria dos reis de França, baseand(j-se em doecunientos originaes, diz que o primeiro cuidado de Luiz o Benigno, depois da inoite de seu augustíj jiae «foi limpar e reformar a corte d'aquella iinmundicie, conhecendo que infectava commummente o impé- rio ou reino.»

Uma capitular, que pbssuimos, accrescenia uma extravagante penalidade á dos crimes de libertinagem. Toda a mulher, conhecida por ter vida escanda- losa, era condeinnada a percorrer os campos, nua da cintura acima e com um letreiro na frente, declarando o crime. Todos tinham o direito de accusar uma mulher de prostituta ou adultera. O juiz recebia a denuncia e instruía o pro- cesso; mas o ser denunciante tinha certos inconvenientes, que embaraçavam os mais preversos no uso d'este género de vingança.

O accusador tinha de provar o que denunciara por meio da prova judi- ciaria, com a cruz, com a agua a ferver, ou com o ferro em braza, ou em um combate. A mulher aceusada fazia-se representar n'eslas provas por um cam- peão, que i)agava condicionalmente.

Este campeão, por mais certo (|ue estivesse na justiça da sua cliente, não se expunha sem inquietação ás provas, de que devia sahir absolvida ou con- demnada uma das partes.

De todas estas provas, a da cruz era a menos perigosa, e dependia me- nos do acaso, do que da força physica dos pacientes. Aquelle dos adversários, que, encostado a uma cruz, mais tempo estivesse na posição de Jesus eruci- íicado, era o que ganhava o pleito; o outro, pagava uma multa, e além d'isso solíria a penalidade do crime.

Frequentemente succedia, que, não encontrando a aceusada quem qui- zcsse expòr-se ás provas, era ella mesma obrigada a sollrel-as, sem contem- plações para com o seu sexo, e para com a sua fraqueza. Na prova da cruz, era a mulher, por mais fraca que fosse, quem tinha a vantagem. Por isso esta prova era a frcíinenteinente empr<'gada, (|uando um mai'ido, aceusado [)ela es- posa de impotente, tinha de provar que sabia cunqirir os seus deveres con- jugaes.

A imperatriz Judilh, sendo aceusada de adultério com Bernardo, conde de Barbaeena, ollereceu justilicar-se, por meio do fogo ou pelo combate; mas OS seus inimigos, os lilhos de seu marido, Luiz o Benigno, recuaram deanle

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de qualquer justificação, e obrigaram seu pae e sua madrasta a retirar-se cada um para conventos dilTerentes.

A maior parte das vezes, uma mulher, accusada de libertina, embora innocente, preferia sujeitar-se á penalidade do crime imputado, a cxpòr-sc ás terríveis provas do duello judiciário.

Um dos exemplos mais notáveis d'estas provas em matéria de prostitui- ção teve logar por aquelle tempo (8-)S,) por occasião do divorcio de Lothario, rei de Lorena. Este príncipe, filho segundo do imperador Lothario, havia amado a joven Valdrada, creada no gyneceu de Aix-la-Chapellc, antes do seu ca- samento com Teulherga, Iliba do conde Bosou e não podia acosfumar-se a vi- ver separado da sua antiga amada. V(dtou, pois, pura junto d'ella, que estava ' n'um dos seus domínios na AIsacia, e quando Valdrada lhe deu um filho, re- solveu repudiar a legitima esposa.

Apresenlaram-se testemunhas, que accusaram Teutberga de ter tido re- lações incestuosas com seu irmão Hucberto, de ter ficado gravida e de ler as- sassinado o fruclo d'esscs amores. Eslas testemunhas, evidentemente instiga- das por Lothario e Valdrada, aprcsentaram-se muito sabedoras das particulari- dades secretas do incesto, allribuindo a Hucberto as mais abomináveis devas- sidões. O venerável Hincmar narra assim as circumstancias do incesto (Opera Tit. I, pag. 568:)

«.Fraler suas cnm ea masculino concubito inter feniora sicnt solenl masculi in tna.scidos furpiludinem operari, scelns fuerit operalum et inde ipsa conceperit. (Juapropter, ut celarelur flagilium, potnm hansit et partam abor- tricit. »

Os annaes de S. Berlino confirmam este mesmo facto, sem explicar como um acto conlra-naturam dera fruclo: Fralrem suam sodomitico scelus sibi commi.rtum.

A rainha Teutberga escolheu um defensor, que se submetteu por ella á prova da agua a ferver. O defensor ouviu missa, commungou, mudou de ves- tuário, envergando uma túnica de diácono, bebeu um trago de agua benta, e esperou que fervesse a agua na caldeira; cm seguida, atirou para dentro uma pedra e depois metteu o braço nu c tirou a pedra. O braço foi immediatamcnte ineltido n'um sacco sellado pelo juiz; no fim de fres dias abriu-se o sacco e acbando-se o braço sem lesão alguma, Teulberga justificada voltou ao tbalamo real.

Mas Lothario e Valdrada queriam o divorcio de Tcutbepga, e portanio pozeram em duvida a validade da prova e reclamaram outra mais decisiva. E por fim, para evilar demoras, Lothario convocou em janeiro de 860 um consistó- rio solemne, composto de 70 homens seus afieiçoados, e elle mesmo presidiu no seu palácio de Aix-la-Chapelle. Teutberga compareceu ante esta assembleia, e confessou que seu irmão Hucberto havia efleetivamenlc abusado d'ella, vio- lentando-a (?io>i tamen sua sponte, sed violenter sibi iníalum, dizem as actas do concilio de Aix.)

Noutro consistório, reunido no mez seguinte, e em que também compa- receu Teutberga, confirmou esla as declarações anteriores :

«Confesso, disse, que meu irmão, o clérigo Hucberto me corrompeu na mais tenra infância e eommelteu em minha pessoa aclos impudicos contra a natureza (l'roflteor quia germanas meus Hucbertus, rlericus, me adolescentii- lam corrupit, et in meo corpore, contra naturalem usam fornicalionem. e.ver- cuit et perpertravit.)

Teulberga foi condemnada a separar-se do marido e a fazer penitencia n'um mosteiro; mas pouco depois retratou as confissões feitas e dirigiu-se ao papa Nicolau i, protestando contra a sentença que injustamente a condemnára.

O papa encarregou dois bispos de impedir que o rei apodrecesse na im-

40 HISTORIA

imindicic c luxuria (in luxuria .ilfrcorea putrifiere, diz a carta de Nicolau i) e que dirigiriam os trabalhos d'um concilio, que se reuniu em Metz para julgar do recurso em ultima instancia.

O concilio confirmou a sentença do primeiro juiz, e o papa fulminou um anathema contra o rei Lotliario.

«Se se pode, todavia, diz, chamar rei a quem, longe de domar os seus apetiltes por um regimen saudável, cede aos movimentos illicitos de uma lu- bricidade que o enerva.»

O rei despresou a decisão do concilio de Metz, dizendo que era menos um concilio que um logar de proslituição, pois n'elle se tinha protegido o adul- tério, {tmnquam adultério facenlein prostibulum appellari deceniimus.) Des- presando também o anathema do papa, continuou vivendo com Valdrada; mas- 0 |)apa recorreu a todos os soberanos e bispos para combater Lothario com as armas tcmporaes e espirituaes.

«O senhor, que simultaneamente possue uma esposa e uma concubina está cxcommungado, escreviam Nicolau e os seus partidários cm circulares que com- moviam a chrislandadc. Não é licito repudiar a mulher legitima, para tomar outra ou substituil-a por uma concubina. é licito repudiar a esposa por crime de fornicarão.»

A estas formulas de direito canónico, respondia Loihario (|ue sua mulher se liavia prostituído antes do matrimonio. Adon, arcebispo de Mcnna, e\|)licava: «Um marido não pôde pedir o divorcio, quando, depois de havcr-se casado com uma mulher desflorada, viveu com ella por muito tempo, sem fazer a menor reclamação.»

Lothario persistia no seu propósito, vivendo com Aablrada; mas viu-se ameat>ado pelas armas dos seu visinhos, e aquelle Hucberto, a quem se tinham atlribuido tantas e Ião grandes infâmias, sahiu da sua abbadia de S. Maurício e S. Martinho, para pedir contas das atrozes calumnias arremessadas contra sua irmã e contra elle. Hucberto foi niorlo, no momento em que a vicloria se in- clinava a seu favor, e um enviado do papa veio intimar Loihario a que se re- conciliasse com a esposa e expulsasse a concubina.

Lothario cedeu: mas, mal tinha sido recebida Tcufberga, teve esta de fu- gir para junto de Carlos o ("alvo, para pòr a sua vida em segurança. Nicolau excommungou então solemnemente Lothario, que fez o seu ultimo esforço de resislencia, accusando sua mulher de adultério, olFerecendo provar a accusação por meio de duello. I)'esla ullima prova não sahiu vencedor Loihario e teve de fazer entrar na abbadia de Remiremont a sua querida Valdrada. Nicolau chamára-o a Roma, para lhe levantara exeommunhãi»; Lothario obedeceu, mas soube no caminho (|ue Nicolau morrera, tendo-lhe succedido Adriano ii.

Este novo papa não foi menos inflexivel do que o antecessor: esperou o rei Loihario no convento do Monte Casino, e antes de o admiltir á mesa da communhão, fcl-o jurar que não tinha tido commercio algum carnal, nem ne- nhum outro género de relações com a excommungada Valdrada. Lothario, posto que tivesse trcs filhos d'essa concubina, jurou descaradamente tudo quanto o papa quiz, e este, apresentando ao perjuro o pão c o vinho, accrescentou:

«Se te reconheces inniic<'nte do crime de adultério, se tens a firme reso- lução de não mais cobabitar com a concubina Valdrada, vem conliadamenie receber, em remissão dos teus peccados, a tua salvação eterna; mas, se ainda tencionas voltar ao lodaçal da prostituição (íit ad mecha: wluntabrum rodeas, dizem os annaes de Metz) não recebas este sacramento, pois esta consolação da tua alma seria a lua condemnação eterna.

Loibariíi consummou o .sacrilégio, e apressou-se cm voltar aos braços da adorada Valdrada.

Mas não mais põdc vèl-a, pois foi surprchendido por morte repentina no

DA PROSTITUIÇÃO 4'l

caminlio, o que o impediu de recomeçar as licenciosidades da sua vida passada (G de agosto de 869.)

O concubinato, auctorisado pela lei salica e pelos mais códigos bárbaros, havia resistido por mais de trcs séculos á disciplina da cgrcja catholica, e a igualdade da mulher para com o homem, proclamada pelo Evangelho, estava finalmente estabelecida na instituição do matrimonio chrislão.

Estavam lançadas as bases duradoiras para a organisaçtão da familia e para a constituição d'uma nova sociedade. Embora, por muito tempo, os hábitos viciosos da velha sociedade barbara tivessem de rellectir-sc nos costumes da nova, embora, por vezes, as liberdades licenciosas do paganismo grosseiro obs- curecessem as sãs virtudes do cbristianismo, a mulher reconquistara n'estc pe- ríodo, direitos que a civilisação de continuo iria ampliando nas suas manifesta- ções mais nobres.

A Egreja Catholica, pelas suas cathcchescs e com os seus rigores, arran- cara á selvageria dos bárbaros a nobilitação da mulher. Desde então a esposa deixou de ser a escrava que apenas produzia filhos para a tribu, para ser a companheira extremosa do marido c a mãe carinhosa dos seus filhos.

Historia, da PaosiiTOiçÃo. Tomo ii Folda 0.

CAPITULO V

SUALMARIO

Carta do S. Hoiiific!o ao Papa Zar liarias, sobro o pslado moral dr.s conventos, nos tempos merovinírios.— Re- ?ra lio S- Columliaiio.— Os bispos leiriiniiios.— Causa priiii'ipal dos excessos ria viila monástica.— Inlliuncia cios cos- lumos clericaes nos costumes i!os seoulaos.- O clero secular.- Os filhos de lloli,'illi.—Teslanii Oto ile Tiir|iiii, liispo dl! Limo^íes.— Os monges de Moyen-Moiilier e do Sen: nes.— O eininilio Nicelu:}.— M.ssrâ ilelicaila ilo aljliade Muni- lio.to.— A alma de liolmin, íúspo de Chalon?.— Eslbiços do Papa !Jri'gono vii, pa^a dÍ5ei|}lmar os co.slumes da e;;iuji franceza.— .\ sua caria aos bi.^pos.— As torpezas da vida cleriral são o llieraa lavoíilo de todos os aitislase litteralos d'aipiella epi ca.— l'epravaeão geral.— O anuo lOCO.— Opinião unaidiiie dos eseriptores de então sobre a ilepravação piiiliinda do estado social.— ,\ sodoaiia era o vicio mais commuin em todas as classi'S.— O anaelioieta alli^mão.— O n- Io de Roberto do l)i;d)o. Os uoiniandos. luDuencia dos seus costumes nos povos, (pie compnstavani.— (.orno Kninia, mulher ile Giiilliernic, duipie de Aquilauiae conde de Puiliers, se vingou da sua rival, a viscondessa de Thuars. De que nujdo Kbles, lierileiro do conde d.; Coniborn se vingou de seu tio e tutor liei nardo. —Factos concernentes aos actos matiiuioiíiaes.— Factos relativos ao incesto, ao iulanlicidio c aos abortos.- Peccados ci.ntra a natureza.- Piocesso criminal.— Censuras do poeta AbLon, A França, pelos seus vicios.— C. nsuras ilo aljbade Celles a Paris pela sua conupção.

PRECISO ciicí^ar ao reinado tlc Luiz viii, para cnconlrar uma oídonayão real, rt^Ialiva à prosliliiição; ma.s nfio deve deduzir-sc da íalía de regiiianicnlos cspeciacs, sohro a matéria, por espaço de Ires seeulos, que o eslado dos ensliimes lui'i>íiva imileis cs- (cs reguianieiiíos e qiic a proslitnieão pii!)liea desappareeera da Franea sob o influxo moralisador da cgreja. A' falia de monu- mentos da aiili;^'a jurisprudeneia, que talvez liajain existido, mas (pie não Scão encontrados nas collecçõcs dos documentos reaes, podemos provar com o tes- iemunli!) dos contemporâneos, que nunca os costumes estiveram mais corrom- pidos, nem precisaram mais tie reforma, de reprehensão e ememla.

Durante aqtiellc periodtí de guerra, de invasties e revolução social, os tra- bailios tie legislação são tnui raros e distinguem-se peio caracter transitoi'io, que os impede de sobreviver ás circumslaucias, que os i)riginaram : não b a có- digo que revele a vontade de se organisar sociedade estável, como as capitula- res de f.arlos Magno e os Estatutos de S. Luiz. Os reis succedem-se muito ra- pidamente e sentem-se em extremo mal senladiís no tlirono, para pensarem na grande íd)ra de oigani.sar c moralisar os seus Estados: nem Icem tempo, nem cuidam de molillcar as instituições dos seus antecessores. 1'iJdo dizer-sc cmn certeza que, desde Carlos Magno até S. Luiz, a policia da prostituição pepina- neceu estacionaria, sem solTrer metamorjiliose alguma, em(|iianlo fjiK.' a prosti- tuição, alentada pela indilíerciíça dds magislradds, não cessou de esíendcr-sc c arreigar-sc no |)0V().

44 HISTORIA

Não Icntarcmos clomonslrar a não cxisfcncia de precauções Icgaes, de me- didas cocrcilivas e de proliibiçõcs regulares em interesse dos costumes públi- cos; mas ser-nos-hia diiricil provar que os costumes não eram detestáveis, n'aquella época de barbaria, de ignorância e de embrutecimento.

A mais vcrgonliosa corrupção penetrara nos conventos dos tempos nie- rovingios. Em 742, S. Bonifácio, bispo de Mayenna, escrevia ao papa Zacba- rias : «Os bispados são quasi sempre providos ení leigos ávidos de riquezas, ou em clérigos prevaricadores, que os gosam mundanamente. Tenho encon- trado nos que se iniiiuiam diáconos homens desde a infância habituados ao adul- tério e aos vicios mais infames; de noite, dormem com quatro, cinco concubinas e ás vezes mais (Inveni inter ilíosdiaconos qiios nominant, quia pueritia sua semperin stupris, semper in adulleriis et in omnihis semper spurutiis viam ducentes sub íali testimonis venerunt ad diaconaiuin ; et modo in diaconato concubinas quatuor, cel quinque, vel plures nocte in ledo habentes.»)

Os reformadores das ordens religiosas alalbaram apenas' o mal, sem o destruírem na origem. S. C(jlumbano, que por este tempo promulgou a sua re- gra, introduziu n'clla esta severa clausula:

«O que familiarmente e em sitio isolado fallc com uma mulher estará dois dias a pão e agua, ou levará duzentos açoites.»

As regras mais rigorosas relaxavam-se immcilialamente nas communida- des, onde constantemente se mantinha o fogo das paixões scnsuaes. O escân- dalo na vida monástica começava sempre pela incontinência. Nem os concílios podiam reprimir as paixões dos frades, paixões tanto mais irresistíveis quanto mais refreadas estavam : sabiam, como energicamente o diz S. Jeronymo, que o poder do diabo se occultava nos rins (diabolo ririus in lambo;) esforçavam-se por tirar a nuilher da vista e do pensamento do homem: comprehendiam que as mulheres legitimas dos bispos e sacerdotes acceites pela egreja primitiva eram apenas occasiões de peccado.

«P(jde supportar-sc, exclamava Verano, bispo de Lyão em uma assem- bleia (em 585), póle soiTrer-se que o servidor do aliar, o homem chamado á honra de accrcar-se do Santo dos Santos se macule com as indignas delicias da car- ne, e que um clérigo, allegando direitos ao matrimonio, preencha simultanea- mente os deveres de sacerdote e de esposo?»

Os bispos femininos (episcopce) foram pouco a pouco desapparecendo ; o celibato veio a ser condição indispensável para os ccclcsiaslicos e a entrada nos conventos de homens foi proliibida ás mulheres, assim como nos conven- tos d'estas foram prohibidas as dos homens.

Mas isto não passava de lettra morta; a auctoriJade da egreja tinha po- der para legislar, mas faltava-Ihe força para se fazer obedecer. Os conventos, por consequência natural das paixões humanas, na sua maioria eram receptá- culos de impurezas e era preciso duas ou Irez vezes em cada século introdu- zir n'clles uma ref()rma jiarcial, se não eomplela. Tal é a hisluria de quasi to- dos os mosteiros, em que o escândalo muitas \'ezes se escondia, embora a com- nuinidade fosse libertina. Ordinariamente apenas por vagos rumores se sabia do que deniro nos mosteiros se passava. Quando o bispo julgava aproposi- tado inquirir do mal, as pcsquizas descobriam tacs horrores, que o pudor chris- tão das auetoridades da egreja julgava melhor cobrir misericordiosamente tão graves escanclalos.

A eau.sa principal dos excessos da vida monástica era a visinhança e o frequentarem os dois sexos uns e outros mosteiros; aqui o abbade ou prior di- rijia as religiosas; acolá, pelo contrario, era a abbadessa ou prioreza que exer-. eia soberania sobre os frades. Eslas continuas relações dos dois sexos no re- cinto das abbadias originavam muitos abusos, que a aucloridade do bispo não podia re()r'mir.

DA PROSTITUIÇÃO 45

Os costumes do claustro tinham deplorável influencia fora no povo, que não pretendia ser mais virtuoso que os seus confessores, c o clero secular não dava melhores exemplos aos seus freguezes. Martiniano, monge de Rahais, no decimo século, dizia aos sacerdotes do seu tempo:

«E' direito vosso ter mulher ou ter relações com mulheres? Polluis o vosso corpo com diversos géneros de luxuria, esse corpo creado para receber o alimento dos anjos

Este Martiniano, no seu tratado maliciosamente intitulado De laude rno- nachorum, censura aos seus coliegas o «viverem como dissolutos em vez de se armarem com a espada incorruptível da castidade, e de santificarem as suas mãos com boas obras.»

O padre Berlhollet, na sua grande historia do Luxemburgo, apesar de ser jesuita, é obrigado a confessar que o clero do século decimo havia esque- cido a santidade da profissão, e se não recordava de que a continência fi- zera a gloria da egreja. Vivendo com os povos, julgavam não haver distineção alguma entre elles, e facilmente se persuadiram que deviam ter mulheres.

Estes clérigos depravados eram os chamados tilhos de (loliath, {rleri ribaldi, qui vulíjo dicuntur de fainilia Golicv, nas Constituições de Gauthier de Lens, em 923.)

A parle do clero magoava-se, vendo os progressos d'aquella gangrena moral, que nada podia conter. O piedoso bispo de Limoges, Turpio, morlo em 944, fazia com amargura no seu testamento esta confissão;

^<E nós mesmos, que devemos dar o exemplo, somos instrumentos da perda do próximo, c em vez de sermos pastores dos povos, parecemos lobos de- voradores.»

Não é este o logar de evidenciar os grosseiros vicios da gente da egreja, que julgava tudo lhe ser permittido, por terem nas suas mãos o direito de per- doar peccados; não ousaremos peneirar nos archivos dos conventos c tomar nofa dos que foram reformados, excommungados e supprimidos, por causa das monstruosas licenciosidades dos que os habitavam; basta dizer que não se en- contrará uma abbadia celebre, em que os costumes claustraes muitas vezes não tenham soífrido o contagio da impudieieia. Tara citar alguns exemplos, em mil do mesmo género, basta lembrar que os monges de Moycn-Moutier e de Se- nones em Lorena viviam vida Ião escandalosa que foram expulsos por ordem do imperador da Allemanha; mas os successores ainda os excederam em liber- tinagem.

Na chronica manuscripta de João de Bayon, possuída por Mr. Nocl, na sua bibliotheca em Nancy, vé-se que os monges de Moyen-Moulier se assus- taram com as theorias de um eunucho grego, por nome Nicetas, que em Cons- tantinopla aconselhava a castração de todos os noviços, destinados á vida mo- nástica. Estes monges corrompidos e corruptores, que mantinham relações in- fames ciim as raparigas das visinhanças e de noite as allrahiam ás suas cellas, imaginaram que a Iheoria de Nicetas teria como resultado o arrancar-se-lhes a fonte dos seus prazeres. O seu suslo fel-os encarregar o seu superior Hum- berto de ir a Constantinopla combater a heresia de iNicetas, e o abbade cum- priu a delicada commissão com satisfação de todos elles, pois salvou a virili- dade dos monges, derrolando o beresiarcha com o peso dos seus argumentos, n'um dialogo, em que o convenceu de querer transformar os servidores de Deus em sacerdotes de Cybele.

A' volta, soube que a sua abbadia dera mais um passo no caminho da perdição, e julgou poder intimidar aquelles espíritos, ameaçando-os com as penas do inferno :

«Quando atravessava os Alpes, contou-lhes elle, encontrei uma legião de demónios montados em cavalíos de fogo. Levavam a alma de Gobnin, bispo

Í6 HISTORIA

ilc Chalons, que acabava cie ser surprehcnilulo pela morte no próprio momento de commetter o peceado contra o sexto mandamento, com uma religiosa. Per- guntei ao chefe d'aque!lc exercito infernal, se possível seria resgatar aquelia alma com orações; mas o espirito maligno respondeu-me com uma gargalhada voliando-mc as cosias, e todos os demónios as voltaram também, fa7.endo ges- tos indecentes.»

Os monges a quem isto era contado imitaram o descortez procedimento da legião infernal, mas agradeceram todavia ao prior o triumpho alcançado sobre iSicetas, dizendo:

«Agora resta-nos provar que um bom monge \Mnc dispensar-se de ser um bom eunucho, e que um bom eunucho não poderia dar um bom monge.»

Não queremos passear o leitor de convento em convento, iniciando-o na vida escandalosa que se passava dentro; basta dizcr-lbe que todos os claus- tros eram antros de prostituição (scorlationes fornices, diz um escriptor mo- nástico do século undécimo.) Gregório vir, que se esforçava em disciplinar os costumes da egreja franceza, escrevia em 1074 a todos os bispos:

«Entre vós, toda a justiça é calcada. Tendes o costume de commetter im- punemente as acções mais vergonhosas, mais immundas, mais intoleráveis, que, á força de licença, se converteram em hábitos.»)

Explica-se a indignação d'este papa legislador, vendo um Mauger, arce- bispo de Ruão, commetter crimes, que exhalavam em volta, no dizer enérgico de (luilherme de Foiliers, um repugnante cheiro de vergonha; um Engucrrand, bispo de Laon, metter a ridículo a temperança c a pureza «com expressões, diz Guibert de Nogent, dignas d'uma prostituta;» um Manasses, arcebispo de Reims, que foi, segundo conta um contemporâneo «uma besta immunda, um monstro, cujos vicios não eram attenuados por qua!c(uer virtude;» um Hugo, bispo de Langres, maculado de adultérios e sodomias (sodomico elinm [laijitio pollutam esse, lé-sc nas actas do Synodo de Reims, perante o qual foi levado cm julgamento.)

Todos estes indignos prelados foram severamente castigados; mas estes exemplos fataes não eram menos seguidos, por grande numero de clérigos, que se indignavam das severas decretaes de Gregório vu. Tanto se linha apossado a libertinagem do clero, que a moralidade soílVia d'ellea mais teimosa opposição.

«E' um herege e um insensato, exclamavam os da diocese de Mayença (Chronica de Lamberto Schaífin.) Ouer-obrigar os homens a viver como se- rias celestiaes, contrariando a natureza, dando redCa solta á crápula? .\ntes que- remos renunciar ao sacerdócio do que ao matrimonio.»

Qiuisi todos eram casados ou tinham concubinas. Ives de Gharlres, nas suas carias, (Epist. 33), cila um prelado, que publicamente cohabilava com duas mulheres c que se preparava para adquirir uma terceira (qui publice sibi duo scorta copnlarit et teríiam pellkem jam .sibi prceparacit.)

Apesai' dos decretos pontifícios, o chíro insistiu por muito tempo nas suas relações concubinarias, resit-tindo tenazmente á renuncia dos piwzeres (se pnl- licibue hoc nolunt. absiinere, nec pudicicice inhcersre,) diz Oderico Ailal. O mesmo historiador conta que, tendo o arcebispo de Ruão cxcommungado os que viviam na incontinência, foi por elles apedrejado.

Os bastardos dos sacerdotes e dos frades, muHiplicavam-se iniinilamenie, e seus pães não se envergonhavam de dolal-ns, casal-os e enriquccel-os, á custa da egreja. iSão havia um cabido, cujos cónegos não estivessem abra:ados no fogo da luxuria, {(lall. Christ. til. i, appeud. pag. (>,) não havia diocese em que se contas.scni dez sacerdotes .sábios, castos, amigos da paz c da caridade, isen- tos de todo o crime, de toda a infâmia, de (|iialiiiier macula, {l-'iilp. Larnat. Episl. 17;) não havia convento onde a regra (ia (iidcm fosse escrupulosamenli- observatia, onde os homens vestidos de frades, lussem verdadeiros frades, {()

DA 1'UOSTITUIÇÃO i7

>iiiseri I Jizia o monge Marliniano, nós mo naciúali hábil u indiili, mdemur; monachi et non sumus I)

O (lopravaclo proceder dos sacerdotes c frades era escandalosamente imi- tado pelas poi)ula(,'ões. O clero nem au menos pi'ocurava apparentar honestidade c era elle mesmo quem dava o assumpto dos seus vicios aos poetas, que o es- carneciam nos seus versos satyricos, aos pintores que faziam quadros c minia- turas, allusivas aos seus prazeres aphrodisiacos, aos estatuários que celejjra- vam estas orj^ias em obras de pedra, de madeira e marfim. Era este o (liema favorito da lilteralura e da arte; a intemperan(,'a dos frades, as suas sensuali- dades, o seu eynismo. Em parle alguma se Ic que os ccciesiastieos se olíen- dessem com a repruduc\'rio pela arte, das suas torpezas e infâmias. Elies próprios se divertiam com a descripção dos seus vergonhosos feitos, fazer.do reproduzir a epopeia escandalosa da sua vida, nas illuminuras dos missaes, nas esculptu- ras das egrejas, nos ornatos dos seus moveis.

O talento dos csculptorcs, sem ccs.sar se applicava á perpetuação d'essas orgias e liceneiosidades, e por isso, existem tantas allegorias grosseiras, tan- tas caricaturas indecentes, tantos caprichos sórdidos, gravados nos capiteis, nos frisos, nos arabescos da arehilectura religiosa; ac|ui descobreni-se frades transformados em porcos, alli cães vestidos coni o habito; n'un!a parte o órgão gerador a|)pareec |)or baixo do habito d'um monge, n'outra freiras e diabos se entregavam a scenas pouco edificantes; e ainda n'oulra, mulheres nuas, são perseguidas por macacos, que lhes mordiscam as nádegas. O emblema da impu- reza é cop.imummente uma cabeça de Cliimcra, cobrindo os órgãos scxuacs mas- culinos ou femininos. Em todos estes grupos obscenos, o habito do frade ou da freira caracterisa a maligna intenção do a^ielor, que se diverte cm immortali- sar os vicios vergonhosos.

Eram estes os primeiros que se riam d'aquella celebridade, e tanto assim era que deixaram subsistir tão escandalosas obras de arte, que na sua maior parte foram destruídas nos tempos modernos pelos exaggerados escrúpulos dos ccciesiastieos, a quem em vão pediram graça a originalidade de laes monumen- tos. E' essa a razão porque os mais extraordinários d'esscs capiteis, os que eram ornados com toda a sorte de obscenidades nos são conhecidos apenas pelo testemunho dos archeologos e dos sábios, que recolheram essas tradições. E por isso lambem julgamos que não se haja conservado o desenho d'uma escul- plura licenciosa, que se via cm Saint-Uermain-des-Prés, e que representava uma religio.sa, prostituindo-se ao mesmo tempo com um frade e um animal, que parecia lobo. Também cm Saint-Georgcs-de-Roche-ville, na Normandia, havia uma parte de columna, em que estava gravada uma horrível confusão de homens e macacos, competindo em incontinência e dcsavergonhamento.

Em presença d'estes modelos de luxuria clerical, o povo não linha a pre- tensão de ser puro e virtuoso, chegaiido mesmo a ter uma espécie de emula- ção libidinosa, uma rivalidade libertina com os sacerdotes e frades. Os histo- riadores coevos, representam-os sob a forma de escorpiões e serpentes, com face humana {Ili.it. des comtes de Poitou, por .1. i5es!y, pag. 26i.)

Assim comprehende-se bem c|uc tal existência lizesse crer no fim do mundo e no reinado do Aníe-Chrisío. Esta supersticiosa crença, fixada jielos prognósticos para o anno 1000, não era também de molde a melhorar os cos- tumes. Apezar dos terrores que o íim do mundo inspirava, todos se entrega- vam aos gosos, embriagando-se com os prazeres da carne (cnrnale ilkcebroe.) O mundo era cada vez pcioi', e por todos cim esperado o baptism ) d'um novo diluvio: (i-idebaíur sane mundus decliiiare ad vespsraiii, diz (iuilherme de Ty- ro, liv. I da sua Historia.)

Os jioetas estavam de accordo com os pregadores, para annunciar que a, espécie humana tinha feito espantosos progressos na iniijuidade, c que a (Jeca=>

48 HISTORIA

dencia moral era cada vez maior. Um trovador do século decimo, citado por Raynouard (PocsiM orirj. des Trouv. tit. ii pag. 16) dizia n'um curto poema:

Enfans en dies foren orne fallo. Mal home foren, aora siuit poior.

Todos os escripforcs d'aquelle tempo são conformes sobre a profunda de- gradação do estado social, e todos dizem ser a causa principal o peccado da in- continência, que tomara proporções gigantescas. Alguns, fazendo doação dos seus bens ás egrcjas e aos mosteiros por temor do ,4nte-(]liristo, juslilica- vam-as com a crescente iniquidade dos homens ('niquilas quotidiana malicie incrementa siuiiii,) lè-se n'uina doação, feita á cgreja d'Anbely. Os doadores sentiam-se tão sobrecarregados de impureza, que se arruinavam para comprar a absolvição, que quasi sempre lhes era dada por um sacerdote, mais impuro e peccador do que clles.

«Então viu-se, diz Raul Glaber na sua Chronica (liv. iv pag. 9.) reinar por toda a parle o menosprezo da justiça e das leis. Os homens deixavani-se arrastar pelas suas desenfreadas paixões. . . Justamente á nossa nação podem ser applicadas estas palavras do Apostolo: praticaes taes impurezas, que nunca se ouviu dizer que iguaes as commettessem os pagãos.»

Oderico Vital, na sua Historia Ecclesiastica, (liv. vui, anno 1000,) accusa a geração contemporânea de deliciar-se com o que os mais honrados persona- gens dos tempos passados chamavam infame e vergonhoso. Ha a accrescentar que, não tendo apparecido o Anfe-Cliristo no anno 1000, os que sobreviveram áquella época fatal, julgaram-se auct )"isados a não receiar nenhuma vingança celeste, c mais se afundaram no tremedal dos seus vicios.

Ha disseminadas algumas descripções d'estes vicios, ordinariamente dis- farçadas com vagas generalidades, e que, pelas lamentações que produzem na pouca gente séria daquelles séculos, não dillerem doutras obras do demónio.

«Agora, exclama um poeta anonymo, n'um poema de versos, sobre a desventura do seu tempo, (7/í'.s^ des Gaulês, tit. xi, pag. 44o,) agora os ho- mens que levam vida escandalosa, libertinos e sodomitas, roubam, injuriam e despresam os homens honestos.»

A asquerosa sodomia {moechi sodomit<e) era o vicio mais commum cm to- das as classes, tanto entre condes e barões, como entre humildes servos, tanto nas sombras da clausura, como nos salões luxuosos do abbade e do bispo. O diácono Pedro, cm nome do Papa Leão ix, pronunciou no concilio de lleims (1049) um discurso, em que os sacerdotes e seculai-es eram scvcramenle re- prebendidos pelos seus vergonhosos costumes. Estes haijitos haviam-sc de tal sorte inveterado em França, que o abbade Clairvaux, Henrique, escrevia ao papa Alexandre iii, em 1177. A antiga sodomia renasce das próprias cinzas. [Hist. de Paris, por Dulaire, edic. de 1837, tit. ii, pag. 40.)

Oderico Vital, em muitos trechos da sua historia, faz notar o contagio do odioso vicio, que devia a sua recrudescência ao estabelecimento das raças nor- mandas, nas provindas galio-franeas.

«Então, diz no livro viii, os etfeminados dominavam em todas as regiões, c sem freio se entregavam ás suas sórdidas licenciosidades: todos sem pudor abusavam das horriveis invenções de Sodoma {Tiinc e/feniinati passim in orbe diiminanbantur, indiciídinale dehacrhabanlur, sodomilicisque spnrtiis [cedi ca- lamiloe, flamis urendi lurpiler abutebanlur.y>)

O mesmo historiador conta que um anachorcta famoso, consultado pela rainha Mathilde, mulher de Guilherme de Inglaterra, prophetisara esta invasão de Soiloma. O anacboiela |)rcdisse os males que ameaçavam a Normandia, sob o reinado de Roberto, lillio de Guilherme e neto de Roberto do Diabo.

DA PROSTITUIÇÃO 49

«Este príncipe, diz, similliante a um lascivo bode, en(regar-se-ha á sen- sualidade e ao roubo, apoderar-se-ha dos bens ecclesiasticos. Distribuil-os-ha pelos que Ibc prodií^jalisam os seus prazeres sensuaes, e pelos aduladores infa- mes (spurcisque lenonibus alii.sqiie lecatoribun di.stribuel.) A"o ducado de Ro- berto, os catainifas e os elleminados dominarão, e, sob este dominio, a preversi- dade e a miséria augmentarão terrivelmente.»

E', pois, incontestável que a sodomia, que augmcntou com as crusadas, foi em França introduzida pelos normandos, que a deixaram como vestígios em todas as estações que fizeram, quer fosse para invernar, quer para esperar as suas bordas devastadoras.

Abbon, no seu poema do cerco de Paris pelos normandos, imputa aos francezes o vicio ignominioso que queremos exclusivamente attribuir aos seus inimigos. Aquelles bomens do norte, como a maior parte dos bárbaros, não ti- nham escrúpulos nem vergonba em mutuamente se prestarem a esta abominá- vel prostituição: faziam um uso moderado das mulheres, que constantemente estavam gravidas ou aleitando os filhos, pois que a tribu, cuja força dependia do numero de homens, lhes pedia uma producção exhuberante, que os hábitos de relações voluptuosas entre marido e mulher não favorece. Tal foi de certo a origem e causa d'aquelles degradantes erros do sexo masculino.

Os normandos não eram menos lascivos para com as mulheres, nem as violaram menos do que aos homens nas povoações por elles occupadas, pela força ou surpreza; unicamente respeitavam as creanças, isto é, matavam-as sem piedade. Os mancebos, esses, eram distribuídos e levados, depois de com elles pra- ticarem as maiores obscenidades, deante de suas esposas, que se não olTendiam com isso nem ousariam oppòr-se.

O monge Richer, narrando uma expedição dos normandos que devasta- ram a Bretanha no século nove, diz que levavam os homens, as mulheres e as creanças :

«Decapitam os velhos dos dois sexos, escravisam as creanças e violam as mulheres bonitas (feminas cero, quo' formosce cidebantur, prostlluunt.)»

Pódc fazcr-se ideia do terror inspirado pelo nome e fama dos norman- dos; despovoaram províncias inteiras; as cidades, florescentes antes da sua ap- parição, ficaram sem habitantes; depois de serem por elles abandonadas, as pittorescas margens dos rios, que elles tinham subido com os seus t)areos de fundo chato, convertiam-se em desertos; na passagem, deixaram impressos os seus hábitos infames, e, os vencidos, por muito tempo conservaram as infames tradições que os vencedores lhes tinham legado.

Ao fixarcm-se no solo da Inglaterra, os normandos não trataram melhor a população indígena : não matavam os velhos, mas abusavam dos mancebos e ultrajavam as virgens, das quaes as mais nobres eram repasto da lascívia da immunda soldadesca (nobilis puella despicabiUnm ludibiio armifierorum pate- bant et ab immundis nebulonibus oppressoe dedecus suum deplorabant, diz Ode- rico Vital.)

Deve presumir-se que os costumes normandos não haviam melhorado muito, depois de dois séculos, e que tão grandes libertinos continuavam a pas- sar bem sem suas mulheres, porque estas, durante a larga ausência dos seus maridos, sentiram-se abrazadas de tal concupiscência {soerá libidinis face ure- bantwr, diz o latim mais energicamente do que o descreveria a nossa língua) que tiveram de mandar aos ausentes mais d'uma mensagem em 1068, dízendo-ihes que tomariam outros maridos, se depressa não voltassem.

O receio de ver do leito conjugal sahírem bastardos decidiu alguns nor- mandos a voltar para junto das impacientes esposas (/aò-c/ní.v (fomiua^ntí sui.<;,) mas o maior numero ficou em Inglaterra, onde encontravam com que distra- hir-se e consolar-se. Se as suas mulheres não se casaram todas, nem por isso

HiSTOSU DA FSOSTITCICÃO. ToMO II— FOLHA 7.

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deixaram de lhes dar bastardos. Um poeta d'ac|uella época lastimava-se, vendo que «a lâmpada das virtudes se apaj^ára na ]\ormandia.»

As demais províncias, que então compunham a França feudal, soh o ponto de vista dos costumes, não estavam então em mais satisfatória situação. Os senhores, sem pudor algum, faziam gala de todos os vícios. M. Emílio de la Bedoilière, na sua erudita Hisloire des tnceiírs et de. la vle privce des Fravçais, descreve episódios notáveis de selvagem impudor que caracterisa um e (tu- tro sexo, tanto nobres como servos. Em 990, corria o boato que (luilherme IV, duque de Aquitania e conde de Poitiers, tinha tido relações adulteras com a mulher do visconde de Thouars, em cujo palácio tinha recebido hospitalidade, e Emma, esposa de Guilherme, espreitava a oceasião de vingar-se da sua ri- val.

Um dia viu-a passear a cavallo, indo quasi sem companhia, pelas visi- nhanças do eastello de Talmout e alcançando-a com um grande séquito de es- cudeiros, lança por terra a viscondessa, enche-a de ultrajes e entrega-a aos escudeiros. Estes apoderam-se d'ella, e, cada um por sua vez, durante uma noite inteira, a violaiam, obedecendo assim ás ordens de Emma, que os excita c con- templa {comilantes se qnatemis íihidinose nocte qvw iiiiminebal, lota e, a ahu- terentur, incitai.)

No dia seguinte deixaram-na em liberdade, semi-nua e succumbindo de cançaço e vergonha. O visconde não pôde queixar-se nem tirar vingança c acceitou sua mulher deshonrada, emcjuanto (luilherme desterrava a sua para o eastello de (Ihinon.

Em U)8(), vemos outra violação, menos repugnante nas suas circumstan- cias, mas consummada também em presença de testemunhas. Ebles, herdeiro do conde de Comboru, na A(|uitania, chegando á maioridade, reclamou do seu lio e tutor Bernardo o seu eastello e tei'ras.

Este recusava allender a esta reclamação, e Ebles, reunindo gente de guerra, poz cerco ao eastello que em vão Bernardo procurava defendei'. Ebles, triuniphanle, entrou na praça, acabada de abandonar j)or seu tio; encontra Garcilla, sua tia, e sem se desarmar, em presença dos companheiros que o ap- plaudiam, saciou n'ella a mais repugnante e eynica lascívia (pnlnii morem coram mitllis Irrdavit. Hisl. des marnrs de la ine prime des Fran., tit. n, pag. 343, e tit. iii, pag. 83.)

JNão se estranham estes factos monstruosos e ainda se suspeitam outros mais espantosos, se é possível, (|uando se percorre com o pensamento por en- tre os antigos Peiiitenciaes: é alli onde ha a procurar os feitos occultos da prostituição na idade média; é alli onde se commette com toda a sua audácia o peccado da carne, que não se limitava a conjuncçõcs illicitas entre os dois sexos, mas cpie se comprazia com os caprichos e extravagâncias da mais e\e- cravel de|)ravação. Na verdade, como diz jM. de la Bedoilière, quizcra erér, para honra da humanidade, que os horrores descriplos nos Fenitenclae.s são puramente accidenlaes, e raras vezes achavam echo no tribunal da |)enilencia; masreapparccem a cada pagina nos 1'enilenriaes, que os classificam em dif- ferentes graus de malícia e castigo. E' certo, pois, que eram frei|nenles e (jue inoculavam, cada vez mais, uma corrupção latente por todo o corpo social.

Não pofienios deixar de registrar estes horrores da prostituição; mas não os despojaremos do seu veu latino e procuraremos uma traducção prmlentementc allenii.ida dos 1'eiiileiiciaes modernos, que tiveram de respeitar a doutrina pc- nilenciaría da egreja. Temos (|nc dislinguír, n'csle código |irimilívo da conlissão, os factos que i-espeilam ao segredo do matrimonio, os (]ue se referem ao in- cesto, os relativos aos poccados contra a natureza e os que pertencem a crimes de bestialidade.

Tudo quanto a egreja linha feito para proteger a pureza do matrimonio.

UA 1'KOSTITUIÇÃO 51

não ora mais que um testemiinlio evidente de tudo (|uanto se fazia no santuá- rio dos esposos, contra o objecto moral d'esta instituirão. Eram apenas pecca- dos vcniaes não consagrar a primeira noite de bodas, a praticas de devoção, (eadeni nocle pro revereacin ipsius beriediclionis in lirginitule [leniiitnednf, diz IU'.ííinnn, iiv. u ;) não se lavar o marido i|ue tinha usado do matrimonio, antes de entrar na of^reja {mariliis qni cum u.rore .sua dormieril, lavet se nnlequam intret in ecclesiam, Penitencial de Fieurv ;) entrar a mulher na egreja, no pe- ríodo da sua menstruação (wulierex menstruo tempore non inlrent ecclesiam ;) se, n'esta mesma época os dois esposos se tinham reunido iio leito conjugal (iíi tempore n^enslrui saníiuinis (jui tunc nupseril, HO dies pwniieal. Peniten- cial, de Angers;) se não tinham guardado uma continência absoluta aos domin- gos, nos dias de grandes festas, nos trez dias anteriores á communhão e du- rante as quatro semanas que precedem a Páscoa e o Natal.

Porém, o peccado era mais grave e a penitencia maior, (juando os es- posos se entregavam a phantasias obscenas, não desculpadas pelo privilegio da união dos sexos. (Si quis cum uxore sua retro nupserit, 40 dies jiwniteat; si in tergo três annos, quia sodomiticum seclus est. Penitencial de Angers.)

As copulas carnaes, no matrimonio, não deviam ser senão uma obra casta e santa, com o único fim de procrear filhos e não com o de satisfazer os sen- tidiis. São estas as palavras de Jonas, bispo de Orleans, no seu instituto de seculares: «Oportet nt legitima carnis c(qnda causa sit prolis, non voluplatis, et carnis commi.rlio procreandorum liberorum sit gralia, non satisfactio vi- tioruin.y>

O incesto multiplicava-se sob as formas mais horrorosas; o filho não res- peitava a mãe, a mãe não respeitava a innocencia do filho: o irmão seduzia a irmã: o |)ae corrompia a filha. Havia, porém, para estas abominações, peniten- cias de dez e quinze annos, durante os quaes o peccador se habituava ao jejum e á penitencia :

nQui cum malre fornicaceril, /J annis., si cum filia et sorore, i2.

«Si adolescens sororem, 5 annos, et si matrem 7 , et quandiu vixerit, nunqiian sine pa^nitentia, rei continentia.

<iSi mater cum filio parindo fornicationem imitatur, si mater cum filio suo fornicnverit, tribus annis pa;niteat.»

(Penilenciaes de Fleury e de Angers.) .

Os infanticídios, os abortos não eram menos numerosos que entre os pa- gãos, que sempre os toleravam e ás vezes os approvavam. Ou se afogava a creança ao sahir do útero da mãe, ou a matavam, envenenando-a ou abrindo- Ihe uma veia.

Havia homens e mulheres babeis, que vendiam drogas abortivas (/(«■;■- barii viri, mulieres inlerfectores infantum.)

Outras drogas tornavam as mulheres estéreis e os homens impotentes. Para excitar o amor, ou antes o ardor sensual d"um homem por uma mulher, compunham-se poções ascjuerosas.

«Interrogasti de illa femina quce menstruam sangidnem euum miscuit eivo vel potui et dedit viro suo ut comederet? et puoe sémen viri sui in potn bibit ? Tali sententia feriendos sunt sicul magi.» (Penitencial de Raban .Mauí-.)

«Ília quív sémen viri sui in cibo niiscet, ut indi plus ejus amorem ac- cipiat, annos três pceniteat.y» (Penitencial de Fleury.)

Os peccados contra a natureza tinham iiinumeraveis variedades aos olhos do confessor, que lhes applicava penitencias muito variadas também.

A simples sodomia (s-í quis fornicarerit sicut sodjomitw, diz o Penitencial romano, tem quatro annos de penitencia ; porém a idade dos pcccadores esta- belecia muitas difierenças. A creança, o adolescente e o homem, não eram pe- nitenciados do mesmo modo, quando peccavam d'uma mesma maneira. Os pec-

52 HISTORIA

cados da juventude assimilhavam-se com frequência aos da velhice mais de- pravada: mas perdoavam-se mais facilmente e corrigiam-se com os annos.

"Vueri sese inrlrew manihae inquinantes, ilies iO pnenileat. Si vero pueri sese inter femora sordidant, dies centum, mujores vero, trihus quadragessi- mus.»

{Penitencial de Angers.)

Os erros anti-pliysicos das mulheres eram penitenciados mais severamente do que os dos homens, como se a castidade fora mais necessária ao sexo que pos- sue o encanto irresistivol de attraliir o outro sexo. As mulheres religiosas entre- gavam-sc entre si a libertinagens, em que apparecia o fascinum romano e em que a arfe de gosar nada esquecia das licções impudicas da antiguidade.

uMulier ctim altera fornicans, três annos. Sanctimonirlis femina mim sancíimoniali per mackinatum polluta, annos septem.»

(Penitencial de Angers).

«Mulier qualictimque molimine aut per ipsam anl cum altera fornicans.y>

i<Si qtiis sémen in osmisenet, septem annos raaiteat.»

(Penitencial de Fleury).

A's vezes o incesto misturava-se com o peccado contra a natureza, e agra- vava a sua infâmia e penitencia: a sodomia entre irmãos, era um peccado que não podia ser expiado com menos de quinze annos de ahstinencia.

«Qui cum fratre naturali fornicaverit per commi.rtionem carnis, ah ontni carne se ahstineat quindecim annis.y>

(Penitencial de Fleury.)

Todo o género de animalidade (apenas se pôde acreditar) figura nos Pe- nitenciaes, e apenas provoca uma penitencia temporária, embora a lei civil con- demnasse o criminoso a morrer com a besta, que tinha tido por cúmplice. To- das as bestas pareciam idóneas para esta aberração humana (cum jumento, cum quadrúpede, cum animalibus,) diz o Penitencial de Angers: (cum pecorhius, diz a eollec(.'ão de Reginon.)

Nada mais commum na idade media que este crime, que se castigava com a morte, quando era evidente e confirmado por sentença do tribunal. Os registros do parlamento estão cheios de feitos d'esta espécie, pelos quaes os desgraçados culpados eram queimados com a sua cadella, com a sua cabra, com a sua vacca, com a sua porca, com a sua pata. No emtanto, encon- tramos na carta de Uaban Maur a Uegimbold, arcebispo de Mayence, a dis- cussão canónica d'cstas enormidades, que então nada admiravam.

«Pertia quceslio de co fuit, qui cani feminoe inrationabiliter se nuscuit, et quarta de illc, qui cum vaceis sa-pius fornicatus est? Qui cum jumento vel pecore coierit, morte moriatur. Mulier quae succulmerit ctdlibet jumento simul interfici.rlur eum eo.y> (Cap. de Baluze, til. Append. ("oi. 1378.)

Nas capitulares de Ansegise, os bispos e sacerdotes são convidados a com- bater esta de|)ravação, que se considerava como um resto de paganismo e que se perpetuou por mais tempo no campo que nas cidades ; mas lodos os legis- ladores reconhecem que simiihantc crime, que rebaixa o homem até ao nivel da besta, mei-ccc a morte. E com melhor vontade se perdoaria á besta que ao homem: mas niatavam-na e lançavam a sua carne ao monturo, temendo que, por arte do demónio, se gerasse um producto monslruiiso do connuhio do ani- mal com o homem.

Emlim, para dar uma ideia completa da persistência dos libertinos nos seus detestáveis hábitos, recorilaremos um processo-crime, que se refere a um peccado cimlra a natureza, (|ue se chamava forniratiu inter femora.

Ducangc ('• quem nos cita este singular documento, tirado d'uma ordena- ção de Eduardo i, rei dlnglatcrra. Ksta ordenação tem, provavelmente, a data dos jirimeiros annos do decimo século.

DA PROSTITUIÇÃO 53

Um homem chamado Simão linha relações concubinarias com certa mu- lher, de nome Malhiide, com quem nunca tivera verdadeiras copulns. Foi sur- prelicndido um dia, em llagrante dclicto de iilicito commereio, pelos inimigos d'esla concubina, que se queriam vingar d'elle, obrigando-o a casar com ella.

Maliiilde declarou, pois, perante a justiça, que tinha vivido muito tempo conjugalmente com Simão, mas que ainda não havia consummado o matrimo- nio. {Juralores dicunl quod proediclus Siinon semper tennit diriam Maiildam ut oxorem suam, et sicunt quod nunquam dictam Maiildam dfsjionsaiiit.)

Simão teve que escolher entre estas três espécies de castigos ou repara- ção: casar com Mathilde, perder a vida, ou pagar a Matliilde a multa que um marido paga a sua mulher {rei ipsam Maiildam reiro osculare.)

Simão cscollieu o que mais agradável lhe era, casou com Mathilde, mas não quiz ter com ella outras relações que não fossem as que tinha tido até alli {inter femora.) Ducange extrahiu esta curiosa anecdota do Diccionario de leis do Inglaterra (Nouvelex anqlicanas, por Thomaz Blount.)

Na época de Eduardo i e de Carlos, o Ingénuo, seu genro, os costumes de França e de Inglaterra oITereciam uma triste analogia, c algum poeta da corte saxónica de Eduardo poderia dizer de Inglaterra o que o poeta Abbon di- zia então de França, no seu famoso poema sobre o Cerco de Paris.

«Oh França! porque te escondes? Onde estão as luas antigas forças, que firmaram o teu triumpho sobre os teus inimigos mais poderosos? Tu espias três vicios principacs: o orgulho, as vergonhosas delicias de Aenus e o luxo. Não afastas ainda do teu leito as mulheres ca.sadas, nem as religiosas consa- gradas ao Senhor. Pelo contrario, tens mulheres até á saciedade e ultrajas a natureza.»

Dois séculos depois, Pedro, abbade de Celles, nas suas cartas (Livro iv, epist. 10) dirigia á cidade de Paris as mesmas censuras que Abbon tinha diri- gido á França, e accusava-a de ter corrompido os costumes dos seus habi- tantes :

«Oh Paris! exclamava. Quão bella e corrompida és! Quantos laços armam os teus próprios vicios á juventude imprudente! Quantos crimes fazes praticar!»

A prostituição foi em todas as épocas a conselheira e instigadora dos ou- tros vicios, que não vivem sem ella e que se lhe prendem como os filhos ás glândulas mamarias da mãe.

CAPITULO VI

SUMMARIO

Situação das mulheres de mi vida antes do reinado de Luiz viii.— Vocaljiilano da prostituirão no decimo pri- meiro século.— O putagitim.—i'utus e Puta.— Os poços commuus.— O pn^-o do amor.— A corte do amor ou cíirtc cc-

este de Sjíssjus.— /"iiíiíiajem e Pulasscrit'.— Lciwine.—Maqxiercllagnim, maquerellus, e mwjuercUa.— On- gem da [laiavra m.iqusrcaií.—li irdc, bardei e Ottrdeau. —As mulheres de bordel. —As mulheres. —Garcioe. ij«?--

cia.—Ribaldo e ribalda.— Rufiões.— Clapiers.

íf, a depravaç.^o dos costumes, n'csta época da idade media, ti- iiiia excedido a de épocas mais barbaras, tinha isso por causa a libertinagem c o crime: a prostituição legal, a que se exerce como industria e serve de salvaguarda ás muliíeres Iionradas, oITerecetido aos appetites senstiaes unia satisfação sempre lacil, esta prostituição regular c organisada, não existia aind;), pelo menos ao alcance da vista e da mão da policia feudal. Nem cm principio, ncni como direito era admittida; não podia exerccr-sc senão em segredo e por fraude, com risco e perigo das mulheres que a miséria levava a tão vil mister; cm parte alguma encontrava protecção ou apoio, nem na magistratura das cida- des constituídas em municípios, nem nas justiças senhoriaes. Não se julgava necessária nem sequer ulil, e considerava-se como um ultraje publico á hones- tidade de todos.

No emtanto, era necessário toleral-a e fechar os olhos a um acto brutal que se praticava constaniemcnte em todas as partes, escondendo-se, ou antes (iisfarçando-sc, apesar das mais severas prohibições, e da mais rigorosa pena- lidade. Estamos convencidos que esta prostituição legal conquistou o seu ver- gonhoso posto na sociedade, com a perseverança em arrostar com as leis e castigos, com a habilidade e astúcia em tomar todas as mascaras e disfarces, com força e tenacidade, e com o seu caracter vivaz e invasor. Prtde compa- rar-se a situação das muUiercs de vida, no meio d'aquella sociedade (]iie lhes- era hostil e que tijdavia não podia prescindir delias, que as perseguia cons- tantemente e que nunca chegava a extcrminal-as; pôde comparar-se, dizíamos, aquella situação anormal à dos judeus que tinham contra si a legislação civil e ccclesiastica, que se viam quasi sempre encarcerados, despojados, repellidos e comtudo voltavam ás suas tendas, aos seus contratos laboriosos, e aos seus lucros usurários.

A prostituição não teve, no Estado, uma existência reconhecida ou au- ctorisada, antes do reinado de Luiz vii, e talvez de l'hili|ipc Augusto, porque o rei dos ribaklos (rex riboldorum) que evidentemente era o go\crnadoi: supremo

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HISTORIA

dos agentes de prostituição, foi creado, como logo veremos, por Pliilippe Au- gusto.

E" muito diíTicil descol)rir o caracter e hábitos da prostituição mercená- ria d'aquelles tempos de corrupção gerai, que não permittiam, no emtanto, exercer livremente esta desprezível industria. O abbade, o bispo, o varão, o se- niior feudal, podiam ter em suas casas uma espécie de serralho ou lupanar, mantido a e\|)ensas de seus vassallos: segundo um escriptor drt decimo pri- meiro século, cada possuidor de feudo mantinha no seu gyneceu tantas ribal- das quantos eram os cães que tinha na sua matilha; mas o lupanar publico, aberto a toda a gente, debaixo da direcção de um homem ou de uma mulher, que exploravam este infame commercio, existia n'um pequeno numero de localidades, em que a administração senhorial e municipal se afastava dos an- tigos costumes, e se fingia cega para se mostrar tolerante.

Em Paris e n'alguns outros grandes cenlros de população, o estabeleci- mento de casas de libertinagem, nos arrabaldes e em certos bairros desi- gnados, não sofíria grandes obstáculos, até ao dia em que o escândalo provo- cava o rigor da lei e occasionava a suppressão, mais ou menos radicai, d'a(|ucl- Ics asylos de sensualidade publica. Havia também prostitutas, que não perten- ciam á exploração de um lupanar c que reservavam para si todos os lucros do seu trafico carnal, confundindo-se ordinariamente com a população honrada, e ainda que vivessem da sua prostituição, tinham cuidado em cohoneslar o seu procedimento, em dissimular a sua vida, sob pena de serem desprezadas pelos seus visinhos e vérem-se obrigadas a desapparecer, fazendo justiça a si próprias.

Comprehende-se, pois, que a vida intima dos lupanares e a vida parti- cular das muliíeres publicas não tivessem encontrado echo nos monumentos es- criptos d'aquellas épocas obscuras. A prostituição, desde o oitavo ao duodécimo século, não tem sc(|uer actos que a caracleriscin (fum modo notável, embora de- fira absolutamente da prostituição do Daixo Im|)erio. E' necessário, para a des- crever, contentarmo-nos com alguns factos isolados, que prendem entre si e que mostram a variedade dos usos locaes. E, todavia, estes factos (|ue nos subministram os registros municipaes e as ordenações da policia urbana, são muito raros |)ara se poder formar com ellcs um vasto quadro synthelico. Por isso se não podem descrever os costumes secretos da prostituição na França feudal.

Mas a lingua popular do decimo primeiro século, a baixa latinidade, que creou a lingua franceza, sob o império dos dialectos do Norte e do Meio-dia, aquella lingua, applicando novas palavras a cousas e ideias novas, oITerece-nos, na formação d'estas mesmas palavras, uma infinidade de dados preciosos, nos qUacs encontraremos muitas noções relativas ao assumpto de que tratamos.

A partir do nono século, o vocabulário da prostituição, muda de caracter, restringe-se notavelmente, mas compõe-sc de locuções completamente novas, que parecem antes sahir da bocca do povo, que da penna do escriptor: estas locuções que lécm caractciislicas gallo-francas e do idioma tudesco, são forma- das para ex|)rimir o que ciiamaremos o material da |)rosti(uição. Claro está que as palavras latinas não tinham sentido, applicadas a certas circunistancias e par- ticularidades, que não existiam no momento era que foram creadas; o povo não ([uiz, na sua linguagem, acceilar estas palavras, que sempre se empregavam na linguagem lillei-aria, mas (]ue nada representavam nos hábitos da vida; o povo, i'om o íí(Miio (jiie lhe é próprio, creou as expressões ([ue lhe faziam falta, imprimindo-lhcs a significação especial (jiie <le\iani ter.

Assim, pois, vemos ap|)arecer no lalim vulgar a maior parte das pala- vras, que mais tarde sollrerarn uma transformação franceza e que depois se íócni conservado na lingua do povo, porque a jjroslituição não pode aspirar a

DA pAstituição * '57

ser admiltida na lingua nobre, a que as formulas grosseiras e impudentes do seu idioma se introduzam na linguagem lilteraria.

Notemos de uma vez para sempre que os escriptores sérios, os poetas e historiadores continuam servindo-se dos termos geraes, que o latim clássico lliei? offerccia para "designar os actos e os indivíduos dedicados á proslKuição; mas nos documentos sabidos de uma pcnna não litlcrata, ou destinados ao co- nhecimento do povo, se empregavam termos precisos e tcchnicos, (|ue esta- vam ao alcance de todos, e que não exigiam para sua intelligencia a menor no- ção da antiguidade clássica.

Esta lingua da prostituição é sem duvida sórdida c digna das cousas que qualifica; mas não deve esqucccr-se que na idade média todas as palavras da lingua usual tinbam direito a igual estimação e se empregavam sem reserva, tanto nos cscriptos, como nos discursos. No cmtanlo, não se julgavam infames certas expressões, que se referem a objectos infames, nem se dava importân- cia á modéstia da linguagem faltada ou escripta.

E' por isto que o francez antigo é tão rico em palavras engenhosas ou picantes, que formam o vocabulário da prostituição, e que desde o século de Luiz XIV foram tiradas da linguagem das pessoas de bem, como se dizia n'outro tempo.

A prostituição, a que as pessoas illustradas chamavam serapçe meretricium, de que os innovadorcs tinham feito mereiricatio e merelricatus, chamava-se, pois, entre o povo e na linguagem vulgar putagium e outras vezes puteum e 'pularia. Esta palavra parcce-nos de origem mo(Jerr)a, e apesar da aucloridade do douto Scaliger, em uma das suas notas a Virgílio (Çalaíecta) não cremos que puíafiium se deva derivar da palavra latina putas, que se encontra nos auclores da alta latinidade, no sentido de pequeno. Entre os antigos, no emtanfo, putus sobre tudo, era empregado como nome de carinho, como qualificação ca- rinhosa dirigida a um joven: o amo não chamava de outra maneira ao seu creado favorito. Quando em egual sentido se faltava de uma joven, dizia-se pula.

Os diminuitivos putillus e putilla formaram-se naturalmente, e Plauto na sua Asinaria (Act. iii, scen. 3) usa meu pequeno, puliílus, na significação de meu pombo, meu pombinho, e outras expressões carinhosas na linguagens amorosa. No cmtanto, também se usavam, como o faz Horácio (Sat. i, liv. ii, 3) pusus e pusa, com os seus diminuitivos pusillus e pusilla.

Comtudo, nós derivaremos pulagium de pulem, poço, porque esta ety- mologia abrange e justifica igualmente o sentido restricto e o figurado. Se, por um lado, a prostituição publica pckle comparar-se a um poço commum, onde cada qual é livre de ir tirar agua, por outro, em cada cidade, bairro ou dis- tricto, o poço commum ou senhorial era o ponto de reunião de todas as mu- lheres, que procuravam aventuras. Havia sempre um poço nos logares ^frequen- tados pelas prostitutas, nas Cortes dos milagres, em que ellas viviam nas en- cruzilhadas, que lhes serviam de campo de operações ou de feira. Devem estar lembrados que Jesus-Cbristo encontrou a MagdaLena junto d'um poço.

Estes poços, cujo uso pertencia a todos os habitantes da localidade, reu- niam todas as tardes á sua beira numeroso concurso de mulheres, que fatiavam dos seus amores, e que alli se demoravam, sob o pretexto de se proverem de agua. se sabia o que era ir ao poço; era juntar-se com os amantes sob um pretexto irreprehensivel. Ohl aquelles poços eram testemunhas de muitas lagrimas e suspiros!

Piganiol, faltando do Poro do amor, que deu o nome a uma rua de Pa- ris, situada perto da rua da Truanderie, em que a prostituição tinha a sua sede principal, diz que este famoso poço devia o seu nome a uma razão commum a todos os poços que havia nas povoações, e que serviam de reunião a todos os criados e criadas que, com o pretexto de irem á agua, iam namorar-se alli.

Historia da Pbostituição Tomo ii— Folha 8.

58 " HiSTq^A

Esíe poço, que c\isliu aíé ao fim do decimo sétimo século, em que sec- cou, tinha visto dcscnrolar-se mais de um drama amoroso; e a tradição con- tava de diversas formas a iiisloria de uma nobre menina da famiiia Hallebic, que se afogou alli, no tompi) de riiiiippe Augusto. Citavam-se ainda muitos amantes que se tinliam atirado ao mesmo poço, por despeito ou ciúmes, sen» te- rem encontrado n'clle a morte que desejavam. Outros amantes reconiiecidos attribuiram ao i*ofo do Amor parte da sua felicidade: e assim, um renovava os cântaros, outro a corda, outro pagava uma grade de ferro e outro punha- ilie um boca! novo, no qual se lia em leftras golliicas:

,l//íOii/' m'a refait en .72J iGut-à-fait.

(O amor me renovou em 52o completamente.)

Podiam fazcr-se curiosas investigações sobre todos os poços, que figuram na historia da prostituição c encontrar-se-hia um em cada cida(le para de- monstrar que o palagium, na idade media, era quasi inseparável dos poços com- nuins, que na maior parte desappareceram. Sem diíliculdade se provaria que esta classe de poços existiram cm Paris nas ruas, ou perto d'aquellas cm que viviam as mulheres de vida.

Lunitar-nos- hemos a referir que as ribalâas de Soissons, que tiveram fama proverbial no decimo segundo século (Dictons populaires, publicadas por Crapelet, pag. 6i) tinham as suas reuniões em roda de um poço, que so- breviveu á ribiílderia de Soissons.

«O Pateo de Amor ou Pateo Celeste de Soissons, dizem M.M. P. Lacroiv e Henrique Martin na sua Historia de Soissons, está situado á entrada da rua da Ponte (Pont): é um pateo estreito, cercado de edificios pouco elevados, para onde se sobe por uma escada de pedra exterior. Este pateo, em que se pe- netra por um corredor escuro, descia cm outro tempo até ao rio; no meio ha um poço de uma construcção singular, cuja bocca quadrada protege o orificio redondo e estreito, encimado por uma abobada cónica.»

Não procuraremos outros argumentos para demonstrar que putngiuw,, puíeum e pularia implicavam a acção de ir pela tarde ao Poço do Amor. Pu- laria usava-se com pi-cfcrcncia nas provincias meridionaes.

Lé-se nos Estatutos da cidade de Asti (Collac. 1.3 cap. 7). Si ii.ror ali- cujus civis Aslensis olim aiifujjil pro pularia cum aliquo. Puteum mais usado em linguagem poética, tomando a causa pelo efTeito, fazia de puteum synonymo de putagium.

Emquanto a esta palavra, que deve ser a primeira cm antiguidade, ti- nha-se consagrado, introduzindo-a na lingua legal. Por isso se encontra com frequência empregada pelos jurisconsultos e figura cm mais ile uma ordenação dos nossos reis da terceira dynastia. fkista citar uma das ordenações, cm que se diz que o putagium da mãe, não tira ao filho os seus direitos de herdeiro, attendendo a que o filho, nascido no estado de matrimonio, é sempre legitimo.

«Quod generaliter dici solet, rjuod putagium hariditatem uon adimiti, in- telligitur de pulagio malris.»

X palavra putagium dizia respeito á prostituição de uma mulher.

Assim, a lingua franccza teve de mudaralgumas palavras, quando transfor- mou putagium em putage, pula em pule c patena em putain. Estas duas ul- timas palavras são coulemporaneas, pois a Chronica de Oderico Vital faz men- ção no livro MI, da fuiida(;ão de uma cidade, que foi chamada Mataputcna {id est devincens meretricen) com irrisão da condessa Hedwige.

Putage encontra-se frequentemente no sentido de putagium na lingua franccza, sobretudo nos romances e cantares dos trovadores.

O lenoriniuu), o fiel e inseparável companheiro do merelricium, teve mais diíliculdade cm mudar de nome; como era ordinariamente exercido por mulheres, transfoi'mou-se logo cm lenonia, que passou á linguagem do século

DA PROSTITUIÇÃO 59

decimo segundo, afrancezando-se em lenoine. Mas o povo que, como soberano, reina na estructura da lingua, inventou iinniediatamente outra palavra, que tirou dos próprios iiabitos dos corretores da prostituição. Esta palavra foi maquerellaf/ium, de que o francez antigo fez iiiaquerellage, que subsiste na linguagem das praças publicas e que tem além d'isso logar no Diccionario da Academia.

Antes de maquerellagiiimha\ieL-se creado maqiierellus e maquerella, ma- quereau e maquerelle.

Os mais doutos etymologistas tcem tentado em vão o encontrar a origem d'estas palavras, que não tinham do latim mais que a terminação. NicoteMenage, procurando as analogias que podiam aprcsenlar-se entre o pgixe chamado maque- reau (congro) e o homem ou mulher que especulam com a prostituição, sou- beram que maquereau tinha sido formado de /«acií/fp, porque o peixe é mosíiueado com manchas transversaes escuras e azues, e entre os antigos o vestuário d'cs- ses corretores era também de mui variadas cores.

Tripaut, recordando-se que o aquariolus, ou aguadeiro romano, tinha em Roma o privilegio do corretor da prostituição, pensou que a simples addição d'uma lettra inicial, formada pela pronuncia guttural dos francezes tinham pro- duzido maquariolus, que se approximava bastante de maquerellus.

Outros, emfim, com mais simplicidade, propozeram-lhe o verbo hebreu machar, que significava vender e que não deixa de convir ao oificio de vende- dor de carne humana. Estes últimos etymologistas, em apoio do seu systema, deveriam ter feito valer esta indução que lhes fornecia certos documentos da idade média, e nos quaes se attribue aos judeus a corretagem dos cavallos e das mulheres.

Causa-nos admiração que se tenham occupado com a etymologia da pa- lavra applicada ao homem, antes de ter encontrado a que convém ao peixe ; porque é muito natural que o peixe se chamasse no principio maquerellus e que o homem por qualquer similhança se tenha visto qualificado com o nome do peixe. Qual é a primeira etymologia que se nos ofierece sem esforço de ima- ginação nem de linguistica? A pesca do maquereau era mais abundante n'ou- tro tempo nas costas do Oceano do que o é actualmente : este congro chegava em perseguição dos arenques e soffria a mesma sorte, depois de ter vivido a expensas d"elles.

O seu nome dinamarquez ou normando, que se tem conservado na lin- gua hollandcza, faz-nos remontar á época em que foi alatinado : maekereel é com certeza muito anterior a maquerellus e a makarellus. Os sábios pouco satisfei- tos com a consonância barbara d'esta palavra, tiveram de corrompel-a para a tornar menos áspera ao ouvido : não se explica d'outra maneira a forma- ção de magarellus que apparece em muitas ordenações dos reis de Inglaterra. Nas costas do Norte dizia-se inakevus, ou antes makerus, a não suppòr um erro em Ducange.

Emquanto a dar o nome do peixe á espccie humana que imitava os seus costumes, foi a principio um jogo de palavras, um epigramma que entrou pro- fundamente no espirito da lingua popular e que pouco a pouco perdeu o sen- tido figurado.

E' fácil, no emtanto, perceber que o corretor andando em volta das mu- lheres, para d'ellas tirar lucro, e lançal-as nos braços do seductor, desempe- nha um mister análogo ao do maquereau, que acompanha os arenques e d'elles se nutrç.

Seja como fôr, esta expressão figurada, designando os alcoviteiros de um e outro sexo, era admittida em todos os estylos e encontrava-se nas ordenações dos reis de França. Adquiriu logo um estigma deshonroso, mas chegou a in- velerar-se na lingua enérgica do povo. E', no emtanto, o nome d'um peixe

60 HISTORIA

que se serve em todas as mczas, e que em oufro fempo pagava qualro dinhei- ros por mil ao bispo ou ao conde, conforme a zona em que era pescado.

Se este peixe não tivesse receiíido o seu nome dos povos do Norte, não resistiriamos muilo a acceilar uma elymoiogia mais engeniiosa que plausivel: de moechari moecharellus, para qualificar o instigador da libertinagem {moechi conciliator.)

Assim como o lenoeiniuin e o mcretririum, o lupanar não tinha sido na- turalisado, a não ser na lingua dos escriptores: a lingua vulgar repcUia-o, como uma tradição gallo-romana, que não tinha razão de ser. Nada se assimilhava menos aos lupanares de Roma que os albergues da prostituição nas cidades de França. Estes infaroes asylos tomaram sem distincção os nomes de borda e bordfllum, de que se derivaram bordel, borde e bordeau, no novo dialecto fran- cez do duodecimii século.

A palavra latina não é mais que a voz saxónica bord alatinada, e a voz saxónica tanto dizia como a franceza que é completamente idêntica. E' imagi- nar uma etymologia sem fundamento ver em bordel as palavras bord e el, por- que* os togares de libertinagem, diz-se, estavam então situados nas margens da agua. A posição d'estes togares não era necessariamente immediata ao rio, o que nada teria de moral nem de sanitário, nem se explicaria de modo satisfacto- rio, ainda que em muitas circumstancias a prostituição se estabelecia ás mar- gens da agua, especialmente quando a navegação do rio trazia grande numero de commerciantes, passageiros e navegantes que conslituiam a clientela das mulheres de b(jrdel [bordellières, bordellariw.)

Chamava-se mais especialmenie burda a uma cabana, collocada á beira d'um caniinho ou fora da povoação, n'um subúrbio, ou em campo largo. A borda {borde) era distincta da casa, como se n'esle verso de Auberg:

«Ne trouvissiez ni borde ni maison.»

e n'este do romance de Garin :

«JVt à maison ne borde ne me.oiií.»

Geralmente, esta borda eneontrava-se junto a um pequeno recinto ou campo, pois que n'um contrato do anuo I 29á, que Ducange cita no Glosario, diz-se que a %bbadia c o convento eram obrigados a conceder nos seus domínios um pedaço de terra a qualquer habitante da cidade que n'elle quiaesse cons- truir uma borda (ad faciendam ibi bordam.)

A prostituição, expulsa das cidades, refugiou-se n'eslas bordas, que esta- vam longe de vista da policia urbana e d'onde o escândalo não transpirava. Estas residências ruracs S(') eram habitadas |)or seus proprietários ou colonos em certas estações e certos dias; mas a prostituição tinha sempre n'ellas um asylo seguro : e por isso as mulheres publicas arrendavam as bordas em que residiam ou onde iam ao anoitecer passar algumas horas.

Os libertinos que iam a estes togares de prazer, sabiam da cidade com o pretexto (rum passeio e chegavam ao encontro vergoniioso por caminhos pOuco IV('i|nciitados.

A burda transformou-se d'csta forma em bordel {bordel) seu diminuitivo, que insensivelmente se tornou o nome genérico de todos os asylos da pros- tituição, quer estivessem no cam|)o, (|uer no interior das cidades. Devem attri- buir-se a variações de dialecto as dillVrentt^s formas |)or(|ue passou este nome, proiiunciamlo-se bordel e que degenerou em burdiau e bordeau, bordelel e bor- deliau.

Emquanto que os bordeis estiveram fora das cidades, a prostituição er-

DA PROSTITUIÇÃO 61

rante contou no seu exercito secreto uma multidão de pobres recrutas, que nem sequer podiam arrendar uma borda e que, á imitação das lobas da cidade de Roma, detiniiam os transeuntes no meio dos caminiios, das viniias e dos trigos, por cuja raztão se lhes eliamava mulheres dos arredores, mulheres dos caminhos, mulheres do campo (V. Charpenlier no supplemcnto a Ducaiigc, nas palavras BORDA CHEMINUS.)

As que não sabiam dos albergues, armando as suas ciladas das janellas, chamavaNise claustrieres claustrariít (V. Charpenlier na palavra CLAUSU- R.E.)

Os seus claustros, claustra, foram sem duvida os berdeiros dos lustra da antiguidade, tanto mais que aquelles clàuslra montium se estabeleceram em logarcs afastados, no futulo dos bosques e nas gargantas das montanhas.

As mulheres perdidas que habitavam nas bordas ou burdeles foram desi- gnadas com o nome de bordaleiras (bordeliéres ou bourdeiiéres.) Mas não foi esta a sua única denominação; vimos mais acima que se lhes chamava pules ou putains, em signal de despreso; os nomes injuriosos não se regateavam, mas não se distinguiam como na antiguidade por qualificações que revelavam os seus hábitos impudicos, o seu género de vida, ou a sua origem e vestuário. Desde o fim do duodécimo século applicava-se-lhes em mau sVntido o nome genérico de garzia ou gartia, em francez garoe ou garse (garza) que se con- servou até aos nossos dias no vocabulário da gente do campo para designar qualquer virgem.

Nas provas da Hisloria de Brescia, por Guichenon, pag. 203, lé-se o se- guinte: Si leno cel meretrix, si garlio velgarli alicuia burgensii concitium di- xerit; e no titulo dos privilégios da cidade de Seissel em 1825: Si garlia di- cat aliquid probo homini et muliei-i. Esla expressão que reapparece em cada pagina da prosa e do verso dos séculos xiii ao xvii, não se afasta, senão por excepção, do seu sentido primitivo, nem é injuriosa a não ser no caso de ser acompanhada de um epitheto malsoante.

Além d'isso, segundo o extracto de Guichenon, citado anteriormente, vé-se que a qualificação de garce (gartia) ainda que empregada em mau sen- tido, dilferia da de prostituta (meretrix,) pois que melhor era applicada a uma mulher vagabunda, ou uma serva.

E. Guichard que pretendia provar que todas as linguas se derivam do hebreu, imaginou approximar a palavra garza do verbo hebraico de consonân- cia análoga e significando prostituir-se ; sem duvida não se lembrou que as pa- lavras garce e garcia são muito mais antigas que a significação obscena que se lhes chegou a dar. Assim, no processo verbal da vida e milagres de S. Ives no século xiii, emprega-se garcia no sentido de serva, ancila (V. os Bolían- distas, Sanei, maii, tit. iv, 553.) Mas simples é dizer que garce é o feminino de gars, que, apesar das melhores elymologias, parece ser uma palavra galai- ca, vnars, e ter significado ao principio um joven guerreiro, um varão nuhil. De gars se fez em latim bárbaro garsio e garzio, que se applicaram aos ser- vos, aos ladrões, aos libertinos, e a toda a classe de homens de mau viver.

Não pode demonstrar-se melhor, como uma palavra originariamente ho- nesta e decente se perverteu gradualmente até tomar na lingua uma significa- ção vergonhosa, do que lembrando uma pbrase em que Montaigne a emprega na sua accepção primitiva: «Ha uma nação em que se prostituíam as garces às portas dos templos para saciar a concuspicencia.»

Não era esla a única expressão injuriosa que esteve em uso na idade mé- dia para designar as prostitutas ; também se lhes chamava fornicaria; e forni- catrices, prostibulariw, proslanies, gyneciarice, lupanarice e genearice em baixa latinidade. Estes três últimos termos eram svnonimos e indicavam os logares em que habitavam as mulheres de vida ; ganea, lupanar, gynecium. As

t

62 HISTORIA

prostantes vendiam-se (iJo verbo prostave,) as prostihulariíp prostituiam-se, as fornicaria' cxeculavain a acção d'este verbo, e as fornicalerices faziain-a execu- tar.

Estes diflerentes termos não passaram á lingua franceza, mas entraram n'ella os que tinham uma forma menos latina : taes como rihaude, mescbine, fenune folie, fenime do rie. La femme de cie (femina ril(v) não parece, apesar do seu disfarce latino, ter como raiz uma obscenidade galaica. A femme folie ou folieuse (mulier follis ou falua) devia o seu nome áqueila espiencHda besta dos Loucos, que descreveremos n'outro bjgar, como o ultimo relievo dos mys- terios da prostitui(,-ão antiga. A meschine era ao principio uma servente, uma serva ; a rihaude uma companheira do exercito, uma filha de soldado, uma mulher mundana (ribalda.)

N'oulro capitulo diremos o que eram os.ribaads de Philippc Augusto, es- tabelecendo a verdadeira origem do seu rei. iNão citaremos as numerosas ety- mologias que se accumularam doutamente para encontrar a raiz da palavra ri- baud.

Estamos muito dispostos a encontrar essa raiz na palavra galaica baux ou baud, que significava jovial, e que deixou na nossa antiga lingua, que Bo- rcl chamava gííllica, o substantivo baude, alegria e o verbo ebaudir, regosijar-se. O nome de baux ou joviaes, que a tradição languedociana fazia remontar ao sé- culo sexto, daria uma idade muito respeitável á céltica baux ovi baud. Esta pa- lavra mudou de significação sem mudar de forma, passando á lingua ingleza, onde baud é synonimo de alcoviteiro.

A palavra baldo em italiano não foi tão alterada, por ser derivada de baux e tomar-se por audaz ou imprudente. Kebaldus foi a tradição latina, com- posta da preposição emphatica re e da palavra radical baux, baud ou bauld. Ribaud e ribaldos alatinaram-se e afrancezaram-se ao mesmo tempo.

Estas palavras empregavam-se em bom sentido antes do reinado de Plii- l|ippe Augusto, em que cahiram em despreso, em consequência dos exces.sos de certa gente que quiz ser os ribaldos por evceilencia. Anteriormente áqueila época significava a força physica e a constituição robusta do homem bem dis- posto e constituído. Depois era a designação especial dos herejes e dos liberti- nos.

Todas as linguas adoptaram por sua vez a designação especial dos ribaux e de seus compostos. Ribaudie em francez veio a ser synonimo de prostituição, o mesmo que ribaldaijUa cjue Villani emprega n'este sentido (Cliron. liv. iv, cap. 91.) Uibaud produziu então ribaude, ribalda, que nunca teve significação ho- nesta. Segundo a Coulunte de Hcrgcrac, era grande insulto, quando se dirigia a pessoa de nascimento ou condirão nobre ; mas não tinha tanta importância, quando se applicava a uma mulher de classe humilde, não acompanhando esta expressão com outra injuria de facto. Esta singular passagen) do foulume de Bergerac, inserida alli pelos benedictino.s continuadores de Ducange. Ribaud, de que naturalmente se tiram ribuudaille e ribauderie, continua qualificando com energia toda a mulher de costumes desregrados ou perversos.

A palavra meschine, que usualmente se applicou ás mulheres vaidosas de seu corpo (folies de leur corps) tinha ordinariamente uni caracter mais bené- volo que injurioso : meschine não esteve em uso, senão depois de mexchin. Esta palavra, essencialmente galaica ou franca, que a nos.sa lingua conserva ainda em mesquin, cujo .sentido não se afastou muito da raiz, queria dizer ao princi- pio joven servidor ou escravo. Meschinus e mischinus encontram-se desde o decimo século nos cartórios monásticos, como Ducange disso muitas pro- vas ; significam servos jovens e no sentido lato serventes. Este ultimo sentido é o que a palavra mesrhin aííecta mais particularmente na lingua do duodécimo século ; mas então não se tomava em mau sentido e equivalia a jovensinho ou

f

DA PROSTITUIÇÃO

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mocinho. No romance de Garin cncontra-se eom muita frequeneia e sempre honestamente, como n'cste verso :

(íVous estes jones jovenciaux et mesohins.»

O feminino meschine, me:(iHÍna, não teve a principio sentido dcshonesto, como n'csse exemplo, do mesmo romance de Garin :

«Ait tnatin lievent meschines et jntcelles.^

Mas, no decimo terceiro século, as meschines tinham dccahido muito da sua boa fama, porque Guilherme Guiart, na sua Branche de royaux lignages apresenta-as d'um modo pouco lisonjeiro.

Desde então, meschine, tanto na linguagem usual, como na poesia, designa apenas uma servente. Ducange cita um antigo poeta, em face de um manus- cripto da bibliotlieca de ('oislin, para provar que se contrapunha, sem dillicul- dade, dame a meschine : este mesmo poeta, n'outro logar, descreve assim o oflicio da meschine :

«En la chambre ot une meschine Qui moult est de gentille ofí/ie.»

N'uma ordenação, relativa ao abhade de Bonnc-Esperance, concede-se a este abbade uma somma de vinte libras para seu governo, para uma servente e uma meschine. A palavra meschine emprega-se, simullancamenie, em duas ac- cepções muito dislinctas : umas vezes c uma simples servente, exercendo os de- veres do seu cargo, e como diz Luiz xi nas suas Cent nouvelles nouvelles «era meschine, fazendo os arranjos da casa, como os leitos, o pão e outros servi- ços ;» outras, uma mulher libertina, que se põe ao serviço do primeiro que ve- nha e .se vende ao desbarato.

Comprchende-se que o meschinage seja synonimo do sei'viço, que suc- cessivamente fosse adoptado para especificar um trabalho deshonesto.

Além d'isto, o meschinage das tavernas e dos bordeis tinha-sc como in- fame tanto nos Estatutos do rei S. Luiz, como na lei romana. No emtanto S. Luiz quer que a mulher louca (folie) que vac á meschinage ou a outro sitio, para se alugar, seja admittida por direito, assim como os irmãos, a participar da herança paterna. (Liv. i, cap. 138.)

Completemos esta nomenclatura franco-latina da prostituição na idade média, com o exame d'um termo muito usado que se diz de origem italiana e ter sido importado para França, pelos trovadoi^es, no undécimo seeulo. A consonân- cia da palavra rnjjlnn indica logo, mais uma origem meridional, do que barbara. Menage deriva-a do nome d'um famoso alcoviteiro italiano, chamado liufo, sem notar que este Rufo é, certamente, muito posterior ao uso da palavra a que se refere.

Outros etymologistas, não ,se contentando com o Rufo problemático, en- contraram em Terêncio um Ibifus, que exercia o mesmo oíiicio. Por um abuso de erudição, ha quem tenha approximado esta palavra a fornicator, tirando-a do allemão ruef, que significa abobada e que daria assim a traducção de forni.r.

Mas Ducange approxima-se mais da verdade, fazendo notar que as pros- titutas romanas, trazendo cabelleiras loiras ou ruivas (ronsses,) eram chamadas ru/fm, segundo considefttções de Francisco Pithon e Wovereno acerca de Petro- nio.

Vamos completar a douta obsjy^vação de Ducange, dizendo que, sem du- vida alguma, a palavra ru/fianns foWormada nos primeiros séculos, de rufi e

64 HISTORIA

de anm, duas palavras reunidas n'uma, sem nenhuma ellipse, ou de rufia e anus, duas palavras igualmente reunidas por meio dellipse. Emquanto a en- contrar anologia entre nijpan e fixn, ftrnum, ou fimuin (lameiro,) é necessário ignorar que não pôde subinetter-se a syllaba ?-u/à interpretação ctymologica, inventada por não sei que sonhador, que era ruffian um moço de estabulo (quod eruit fim um.)

A juncção de rufi e de anus, ou de rufia e anus conviria muito melhor ao verdadeiro sentido da palavra ru/fians, ru/fianus, que não é somente um angariador de mulheres, um alcoviteiro, mas também um libertino, um fre- quentador de lupanar, um amante de mulheres.

ISós como, Menage e sobretudo como Duchat, não temos a audácia ou a ingenuidade da etymologia : não procuraremos demonstrar, porque rufia signi- ficava uma pelle curtida, e anuí uma velha ; significando também anus o anno, e rufus roxo ou vermelho, estas palavras conduzem-nos directamente á pro- fissão de rufian, a qual se estendia á rufiana.

Seja como fòr, os vocábulos ru/fianus e rujfiana não figuravam na ida- de media, a não ser nos escriptores italianos que nos apresentam em todas as parles os rufianes, em amor e companhia com as prostitutas (ruffiani et me- retrices.)

Ducange e Carpeniier citam muitas e interessantes passflgens d'aquelles escriptores : n'um d'elles, se diz expressamente que ruffian é synonimo de alco- viteiro (quilibet et qucelibet leno, qui et qum vulqarilur ru/Jini dicuntur.)

Ruffian não parece ter-se introduzido em França antes do século xiii, e ainda assim não esteve em voga senão nos fins do século xv, quando o ita- lianismo invadiu por toda a parte o idioma galaico. Esta palavra, que se em- pregava com diversos matizes de applicação nunca entrou na linguagem orató- ria, nem se levantou da sua abjecção.

Mencionemos, emfim, uma palavra que esquecemos no seu logar e que prova os hábitos mysteriosos da prostituição. Os albergues da libertinagem, os bordeis chamavam-se em sentido figurado chpiers claperit (tocas de coelhos) porque as meretrizes se occultavam nVllas como coelhos (ciíh/cíí/í,) em francez antigo cunins. Clapier, segundo Menage, deriva-se de lepus, transformando em lapus e lapinus, que chegou a pronunciar-se clapinus : e d'aqui lapiarium e clapiarium.

Segundo Ducange, o laço para apanhar coelhos chamava-se clapa, e como se collocava á entrada das covas, estas tiveram de usurpar-lhe e nome que re- presentava, sem duvida por onomatopeia, o clappement ou ruido da machina, no momento em que o coelho cabia no laço.

Segundo outros sábios, clapier derivava-se da raiz grega, que significa oc- cultar-se; do latim lápis, porque as covas dos coelhos são regularmente mon- tões de pedras ou terrenos pedregosos.

A etymologia pouco nos importa; digamos no emtanto, com muita re- serva, a similhança obscena que o bom bumor francez descobriu nas palavras cunnus e cunniculus ou cuniculus, cujo equivoco indecente .Marcial não suspei- tou. E' certo que os nossos antigos truôes encontraram uma imagem lúbrica, na comparação de um albergue de prostitutas c uma toca de cocliios.

CAPITULO VII

SUMMARIO

Os costumes piihlicos nos rcin.iilos anteriores ao de Luiz ix.— Grandes progressos da sodomia.— Quadro dos costumes de Paris, no Um du século xii.— Os collegiaes.— As Ihermas de .luliano.— O eeniiterio dos Santos Innocentes. —Os libertinos e as prostiiutas da Croix-Senoiste.— As primeiras religiosas da abbadia de Santo António dos Cam- pos.—A padroeira das mulheres piililicas.— Os eslalutos da corporação das namoradas.— O osculo de paz da prosti- tuta real —A eapella da riia de.Iiissiènno.— Ksfcirfos de S. Luiz para combater e diminuir a proslituição —A casa das Fdl.-s-Uieu.— Como S. Luiz caslit'ou um cavallijiro, surprehendido n'uma casa dii prostitutas.— Suppressão destei ustabelecimentos e desterro das mulberes de yida.

|a collecção das ordenações dos reis de França, da Icrcoira dy- nastia, não se encontra nenhuma, antes de S. Luiz, relativa á proslituição; mas não deve crcr-se, por similliante falta, (jue a |)ro.slituição tinha dcsapparecido cm França, ou que a auctori- dade legal a deixara absolutamente livre nos seus actos, sema 3j cercar d'uma vigilância preventiva e repressiva. Acreditamos pelo contrario, que a desordem nos costumes não tinha feito mais do que aggravar-sc acalentada pelas guerras feudaes, que tinham assolado o paize retardado a marcha da eivilisação. Cremos tamhcm que a antiga legislação, com respeito ás prosti- tutas e aos seus escândalos, não tinha cessado de estar cm vigor ; mas, no meio das agitações permanentes que perturbavam a sociedade, havia-se descurado muito o cumprimento das leis da policia, occupando-se antes em assegurar a deleza das praças, expostas continuamente a cercos c a todas as consequências d'uma invasão armada.

Uma espécie de tolerância indulgente tinha, pois, permittido á prostitui- ção o desenvolvcr-sc nas cidades, sobretudo em Paris, onde se tinha organi- sado, como os outros corpos de estado, com estatutos que a regiam, assim como a administração municipal approvara esta espécie de confraria impura, ou fe- chava os oliios sobre a sua existência organisada.

Não nos seria diílicil provar, que, sob os reinados anteriores ao de Luiz IX, os costumes públicos eram mais depravados que no nosso século, e que esta corrupção, mais do que nunca, tinha um caracter odioso; apresentaremos tami)ein mais que uma teslemunlia contemporânea, que prova o quanto se ti- nha multiplicado e acclimatado, para assim dizer, nos hábitos da população pa- rizicnse o exercício da prostiTuição regular.

Esta prostituição, é preciso confessal-o, tinha então uma favorável in- fluencia .sobre os costumes, porque desde que os homens do Norte se mistura- ram, de boa ou vontade, com os indígenas francos ou gallo-romanos, o vi-

UlSTOHIA DA PROSTITtnC.iO. ToMO 11 FoLHA 9.

66 HISTORIA

cio contra nalnram dcscnvolvia-sc, como contagio devorador, cm todas as clas- ses da sociedade, sem excluir as ordens religiosas e as famílias reacs. Gui- lherme de Naugis, contando na sua chronica a morte trágica dos dois filhos e uma filha de Henrique i, rei de Inglaterra, mortos no mar com uma multidão de inglczes cmharcados no mesmo navio, apresenta este naufrágio como um castigo do ceu e não receia dizer que as victimas eram quasi todas sodomitas (omnes fere xodomilica lahe direbenlur et erani irreiili.)

Esta horrivel degradação mural, como o deixamos dito, encontrava-sc por toda a parte, principalmente entre os frades; c a egreja, altlicta por taes ex- cessos, que se exforçava em occultar, não podia deixar de fulminar com seus anathemas estes seus memhros indignos.

Veremos depois que a condemnação dos Templários não f(ji da parte de Bonifácio vm e de Philippe, o ForíiKiso, mais que uma medida severa de jus- tiça contra a sodomia, disfarçada com o hahilo da ordem do Templo.

k sodomia era igualmente o laço de diflerenles seitas heréticas que que- ri.mi cstabelecer-se, fazendo propaganda rápida, com a ajuda das suas impure- zas e que dcsappareceram pela altitude severa e firme do alto clero, que o poder temporal secundou com os carrascos e supplicios.

Este detestável vicio tinha-se inveterado por tal forma no povo, que as tentativas dos manicheos, que se succederam com diiterentes nomes no século XIV, lhe deveram o seu êxito momentâneo e ao mesmo tempo a sua implacá- vel repressão. Em presença dns espantosos progressos de similhante praga, comprehende-se que a prostituição natural podia considerar-se com um remé- dio para es!e mal, como um dlíjue a taes loucuras.

Santiago de Vitry na sua Histoire accidentale (cap. vm) registra este fa- cto curioso e significativo: que as mulheres publicas detinham descaradamente na rua os (^eclesiásticos, chamando-lhes sodomitas, quando estes se recusavam a seguir estas perigosas sereias.

«Este vicio vergonhoso e detestável, accrescenta, encontra-se muito gene- ralisado n'esta cidade; este veneno, esta peste, é tão incurável, que aquelle que fem uma, ou mais concubinas, é lido como homem de costumes exemplares.»

Santiago de Aitry, que nos esta preciosa observação sobre os costumes de Paris no fim do século xii, parece querer descrever mais particularmente a prostituição que se apoderou do bairro da Universidade, onde reinava como soberana.

«^'a mesma casa, diz, ha escolas nos andares superiores e asylos de li- bertinagem nos inferiores; no primeiro andar leccionam os professores; por baixo, as mulheres libertinas exercem o seu vergonhoso mister; e emquanio que, por um lado, cilas disputam entre si ou com os amantes, por outro, ou- vem-se as sabias discussões e a argumentação dos> estudantes.»

O bairro dos collcgios e das escolas era povoado, n'aquella época, apenas pelos mestres de artes e pelos estudantes: estes, com a idade de vinte a vinte e cinco annos e pertencentes a Iodas as nações, formavam um exercito indiscipli- nado de l.)():()()l) indivíduos (|ue escarneciam da policia, sem permillir ao pre- bostc de Paris o intervir nos seus negócios; protegiam, é verdade, as mulheres de vida alegre, moradoras no seu bairro e cohriam-nas com um veu de impu- nidade, emquanto (|ue não sabiam dos limites marcados.

O reitor e dependentes da Universidade, sabendo que a juventude neces- sita gastar a exuberância do seu ardor e de suas forças sensuaes, não lhes im- punha a obrigação de viver como anachorelas. Assim se explica o quadro que Santiago de Vilry copiou do natural e que nos representa fielmente o estado de prostituição na visinhança das escolas da rua de Fouarre. E' provável, todavia, que esta proslituição no domicilio, não fosse a única que existia sob a salva- guarda dos estudantes: a prostituição errante, que correspondia ás ideias e aos

DA PHOSTITUIÇÃO 67

inslinctos d'aquellc (empo, havia do ter como campo de feira o Prc-aux-Clercs, a(iiu'lie [lasseio agresle dos íillios pródigos da Universidade, vasta planicie sul- cada de arroios, sombreada por grandes arvores e cortada por vaiiailos enormes.

Era af|iiolle, naturalmente, o (xuito de reunião das jovens alegres que se chamavam de campo e eèrca e (|ue nada tinham a lemer, ii"a(]uelle fresco asylo, da justiça abacial de Sainl-derniain des l'rés. A Universidade fazia respeitar os seus privilégios e igualmente as suas companheiras de lihertinagetn.

O Vré-cmx-Clercs não era o único refugio da proslitui(,'ão vagabunda, pois finha outro não menos inviolável e mais comniodo na estaí,'ão fria e chuvosa. O palácio das Tiíermas de Juliano, (jue os reis da primeira dynaslia habitavam, estava desoccupado havia séculos e as ruinas d'este grande edilicio galo-romano cercadas de vinhas e jardins, ollereciam, segundo a expressão d'um poeta con- temporâneo, «uma iniinidadc de rcd-uctos sinuosos, sempre favoráveis aos actos secretos, mysteriosos esconderijos, cúmplices do crime, occultavam a vergo- nha dos (pie os commctiiam.»

João de Hauleville, que nos a conhecer o uso obsceno do antigo pa- lácio das Thermas, sob os reinados de Luiz vn c Philippc Augusto, expõe o que cUe próprio viu :

«Alli, diz com menos imlignaçâo que piedade, a espessura do arvoredo, usurpando a escuridão á noite, protege constantemente os amores furtivos c occulta, com frequência, á severa vigilância, os últimos symptomas do |>udor que se esvae, pois quem quer praticar uma acção, procura as trevas, e a sua vergonha sente-sc melhor nos logares escuros, gosta de envolver-sc no véu da noite.»

Philippe Augusto em 1218, fez doação (Uesfas ruinas romanas ao seu ca- marista Henritiuc, provavelmente com o encargo de as murar e d'ellas ex- pulsar a prostituição. Tal toi a intenção de Philippe, quando fez cercar por bons muros o cemitério dos Santos Innocentes, no qual a prostituição nocturna SC expandia, sem respeito pelos mortos a quem faziam testemunhas. Gui- lherme, o Bretão, fallando (Feste cemitério no poema épico da Philippida, in- digna-sc com profanação tão insolente: {«El (juod pejus eral iiifrelricabnlur in illo.y> Liv. I, verso 441).

O mesmo succedia cm todos os logares próximos da muralha do recinto: a prostituição vinha também ahi estabelecer o seu campo desde o anoitecer, c as vis creatiiras, que a exerciam ás escondidas, collocavam-se nas ininiediações dos sitios mais freciuenlados, para esperar a sua presa. Lè-se nas (Irandes Chro- niijues de Saint-Denis, esta particulariílade (]ue se refere ao reinado de Philippe Augusto :

«E também as mulheres adoidejadas {folies femnies) (|ue se collocavam nos arredores c. encruzilhadas das estradas e se entregavam por preços iníimos a todos, sem terem vergonha.»

E' a única passagcn\ d'uni escriptor do século decimo terceiro, em que se falia do preço da prostituição, c ainda que esse preço de meretriz vadia, não se tenha aqui lixado, não pode duvidar-se (pie, em virtude da muita con- corrência, era muito baixo.

A prostituição linha ainda owlro Ihealro de avenliii-as, fíira da cidade, no caminho de Vinccnnes, num sitio |)ittorcsco, para diante da poria de Santo António. iKibrcuI rcfci'e nas suas Ax.íiquitcs de l'iiris, que este sitio era o Ihea- lro ordinário dos attentados ao pudor, praticados pelos estudantes nas mulhe- res, filhas e serventes dos plebeus de Paris. A meio d'estc bosípie de fama, teve de erigir-se uma cruz de pedra chamada Crnix-nenoisl ; mas este santo remédio, serviu apenas para attrahir maior numero de homens e mulheres, que se entregavam á libertinagem na mais escandalosa promiscuidade.

Um pregador, famoso pelas conversíies que tinha feito, Foulqucs de

68 HISTORIA

Noiíilly, cura de Saint-Denis, appaivceii lic repente no meio cFaquella confusão de lilierlinos e jjrosliiulas: em pé, sobre a base da Cruix-lienoist, e\l\orlou-os a renunciar aos seus iiai)ilos detestáveis e a fazer penitencia, consagrando-se a Deus. As mulheres que o escutavam e que pertenciam á escoria do povo, senliram-sc commovidas de arrependimento, abandonaram a sua profissão infame, cortaram o cabelio e vieram a ser as primeiras religiosas da Abbadia de Santo António dos (^aiiipos, que recrutou a sua comnuinidade em todas as classes da |)rostitui(,'ão.

As desgraçadas que a Cruz Bemdita linha visto abandonar-se por um preço vil, deshonra do corpo e da alma, fizeram procissões em redor do santo, descalças e em camisa : algumas casaram honradamente, outras consa- graram-se á vida mystica. Mas, na origem, em 1190, este estranho convento reunia debaixo do mesmo tecto tanto os homens como as mulh.eres, e pôde suppor-se que, apesar das eloquentes prédicas de Foulqiies de Neuilly, e do seu successor Pedro de Boiny, esta mistura dos dois sexos não era para inspirar virtudes a antigas prostitutas c a libertinos convertidos. O illustre bispo de Paris, Maurício do Sully foi quem, em I 196, afastou d'alli os homens e reteve as mulheres sob a regra de Cister, com ordem de expulsar a todas que se não emendassem. Além d'estas miseráveis vagabundas, que exploravam os arredores da cidade e que à noite cabiam, como aves de rapina, s )bre os viajantes retarda- tários, havia em alguns bairros e ruas, bordeis e antros (des bordeaux et des cla- píVc.s) que recebiam numerosas visitas, antes da hora de recidher, e pagavam ao (isco um imposto similliantc ao vectigal r(miano.

Escasseiam as provas d'estes factos n'aquel!a época, mas como as encon- traremos mais tarde em abundância, devemos crer que dcsappareecram nos rei- nados anteriores ao de S. Luiz. A tradição, que nunca deve despresar-se, so- bretudo se se refere a circumstancias que não foram mencionadas por eseripto, no tempo em ([ue occorrem, a tradição recolhida por Sauval no século xvii (/íe- clier. et antiq. de Paris, tit !i, pag. Gl]!S) diz-nos c|ue, niuilo antes de Luiz ix, «as mulheres escandalosas, tinham estatutos, trajo particular afim de serem re- conhecidas c também juizes privativos.»

Esta tradição tinha-sc perpetuado entre as mulheres de vida, que pretendiam, ainda no tempo de Sauval, que o dia da Magdalena tinha sido fes- tejado pelas suas adeptas c sequazes, na época em que formavam corporação e tinham ruas e usos, c ainda antes de S. Luiz as obrigaram a trazer certo trajo para dislinguil-as das mulheres honradas.

Infelizmente, os detalhes, que Sauval promettia sobre este singular assum- pto, não tiguiam na sua obra impressa, e talvez fossem arrancados com o cele- hre trrdado dos Bordeis de ]'aris, por pudor de seus editores; mas é incrível (|ue Sauval não tivesse á vista a prova da existência d'estes estatutos da pros- tituição, senão os próprios estatutos, que deviam ter força de lei anteriormente á redacção do Livre des Méliers, de Estevão lioileau.

Esse homem pudico teve vergonha de adiiiillir na collecção dos privilé- gios e usos das artes c oílicios, no qua\ evidenceia tanto o ódio á prostituição, um capitulo especial destinado a regular o exercido de um escândalo publico, (jue linha tenção de fazer desapparecer, não lhe dando logar na juris|irudencia municipal. listes estatutos do meretricio, que ainda se encontram aqui e alli na historia dos costumes, foram inevitavelmente restabelecidos c conservados pcdo uso, mas não ajiprovados nem confirmados pelos reis. ("rémo-nos auclo- risados a julgar (jiu', se, n'um tempo em (|ue todos os oílicios e industi'ias ti- nham um código especial, a prostituição tolerada não tivesse tido o seu, as mu- lheres bordelarias não teriam formado uma corporação especial, como a forma- vam, s(d) a juri.sdição do Rei dos rihaldos. O titulo de rei. dado ao chefe ou mes- tre de uma corporação, era sempre inseparável dos estatutos dVsVa corporação;

DA PROSTITUIÇÃO 69

a ribaldia Cmlia um rei de ribaldo.i, como a mercerie seu rei de merciers c a meneslraudie seu rei de menetriers. Todas as corporações d'ar(es e oilicios ti- nliam enlão os seus chefes.

Veremos depois como nada faltava ás corfezãs de Paris, evceplo os esta- tutos, para mostrar que tinham sido desde muito tempo agrupadas em corpo de proíissão. Nãí» podia supprir-se a perda d'estes estatutos, no (]uc diz respeito ao uso ou modo de recepção no corpo ou communidade, aos graus de aprendiza- gem, á tarifa dos preços, aos títulos do fisco, ás esmolas e multas, n'oma pa- lavra .1 toda a organisação interior do ollicio ; porém temos dados precisos com relação ás ruas e habitações da população, designadas para a libertinagem com a marca dislincliva das mulheres dedicadas a esta vergonhosa industri;i, ás ho- ras marcadas para este trabalho e ás leis sumptuárias respectivas a esta classe de mulheres.

Uma anedocta, relativa á prostituição, parcce-nos muito importante sob este ponto de vista, tanto mais que ainda não foi bem comprehendida por aquel- Ics que a tiraram da Chronica de (íeofray, prior de Yirgeois. (Nova hihlioth. manusc. de P. Labbe, tit. i, pag. .309.)

«Estando na missa a rainha Margarida, emquanto os devotos davam os ósculos de paz, viu uma dama enfeilada com um trajo magnifico c, julgando-a casada, deu-lbe um osculo de paz. Esta dama era uma rihalda da còrle {iiiTe- tricein rrtiiam). Advertida a princeza do seu erro, teve de quei\ar-se ao rei, que prohibiu ás mulheres publicas o trazerem, em Paris, a capa {clamyde seu cappa uti) para se distinguirem, assim, das que eram legitimamente casadas.»

Esta curiosa anedocta, que figura na Chronica do fim do anno de I 184, não podia de forma alguma referir-se ao reinado de S. Luiz e cnlender-se com a rainha .Maigarida, muilser d'cstc rei, porque o auctor da Chronica linha mor- rido sessenta annos antes do matrimonio de S. Luiz com .Margarida de Pro- vença. O que o prior de Vigeois tinha ouvido referir no fundo do seu mosteiro lemosino tem uma data incontestável, a de 1 172, quando a princeza Margarida, filha de Luiz vii e da rainha Constância, foi desposada por Henri(|ue (Courl- manlel) e coroada pelo arcebispo de Ruão. Pode, coniiudo, deixar-se a este facto a data de 1158 que lhe assigna o chronista, suppondoque na sua Chronica, es- cripta depois de ri72, chamou rainha a Margarida, queainda não era coroada e que tinha apenas seis annos, na época em que devia ter recebido o osculo de uma prostituta.

E' extraordinário que o facto em questão somente se encontre na C.liro- nica do Pri(U- de Yirgeois, que muitos historiadores confundiam com (leolíroy de Bcaulieu por datar do reinado de Luiz ix, uma particularidade que per- tence seguramente ao reinado de Luiz vii e que prova que este rei fez, contra as mulheres de vida, uma ordenação que não se conservou.

Para o nosso fim, jiódc, d'este facto, firar-se mais d'uma inducção interes- sante. Portanto, aquella prostituta que o chronista chama real, fazia parle das mulheres de vida alegre e de corte, que encontramos até ao reinado de Fran- cisco I, com esta mesma qualificação, ou então era somente uma das súbditas ordinárias do Rei dos ribaldos, uma das mulheres da sua corporação reali'

Além d'isso, é certo que Luiz vii, submettendo o olficio das mulheres pu- blicas a certas condições de trajo, reconhecia imiilicitamenie a sua existência legal e auctorisava-as a exercer o seu culpável commercio no recinto de Paris.

Finalmente o sobrenome do esposo da princeza Margarida, Henrique Court- manlel, não terá alguma relação ou analogia indirecta com a aventura de sua mulher, (]ue foi causa de que as cortezãs não levassem capa ou manto grande? Ha tanihem a notar a curiosidade com que, desde enlão, as prostitutas de Paris fonnand') parle da corporação das ribaldas, se vestiram de curto, como as. me- retrizes de Roma, vestidas de toga, e não de estola.

70 HISTORIA

A corporaçcão das mulheres enamoradas (amoureiíses) chegou, no tempo de Luiz vii, a um estado de prosperidade que se revelava muito no luxo das suas lilircs ou trajo di) ollirio. Sauval n'outra passagem da sua preciosa eom- pila(,\u) (tom. II, pag. ioO,) declara, expressamcnie, que os estatutos d'esta cor- poração deslionesta regeram o seu occulto grémio até nos estados de Oriéans, em iotiO. l'or falta d'estes estatutos não temos podido descobrir as provas da Confraria da Magdalena, que Sauval aílirma ter existido, sem dizer a que freguezia eslava adjunta, nem quacs eram os seus privilégios, indulgências e festas. Recorrendo a uma conjectura, bastante acccitavel, poderemos dar por matriz, á(|iiclla impura confraria, uma pe([uena egreja da Magdalena, que existia sob esta invocação desde o século undécimo, e que depois se chamou S. !Ni- colau. O logar occupado por aquella antiga egreja, que a revolução de 89 fez dcsappareeer, tem agora edilicios particulares. Não sustentaremos que fosse aquelle o logar da occorrencia do osculo de paz dado por uma prineeza a uma cortezã. O cura d'csla freguezia tinha o titulo de arcipreste e, apesar da pouca importância da freguezia e da egreja, não deixava de se orgulhar com o seu titulo, por causa da confraria de Nolre-Dain?. aax Ihurgeois que, segundo pa- rece, succedeu á da Magdalena, quando S. Luiz intentou extirpar radicalmente a prostituição.

A esta circumslancia temos de juntar a troca do nome da egreja, a qual, ainda que consagrada sempre á Magilalena, teve de purificar-se, digamol-o as- sim, ciiamando-se agora S. Nicolau. Tíxlavia a imagem da grande penitente es- tava ainda no aliar mór c as suas reliquias expostas n'uma caixa de prata dou- rada.

Õuasi todos (IS historiadores, incluindo Duhreul, (|ue fallaram d'essa an- tiga egreja da cidade, prelendeni (jue S. Nicolau foi o Patrono primitivo: Hu- breul e Sauval dizem ter sido n"uma das capellas que se construiu a expensas de uma judiaria, confiscada na expulsão dos judeus por Piíilippe Augusto, a Con- fraria dos pescadores e barqueiros, a quem não importava sem duvida a visi- nhança da Confraria das rilnildas. lista egreja era a única que possuía reliquias da santa, que se veneravam alli, e não se deve acreditar, como parece peree- ber-se numa passagem obscura de Duhreul, que estas reliquias não foram de- positadas alli senão em 1491 por Luiz de Beaumont, bispo de Paris. Este bispo não fez mais que trocar o relicário. As reliquias eram, não s() os cabellos de Magdalena, mas também alguma porção de coiro caheliudo da mesma cabeça, ti- rado do silii) que Nosso Senhor lalcou ao dizcr-lhc: «Não me toques.»

Todas as mulhei^es dissolulas estavam de accordo em adorar Magdalena como sua padroeira, sem demorar-se cm fazer eleição entre as diderenlcs san- tas que a lenda lhes ofterecia sob este nome. Parece que também prestavam culto a santa Maria Egypsiaca, (|ue antes da sua conversão era uma celebre priisliluia. l'ma tradição (juasi contemporânea [lermille-nos certificar (|(ie a ca- |)ella deilicada a csla santa na rua que se chamou d(>pois ,lHs.sicn)if, em vez de Jujiiptienne ou Gifípcieiíni', era a freguezia inlilulaila das mulheres publicas desde a sua fundação no século duodécimo. Elias frequentavam esla capella, olfereeiam missas, coliocavam luzes e deixavam em ollerla o dizimo tie seus vergiinhiisos lucros: a esla i'apclla iam «'m devola peregrinação de lodos os |)on- tos da ciilade, e naila mais eslranlui que as suas |)romessas e ramos arlilieiaes collocados cm roda da imagem da sua padroeira.

O cura de Sainl-ilfrinuin l'.iu.rerroi.s que linha na sua dependência esla capella, mandou aqui pòr um quadro que alli se via havia três séculos, com ver- dadeiro cscanilalo das pessoas |)icd(isas. Ksle (]uadro rcpresenlava a santa a bordo irum barco em alliludc de l(M'anlar as saias para pagai' ao barijueiío, e com esla inscripção, .sem duvida em linguagem do lempo:

«Como a sanla otlerece o seu corpo ao barciueiro pela sua passagem.»

UA PROSTITUIÇÃO 7'!

Bem se por esta ancdocta a razão por que os barqueiros do Sena (i- nliain adoptado a mesma padroeira que as prostitutas.

E' provável que a Confraria das ribaklas fosse transferida da e^'reja da Magdalena para a eapeila de Sania Maria Egypsiaea, quando a grande eonfra- ria da Virgem Maria [yolre-Dame\ foi estabelecida em 1 KifS n"csla egreja, por occasião d'uiu ultraje feito por uma cortezã a uma nobre donzella, dando-ibes ou recebendo, o osculo de paz. O rei e a rainba eram membros fundadorc, d'esta confraria de .\otre-Dame. (|ue com surprcza se via sob os auspícios de Magdalena. Ouanto á capella de Santa .Maria Egypsiaea, foi erecta extra-mu- ros, nos arredores do cemitério dos Santos Innocentes, um dos centros peior afa- mados da proslilui(.'ão errante.

Quarvdo Luiz ix subiu ao throno, o seu primeiro pensamento não foi pro- liibir absolutamente no seu reinado a prostituição legal que era tolerada, senão permittida, mas pouco a pouco combatel-a, diminuil-a com as armas da reli- gião e com os recursos da caridade.

«Jamais, diz Sauval, jamais tinba havido tantas mulheres de vida no reino, como no principio do século decimo terceiro, e todavia nunca ellas foram castigadas com mais rigor.»

(iuilherme de Seligiiy, bispo de Paris, chamou á sua presença as da corte e fel-as envergonhar da sua infame profissão: umas abandonaram-a para ter vida honrada e casar-se : outras, para expiar as culpas, recolheram-se a con- ventos. Guilherme apresentou-se ao joven monarcha que acabava de succeder a seu pae Luiz viii e que tinha a alma cbeia dos piedosos sentimentos que a rainha Branca abi fizera brotar. O príncipe maravilhou-se das conversões fei- tas pelo prelado, e, para não deixar perder tão grande fructo, apressou-se a fun- dar uma ca.sa de refugio para as peccadoras arrependidas.

\o principio resolvera edificar este recolhimento n'uma cerca situada na rua Saint-Jacfjues, pertencente ao seu confessor e capellão, Roberto Sorbon a quem queria dará gerência daquella communidade penitente; mas depois, me- lhor inspirado, còmprehendendo que as escolas da rua Fouarre dariam visi- nhança às recem-convertidas, mudou de resolução. Com aldeia pois de as acau- telar d'este ou d'outro perigo, resolveu definitivamente coUocal-as a distancia das escolas, no campo, no outro extremo da cidade, e com etíeito concedeu-lhes um vasto terreno, onde mandou construir uma egreja, claustros, dormitórios, e vários edificios cercados por bons muros.

Este mosteiro, mais tarde hospital, oecupava todo o espaço em que de- pois da revolução foi construído o quartel do Cairo. .4quella espécie de forta- leza, onde havia jardins, terrenos cultivados com hortaliça, chamava-se, segundo diz Joinville, a Maison des Chratriers. iSão se sabe a origem do nome Filles- de-Dieu que depois tomou, mas deve suppor-se que a ironia do povo baptisou assim aquellas religiosas que o demónio submettera a uma aprendisagem pouco edilicante. Seja como fòr, este nome de Fillea-de-Dieu, que ao principio apenas fora um epigramma, foi depois tomado a sério, mesmo pelas ([ue o tinham.

Um poeta satyrico d'aquelle tempo, Rutebeuf, mofa das Filhas de Deus; mas dos seguintes versos de ■Rutebeuf se piule concluir que as |ienitenciadas de (Iuilherme de Seligny, anteriormente tinham sido chamadas FemiiK-í de Dieu.

Dicx a non de fdles acoir Mes je ne puy oncques savoir que Diex eust (ame en sa vie.

Rutebeuf comprehende sob a dominação de descendência de Maria, sub- entendendo-se Magdalena, todo o pessoal de prostituição cm que S. Luiz en- contrara as Filhas de Deus.

«E, conta Joinville, metteu na casa um grande numero de mulheres,

72

HISTORIA

que viviam no pecoado da luxiina c dcu-ilies quatrocentas libras de renda para que se suslenlassem.»

Esta doarão de (|iia(rocentos escudos de renda era eonsideravel, alíen- dendo ao valor enorme do dinlieiro, e lodo o mundo se admirou que as Filles- de-Dieu fossem mais contempladas que as Qmnze-Vimjts, que apenas tinham trezentas libras. Nos eomeros as Fille.-i-de-Dieu eram apenas duzentas, mas re- coibiam Imias as muiberes perdidas (]ue o arrependimento arrancava á liberti- nagem. Este mosteiro iinba por director um sacerdote, a quem o bispo de Paris cbamava seu rnuilo amado em Jesus Christo e a quem as religiosas appellida- vam pae em Deus. Não foi esta a única fundação do mesmo género que o rei favoreceu com conselhos e dinheiro.

<'E creou, diz ainda Joinville, em muitas terras do seu reino, muitas ca- sas de arrependidas e deu-lbes rendimentos para a sua sustentação e ordenou que n'aquelles recolhimentos se recebessem todas as mulheres que quizessem guardar continência e viver castamente.»

Por mais que Luiz ix quizcsse assim diminuir a torrente da prostituição, não lograva reformar os costumes que as cruzadas mais haviam piTverlido, porque os cruzados imitavam os costumes musulmanos sustentando verdaijei- ros haréns, ciíeios de escravas, compradas nos bazares da Ásia. «Le commum peuple se prist aux foles fémmes:» a maioria do povo entregou-sc ás mulheres publicas, diz Joinville, confessando assim a principal causa dos desastres da cruzada, em que o rei foi feito prisioneiro pelos infiéis. Este prudente jirineipc sabia a que altribuir os seus desastres; e, por isso, ao recuperara liberdade, des- pediu muitos empregados da sua casa, por saber que estes libertinos tinham os seus haréns á distancia de uma pedrada da sua tenda. Em vão se esforçou o rei por limpar o seu campo da prostituição c pilhagem; as suas mais severas ordens serviram para manifestar mais a impotência dos seus castos esforços contra os desregramentos da luxuria.

Estando cm Cesaria teve de julgar, segundo as leis do paiz, um cava- lheiro que fora surprebendido n'um bordel. O culpado tinha que optar entre duas condcmnações igualmente deshonrosas : ou devia ser levado por todo o campo ás costas da prostituía; com quem fora encontrado, indo esta em camisa e le- vando uma coi-da presa da cinta, ou tinha de abandonar cavallo e armadura ao rei, consideraudo-se expulso do exercito. O cavalleiro optou por esta ultima. Apesar de tudo quanto Luiz ix fez para inspirar a seus súbditos o nobre sentimento do dever, o bom rei entrislecia-se, presenceando os espantosos pro- gressos da desmoralisação social.

Por fim, d("jiois do seu regresso da Palestina, para tributar uma home- nagem solemne á boa memoria de sua casta mãe, cuja uiorle ainda chorava, propoz-se extirpar radicalmente a prostituição do seu reino, tanto nas provín- cias do Norte, como nas do Meio-dia {Lampiedoc e LarKjuedoil.)

N'uma ordenação de 1254 introduz este memorável artigo, que com ou- tros, se oppnnba d(í uma maneira definiliva e concludente á existência das ca- sas de lii)('rlÍMagem, condemnando taml)em a desterro as muiberes de vida. «Item, sejam expulsas as proslilulas, tanto dos campos como das cida- des; e, feitas as admoestações ou probibições, os bens d'ellas sejam tomados pelos julgadores dos legares ou pelas suas auctoridades, c de tudo sejam despo- jadas. E quem alugue casa á proslilula ou a reeel)a em sua casa, será obrigatlo a pagar ao prciíosle ou ao julgador, lanio como o aluguer de um anno inteiro.» !\Ias S. Luiz ccdii reconluveu lamixMii (|ue a prostituição era uni mal ne- pessario para impedir maiores males na ordem social.

CAPITULO VIII

SU.MMARIO

n R(.'i dos ribaUlos. Inv(.'Sti^ai;ões sohro as p"L'ro,íalivas, catlii^po-ia e cargo d'fsto funccionario da casa real.— l'cliiiirão das snas att-iibiiifucs. Analníria dos Minislfrinles pnlalini do (^arlos-Maçno com o Rei dos rihal- dos.— Filijipi; .\iiL'USlo orfranisa os ribaldos em corpo do tropa nifreena: ia.— Provas di; bravura o intrepidez d'cstas hufdas liceDcio.-as.— O Rei 'ios Riiialdus —Vantagens lioiioiiílcas u lucrativas d'e.^tc cargo. Nu como um rilialdo.— Decadência successiva do iviuado dos ribaldos. A rdiaideria.- Apreciação do cargo de lui dos ribaldos no inIci'ior dos palácios reaes— Investigações sobre os einolunientos do rei dos ribaldos.— Grasse Jue, rei dos ribaldos de Fi- lippe, o Largo.— Soio Guerim, rei dos ribaldos do duque de Normandia e de .Aquitania, filho de Carlos v.— Direito de execução e exacção do rei dos nbaldos sobre certos criminosos.- João lioulart e Peinette de la Basmette.— O rei dos ribaldos devia .ser um fiel e inconuptivel defensor da pessoa do rei.— Uoi|U'let. Provas de abnegação de João Tal- lerau, rei dos ribaldos de Francisco i.— Gabella semanal dos vassallus do rei dos ribaldos.— Ultima transformação ollic.o do rci dos ri baldes na côrtede França.— As corbzãs e suas damas.— Oliva Santa.— Cecília Viefville.- Cubn Boule, rei dos ribaldos de Filippe, o Bom, duque de Borgoaba.— O parocho de Xotre-Dame de Abbeville, rei dos ri- baldos.—Balderico, rei dos ribaldos de Henrique a, rei de Inglaterra, duque de Normandia.- Altribuições do rei dos libaldos nas cidades da província.— António de Sagiav, commissarío do rei dos ribaldos de Màcon e Coletlo, mulher de Pedro Talon.

lEMos A(;(iRA de aprcstMilar atiui um peisoii.igcm, (|iic a liis(oiia nos aponta como existindo no reinado de Filippe Augusto, e que Item pôde ter sido contemporâneo de Carlos Magno. O Rei dos ribnlilos (Ik.r rilialdoruni) foi evidentemente, desde a sua ori- gem, o juiz da proslituiyrio na corte dos reis de França. (Irandc numero de sábios, desde João Dutillet até (louye de Longuemare, se tem dedicado a eruditas investigações e feito engenhosas dissertações, para precisar quaes fossem as prerogativas, a cathegoria e cargo d'este funcciona- rio dd casa real: citam textos de ordenações, apresentam factos novos, fazem fallar o Thesouro ou Archivo dos tiíulos e procuram a verdade por entre uni grande numero de provas contraditórias; mas, á força de querer systematica- menlc exaltar ou deprimir funcções tão complexas, como largas, tão singula- res, como ten-iveis, não são concordes no verdadeiro mister d'estc notável per-

Depois de tantos tralvillios de erudição c de critica, feitos sobre o o!)scuro assumplo do oíFicio do rei dos ribaldos, a quem consideramos como precursor solemne dos commissarios de policia da nossa ordem civil, vamos nós também occuparmo-nos d'essc mysterioso cargo.

Cremos poder dar um grande desenvolvimento histórico á investigação d'cste antigo olficio da corte, intimamente enlaçado com a historia da prostitui- ção em França.

Quasi todos os auctorcs, fullando do rei dos ribaldos, teem procurado de- finir ou determinar as suas atlribuições, enganando-se mais ou menos nas con- clusões por considerarem uma única phase deste personagem e do seu cargo.

IliSTOBiA DA Prostituição Tomo ii— Folha 10.

74 HISTORIA

Assim João Boutillicr, (lue escreveu a sua Somme rurale, ahi por I 'i-60, apre- senta o rei dos ribaUlos como um executor das sentenças e' ordens dos prcbos- tes no séquito do rei; João Ferron indica-o como o primeiro dependente dos mordomos do palácio real; f.orondas dii-o commissario do prcbostc do palá- cio; Eclleforest chama-o prehoste do palácio do rei; Ragueau dcciara-o super- intendente das mulheres publicas; Estevão Pasquier aponta-o como bailio dos ribaldos. Cada um ao rei dos ribaldos um caracter especial, um poder mais ou menos reslricto, uma dignidade mais ou menos considerável, sem attender ás transformações suecessivas que o tempo fez na instituição, que tinha deve- res tão diversos como múltiplos.

A reunião por ordem chronologica de todas as opiniões dos historiado- res e jurisconsultos, a respeito do mysterioso cargo do rei dos ribaldos, prova- ria que nenhuma d'ellas explicava as funcções que desempenhava este official de palácio na época da sua creação, nem a decadência sollVida pelo emprego, á maneira que os outros funccionarios da casa real lhe iam usurpando direitos e privilégios. O rei dos ribaldos deixou de existir, quando a sua qualificação se tornou vergonhosa, quando a sua antiga auctoridade passou a muitas mãos, quando os seus competidores repartiram a gerência do cargo.

O ultimo rei dos ribaldos, depois de ter visto os mais beilos florões da sua coroa, disputados e arrancados por outros funccionarios de nomeação mais recente, teve o supremo desgosto de, no reinado de Francisco i, vér o resto da sua antiga supremacia, a que exercia sobre a prostituição da corte, passar ás mãos de uma dama de profissão. Assim lhe foi arrebatado o sceptro.

Dissemos, citando uma capitular de Carlos Magno sobre a policia interna dos domínios do rei, que os empregados do palácio (Ministeriales palatini,) en- carregados da vigilância e guarda d'estes domínios, tinham grande analogia -com os reis dos ribaldos, que encontramos quatro séculos depois exercendo a mesma vigilância no palácio real. Com elTeito, estes Minisleriales palaliiii, dos (juacs provieram os grandes dignatarios da coroa, deviam ter especial cuidado em ex- pulsar das residências reaes todo o individuo suspeito, que n'ellas houvesse penetrado, fosse qual fosse o sexo a que pertencesse; os vagabundos principal- mente (fiadaks) e as meretrizes eram as que mais temiam a jurisdição do Mi- nisterial palatino, que julgava soberanamente estas causas e mandava açoitar os delinquentes. E' esta a origem do rei dos ribaldos e pode dízer-se com toda a razão, que, se assim não foi chamado até ao reinado de Fílíppe Augusto, desempenhava as funcções no tempo de Carlos Magno.

E' mui natural (|ue este cargo tivesse sido creado logo n'aquellas quintas (cillce) ou centros de exploração agrícola e manufactureira, que os reis francos possuíam em vários pontos do reino, e cujos rendimentos eram a principal ri- queza do thesouro real. Os servos de ambos os sexos, submettidos a certas leis de polícia e de administração, não eram senhores nem dos seus corpos, nem do seu tempo; tinha-se o maior cuidado em afastar d'elles toda a íntluencía de ociosidade e prostituição, e o seu trabalho, a saúde e os seus costumes eram protegidos com previsões paternacs. Era, pois, muito importante que nos gyneceus e dormitórios se não introduzissem desconhecidos; a regularidade da vida commum muito teria sotlrido com o contacto das mulheres de vida, e bastaria a presença de um leproso, de um libertino, de um ladrão, ou de um mendigo, pai-a contagiar physica ou moralmente a pacifica povoação d'aquelles recolhimentos, em ([ue milhares de servos de um e de outro sexo estavam reu- nidos. O funccionario, a quem especialmente pertencia o prohibir o accesso aos intrusos n'uma quinta real, parece ter sido o concierge, e as suas funcções eram idênticas á do camarciro-mór. Bastou mudar-lhc o nome para apparecer o rei dos ribaldos.

Os reis merovingios c carlovingios, acompanhados de numeroso séquito

HA PROSTITUIÇÃO 10

(le empregados c servidores, iam, de quando cm quando, residir n'eslc ou n'aquclle palácio, e o grande numero de pessoas que os acompanliava augmen- tava-se inevitavelmcnie com grande numero de mulheres cstranlias, allralii- das pelo lucro dos prazeres sensuaes. Era, pois, mister uma auctoridade per- manente c especial para manter a ordem entre aquclla massa de gente, e para dar ordens que CNÍgiam prompta exccuçcão. D'aqui proveio a creaçcão de um funccionario com diicito de vida e morte sobre todo aquelle que causasse per- turbação na casa real.

Aimoin (liv. v, cap. 10) conta que Luiz, o Benigno, expulsou do seu palácio um grande numero de mulheres, que se diziam agregadas ao serviço da rainha c das princezas irmãs do rei [nmnen cwtiiin fcemineuni, qiii permaxi- mus eral, palácio e.rcUuU indicarit,) c se exceptuou d'esta medida um pe- queno numero d'ellas, que se julgaram indispensáveis ao serviço real.

Mas é fora de duvida que toda essa allluencia de mulheres não tardou muito em reapparecer na corte dos reis, das rainhas c dos príncipes, o engodo de todas as ambições, de todos os vícios interesseiros e todas as baixezas do- mesticas. Concebe-se facilmente que a justiça expcditiva do rei dos ribaldos es- tivesse em |)leno vigor, antes que o seu nome tivesse caracterisado as suas at- tribuições ordinárias, e indicado a classe de gente que mais directamente de- pendia do seu tribunal supremo, ou sem appellação. Este nome qualificativo parece não ser anterior ao reinado de Filippe Augusto.

]N"cste reinado, a palavra ribaldus ou rihaud, cuja et^ymologia estuda- mos, fez a sua apparição na língua vulgar e n'clla figurou logo em parte. Eríim assim designadas ao principio as pessoas de um e de outro sexo, sem oíTicio nem beneficio, que andavam em volta da corte, ganhando a vida como podiam, pela esmola, pelo jogo, pelo roubo, pela prostituição. Esta infame multidão cresceu prodigiosamente com as cruzadas, e n'um exercito o numero d'esles vagabundos era muitas vezes superior ao dos combatentes.

Entre estes parasitas, sempre promptos para a pilhagem, havia muitas mulheres que se entregavam á impudicicia. Filippe Augusto imaginou aprovei- tar este mal necessário e, em vez de com ameaças e castigos tentar livrar-se d'esta vagabundagem, o que inutilmente tentaria, organisou com a(|uellas hor- das de parasitas, menos prejudiciacs ao inimigo do que ao exercito, que seguiam como nuvem de assoladores gafanhotos, um corpo de tropa assoldada.

Os historiadores não faliam no modo como era alistada e disciplinada aquella chusma de insubordinados ; mas pôde suppòr-se que lhes deixaram em parte continuar nos seus hábitos de libertinagem, fechando os olhos aos excessos 6 dando-lhes a liberdade de levar para a guerra quantas mulheres queriam.

Seja como lor, aquella phalange de ribaldos, composta da relê d'uma sol- dadesca vagabunda e desenfreada, distinguiu-se em taes feitos de armas, com- metteu tão extraordinárias façanhas, tão brilhantes provas de intrepidez deu que Filippe Augusto fez d'ella um corpo d'clite, encarregando-o do serviço es- pecial de guardar a sua real pessoa.

Os chronistas referem que o rei tinha a acautclar-sc dos punbaes dos as- sassinos, que o Velho da Montanha enviava continuadamente uns após outros a arrojar-se sobre as espadas nuas dos ribaldos do rei chrislianissimo. Estes ri- baldos acompanhavam o rei por toda a parte e cm todas as guerras, sem pou- par o sangue, animados como eram pelo incentivo do saque, riuilberme, o Hre- tão, que descreve as proezas d'a(|uellcs soldados, apresenta-os nasua Piíilippi- da, como heroes indomáveis, nunca voltando as costas a perigo algum, nem mesmo resguardando o peito com qualquer armadura :

/Ti ribnldorum nihil hominus agmcn inerme (Jui nuinquaiii dubilanl in quwris ire perícia.

70 HisToniA

A'(iiilr.) lof;ai- o mesmo poela descrcvo-os carregados com o saque :

Nec nniniii artniíjeri, ribalilorumque manipli, Dilali spuliis, et rebtis, equisciue subibant.

Oiiando Filippe Augusto foi siliar Tours, depois de ter submetlido Poilou, cscoliíeu um capilào ribaldo {diice vibaldo) para procurar um vau no rio Loire, e encoiilrado por este capitão, quasi por milagre, (quasi per miracula) o exer- cito passou o rio e os ribaidos do rei (ribaldi /'Cí/ís, di/ Rigord,) que <'ram os primeiros a cornar ao assalto (qni primos impetus in ej-intunandiu niuni/iuni- hus [acere consueterunt) prccipilaram-se para as escadas, e a pra(,-a não espe- rou para ser tomada de assalto e abriu as portas ao rei.

Em virtude d'esles feitos e de outros do mesmo género, é certo que os ribaidos de Filippe Augusto formavam uma melicia íemivel, mas pouco disci- plinada e cajiaz de todas as violências. O rei, em attenção aos seus servi^-os, ião pouco exigia d'cllcs a mesma disciplina e deveres impostos aos outros cor- pos do exercito ; todavia como não era possível, sem maus exemplos, deixar impunes todos os dclictos d'aquella tropa desenfreada, que apenas reconhecia a aucloridade dos seus chefes, e, que quando não se batiam, unicamente se oc- cupavam na libertinagem, o rei teve de coníiar o commando supremo d'estes indomáveis ribaidos a um dos officiacs mais graduados da sua casa, ao que es- tava encarregido da p.dicia interna do palácio, e que tradicionalmenic e\eicia uma iemiiia aucloridade sobre os rcus de dclictos de to<la a ciasse, commciti- dos no domínio da sua jurisdic(,-ão.

Kstc funccionai'io palaciano linha lambem um aniigo prestigio de respeito e terror, pois era scm|)re acompanhado pelo carrasco. l'ara ellc não havia in- teivallo eritre a ccmdemnação e a execução, sentenciando a pena ultima com a mesma facilidade com (pie impunha uma ligeira pena, sempre acompanhada d''uma !iuiila em proveito j)roprio.

O lugar de rei dos ribaidos veio a ser muito lucralivo, tanto pelo (|ue rendiam as muitas criminaes, como pelas contribuições impostas ás j)rostilu- tas, talierneiriís, cie.

Tinha taiiil)em parle no saque feito pelos ribaidos nas suas expedii;ões e ainda, como se tal lhe fizesse falta, arrogava-se o direito sobre os prisioneiros de guerra.

Lè-se na lista dos cavallciros feitos prisioneiros na b.italiia de Bouvincs em i 2 1 4 ;

Hntjerus df Wajalia. Hunc habuit lUx Itibalduriim, quia dicebal se esse servienlem. '

Este fragmento, citado por Ducange, prova que o rei dos ribaidos tinha em tempo de guerra a qualidade de primeiro capitão das guardas do rei; mas não nos cvidenceia, se este oiiicial da coiòa de França exercia funcção activa nas batalhas ou se combatia á frente do seu bando como os demais capitães. As- sim se piide suppòr, acreditando n'uma licção do jiumaince de la Huse, com- posto no século decimo terceiro por Guilherme de Lorris, que faz do rei dos ribaidos um capitão, ([uando o Deus do amor reúne o seu exercito para liber- tar da ijrisão Uel-acneil ; mas a maneira como se dirige a Faux-semblaul, pe- tiindo-lhe (|ue conduza os ribaidos ao assalto, demonstra suilícienlemente que a r<'pulavão dos soklados se rclkctia no chefe.

São os seguintes os versos do Rumaince de la Rose, em que o deus do amor se dirige a l-aa.v-semblant, dizendo o que deve fazer :

Fãux-sciiiblant, par lei convenant, Tu serás a moy maintenant

DA PROSTITUIÇÃO / /

Et ii nos timiá aidcrus. Et poiíH tu ne Irs graveras, Àins penseras les enlever, Et tDiis nos enneiiiis grecer Tien soie le poucoir et le batix Car le roy serás des ribaux.

(Fnux-semblant, cm troca (risto perlencer-ine-has c aos meus amigos .ijiularás sem que os aiíraves; protegc-os e molesta os inimigos. Será tcii o po- der c a lioiira, |)orijiie és o rei dos ribaldos.)

E' claro (juc n'csla citação, como o observa Pasquier, o rei dos ribaldos é apresentado como capitão de armas, c não como magistrado. Ha também ra- zão para siippòr que exercesse os dois poderes, quando se pensa no que foram os ribaldos de Filippe Augusto, ainda mesmo depois de terem sido orgaoisados como guardas de corpo do rei. Um cliefe que não tivera a aucloridade de um juiz nunca teria podido disciplinar aciucUa borda de miseráveis, a quem ape- nas o terror podia contei' em respeito. Todos os bistoriadores d'aquella época fizeram terríveis descripções, que nos iniciam na dilFicil e perigosa missão do rei dos ribaldos.

Escutemos Guillierme de Neubrige (liv. v, cap. 2) «Certos desavergo- nhados da estofa dos homens chamados ribaldos.»

Ouçamos Matbieu Paris: «Ladrões, bandidos, fugitivos, cxcommungados que a França agremia sob o nome de ribaldos.»

Mas em parte alguma está melhor deseripto o género de vida dos ribal- dos, do que na ehronica do Longpont, em que o prior da abbadia pergunta a João de Montmirel o que aspirava a ser no mundo.

Quero ser ribaldo, responde altivamente o mancebo, que mais tarde devia ser canonisado.

Deveras! exclama estupefacto o prior. Aspiras a fazer parte d'essa gentalha, tão desprezível ante Deus como perante os homens I Por ventura, ])ara acompanhar esses facínoras não será necessário jurar e perjurar constan- temente, jogar os dados, levar bilhetes {t.abellam co)nportare,) ter concubinas (pellicein circuimhicere) e viver sempre na crápula?»

Compreliende-se sem diliiculdade que as rixas e homicídios eram mais frequentes entre aquelles bandidos, e que o rei dos ribaldos deveria muitas vezes intervir para as apaziguar, pois que os ribaldos eram sempre acompa- nhados das ribaldas, mulheres ávidas, tão turbulentas e incorrigíveis como elles. E' provável que a. milícia dos ribaldos do rei tivesse sido licenciada, de- pois da morte de Eilippe Augusto, talvez por causa de qualquer revolta; pois que, se os ribaldos ainda continuam figurando em todas as cruzadas, em todas as guerras e em todas as cavalgalas, iam, mal armadus e peior vestidos, de tal modo, que o provérbio nu como um ribaldo, tornou-se vulgar desde I5IJ0, se- gundo o relata uma antiga ehronica manuscripla, de que Ducange transcreveu alguns versos.

Guilherme Guiart, que no seu poema histórico os Hoíjauj: lignages, mette cm scena os ribaldos, pinta-os com as mais miseráveis cores :

'Uruient soudoiers et rihaus Qíii de toiít pei-die sont si baiix ,

Itibaux, qui volcntiers oidivent, Par cosluiite d'antiquité, ijueurent aux tnurs de ia cite.

Ribaux, qui dei ost se departent Par les chitnts ra et la s'espardent Si utis nue pilete porte, I.' lulva, croc on luassue torte.

HISTdRIA

Por fim, não são tropas regulares nem assoldadadas, mas sim bandos que se entregam á pilhagem que devoram o paiz, e que rccrulando-se em todas as parles, formam essas terríveis hordas d'aventureiros, que a Fran^'a assombrada viu mulli|ilicar-sc em todos os seus excessos, até ao reinado de (Carlos v.

«Tal gente, diz uma velha ehronica inédita, citada por Ducange, são bandidos, ratoneiros, ladrões e são gente infame, dissoluta e excominungada.»

O rei dos ribaldos muito tinha que fazer com tal gente, principalmente quando o exercito do rei estava acampado; administrava justiça expeditiva e algumas vezes presidia ás execuções, para lhes dar um caracter mais solemne e inspirar mais terror aos seus incorregiveis súbditos. Mas a sua auctoridade foi pirdendo a importância, á medida que a dos marcehaes ia augmentando ; pois que o rei dos ribaldos, sendo um cargo unicamente destinado á casa real, não tinha alçada senão nos estabelecimentos dependentes da casa do rei. Fora d'esle caso, nas expedições militares, nos acampamentos, o conhecimento de todos os crimes e delictos compelia de direito nos prebostes dos marcehaes, que, pouco a pouco, se foram apoderando da auctoridade dos reis dos ribaldos.

Este oliicial foi lambem supplantado pelo grão preboste dos marcehaes na hoste ou séquito real, ahi por fins do decimo quarto século, pois que João Boutillier diz que o rei dos ribaldos era encarregado de cumprir as ordens da- das pelo preboste dos marcehaes.

«E se acontece, accrescenta, que algum facto criminoso suceeda, o preboste é de direito senhor do ouro e prata que esteja no cinto do malfeitor, e aos mare- chaes peilenee o cavalio, os arnezes e mais pertences, se os ha, ficando as roupas, sejam ellas quaes forem, para o rei dos ribaldos, que tiver assistido á execução.

Na época em que Boutillier escrevia a Somme ruralc, o rei dos ribaldos não era senão uma pallida sombra do que tinha sido: o próprio titulo era desprezado e os seus rendimentos não eram tão pouco para engrandecel-o.

«O rei dos ribaldos, accrescenla Boutillier, tem de direito conhecimento de todos os jogos de dados e quaesquer outros que se joguem no séquito do rei. liem, pelos alojamentos dos bordeis e das mulhees bordaleiras, receberá dois soldos por semana.»

E não é tudo: o poder do rei dos ri!)aldos da casa real estava eii'cums- cripto aos limites da sua jurisdição, fora da qual funccionavam, cada um na sua zona, um grande numero de rei dos ribaldos, encarregados da policia dos costumes c nomeados pelos senhores, ou pelas cidades ou pelos súbditos de similhantes reis, isto é, pela gente perdida dos dois sexos. Onde liouvesse uma ribalderia, naluraimenie havia um rei dos ribaldos.

Esta qualificação de rei pertencia consuetudinariamente ao chefe ou su- perior d'uma corporação, principalmente as que governavam muitas communi- dades distinctas, ou que Unham sob a sua auctoridade um grande numero de profissões diversas, for isso não se chamavam reis os chefes dos [lelleiros, dos tendciros, dos padeiros e mais grémios que tinham meslres ajuramenlados, porque compreliendiam olficios e trabalhos da mesma espécie ; mas havia um rei de grémio. O reinado dos poetas reunia n'uma corporação os géne- ros e talentos mais variados; os poetas formavam uma grande confraria, em que abrigavam não os poetas, mas os músicos, os bailarinos c os mimieos. Os alabardeiros agrupavam-se iiRlilTerenlcmcnte a quabjuer oulra classe e no- meavam um rei escolhido pela còrtc ou designado como o mais destro ati- rador.

A ribaldeiia, igualmente composta de individuos de Iodas as classes, como prostitutas, rufiões, libertinos, jogadores, vadios e outra gente da mesma quali- dade, era digna de ler o seu rei. O rei dos ribaldos da eòrle segiiramenlc, pelo me- nos em certas occasiões, exercia certa supremacia sobre as demais ribalderias.

DA PROSTITUIÇÃO 79

Cláudio Faiiclief, no seu primeiro livro das Difpiitrs et maf/istrnfs de la France, faz uma apreeia(,'ão bastante exacta do cargo do rei dos ribaldos, no interior do palácio real :

«Aquelle, diz, que se chamava rei dos ribaldns, não exercia, como al- guns querem, as funcções de preboste da casa do rei ; assim era, que iinlia au- ctoridade para expulsar da casa do rei os que n'ella não deviam comer nem dormir ; porque em tempos passados, os que tinliam bocca na cóiHe, quando tocava a campainha accudiam ao refeitório c os demais eram obrigados a deixar o palácio ; e, fechada a porta, as chaves eram depositadas sobre a meza do mor- domo-mór, porque aos que não tinham as esposas no palácio era-llies probibido dormir na casa do rei e também para ver se alguns estranhos se tinham es- condido ou alguns tinham levado tjarzas ou mulheres de nota, o rei dos ribaldos, com um archote na nu"io, esquadrinava por todos os recantos do palá- cio a vèr se encontrava ladrões ou gente suspeita.»

Fauchet, quasi contemporâneo do ultimo rei dos ribaldos, representa-o no exercício das suas func(>ões, como o vira ainda na eòrlc; mas não o consi- dera em todas as suas phases, nem o descreve em todas as épocas do seu es- plendor e decadência.

Estevão Pasquier transcreve este capitulo do memorial do Tribunal de contas em 1823 :

«Item: O rei dos ribaldos tem uma rat^-ão, um criado, e sessenta soldos por anno.»

Como anteriormente a este artigo, os porteiros do parlamento, quando o rei não está, estão descriptos como tendo dois soldos, deduz-se que o rei dos ribaldos, ganhando menos, tinha inferior cathegoria ; mas no caso do extracto ser errado, o que é evidente, é não ser a sua remuneração grande.

N'uma conta da casa real do anno de 1812, o criado do rei dos ribaldos é chamado o seu preboste: l^rwpositus reijis ribnldorum, (/ííí duxit iv cale- los qni vulnucerant, ete. Este preboste evidentemente eommandava uma forca de archeiros, pois levou presos ([uatro servos aceusados de ter ferido um homem.

Woutra eonfa da casa do rei Pbilippe, o Largo, em 1371, vc-se apparecer novamente o rei dos ribaldos, na qualidade de chefe supremo da policia do |)alacio.

Depois de enumerados alguns servidores, taes como porteiros, Ic-se o se- guinte :

«Item: Crusse Joe, rei dos ribaldos, não comerá na corte nem entrará na sala; mas terá seis dinheiros tornezes de pão, uma ração de carne e uma gal- linha, e uma ração de aveia e treze dinheiros de soldo, e tirará cavalgadura das rcaes cavallariças, c deve estar sempre tora da porta e tomar sentido que não entre senão aquelle que direito tiver.»

Um outro capitulo da mesma conta apresenta-nos o rei dos ribaldos em exereicio, ás horas da comida, e este capitulo está conforme com o que Fau- chet diz sobre as attribuiçôes d'este ollicial no interior do palácio.

«item: Deve saber-se que os guardas da sala, logo que se grite liu' Gueux (a comer) farão sahir da sala todos, exceptuando os que tenham de comer, e os devem entregar aos escudeiros da porta e estes aos porteiros, e os porteiros ao rei dos ribaldos, e o rei dos ribaldos deve ter o maior cuidado em que nin- guém entre, e o que commetter alguma falta será castigado pelo mordomo de serviço.»

Assim, no reinado de l'hilippe o Largo, o rei dos ribaldos tinha decahido de seus antigos privilégios, até não ter bocca na corte, e estar subordinado aos mordomos do palácio.

Esta supremacia dos mordomos reaes apparece principalmente n'um de- creto do parlamento, de 16 de março de I40i, em que se diz terem os mordo- mos real jurisdição sobre os dependentes do rei dos ribaldos.

80 HISTORIA

A docadeiicia progressiva do rei dos riiialdos loi'na-se ainda mais evi- dente pela diminuieão dos seus honorários. Wiinia conta da casa real, fi\am-se, em 1324 esses iionorarios em 20 soldos: em I3o0, em virtude de uma orde- nação de riiilippe de Valois, esse ordenado é reduzido a o soldos diários; cm 1386, diz uma ordenação de Carlos vii: «O rei dos ribaldos receberá quatro soldos por dia, quando esteja na corte.»

Apesar da sua decadência, este oílicio da coroa conservou uma certa con- sideração, até ser definitivamente supprimido nos princípios do século xvi. Du- tillet diz :

«Foi desempenhado por gcntis-homens de boas famílias, cuja auctoridade era grande nas famílias dos príncipes, senhores e mais pessoas da comitiva real.»

Todavia a iiistoria menciona um rei dos ribaldos, posto com o seu preboste no pelourinho, sem duvida por não ter cumprido o seu dever. Uma conta da casa do duque de Normandia e d'Aquilania, (ilho de Carlos v, em I3S3, relata n'estcs termos tão notável facto:

"João Ciuerin, rei d(js ribaldos, pela dcspeza d'elle e mais Ires, indo de Corbeil c Scdane conduzir Guillet, que foi rei dos ribaldos, e a Picardin seu pre- boste, para os cxpôr no pelourinho.» -

Deve suppôr-se que o rei dos ribaldos, a quem d'este modo se expunha ao desprezo publico, não tivesse desempenhado as suas funcções no palácio real, mas sim em qualquer cidade de|)endentc da jurisdição do rei dos ribal- dos da corte. Este tinha direito de execução e de evaeção sobre certos crimino- sos, que lhe eram entregues por sentença dos tribunaes ordinários da casa real, como é mencionado no registro do Tribunal de Contas em 1330:

«Impõe-se silencio perpetuo a duas mulheres que reclamaram contra o de- creto do tribunal, (|uc as condemnou a ser eniregues ao rei dos ribaldos para serem castigadas como infames.»

N'uma conta da casa real de 1396 vèem-se descriptos ses.senta e oito sol- dos pagos pela mão do rei dos ribaldos ao executor que tinha enforcado o mal- feitor João Bouhirt, e enterrada viva uma mulher chamada 1'crnelte la Bas- melte, pelo roubo de um objecto da corte no caslcllo de C>ompiègnc.

O rei dos ribaldos, quando queria ser exemplar no cumprimento dos seus deveres, tinha muito que fazer no palácio real; naturalmente não assistia em pessoa ás execuções, que lhe eram confiadas, sendo substituído pelo seu pre- boste; mas era elle quem pagava ao carrasco e era responsável pelo trabalho dos seus subordinados. Estes, exactamente como o seu chefe, tíidiam na es- pada certas insígnias, diz Dutillet, para recordar que o rei dos ribaldos n'oulros tempos exercera justiça criminal em casa do rei.

Este personagem devia ser um dedicado servidor, um fiel e incorruptível defensor da pessoa do rei, pois lhe eram confiadas a guarda das portas e a po- licia interior do |)alacio, durante as refeições e depois da sobremeza. Por isso não c para estranhar o vèr-se um rei dos ribaldos morrer repenlinanieiite de commoção na sagração de Carlos vi, em 1380. Aquelle que se reputa ter gido o ultimo titular d'este cargo, João Talleran, senhor de (Irígnaux, deu uma prova de abnegação á coroa, aconselhando o joven duque d'Angoulème, a (luem via muito enamorado de .Maria d'lnglalerra, a (|uc não desse um herdeiro ao, velho Luiz XII ; fii este conselho, de uma grande previsão politica, acceite pelo joven pi-incipe, depois Francisco i, que lhe fez refrear c extinguir o seu impru- dente amor.

O rei dos ribaldos não exorbitava das suas attribuições, quando dava este consídho ao seu liiluro s(d)crano, pois que o seu cargo não era estranho aos adultérios. Segundo muitos eiudilos, o rei dos ribaldos exigia cinco soldns de toda a mulher casada, (jue tivesse relações amorosas com homcrn (|ue não (òra seu marido. .Mas é provável que o rei dos ribaldos da, corte não tivesse os pri-

DA PROSTITUIÇÃO 81

vilef!Ío,s locaes dos domais reis da rihalderia. Não é, por exemplo, dillicil o ap- pliear-iiie o que, da multa de eiiico soldos lançada a toda a mulliei' adulte- ra, diz o auetor anonymo da Ifisforia das fnani/nraròes (Bevy) : «Se a mulher recusava pat,'ar, liulia direito de se apropriar da sua cadeira,» provavelmente a sua cadeira de honra, a que hahitualinente occupava.

Que as mulheres de nota do séquito real lhe pagassem um imposto, é uma circumstaneia em nada contraria aos usos e costumes do direito feudal, que ohrigavam todo o feudalario a pagar um trihuto a seu senhor. O ti'ibulo semanal das vassallas do rei dns ribaldos deve ter sido de dois soldos d'ouro, a dar credito a Boutillier e á Ragueau.

João Ferrou, que descreve este funceionario guardando a camará do rei, não hesita em infamal-o, alRrmando que tinha casa sua, onde negociava com as mulheres publicas. Esta nova attribuição, com que se enriqueceram estes reis da gentíí de nota dos palácios rcaes, não é destituido de verosimilhança, quando depois se viu sobre as ruinas d'aquelie cargo supprimido ergucr-se o de Dama das cortezãs, cargo análogo cm pleno exercício durante a maior parle do século decimo sexto.

Finalmente, Dutillet aecrcscenta aos emolumentos do rei dos ribaldos um serviço especial das mulheres publicas, que tinham a obrigação de fazer-lhc a cama (faire son Ul) durante todo o mez de maio.

Depois da morte do senhor (irignaux, quebrado o sceptro do rei dos ri- baldos «a policia das cortezãs, foi encarregada a uma dama e ás vezes a uma dama d'alta linhagem, diz .Mr. Rabutaux.» Em lo3o chamava-se essa dama Oliva Santa e recebia de Francico i uma pensão de noventa libras «para aju- dar a ella e ás referidas cortezãs a viver e a occorrer ás despezas que tinham a fazer segundo a corte.» (V. o Glossaire de Ducange e Carpenticr, na palavra

MERETRICALIS VESTIS.

Muitas outras ordenações do mesmo género, feitas ahi pelos annos de 1539 a 'loi6, foram conservadas, e provam estas que lodos os annos no mez de maio todas as cortezãs, ofliciacs por assim dizer-se, tinham a honra de apre- sentar o ramo de romanzeira, que annunciava o começo da primavera e dos prazeres do amor.

Em 30 de junho de loiO, Francisco i ordena a João de Vai, thesoureiro da casa real:

«Que pague á vista a f^ccilia de Viefville, Dama das jorens alegres da comitiva da córie, a somnia de io libras, com o valor de 29 escudos de oiro cada uma, o que lhe manda dar a ella e ás outras mulheres da sua profissão para que entre si o repartam, e isto por direito do ultimo me/, de maio, como é uso desde a mais remota antiguidade fazer-se.»

Não somos da opinião de Babutaux, que confunde Cecília de Viefville com uma duqueza da antiga casa de Vieuviile, que possuia marquezes no tempo de Henrique, e duques no reinado de Luiz xiv. M. Champollion-Figeae, publicando esta notável ordenação nas suas Mclatujes liistoriqiies (tit. iv., pag. 479) julgou vèr na nobre esposa de um duque e par de França a herdeira col- lateral do rei dos rii)aldos da casa real.

Este vergonhoso cargo ainda existia em iooS, pois Gove de Longuemarc descobriu uma ordenação de Henrique ii, com data de 13 de julho d'aquelle anno, que reforma os abusos da instituição:

«E' expressamente ordenado a todas as mulheres publicas que não este- jam no registro da cilada dama das cortezãs, que, immcdiatamente depois da publicação d'esla, saiam da corte, com prohibição das que estiverem n'csse re- gistro de atravessar as povoações, e aos carreiros c mais gente (|ue as levem ou alojem, nem que jurem ou blaspheraem contra o nome de Deus, sub pena de açoites, e outrosim se ordena ás mesmas cortezãs que obedeçam e sigamaci-

HlSTORlA DA PbOSTITUIÇÃO. ToMO II— FoLHA 11.

82 HISTORIA

lada dama codk^ coslume é, sendo, sob puna do açoites, pi'oliibido o injii- i-ial-a.>*

Tal foi a ultima Iransformaeão do cargo do rei dos ribaldos na corte de França.

Em quanto aos demais reis de ribaldcria, dependentes do da còrtc, eni- eontram-se por toda a parte na bistoria municipal das cidades c na historia particular das principaes famílias. Havia também na corte de Borgonha um rei dos ribaldos, cujas funcções eram as mesmas (]ue as do seu collcga da corte de França. Colin-Boule exercia esse cargo no reinado de riiilipjje, o líom, c esto nome não revela um alto personagem. Em 142:5 o titulo de rei dos ribaldos havia, c verdade, perdido muito do seu antigo esplendor e o paroeho de Aolre- Dmne de Abbeville n.ão devia sentir-se muito orgulhoso com o seu titulo de ri- babiia, porque os súbditos, chamados ribaldos, lhe prestavam homenagem e ser- viços. Comprebende-se que o titulo não fosse o mais conveniente para inpirar respeito, aos que conheciam os excessos dos ribaldos, a quem co::i muito rigor o seu rei podia governar.

Este funccionario na sua origem tinha sido muito mais respeitável c po- deroso, pois que a ribalderia ainda o não tiniia ennodoado com o seu nome. N'um tratado (i'Henri(iue ii, rei de Inglaterra, o duque de Normandia, reinante em II oi- (v. Ducange na palavra I•A^AGATOR,) evidentemente se trata dos rei dos ribaldos c o que desempenhava essas funcções, Bclderico, filho de Gil- berto, honrado com o favor do seu senhor, foi investido do cargo de grande |irebosle dos marecbacs na província da Normandia, e chamado «guardador das mulheres publicas, que se |)rostilucm no lupanar de Ruão {Custos mereiricum publice venalium in lujianar de Rolh.)

Nas cidades da província o rei dos ribaldos era não juiz, mas executor da justiça criminal da ribalderia. Um antigo registro do município de Bordéus refere que todo o condemnado era «entregue ao rei dos ribaldos, para o fazer percorrer a cidade, castigando-o com boas varas.»

Metz tinha igualmente o seu rei dos ribaldos, que também não era um elevado personagem.

O cci da ribalderia de Laon nem sempre vivia em boa intelligencia com o bailio do Vermandois : em 1270, o .seu prebosfe, de nome Poinsard (l^oinçar- dus, prfjpposiliis rlhaldnnnii) foi accusado perante o tribunal do bailio por ha- ver commettido, de sociedade com os chamados C-roselon e Wiet Lipois, actos de violência contra a abbadia de S. Martinho de í.aon, e contra o seu abbade (v. os Oliin, publicados pelo conde Bengnot, tit. i, pag. 813.)

Este facto, sem duvida, motivou a suppressão do cargo de rei dos ribal- dos em Laon, pois que Filippe n, em uma ordenação de 1283, determina ao i)ailio de Vermandois ([ue, sob pretexto algum, consinta tal cargo, quer fosse publico ou secreto (quod ciam rcl palam sub aUqun .simulato colore non per- millat regon rilialdorum in cilla Laadunensi.)

.4 supressão d'este cargo, não se estendeu a todas as localidades, pois (|ue em t'/83 a cidade de Saint-.iinand linha um rei das mulheres publicas, chamado Jacob (ioduncsme.

O algoz de Tobisa lomou tam!)em o titulo de rei dos ribaldos, como se para desacreditar a ennodoada causa da ribalderia ainda lhe faltasse mais esta in- fâmia

Finalmente la Coutume de Cambray definiu sem reticencias os privilé- gios do seu rei dos rii)aIdos.

«O dito rei, deve receber por (|ual(|uer mulher ipie com homem se junte carnalmente... cinco soldos |)or uma s(i vez. item, por todas as mulheres que venham da cidade e que estejam sob a sua alçada, dois .soldos lornezes pela primeira \CL. ltem, por cada mulher da dita ordenação, que mude de

DA PUOSTITUICAl)

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casa, ou que saia da cidade, por uma noite, doze dinlieiros. Jli'm, deve ter uma mesa e um Í)ra'laH(i aparte, para eile em um dos feudos do palácio, ou no logar que liie fòr designado jielo bailio.»

Estes artigos fazem-nos conliecer, d'uma maneira precisa, o imposto que o rei dos ribaldos d'csla cidade exigia, não s(i ás muliíeres publicas, com re- sidência fixa, mas também ás (pie passavam pelos seus domínios.

Estes impostos nem sempre se recebiam sem difficuldades, e os agentes do rei dos ribaldos, as mais das vezes para os perceberem, encontravam grande opposição e resistência. Um certo António de Sagiac, que se dizia commissa- rio do rei dos ribaldos de Macon, morreu n'uma desordem bavida na povoação de Beaujeu quando ia realisar a exácção de cinco soldos de multa, imposta a uma mulber casada, aecusada de adultério. Pedro Talou, marido desta muiber, cbamada Colasa e seu irmão Estevão, intervieram na desordem para defender a aecusada.

António de Sagiac, era um ribaldo da peior espécie, frequentador de ta- bernas, vivendo á custa das desgraçadas, a quem para extorquir dinbeiro im- punha multas sob os pretextos mais indignos. Mas d'esta vez sabiu-se mal ; Colasa, tirando forças da sua bonradez, sustentou ser mulber honesta, allegando não conhecer outro homem (jue não fosse o seu marido; este allirmou também a honra da esposa, e, como o ribaldo a quizesse prender para a levar para Ma- con, Pedro Talon e seu irmão mataram-o alli mesmo.

O bailio de Macon instaurou processo contra os homicidas e contra Co- las^, causa do crime ; mas o processo evidenciou, que o indigno funccionario havia accusado injustamente Colasa (contra veriíaiem imponens quod ipsa cuin alio quam viro occubuerat) e que o ribaldo (se ijerens pro ribaldo et se dicens de ordine seu de estala tialiardoram seu bulfi)nH)it) passava vida escandalosa por tabernas e bordeis, abusando da ingenuidade das mulheres mais honestas, a quem exigia o imposto meretrício em nome do rei dos ribaldos.

Por isso obtiveram-se cartas de perdão para os processados, que nunca mais tornaram a ser ineommodados por causa da morte de Sagiac.

Mas n'aqueilas cartas de perdão que justificavam Colasa, não se dizia d'um modo cathegorico que o rei dos ribaldos de Macon não tivesse direito de co- brar cinco soldos de cada mulher convencida de iu]n[icv\o{superqualibel muliere tixorata adulterante, sibi compeiere et posse exigere quincjue sólidos el pro eisdem dictam talem viulierem de suo tripede pignorare.)

Pelo contrario, o rei de França parecia implicitamente reconhecer este vecligal, ou tributo da prostituição [Ik talique et alio viíi qacesta) que a ri- baldia de Macon lançava.

' CAPITULO IX

SUMMARIO

Estado da prostituição depois da ordenação de t'254.— Instituição da policia dos costumes.— Equipaiação das tabernas aos bordeis.— Orjíanisação das raullieres publicas por Luiz xi.— Os judeus.— Ordenações sumptuárias relativas ãs inulberes publicis.— Estatutos dos barbeiros.— Banbeiros de estufas.— Estatutos dos carniceiíos.— Morte de S. Luiz.— Filippe, o Cornyoso.— OrdenaçJo de 1272.— As agulhetas e cintos dourados.— Correr o guitledou —As Ires amantes de Kilippe, o Formoso.— \ torre de Nesle.— 1'ilippj e Gautier de Launay.— João Buridan.— O burro de Buridan.— Estado dos costumes depois das cruzadas.- í/jc et /toe.- Os templários.

uiz IX (Jemonstrou a sua candura e virtude, pretendendo sup- primir a proslitui(,'ão no reino de França. \ ordenaçãi) de 1254, em que era decretado o desterro das mulheres de vida, não foi nunca rigorosamente executada, portjue não podia sel-o. I Para se subtraliirem às severas prescripções da lei, aquellas à desgraçadas mulheres sO cm segredo exerciam a sua vergonhosa industria, acobertando-se com todos os disfarces, recorrendo a todos os ardis para não serem presas em flagrante.

Sem duvida, o numero das infelizes diminuiu, e os libertinos encontra- ram grandes obstáculos para satisfazerem os seus desejos sensuaes ; mas a prostituição não deixou de continuar a sua obra, logrando quasi sempre illu- dir a vigilância dos perseguidores ofBciacs. não existia, é verdade, em esta- belecimentos públicos, vigiada pelos regulamentos policiaes ; mas estava em toda a parte e existia, sob apparencias honestas e respeitáveis, no centro das ci- dades e no interior das casas particulares.

As cortezãs que teimavam em desobedecer á ordenação do rei, eram e deviam ser as mais viciosas, as mais corrompidas. A necessidade de dissimu- lar a sua depravação abrigava-as, por assim dizer, a preverterem-se mais, fa- zendo-se hypocritas e mentirosas: não podiam fugir a suspeitas, sem apparen- tar de honestas, vestindo e tendo os hábitos das mulheres virtuosas : frequenta- vam as egrejas e appareciam era publico trazendo um veu sobre o rosto e um rosário na mão. E algumas d'ellas, privadas do seu commercio, entraram em conimunidades religiosas, sob o pretexto de penitenciarem-se, mas que deu como resultado o peiorarem os costumes dos conventos.

Bem depi'essa se reconheceu que a prostituição legal tinha menos incon- venientes, do que a prostituição occulta e illicita; convenceram-se também de que não seria possível destruil-a e que obrigal-a a esconder-se, era dar-lhc no- vas forças, mais provocadoras ainda. Os libertinos de profissão sabiam sempre onde encontrar os meios de satisfazer os seus hábitos vícídsos ; conheciam os logares onde se escondiam as suas cúmplices, que impunemente procuravam

86

DA PROSTITUIÇÃO

sempre que queriam, e nem mesmo lhes era necessário distinguir entre mui- tas muiiíeres as que os satislizessem, e até muitas vezes fingiam enganar-sc e (Jirigiam-se a muliíeres honestas, que fugiam envergonhadas dos uitrages re- cebidos.

Os libertinos, ainda em começo da sua vida desregrada, enganavam-se ef- fecti vãmente com as mulheres encontradas sós e perseguiam-as com galanteios licenciosos.

«Então, e por este motivo, diz Delamare no seu Tratado da Policia, teve de mudar-se de procedimento sobre este ponto disciplinar. Resolveu-se, pois, que as mulheres de vida fossem toleradas, mas que também fossem designa- das ao publico. Marcaram-se-lhes ruas, casas de habitação, o vestuário que de- veriam usar e as horas de recolher.

Esta passagem do Tratado da Policia é muito notável, pois fixa data á instituição da policia dos costumes, data que não está estabelecida por testemunha alguma contemporânea, nem por qualquer ordenação real, nem municipal ; mas o douto Delamare tinha estudado os antigos monumentos da nossa jurisprudên- cia, os registros do parlamento, os do Chalelet, os do prebostado de Paris, e não teria asseverado um facto d'esta natureza, não tendo visto a prova, a qual, naturalmente, foi deduzida dos estatutos da corporação das mulheres alegres (folies;) estatutos que Sauval cita expressamente, e que foram redigidos na época em que cada profissão cuidadosamente recuperava os seus antigos privi- légios e os fazia registrar nos archivos do prebcste de 1'aris.

Temos pois a ordenação de I í")6 (e não de I2oi, como diz Delamare,) restabelecendo o exercício da prostituição legal; mas esta ordenação não trata, de modo algum, das ruas, nem dos logares designados para habitação de mu- lheres publicas, nem dos seus vestuários, nem das suas horas de recolher. To- davia, como nas ordenações anteriores, estes differentes detalhes de policia ti- nham com muita precaução sido regulados, é mui natural attribuir a S. Luiz ou antes a Estevão Boileau esta regulamentação muito similhante á dos ofiicios de Paris.

Estevão Boileau não pertenceu ao prebostado até 1258, mas gosava, muito antes, da estima do r-ei, que frequentemente reclamava os seus conse- lhos, e que, tendo-o escolhiilo para reconstituir o prebostado, ia algumas vezes sentar-se a seu lado, quando Boileau administrava justiça no Chatclet.

«Aquelle prudente preboste, diz Delamare, foi quem reuniu todos os commercianles e artistas em corporações ou communidades, sob o titulo de C(jnfrarias ou grémios, segundo o commeriio ou ai'te de cada um dos grupos; foi eile quem deu a estes commcrciantcs os primeiros estatutos para seu governo e regimen.»

Não seria muito natural o comprehender as mulheres publicas n'esta vasta organisação de otficios, em que o legislador quiz proteger os direitos de cada um, e claramente definir as profissões, segundo os seus usos tradicionacs?

Luiz IX, consentiu, pois, em modificar a sua ordenação de \2"}í e, accres- cenlando-liie algumas palavras (|ue não lhc-<illeraram muito o texto, dcu-lhe um sentido totalmente diverso : foi uma maneii-a indirecta de tolerar a pi^sliluição.

E' este o artigo que annulla a ordenação de li'.')'i-:

«.[tem: que todas as mullieres publicas e ribaldas communs sejam expul- sas d(! todas as nossas boas cidades e villas; especialnientc sejam expulsas das ruas das ditas boas cidades, para fiira dos muros e para longe de todos os lo- gares sagrados, como egrejas e cemiferios, c que (luem alugue casa nas ditas cidades e boas villas a mulheres communs, ou as receba em sua casa, pagará aos fiscaes da lei o aluguer d'um anno.»

Em virtude d'esla ordenação jiiiblicada em Paris, a prostituição, legal que havia desapparecido por espaço de dois annos, recomeçou regularmente sob a

HISTORIA 87

prolecção dos funccionarios roacs, c todas as ordenações an(criormcM)(o pii!)li- cadas a respeito da prostiluição, fimdarani-:-e na de S. Luiz que, se não iiavia creado, iiavia pelo menos reformado a policia dos costumes.

Os artigos que precedem, na ordenação de I 2o6, o que acabamos de re- produzir, não são conipletanientc estranl\os ao assumpto, pois qualificam na classe dos libertinos aos jogadores de dados e aos blasphcmos, eijuiparando as- sim o jogo e a blasphemia á prostituição.

Ò santo rei pr^diibc jiois aos senescaes, bailios e outros funcrionarios e serriçaeò- de qualquer calhegoria, o proferir qualquer palavra ollcnsiva a Deus, á Virgem ou aos santos. «E acautellem-sc, accresccnta, do jugo dos dados, dos bordeis e das tabernas.»

Em seguida probibe, em iodo o seu reino, o fabrico dos dados e delermina que qualquer bomem, encontrado a jogar os dados, seja tido como infaiiic e não possa testemunhar em juizo.

Estes artigos da lei provam que, n'aquelle reinado, as tabernas não ti- nham nicibor lama que os bordeis, e pjr isío se apreciará a espécie de ho- mens e mulheres, que se reuniam n'aquelles antros de libertinagem, onde não se entrava sem desbonra.

Era isto uma recordação da lei romana, que os jurisconsultos começavam a estudar, e que tinha em conta as tabernas onde se bebia e se comia e lambem onde se jogava c dormia. Comiudo pela mesma occasião em que uma ordenação do rei declarava infame áquelle que frequentasse estes immundos to- gares, o preboste de Paris publicava os estatutos dos taberneiros, nos quaes, to- davia, unicamente se oecupa da venda de vinho a pregão; mas como (jualquer podia ser taberneiro, comtanto que tivesse meios para pagar o imposto ao rei c á cidade, a corporação que por isso se com|)unba de toda a classe de gente, não podia aspirar á consideração da gente honrada.

Estes taberneiros eram unicamente obrigados a vender o vinho por me- dida legal, e podiam além d'isso fazer outras especulações dcsbonestas, abrindo as suas portas ás ribaldas e ribaldos, ([ue passavam alli os dias jogando os dados, blasphemando e commettendo as acções mais culposas. No curto espaço do tempo em que a prostituição foi obrigada a oceultar-se, as tabernas substituí- ram os bordeis e estes transformavam-se em tabernas, quando aquelles, por uma ordenação do mesmo rei que os havia mandado fechar antes de comprc- hender a sua utilidade, foram restabelecidos.

Delamare pretende que, durante a prohibição da prostituição legal, na nossa lingua as mulheres publicas começaram a ser qualificadas com nomes particulares e odiosos, designadores da ignominia do seu oílicio. E' de erèr que estes nomes tivessem sido expressamente inventados para inspirar mais horror e desprezo pelas mulheres que por ventura mereciam taes qualificativos. «Sem duvida julgou-se, diz, que fazendo-as assim conhecer, o pudor na- tural ao sexo coadjuvaria as leis, e que os próprios homens se envergonhariam de ser recebidos em logares e por pessoas tão infamadas.»

Estamos reduzidos a conjecturas a respeito da organisação das mulheres publicas, no reinado de Luiz ix ; mas é incontestável que esta organisação exis- tiu e que se perpetuou pelos reinados seguintes sem ser radicalmente modifi- cada e que são sempre as ordenações de S. Luiz as que os reis, seus successo- res, invocam para regulamentar a prostituição legal. Noutro capitulo oceu- par-nos-hemos das ruas bordelarias n'aquella época. Não encontramos nenhum texto histórico provando que as mulheres de vida fossem então marcadas ou com distinctivo infamante como os judeus, ou com um trajo de <'òr caracterís- tica. Todavia, motivos hi para erèr que Luiz ix, não tendo querido que os ju- deus se confundissem com os cbristãos, tivesse tomado as mesmas precauções com as prostitutas e as obrigasse a usar um distinctivo análogo.

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DA PROSTITUIÇÃO

Em 1269 os judeus, cuja pormanencia não era tnlcrarla em França senão em coniliçôes tão honorosas como humilhantes, foram ohrigados, soh pena de prisão e de multa arbitraria, a porem na sua túnica, adiante e atraz, «uma ro- dclla de feltro ou de panno amarello com um palmo de diâmetro e quatro de circumferencia» chamada em francez rnuelle. e cm ialim rota ou roíella. Mais tarde este si^Mal foi perdendo gradualmente a sua forma e as suas dimensões e tornou-sc triangular, sendo então chamado billelle ; quando foi supprimido, não era maior que um escudo; mas os judeus ricos verteram grossas som- mas no thcsouro de Fillippe, o Gordo, para se libertarem desta marca infa- mante que os pobres conservaram unicamente até ao tempo do rei João, em que a rouelle, metade roxa e metade branca e do tamanho d'um sello real, foi res- tabelecida. Não será presumível que as mulheres publicas fossem também obriga- das a usar uma marca similhante? Provaremos que esta marca foi usada em muitas províncias da França: com mais probabilidade, todavia, afTirmarenios que, por aquelle tempo, as ordenações sumptuárias prohibiam ás mulheres dis- solutas o uso de certos tecidos, adornos e jóias.

A primeira ordenação conhecida, em (|ue se trata d'um regulamento d'estc género, data do anno 1460 e encontra-se no antigo livro verde do Chatelet, que contém as actas do prebostado de Paris. Nesta ordenação, apenas sem du- vida a confirmação d'outra mais antiga, o prebostc de Paris prohibe «ás mu- lheres de vida, i|ac fazem peccado com o seu corpo, o terem a audácia de usar nos seus vestidos bordados, botões de prata, brancos ou dourados, péro- las, c capas forradas de pelle, sob pena de confisco.» F'-lhes ordenado que abandonem estes enfeites n'um prazo de oito dias, passado o qual, a policia do Chatelet, enconlrando-as em desobediência, poderá prendel-as, exceptuando nos togares consagrados ao serviço de Deus, e despojal-as dos ditos enfeites, exigindo cinco soldos por cada desobediência.

O prebosle do Paris, Estevão Boileau, confidente das virtuosas intenções de S. Luiz, sem duvida se encarregou de as executar e de reprimir todos os ex- cessos da prostituição na capital do reino. O seu Livro dos Ojficios, no qual particularmente se occupa da constituição industrial de cada corpo do estado, não nos apresenta, é verdade, passagem alguma cm que elle figure como refor- mador dos costumes; mas, como os estatutos das corporações de artes e oflicios se referem ájuella época, embora não tivessem sido confirmados pelos reis de França, senão em datas muito posteriores, em que a poli(!Ía dos costumes foi objecto de attenção do prebostc cie Paris que, n'esse tempo, deu a sua sanc- ção oliícial a estas leis de familia, que os reis mais tarde approvaram e reco- nheceram por cartas patentes, não é portanio imprudente o acreditar (|ue Este- vão Boileau na repressão dos excessos das prostitutas tivesse uma grande parte.

Nos estatutos dos barbeiros, confirmados em 1371, probibe-se aos mes- tres de olíicio o ter mulheres de vida em sua casa e favorecer o commercio infame das infelizes, sob pena de serem privados do seu oHicio, perdendo lam- bem todos os seus utensílios, taes como : cadeiras, bacias, navalhas, e mais coisas pertencentes á profissão, o que tudo seria vendido em proveito do rei do grémio.

Os bai'l)cii-os, ao mesmo tempo banheiros d'estufa, nem sempre respeita- vam a pnjhibição, e os lucros, que lhes dava a prostituição e a alcoviticc, inci- tava-os a arrostar com as penas pecuniárias que constantemente era preciso renovar por meio de novas ordenações.

Nos estatutos dos carniceiros de Paris, confirmados cm l:fcSl, probibe-se aos aprendizes do grémio o casarem com muiiíer (juc tivesse sido publica ou que ainda o fosse.

«y/em: se algum casar com mulher communi, dilTamada, sem licença do mestre, para senipre será privado da llrú Cuniireria, c não poderá cortar nem fazer cortar, nem por si nem por outrem, sem perder as carnes, ele.»

DA PROSTITUIÇÃO 89

Nem todos os esforços de S. Luiz e de seus ministros, para impor á pros- fifuieão um salutar Ireio, tiveram o êxito que se esperava ; pois que o piedoso ivi, até ao lim da sua vida, se arrependeu de ler deixado existir o vieio sob a protecção das leis e volveu ao seu primeiro projecto de eliminar completa- mente, nos seus eslados, os maus costumes. Quando se dispunha a embarcar para a segunda cruzada, em (|ue iiioi'reu, o horror, (|ue tinha á impureza, inspi- rou-lhe o desejo d'' executar esse grande projecto de relorma.

A de junho de I 2(59 escreveu clle d'Aigucs-Mortcs, a iMalheus, ab- bade de S. Denis e ao conde Simão de iNcsle :

«Também ordenámos (jue se destruíssem t'omplelamente as iKjlorias e manifestas prostituições {noloria el mani/esla proslihula) que maculam com a sua infâmia o nosso liei [)ovo e que tantas vicliinas arrastam pai"i a perdição; ordenámos que estes escândalos íossem pei'seguidos nos camp(is e nas cidades e desapparecessem completamente do nosso reino {lerrani noislram pleniut e.v- ptirgari) todos os homens libertinos e todos os malfeitores (llafjitiosis boiíiiiii- bas ac malefacloribm publicix.)»

Esta carta continha uma ordem positiva, que a morte do rei não pcrmil- (iu que se executasse. As mulheres dissolutas e .seu infame corlcjo continuaram exercendo o seu ollicio, confiadas na lettra das ordenações anteriores e não ti- veram consequências as intenções do virtuoso Luiz ix, que mais uma vez em balde teria querido depurar completamente os coslumes públicos. Transformar uma sociedade rudimentar n'uma sociedade virtuosa, era n'aquelle momento impossível.

Pôde todavia acredilar-se que legou a seus filhos o cuidado dintcntar essa reforma, que elle não teve tempo de executar, pois que a isso parece alu- dir nos Documentos ou conselhos que pela sua mão deixou escriptos a Inlippe, seu filho mais velho e suecessor.

«Nunca faças coisa desagradável a Deus, isto é, não commellas pcccado mortal,» recommendava-lbe no seu testamento. «Mantém sempre os bons costu- mes no teu reino e aniquila os maus. . .Foge das más companhias. . . Ama o próximo e odeia os maus. Que ninguém ouse, na tua presença, pronunciar pala- vra que attraia ou provoque peceado.»

Filippe, o Animoso, aeceitou os conselhos de seu glorioso pae.

No parlamento da Ascenção, em 1272, fez este rei uma ordenação prohibi- liva contra os blasfemos, contra os logares de prostituição e contra os jogos de dados que, na sua reprovação, S. Luiz equiparava. Nós apenas conhecemos a carta dirigida a todos os bailios «para que nos territórios da sua jurisdicção e nas terras dos barões façam respeitar a citada ordenação, prohibindo os jura- mentos falsos, os bordeis e os jogos de dados ; a pena de dinheiro, diz o rei, poderá ser trocada por pena corporal, conforme a qualidade da pessoa e a gra- vidade do delicto.»

Essa pena da ordenação, que esta carta annuncia, segundo nossa opinião prova que nunca foi cumprida e que foi esquecida antes mesmo de Filippe o Formoso, succeder a Filippe, o Animoso.

O completo extermínio dos bordeis era coisa impossível e perigosa e teve de manter-se a tolerância tacita, que até então estivera em vigor, unicamente oppondo obstaculosao seu ímmoderado desenvolvimento. De suppôr é, que, n'a- quelles tempos, os poderes públicos se limitaram a submetter a prostituição ás regras severas de uma policia vigilante, assegurando assim o respeito e conside- ração pelas mulheres honestas.

Temos, todavia, de referir ao reinado de Filippe, o Animoso, os usos des- criptos por Pasquier no seu livro Ikcherches de In, France, sem data lixa é verdade, mas que devem ler-se dado nas proximidades do reinado de S. Luiz. Foi verosimilmente n'aquella época que se proliibiu ás mulheres publicas o usa-

HisToRU DA Prostituição Tojio ii— Foi.oa I ;.

90 HISTORIA

rem cintos dourados e aprcsentarem-sc em publico sem unia agulheta no hom- 1)1-0. Esla agulliela era de difíerentes cores, conforme as cidades em que a pros- tituta finlia direito de exercício c permanência.

veremos, ao faliar dos uso.'^ e costumes da prostituição nas diíTercntcs cidades da França, que as mulheres publicas de Tolosa, cm vez d'aguUieta no hombro, traziam uma jarreteira ou liga no braço, sendo sempre de differente còr da do vestido, para que, distinguindo-se melhor, mais claramente indicasse a condiçcio da pessoa que a trazia.

«Os que succederam áquelle sábio rei (Luiz ix,) diz Pasquier no capitulo XXXV do seu livro viii, não consentiram por lei os bordeis, mas toleraram-os por conveniência, julgando que de dois males era prudente escolher o menor c que melhor era tolerar mulheres j)u!)iicas, do que dar occasião aos libertinos de perseguirem as mulheres casadas, que devem fazer da castidade a sua gloria. Orío é que quizeram que as ditas más mulheres, (|ue em logares públicos se abandonam a qualquer, não fossem reputadas infames, mas também trajas- sem de modo difierentc d'aquelle que vestiam as mulheres honestas; que era esta a razão porque antigamente em França não lhes era perraittido usar cintos dourados, e pelo mesmo motivo foi ordenado que usassem um distinctivo que as estremasse da gente honrada, e assim lhes era obrigatório trazerem uma agullieta no hombro.

A estes dois uzos, pois, refere Pasquier dois provérbios que se tinham po- pularisado desde o século xiii, e que não envelheceram tanto que deixem de empregar-se com frequência no nosso.

Dizia-sc então, e ainda hoje se diz, correr a agnlheta, e vale mais boa fama que cinto dourado. Com ctteito sob o reinado de Filippe, o Animoso e de Filippe, o Formoso, introduziu-se como moda em França o costume oriental dos cintos de couro dourado, ou de tecido de ouro, quí as ordenações sum- ptuárias prohibiam ás mulheres de condição humilde e por conseguinte ás ri- baldas f|ue, como as meretrizes de Rnma, não podiam usar ouro ou prata.

A prohibição d'um objecto de adorno devia parecer tyrannica ás mu- llicrcs do povo que, pela sua condição humilde, se viam comparadas ás mulhe- res publicas, e tiveram de vingar-se do edito, oppondo a sua boa fama ao luxo das damas da corte, que nem sempre tinham vida irreprehcnsivel.

Houve, todavia, frequentes infi'acções da ordenação sumptuária, pois mui- tas mulheres se enfeitaram com cintos dourados que não tinham direito de usar. O preboste de Paris ameaçava-as com multas c confiscações, mas ellas persistiam no seu empenho, afírontando as chufas a troco de parecerem damas de cinto dourado. .\s ribaldas não eram as menos ousadas em infringir a pra- gmática, cingindo o dourado adorno com o risco de prisão e açoites.

>'ão temos necessidade de refutar os eseriptorcs que aíTirmam, sem fun- damento, que o cinto doui'ado linha sido imposto como signal distinctivo das mulheres publicas, e que as mulheres honradas, que não ousavam confundir-se com cilas usando este adorno, se consolavam da sua falta fazendo valer as vanta- gens da sua boa reputação.

Emquanto á níjulheln, não figurou por muito tempo no hombro das ri- baldas de Paris ainda que, Pasquier tinha visto com os próprios olhos, nos fins do século xvi, este costume em Tolosa entre as pensionistas do Chatel- Vert. Correr a agulheta, segundo Pasquier, significava «prostituir a mulher o seu corpp, entregando-sc a qualquer.»

E' provável que se comprchendesse, ao principio, coíbo para se designar as mulheres que corriam as ruas com a agulhefa no homi)ro. Depois esla ex- pressão pittorcsca fransfurmou-sc, ignorando-se o facto (]ue a tinha originado: o povo corrompcu-a, sem o saber e sem mudar o seu sentido primitivo, quando se acostumou a dizer : Courir h gidlledou (vadiar.)

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DA i'nusiiTUif:Ãu - y|

iNão Icnlaromos mostrar u erro (l'alguiis philuluf^os que írcia cjucrído demonstrar que as ribaldas, correndo a aguliicía, se dirigiam sobretudo aos cal- ções das pessoas que alcançavam, cm atfenção a que estes calções eram atados e sustentados no seu logar por um laço ou agulhela. Estes philologos commet- teram um anachronismo na areheologia dos calções e onganaram-se pela con- fusão que fizeram das duas agullias.

Seja como 1'òr, sob os reinados dos successores de S. Luiz, a prostkuição por bem regulada que estivesse, tinha estendido tão imprudentemente o seu do- mínio e os costumes tinham-se relaxado tanto, que as ires noras de Filippe, oFonnosn, Margarida, rainha de Navarra, Joanna, condessa de Poitierse Branca, condessa de .Marclse, foram acusadas de adullerio ao mesmo tempo e encerra- das por ordem do rei na mesma prisão, no Chateau-Gaillard. O processo foi- Ihe instaurado- á poria fechada e nada transpirou, a não ser as vergonhosas li- cenciosidades que se lhes imputavam. Somente uma d'ellas, Joanna de Borgonha, mulher de Filippe, conde de Poiiiers, foi mudada para o caslello de Doiírdan, onde seu marido lhe foi dar a liberdade. Margarida, ainda que menos culpada que as irmãs, morreu estrangulada na prisão e Branca sahiu para vèr-se re- pudiada e ser conduzida ao convento de Maubiiisson.

A voz publica attribuia a estas três irmãs uma monstruosa cumplicidade de libertinagem e crimes : dizia-se que se haviam alojadij de propósito no palácio de Nesle, situado fora de Paris, na margem do Sena, logar occupado hoje pelo instituto de França, e que aitrahiam a esta bella residência, pertencente a Joanna, condessa de Poiiiers, os jovens estudantes de que se enamoravam, es- colhendo entre os (]ue concorriam ao Pré-aux-Clercs.

Estes estudantes, depois de satisfazerem a lubiicidade das Ires piin- cezas, eram envenenados ou mortos a punhaladas e lançados logo ao rio que sepultava as tristes victimas da torre de Nesle.

«Segundo esta tradição errónea, diz Roberto Gaguin no seu Coiapendiain da historia de França, a rainha Joanna de Navarra iinlia-se entregado a mui- tos estudantes (aliquot scolnslicorum concubitu usam) e para occuítar os seus ci'imes, lançava-os pela janellado seu quarto ao rio, depois de os mandar ma- tar. Um d'estes estudantes, João Buridan, pôde escapar casualmente a este 'perigo pelo que publicou este enigma: Reginam inter jictre nolite: timere bo- nuin est.»

Este enigma celebre, que pôde comprehender-se e explicar-se de mui- tas formas, é mui pouco digno do notável João Buridan, a quem a universi- de Paris contou honrosamente entre os seus professores de philosophia no sé- culo decimo quarto. Buridan que foi reitor da Universidade em 1320, (Vid. Bibl. de Valério André, pag. i7l) não poderia ter sido simples estudante, seis ou sete annos antes.

Emquanto ao enigma de que seria o auctor, cremos podel-o interpretar, dando-lhe o verdadeiro sentido, escrevendo-o d'esta forma: Rejjinam interfodere nolite; timere boniun est. Ponhamos em logar de interfícere, que nada quer di- zer n'este caso, interfodere, interjerire, interferre, ou qualquer outro verbo de significação erótica e traduziremos então com a possível honestidade : «Não cor- tejeis a rainha que é perigosa esta honra.»

A tradição relativa á lorre de Nesle, que existiu até ao fim do século de- cimo sétimo, estava tão popularisada em Paris, que Brantome faz d'ella men- ção nas Dames galantes.

«Esta rainha, diz, estava no palácio de Nesle, em Paris, espreitando os transeuntes, e mandava-os chamar, e approximarem-se d'ella, aquelles que mais lhe agradavam, de qualquer classe que fossem; c depois de obter d'elles o que desejava, mandava-os precipitar do alto da torre, á agua, afogando-os. Não quero dizer que isto seja verdadeiro, mas o vulgo, pelo menos a maioria de

'.)2 _ . HISTORIA

Paris, aírirnia-o: e não !ia nenluiin, que moslramlo-lhe a turre c pcrguiitan- ilo-liro, não o iliga cxponfancamente.»

.Xnh's lio Brantiiini', Villon tinha lembrarlo esta trágica liistoria, dizendo na sua lialuda ilas dumas:

Sfinhlabement ou eat la reine Qui iiimmanda que Buridan Fut jplé en unsar au Seine.

(S^mcll) inlinioiifo nnde esía a rainha, que mandou lançar ao Sena Bu- ridan, ilciilrn (l'iiMi saeo.)

Mas ,1 lenda iiislorica appareeia singularmente attenuada, e em Ingar de Ires princezas libertinas, disputando e iepartindo entre si as caricias dos bellos e robustos estudantes, que se renovavam todas as noites, nas narrações do vulgo ap|iarceia apenas uma rainha namorada de Ruridan. Violemos ainda que este Buridan tinha [lodido fazei' alliisão á sua aventura da torre de Nesle, inventando uma allegoria que se tornou proverbial e que se chamava, o burro de Buridan : tinha apresentado um burro faminto e morrendo de fome, entre dois cestos de aveia, sem se decidir por um ou por outro. Este burro, não será o próprio Buridan, entre duas ou trez princezas, igualmente bellas, igualmente desejosas de prazer? Além d'isso, se as mulheres e as princezas se mostravam tão sollicitas e afadigadas em correr atraz dos homens, era talvez, porque os homens pouco caso faziam das mulheres. Uma terrível libertinagem se linha iníiltiado em todas as clas.ses da sociedade desde as cruzadas, e o vicio con- tra naturam, que a expedição dos francezes :i Palestina tinha trazido e accli- malado em França, ameaçava ainda, apezar da cavallaria, infectar os costumes e corromper a população inteira.

Citamos n'outro logar uma passagem da llistoire nccUlenlale, de Santiago de VitiT, que íiiz um espantoso quadro da perversão dos seus contemporâneos. Outro poeta franccz da mesma época, (lauticr de Coincy, ainda que prior da abbailia de S. Mcdardo de Soissons, descreve a vida do claustro, com os ne- gros traços dos seus costumes vers^inhosns. no spu roíinoi- 'l- '*■>•'••' f.^i-n-iw.

ii.: f íe.jh.:.\ -. i CO II in i •<ein''le, 'juaidi iiu' cL u '• joijnenC eiiseiiiliii\ .)/(//»• Iiii- et liic clit).-ie e.-il perdue AVíiire en ext to.-tl esperdue. . .

(A grammalica hic a liic ajunla, mas a natureza maldiz simillianle ajun lamento. A morte perpetua engendra ai|uelle (|ue ama o género masculino mais que o feminino, c Deus o apaga do seu livro A natureza parcce-me que sorri quando hic c lioc se juntam e indigna-se ao ver juntos kic e liic.)

Este detestável vicio tinha-.se generalisado tanto, que a prostituição le- gal merecia ser implantada como um remédio, ou ao menos como um pallia- tivo de similhante torpeza. A própria existência da sociedade, parecia ameaçada, cjuando Eilip|)c, o lorninso, que não carecia de resolução e de energia, se pro- poz atalhar os progressos da sodomia, enchendo de terror os que davam o exein- ])lo d'csta criminosa aberração dos sentidos : tal foi a causa principal do processo dos 'i'cinplaiios. A detiila leitura das peças authenticas creste pr.icess), |)rova- nos que Filippc, o fonnono, não perseguiu iresta ordem religiosa e militar se

DA PROSTITUIÇÃO 93

não o sacrilégio e a libertinagem, levados ao ultimo grau de audácia e escân- dalo. Seja qtial (òr a opinião que se adopte sobi'e a regra dos Templários e a innoceneia primitiva da ordem (diz o illustre historiador Michelet, admirado dos importantes testemunhos quíí pela primeira vez publicava, e (]ne todos con- lirinam o nosso parecer) não é dilliril formar juizo acerca das desordens dos seus últimos tempos, desordens iinalogas ás das ordens religiosas.»

.\ publicação d'estes documentos originaes ()rova de forma irrecusável, que a ordem do Templo estava infe.stida totalmente pela depravação mais exe- cravel. Filippe, o Funnoso, de accordo com o papa Bonifácio viu, teve cora- gem de atacar o mal no seu f()co, e quiz ani(]uilal-o sob as minas da ordem do Templo (|ue o linlia propagado, acob>rlando-o sob o seu manto branco.

Não .sab-mos qual é a clironica, que imputa à vingança de uma mulher a accusação infamante, que se levantou contra os Templários etn 1307 e que logo accendeu as suas fogueií^as por t(jda a Europa. O interntgatorio que o Grão- .Mestre c duzentos e trinta e um cavalleiros ou irmãos soffreram em Paris na presença dos eommissarios pontifícios «foi feito lentamente, diz .Michelet, e com muito tacto e doçura,» por altos dignatarios ecclesiasticos, e apesar das negativas systematieas dos accusados, provou-se que a maior parte das accusa- çõcs relativas aos costumes deshonestos da ordem, eram fundadas e justas. A própria natureza do castigo applicado aos condemnados prova suflicientemente a espécie de crimes que a voz publica lhes altribuia, muito tempo antes que uma averiguação escrupulosa tivesse evidenciado a grande ignominia.

Os templários estavam universalmente desacreditados: tinliam-se tornado proverbiaes os seus principaes vicios, o seu orgulho, a sua avareza, a sua am- bição, a sua embriaguez e a sua maldade; ainda que se dizia vulgarmente, be- ber ou jurar, ou diverlir-se comn um templário: ainda que os poetas satyricos se compraziam em enumerar os vicios d'aquclles monges soldados, não se co- nheciam ainda as monstruosas infâmias que se praticavam no seio da ordem do Templo, que chegou a ser uma seita odiosa, dedicando-se prostituição mais ignóbil.

Em virtude das deposições das primeiras testemunhas que se apresenta- ram esponlancíimeiíle a accusar os Templários, fornuil.»u-se uma serie de per- guntas, prl;>s (piacs foraoi interrogados separadamente todos os accusados, : - II- i-.'-pi>las. mais m mcnis cv.isiviís, se pôde deduzir com toda a nu ecrniiina di i-cccpçà i liis irin.l is. o qui' era recebido e o que .1. .;.., ti ,j . > ir,i-s in ilu iin iile na b icra, no umbigo oi n i veiilri", no anus ou n;i évliTiui lade da espinha dorsal e ás vezes no membro viril, {aliquaiido in vinja cirili;) que o neophilo era ordinai'iainenle o siibmettido unicamente a esta cerimonia de beijos impuros, depois de renegar Jesus (".hristo e cuspir na cruz; que o seu padrinho lhe prohibia ter ciuninercio carnal com as mullieres, mas auctorisava-o a entregar-se com os seus companheiros aos mais horríveis excessos de obscenidade.

Um grande numero de Templários, fieis aos seus juramentos recíprocos, fizeram um orgulhoso protesto, contra o que chamavam ridículas calumnias; muitos, intimidados ou enganados, fizeram confissões detalhadas e os restantes contentaram-se em declarar que não tinham tomado parte em acto algum re- prehensivel, mas contavam as obscenidades da recepção, segundo os estatutos da ordem. De resto, estes estatutos não foram explicados por nenhum d'elles, nem sequer para justificar as suas extranhas e mysteriosas disposições.

Huguet de Baris contou que, durante a cerimonia da sua recepção, quando se achou apenas em camisa, o irmão encarregado de o receber, ajudou-oa ves- tir-se com a túnica e manto da ordem, e levantando-lh'os por deante e por de traz {frater /'. levaoit ipsí te.-ili nexles ante et retro) beijou-o precipitadamente na bocca, no umbigo e na parte posterior.

y4 HISTORIA

Mathieu do Tilley diz, pelo contrario, que o irmão que o íiniia recebi- do, depois de o ter feito renegar Jesus Cliristo e cuspir na cruz, lhe ordenou que o beijasse na carne nua, e descobi'iu as nádegas, onde o iieopiíito applicou os lábios (prcecepit quod oscularetur enin in carne nuda, et discoperuit ae circa fémur el ipse juiL osculalus eum in anca circa illuin.) Depois o irmão introdu- ctor acrescentou, levantando a túnica: E aqui na frente ? o que fez suppòr ao neophito que devia prestar-se a uma odiosa pratica (quod deberet eum oscu- lari ante circa femoralia;) mas não foi por deaníe a cerimonia.

João de Saint-Just, intimado a beijar no anus o irmão que o recebia, (prcecepit ei quod escularetur eum in ano) respondeu com indignayão, que nunca se submctteria a similhante vileza.

Muitos templários confessaram que depois da sua recepção tinham sido convidados e auctorisados a prostituir-se com seus irmãos de religião ; mas to- dos sustentaram que não tiniiam feito uso de tal auctorisação, acrescentando que julgavam tão rara a sodomia na ordem do Templo como nas outras ordens reli- giosas. ;

Eis aqui a deposição de Saint-Just:

«Deinde dixit ei quod poterat carnaliter commisceri eum fratribus ordi- nis et pati quod ip.ri commiscerentur cuni eo ; hoc tamen non jecit nec fuit re- qnisitus, nec scit, nec audivit quod fratres ordinis commiterent pecatuin prw- dictum.»

O depoimento de Rodoipho de Taverne é todavia mais explicito, pois qije, exigindo-lho o voto de castidade com respeito ás mulheres, o aconselharam a extinguir por outra forma o fogo natural dos seus alTectos sensuaes.

«Deinde dixi ei quod, ex quo cocerat castitatem, debebat abstinere á mu- lieribus, ne ordo infamareíur; veruntamen, secundum dieta puncta, si habc- ret calorem naiuralem, poterat refritjerare, et carnaliter commisceri eum fra- tribus ordinis, et ipsi eum eo ; hoc tamen non fecit, nec credit quod in ordine fieret.»

O depoimento de Gerard de Causse não foi menos circumstanciado, ainda que ofTerecia uma contradicção evidente. Assim, segundo elle, todo o cavalieiro do Templo c[ue se tornava culpado de sodomia {si essent conmcti de crimine so- domitico) era condemnado a prisão perpetua e os irmãos, temendo por esta causa a tentação do demónio, mantinham a luz accesa toda a noite nos seus dormi- tórios (et quod tenerent lúmen de nocte in loco in quo jacemií, ne hostis ini- micas darei eis occasionem delinquendi.) Todavia, quando (jei^ardo de Causse foi recebido na ordem, um dos irmãos assessores disse-lhe, que se não podesse resistir aos Ímpetos dos desejos carnaes, procederia melhor, para honra da ordem, se peccando com os seus companheiros do que approximaudo-se das mulheres. «Dixit eis quod si haberent calorem et motus carnales, polerant ad incicem carnaliter commisceri, si volebanl, quia melius erant quod hoc facerent inter se, ne ordo vituperaretur, quam si accederent ad mulieres.»

Este templário protestou, como os outros, que não tinha visto nem sa- bido nunca que este infame preceito fosse seguido por algum de seus compa- nheiros.

As consequências d'este processo foram terríveis: um gi\inde numero de templários pereceram nos supplicios. A Ordem do Templo abolida e anatiiemati- sada, não desappareceu completaroente e perpetuou-se a occultas com os mesmos costumes, se nos é licito acreditar algumas testemunhas que não teem todo o valor d'uma prova histórica.

Mas depois de ter lido c comparado as peças d'este processo memorável, que revela uma seita de impios e sochjinilas, cobertos com o habito religioso, entregando-se ante os altares a execráveis desvarios, vcmo-nos obrigados a procurar as causas da corrupção d'uma ordem, que se tinha feito respeitar por

DA PROSTITUIÇÃO 95

muito tempo pelos seus costumes regulares e pelas suas virturles. Estas causas cncontram-sc na prolongada permanência dos Templários no Oriente, onde o vicio contra a natureza era qiiasi endémico e onde o Icmor da lepra e outras affecções cutâneas ou orgânicas Scão inhcrcntes ao commercio sensual com as mulheres.

Os Templários, pois, para evitarem este contagio, mancharam o seu corpo c alma, acceitando a mais vergonhosa de Iodas as prostituições, que, como dissemos cm face de inconlcsíaveis provas, e do testemunhos autiienticos, exer- ciam sempre, emhora a occultas, praticando os mais execráveis excessos entre si, no insaciável desvairamenlo d'uina desenfreada sodomia.

CAPITULO X

SLWIMARIU

Ijò luijaiei da (iKi^tituK-Àu uii] l'aiij.— ijuadiu lia piustiluiviu liaiisieiise na idadu luedia.- A rua úl' haliièic. A ma de Fuon.— A rua de C^udeles.— O beco de Saiut Sevriu.— A rua do Hospital.— A lua de í^aiut Sipboiiei].— A rua de Cliavaterie. A rua de Sainl Hiluire.— O larjro Buiniau X rua de Neyer.— A jua de Iiuu-fu|ts.— A ruailt> 'Kcole.— A rua de Cocal.rix.— A me de Cliaroui.— A rua de Sainte-llruis.— A rua Gervese-Laureus.— A rua de Mai- mousct.— A rua Clievez.— O Valle damor.— A rua Saiut Uenis de la Gliatre.— A rua de Lavaodiõres.— \ prai;a des 1'eurceaui.— A rua [totliiív. -A ruíi d Arbre-i^cc— A rua de Mailre lluiv.— A rua de tíiaulii.iurc,utt.

l;Mu^ juiro poucos dados subi'C ;i historia dos locares mui afama- dos de Caris, o apenas podemos eslabelecer d uma forma positiva a sua siluaeào local cm certas épocas anteriores ao século xvt. Todavia, desde o século decimo terceiro os eiiconlra.mos indi- cados nas actas (in.slruinfiita) puMicas d^i prebostado, nos arclii- vos das treguezias e conventos, nos livros e nas contas das dille- renles juridieçõcs c ainda nas antigas poesias. Podemos, pois, eom a ajuda des- las auctoi'idades, descrever, para assim dizer, a (opographia da i.irostiluição pa- risiense na idade média.

Por fatalidade, ao fazermos este mappa das ruas de fama da ca|)ilal, \('mo-nos na impossibilidade de dar delallies particulares, pittorescos e cu- riosos, que viriam muito a propósito para distraliir o leitor, no meio d'uma dis- serta(,-ão arclicologica, monótona e árida. Fallam-nos absolutamente esses deta- lhes e particularidades, e se conhecemos as ruas (jue então tinham o triste des- liiio (|ue muitas teem conservado até nossos dias, não sabemos qual era o as- pecto exterior (festes logares de libertinagem, i[uaes os seus nomes e signaes, pelo menos na fnaior parte, (|ual o systema ordinário da sua impudica organi- sacào, qual, emlim, a sua forma inferior. Todo este capitulo pertence ao don)i- nio da imaginação, (jue procurará conitiido em Habelais e ainda em Regnicr as cores apropriadas á |tiiitura dos bordeis de nossos antepassados.

Mas ainda que não lenhamos senau noi;õcs muito vagas e imperfeitas so- l.ire os myslerios de similhante assumpto, julgamos útil e interessante fazer o inventario arelieologico d'estes albergues; que veremos irem-se afastando gra- dualmente do centro da cidade e que parecem ter sido feudos de Vénus e de seu tilho (,u|iido, a quem a idade média franceza não envolvia de reminiscên- cias mythologicas.

Naquelles tempos de privilégios e tradições, cada grémio possuía conm propriedade pi'opria certos (luarteirões e ruas ás (|uaes dava o seu nome : alli cs- iMvam os seus albergues, alli sónientc concentravam a sua induslria <• lommci- cio. A prostituição que se regia como IjmIos onlnK ollicios on indosdi.is, ti;'io se

UlSTMBlA D.K PriiSTITUIÇ.Io.

T11.MU a— l'liLH\ 1.1

98 HISTORIA

liiilia iMKlido limilar um único bairro, nem ofcupar unicamente algumas ruas. contíguas, porque estava no seu interesse e ainda na sua essência dividir as suas forças e ieval-as a todos os bairros d'uma vez, para por oslc modo estar em posição de estender as suas redes por toda a parte c fazer, por conseguinte, maior nuuiei-o de victimas.

,V politica que a regulava oppunba-se seuiprc a esta diífusão de liberti- nagem sobre lodos os pontos da cidade e trabalhou constantemente para res- tringir o impuro domínio que concedia ás mullieres communs.

Tal c a lucta que nos apresenta, por espaço de muitos séculos, a prosti- (uição que allernalivamenle faz frente á auclorídaOc do bispo de l'aris, á do prcbosle, á do parlamento e ainda á do rei. As suas usui-pações. obslinanies, au- dácias, resísiiam ás ordenações, aos decretos e ainda aos subordinados da auclo- ridade ; somente á vi\a força cedia o terreno (|ue liie agradava e que a tradição lhe attribuia : a ella volta sem cessar depois do ter sido expulsa ; não é escru- pulosa tambcni na escolha dos logares em que se fixa, pois faz Justiça a si mesma preferindo as ruas mais sombrias, mais estreitas, mais sujas, mais infectas, cos- tume que coiiser\a como se não ousasse sahir da sua guarida, cmno se o ar (|ue respiía a gente honrada fora ponco saudável jiara (dia. Do mesmo modo que os judeus, (jue não tinham direito de pór fora da judiaria e que se viam encerra- dos toda a noite como os lepro.sos nos seus lazaretos, as ribaldas e seu infame séquito não podiam ultrapassar os limites da sua residência, sob pena de se e\- jiorem ao açoite, á prisão ou á multa.

Mas logo que a sua existência legal foi regulada pelas pragmáticas de S. Luiz, não tivera necessidade de oceultar-sc para exercer a sua proíissão impu- dica, cora a condição de se conformar com as prescri()(;òes e estatutos da ribal- dcria.

O niais antigo documento, cm (|uc encontramos uma nomenclatura dos logares mal afamados de l'ai'is, é um poema ou monologo de versos compostos no século xiu por Guillot, que nos é conhecido pelo seu Dit áes Unes de Pa- ris:. Este poema f(ji publicado pela primeira vez em 1 7o4 pelo abbade I,c- beuf, (|ue linha descoberto em Dijon o manuseriplo e o depositou na biblio- ílicca do abbade Fleurv, cónego de yolre-Dame.

Desde então fem-se reimprimido nniitas vezes a (d)ra de (luilloí c serviu especialmente para fixar a topographia parisiense no século xni, pois que pódc dalar-se de 1270 este catalogo rimado em que o auetor falia de Úom Sequence chantre de Saint Merry, como de um contemporâneo, e este personagem vivia ainda em I 283.

Os críticos que citaram o J)i/ iks líue.s, a (jue (luillot deu a forma dum ilínerario, que C(mieçava na rua de Huclietle. no quarteirão do Iniversidade, não irpararam que o poeta, ou antes o rimador, accumulando nomes de ruas e becos que procurou rimar com a maior indiflerença do mundo, não le\e, ao (]ue pa- rece, outra preoccupação senão in\estigar e indicai- os logares consagrados á li- bertinagem. .>'ãn ipu^rcmos dizer que eslc bom Guiilol, que viu j)assar talvez o seu nome á posleridade com o alcunha de Snnhador, se occupasse da investi- gação dum objecto vergonhoso : comludo é notável que n'estas trezentas rimas nomenclativas das principaes digressões do poeta sejam relativas á prostituição : sobre este |)onto ao menos se afasia da aridez do seu catalogo libertino e acres- centa, com certa complacência, algumas imagens que não são de melhor gosto. Todas as vezes que (luillot encontra no seu caminho um daquelles an- tros, que a policia urbana rodeava de mysteriosa tolerância, queria parar alli ainda que fosse para marcar o logar e fazer notar a sua existência. Como designa mais de vinte ruas suspeitas nas Ires grandes divi.sõcs de Paris coni- prchendidas sob as denominações de Inirer-sidode. I.n Cile e os arrabaldes, de- \e-se suppór (|ui' foi chamado linillot. o sonhador, j)elas mulheres bordaleiras.

DA iMtnSTTTUIÇÃO 00

que mal llie ((ucriain por ler aponlailo bordeis tjiie exisilain iia sua imagi- nação.

O primeiro que aponta a partir do Petit-Pont, subindo ao bairro ou distrieto da Universidade, existia na rua de Platricre, que parece ser a que depois SC chamou rua Botloir :

L(t'main une damf Imidière

(Jiii maint clinpH ii fnit rir (fuille.

O abbade Lebeuf, a quem sem duvida o pudor aeoiíarda, evpiiea a palavra loudiére por cliapelleira, mas na antiga liuf^ua IVanecza lomlirre, sifínificando cobertor em sentido restricto, equivalia em sentido figurado a prostituta. Esta /o/í- diére que Guillot não qualificou assim ao acaso, podia muito bem no tempo livre que lhe deixava a sua vil profissão de ribalda, occupar-se em fazer cho- pe.ns de flniy.i- ou de rerditra que os confrades das corporações traziam nas fes- tas da padroeira, nas procissões e n'outras occasiôes soiemnes. .\ão estamos longe de acreditar que estes chapeis ou chapéus, cujo fabrico era uma industria muito importante em Paris, figuravam na cabeça das noivas, das esposas e dos namorados nas testas de família.

Ciuillol não se delem muito tempo na rua de Plntrinv, (|uat'S(|uer (|ue fossem os encantos da dama, e continua o seu caminho pela rua l'aon, que ellc rhnma Puon.

Je descendi loul xellejiient Droil u la rue des Cordeles: - Dante ia: le descord d'elles

Xi' eoudroie ucoir niuítemenl.

Esta rua dex Cordeles c agora a de Cordeliers, que deve o seu nome ao convento dos lírands-forileliers que a revolução destruiu.

E' provável que (luillul transformasse Cordeliers em CordeUs pelas neces- sidades da rima e também por allusão aos assumptos de coração que n'esta nui se tratavam. As damas, que aqui viviam, não eram muito laceis ou amáveis, pois o poeta não receia cousa alguma tanto como o ter com dias disputas {des- cord.) isto prova (]ue em toilo o tempo as mulheres publicas foram sempre mui- tas promplas em armar rixas e muito arrebatadas nos seus Ímpetos de cólera.

Para encontrar outras mulhes da mesma espécie, Guillot vè-se obrigado a ir até á rua de Prélres-Saint-Sexrin, que elle chama o beco de Saint-Sevriu onde.

Mainte meschinete,

S'y louent souvent et menu.

Es font batre le trmi velu

Des fesseriaux, que nus ne die.

Nãointentamostirardesoboveu da antiga linguagem o escandaloso officio das mesquinetes, a quem Ciuillot põe em seena com muita indulgência; mas se- guil-o-hemos á rua de rOspital, que se chamou depois de Saint-Jean de Le- iran, em memoria dos hospitaleiros de .feru.salem que tinham alli uma casa. Guillot cae no meio d'uma desordem de mulheres, que .se injuriavam com pala- vras e obras, ao ar livre, apesar da visinhança dos padres hospiíalciros : o texto está aqui menos obscuro que corrompido :

fne ffintne i d'espiUil Lne auire femme folcnieni De sa parole nionlt cilnienl

1 00 HISTORIA

Guillot fugiu sem esperar o íim da contenda e tanto temia vèr-se met- lido n'ella que não fez mais que atravessar a rua de Salnt-S>iphnrien. Iiojc de Cholfls, onde conhecia uma chamada Maria, que devia ser ao mi^snid tcni|)n c^^pcia (cxplicailor.i de lioroscoposi e louilinr ou chapeiieira.

/.o nie (Ic Cliaceterie (aclualmeiíte fharlierr Trnnbay. N'allay pa$ chez.Mari'^ F.n la ruc Saint-Syphorien Ou maignent li logiptien.

Passando peia rua de Saint-Hiiaire, que conserva o nome, recorda que uma (hiinii accessivcl n'ella vive, mas não tem tempo de se demorar em casa desta dama de boa vontade, a que chama Ijietfdas, alcunha cm que seria fá- cil descobrir um sentido obsceno.

Eil-o, pois, no pateo lininpati(ltruniau) onde se fizeram muitos hruUnn.r (fogueiras,) diz ; mas por bruliatix não entendia cerfamente os heiegcs quealli se queimaram. A cerca Itninean estava no centro das escolas e os estudantes que no tempo de Rahelais iam alli satisfazer as suas necessidades, iam anlerior- mente ao mesmo logar diverfir-sc com as suas meschines. Guillot diz pois com razão, que se fez grande fogueira n'aquelle logar sombrio e infecto. .Nós dizemos no mesmo sentido roíir le haloi (queimar a vassoura.) 1'erto havia a rua de .Yo//p?-.í (Nogueiras) onde havia tantas mulheres de vida como si> cn- conlram hoje em lodo o districlo :

Et puis hl rue de Noijer.

Ou plusieurs daiiieít, por louler

Fonl, souvent bntler léus carliers.

tiuiildl na rua de Boa-Puits (Bom l'o(,>o) que devia o seu nome a uma allusão luimoiislica, não se esquece de registrar os altos feitos d'uma parteira, mulher d'um carpinteiro, n(davel pelo numero de homens (|uc mandou da sua (•aniii para o cemitério, segundo uma inlcrpreta(;ào arriscada destes dois ver- sos :

/,(/ mninl la femme u un ehnpuis Qni de maint lioiunie à fail ses ylais.

Leduchal ou Lenglel Dufresnoy, explicando o segundo verso, viu sem du- vida nVlle uma figura erótica, perturbado com o dohre dos sinos que locam devagar para fazer o sigual de morte.

(iuillol que conhece todos os hons lotjares, como se dizia na linguagem liimiliar do ultimo século, um suspiro ao atravessar a rua de l'Ecole (Hs- lolal onde vive Madame Nicolasa. Nesta rua, que veio a ser a que boje é cha- mada de Fonarre, por causa da palha que n'eHa estava espalhada para amorte- cer o riiido do transito, acliavam-se comprcliendidas as grandes esiolas da Ini- versidade, e ao mesmo tempo mais d'uma e.scola de prostituição. l'or isto diz (Iuillol com malícia :

Eu celle ruc, se lue semble Vcnt-oul í'l faiií cl fcurrc cuscuiblc.

(iuillol, quf nada tem a aprender irestas escolas, passa pela rua de Ne» ■lalien-le-Paurre (S. .Julião o pobre) e invoca este santo, ijhc nns ijunrdti ihs iimiis liiijares. S. Julião era o proleclor dos \iaianli>s, a quem livrava dos maus passos e eneoniros. (Iuillol entra são o salvo na Cite c ;i primeira rua cm (|U(" senie os ;iHimcIÍ\os dn coiicupiscciícia é na ih' ('.oc;ilri\.

DA PROSTITUIÇÃO 101

Ou, l'on boil soucent de bons vins Uont maiiU linmx xonrctit se varie.

N'af|iieIIa época iiãu havia uma labei'na (lue não fosse um lofíar do pros- liluição. (luillot menciona comtudo uma boa taberna na rua de Ciiaroni que se, estendia desde a entrada do claustro í\otre-Uame até ás ruas das Trois Canet- /í.v. Estas tabernas e suas dependências eram frequentadas provavelmente pelos cantores da cathedral. Guillot passa de larg), sem duvida, e esperamos pela sua honra que também passe pelo beco de Saini-Croix (Santa (Iruz,) onde se (juebram frequentemente as pernas e pela rua Ciervais-ÍMiumi (|ue elle chama lierrese f.aarens.

Ou maintes dames ignorent

Y mesnent, 'juis de levr guiterne.

iNão cremos que os habitantes d'esta rua mal afamada allrahissem inno- cenles ao som da guitarra (i/niienie ;) pelo contrario, attribuimos a esta pala- vra ijuiterne um sentido figurado que o pudor nos impede profundar.

Não nos demoraremos n'um extranho encontro que (luillot leve na i na de \[armov.<<ei (bonifrale.) onde alguém llie fez uma proposta infame.

Touoay hotnme qui iu'eute fel Une musecume belourde.

Na rua de ChaKet-Saint-Landrij , Guillot encontra mulheres libertinas, cuja profissão define dum modo pouco comprehensivel :

Femnies qui vont tout le checez Maignet en In me de Chevez.

Ciuillot peneira ainda mais no dominio hereditário da prostituição e vc logo em pleno liluiiijnii, que se chamava o Vai d'amour: (Valle do amor)

En bout de la rue descent De Glateigny ou honne gent Maignent et dames au cors gent Qui aux hommes, si eom inoy seinblenl Volontiers charnelmente assemblent.

Por acaso escapa ao perigo da tentação e mette-se na rua de Haiti-Moa- liii (Moinho alto) que se chamava rua de Saint-Denis de la Charire, da egreja (jue n'ella havia e que foi demolida na época da revolução. O mau logar que Guillot mostra n'esta rua devia ser um dos mais consideráveis de Paris e as mulheres que encerrava não sahiam nunca d'aquella lúbrica communidade.

Ou plusieur dames em grant chartre Oiti mainl v. . .en leur c. . -tenu, Comment qui Hz y soient contenu.

Esta e outras muitas passagens provam que o Dit des rues podia ler-se itililulado mais opportunamente Dit de Bordeaux de Paris (Nome dos bordeis de Paris.) Guillot concluiu com os dois da Cite, e, atravessando o Grand-Potd ou o l'on(-au-Chan(je, continuou o seu itinerário pornographico.

iSa rua de Lavadières, «onde ha muitas lavandeiras,» dá-nos a entender que estas muljieres não se limitavam unicamente a lavar a roupa no rio. Em lodos os tempos as lavandeiras tiveram a ínesma reputação, e a rainha, que ellas elegiam

102 HISTORIA

todos os annos, tinha poderes análogos aos do rei dos ribaldos, mas s(í nos seus Estados e sobre suas súbditas. Tiuillot não se deixou prender por estas alegres ribaldas e proseguiu no seu eaniinbo atravez das ruas sujas do i)airro das Halles (Mercado.) Para refrescar, enfra um momento n'unia taberna da prat;a (nt.T Ponrceau.T, (dos Porcos,) que foi depois a praça nn.r rhats (dos gatos) c ainda depois a cova «íí.í- c/ííVjí.s' (dos cães,) porque se amontoavam alli todas as iminun- dicies ; é a encru/.illiada que formam as ruas de Sniiil-Hnnon', íierliarijevrs: e l.intjerie.

(luilíot, (|ue se queixa aqui de não ser feliz, diz comtudo que encon- trou no seu caminho, ou antes n'aqnelle que procurava a pista d'alguma bella rihalda, uma com quem bebeu um copo de vinho.

]S'a rua de Kf/hisif não se adniii'ou de encontrar um homem que l';dia\a com uma ribalda sem se envergonliar dos transeuntes.

I'n home Irouvai en ribitiidez : lui la riir de DfUihy Enlré : iie fus pas etliÍ!^i.

Guillot não se cncommodava por tão pouco. Chegou á rua de rArhre-Sfc (Arvore Secca) e não se esqueceu (rum beco sem sabida que ainda existe i'om o nome de Coiir-llntui) e (|ue tinha em outro tempo o malsoanle de Vnul-de- líaron. }^"e.sta denominação local não se deve attribuir á palavra liacon o sen- tido de toucinho, nem procurar n'clla uma imagem mais ou menos approxi- mada d'este sentido primitivo : era um pateo de rihalderia com o seu poço, em volta do qual se reuniam as mulheres do ollicio. (luillof não tem escrúpulo em dizer :

Trocai et piiiti Col de bacon Ou l'on a trafairié iiiaini r. . .

Sol)re este verso podia fazer-se uma curiosa dissertação philosophica (|uc recommendamos ú sombra de Lednchate e que permiltiria restabelecera verda- deira accepção do antigo verbo í/yí/c/ívíV/ ou Irafarcer. (|uc o complemento do Dii'- cionario da Academia fi-anceza, muito mal traduz por irdcfrser (atravessar. I

Guillot .segue a margem do rio e chega á entrada d'unia grande rua (|uc conduz á porta do Louvre : a visinhança do rio caracteriza bastante as dainas que encontra o que vendiam o seu género por um preço muito elevado para a sua bolsa.

Dames i a gentes et bonnes ;

De leiírs danres sont Irovp (7uV/ií's riclie.-^.

Não perde tempo em regatear o que não pôde comprar, e dirige-se á rua de Saint-lIono)r (S. Honorato). Depois d"uma rua de Mailrc-llnn', cuja situação não é possível determinar, embora fos.se iminediata á das Poulies (Polidas) teve sem duvida de alegrar-se com a amabilidade de certas damas que o comprimentaram:

l.a rue trotirai-je maialre lliirê l.e: liii Keant daniex polie.i.

Fazendo do maestro llnré um personagem vivo em logar do nome de uma i'ua, era necessário accusal-o d'um ollicio odioso que servia as damas poli- das de- que parece rodeado, (luillot nada observa relativo á prostituição nas duas ruas da '1'nuindcrii' (Bambochata ) onde não deixa de inosirar-nos o nnl;ncl /'o/V) l/o \iiiiir.

DA PROSTITUIÇÃO 103

Une (Jaiiie ri sur mu seil Qui inoult se pnrloit iiubleiíienl : Je la saluai xiinpleiíiPiil, EUc a moy par Sun Loif.

Os cosluincs (l'osta dama não dilToriani dos das suas simillianles a (jurm \ (Miios, nas incsinas ruas, exercer o mesmo ollieio que em outro tempo ; es|)eiar (• espreitar a sua presa ao limiar das portas, á entrada das sombrias avenidas, rlianiando ou convidando os transeuntes, (luillol (jue jura por S. Luiz ao res- ponder a esta excitação libidinosa, teria feito bem em lembrar á ribalda as pra- ,i;matieas do santo rei. Ouando esteve na rua de Saint-Martin, ouviu cantar o olticio em Nossa Senbora de Saiiil-Marlin des Chainp.s e armou-se de conti- nência para terminar, sem obstáculo, a sua via.ucm em procura fie lo^'ares im- puros. Alra\cssou rapidamente a rua de lieaubonrij que lhe ollereccu com que satisíazer todos os f;eneros de libertinagem.

Alai droitenient en Uiaii bniirc. Ne chassoie chièvre ne bouc.

Da rua de Limes (Esluías) avenlurou-se á de Uiujarière, que não po- dia ser outra senão a de Manliii!\ um dos feudos mais antigos da prostituição.

La ou leva inainle plaslricre l>'airhal mise en triii:rc pour coir Vlu^ieurx (jcns pour Icur cie arnir.

\qucllas [icssoas que punham grades de arame para olhar para a rua eram sem du\ida os hospedes onlinaiios da rua d Vunlsnr. i'm (juc havia tan- tos antros cnmo casas, tantas muliíeres e homens diss(dutos como habitantes. As ruas immedialas resentiam-se desta m'i visinhança. Ciuiliot contenta-se em enumerar a rua de (Juincainiioi.T, a de Aul>nj-le-lloucher c a Cõnrecrie de que

0 pudor do século xv fez Co:roierip e que agora está transformada na rua de l'iii<]-Diannmix (Cinco diamantes^ allusão á sua impudica origem, (luillot receia que lhe succeda alguma desgraça ao appro\imar-se da rua de Trousse-

1 inlie, que tirou o seu nome infame dos costumes mais infames ainda dos .seus habitantes.

/.(/ rue Aniaunj de Rousl

Encontre Trousse rache chiei.

Que Dieu garde qu'il ne nous nieschiel.

iiuillot estava quasi no termo das suas peregrinações, mas estava tão can- çado qm; teve do sentar-se na rua d"Arcis para repousar alguns instantes, po- n-m ivcomeçou logo no seu caminhar e desprezou sem duvida enumerar certas ruas especialmente destinadas á prostituição. Assim, ao passar pela rua do Ijtilile (In ('li)i\irc, (juc outra não pôde ser senão a de Cloilre Sainl iíerrij, surpreheií- de-se de nVIla não encontrar mulheres bordaleiras, como n"outra época l)a- via visto e aflirma que esta rua é agora honesta (honestoble'), mas quando passa de Sainl Mn-ji para [killeliof, onde encontrou muita infâmia, essa tal rua de Beil- lehoe, cujo nome era apenas um feio epitheto (jue mais tarde se transformou cm Urise-miche, não lhe remiiiiscencia alguma de libertinagem e afasta-se d'ella sem a ter qualificado como merecia. Logo adiante repara no Marais e deita olha- res para a rua do Plalre.

Ou mainles duines leur cinpluslre .í'niainl cumpagnon ont fail ballre, Ce me semble pour eux esballre.

lOi HISTORIA

fiuillol ó inc\gij(a\cl em encontrar periphrascs, mai.s livres (|iic singelas, caraclerisando os logares que procura. Sn encruzilhada Giiilhri, cujo iioiiie equivale ao que mais tarde lhe foi dado, Jea» de l.'Epine, e que o douto Aul- naye não teria deixado de evidenciar com toda a obscenidade que este nome tem, Guillot não sabe a quem dar fé:

/,/ Míi dii ho! 1'uAitre haril

.liilgaaios (|ue acreditou em duas prostituías, das quaes cada uma o quiz levar para seu lado: mas, resistindo, desembocou na rua de Gentkn, Jiqjc Co- <luiUes. onde vivia um bom escudeiro, «lue ixirvenfura lhe inspirou uni culposo pensamento.

C.onlinuou sem arriscar-se a entrar na rua da lísciderie, que era o beco sem sabida Sainl-raron. e que não tinha entre os seus habitantes um único homem honrado.

Passou ra|)idamenle pela rua 1'luinírun ou dos Mauiais-Gan^ons perto de Sa iai-Jea a-de-Grè res- .

Oii muinle duine en charlre out

Fenu mninl r. pour se norier {nourir\.

K a segunda vez que Guillot nos apresenta em reclusão as desprezadas prostitutas, (llaro é (jue a sua reclusão não era voluntária e que exclusiva- mente dependia dos regulamentos da policia. Na rua do Roi-dc-SicHr, lem- brou-se (luillol d'uma tal chamada Sedile, que vivia na rua fleneaut-Lefccre, "ude vendia <pijsaiiles c babas, diz a linguagem ligurada a (jue elle rccorn- para exprin)ir os mysterios da impudicia.

Não sem precaui;ào entra depois na rua futeimn^xe, cujo nome muito significativo não permitte duvidas sobre seu destino. Esta rua destinada á pros- lilui(,ào, que o. povo linha baptisado, conservou sempre tradicionalmente este nome obsceno, embora se tivesse intentado modilicai-o com o de fetit-Mmc e lr<ical-o pelo de Cbir.hf-ferche, que ainda tem no seu letreiro. \ virtude de Guillot havia escapado a muitos perigos quando entrou na rua de Tijruii. onde foi visitar .Madame Lucie.

Y eiil rui dana la iixúnun de Lucie Qui maint en la rue Tijron : Oc.< dainert hiiiniie!< voux dironl.

.>ão julgamos como o abbadc Lebeuf, que se trate a(|ui dos cânticos reli- giosos (|ue podiam elevar-se de um convento de mulheres penitentes. A cam dr Lacta tem todas as apparencias d'um logar de prostituição, e os hyninos que nella se entoavam dirigiam-se evidentemente a Vénus. Tal é a abbadia galante que insistimos tíxistir n'csta rua, onde os archeologos imaginaram collocar um idilicio pertencente á abbadia de Tyron. (iuiilol, no fini da sua excursão, olha as cousas com socego, e na rua Percee, uma das cinco ((ne tinham então este nome, indicando um antigo beco sem sabida transformado em rua. rejiousa c refresca :

I nc fciiime i:i deslrccic Pour soi pignicr, qui me donitu De bun vin .

Esla mulher (|uc se penteia ou se arranja, servindo vinho a Guillot, não pcjdc ser senão uma ribalda. .Mas Guillot é incansável e vae logo da rua de

l'iiiilie.\ -Saial-finil ;\ de l-naroiDiiiTf.

Ou lun triture hieii, jiur deiiierx Pour «on ror.s nnlaeier.

DA PROSTITUIÇÃO 105

Não nos diz se ollc fez uso da receita que aos leitores. Depois, na rua Commanderesses (Commendadoras,) que actualmente é a de Cutelkrie (Cutela- ria,) di/, como para si :

Ou il ã mainlcs trnchere.ies ('querclleusesj

Qui ont tiuiint Iwmiiie prís aii hrai , f( lu pipie.)

A tarefa de (lUillot está por fim eoncluida: recolheu a lama de todas as ruas de Paris, orgullia-se com o seu Dit rimado em h^iivor (relias, dedicando sem sombra de escrúpulo esta ohra cheia de impurezas «ao doce Senhor do firmamentcr c á sua dulcíssima mãe: {au doux Seiíjnienr dn firmament et á sa très-douce chiera mère.)»

Apesar d'esla dedicatória que níío cohoneslava com as licenciosas rimas de Guillot, ouiro poeta anonymo, que viveu no fim do século decimo-quarlo, teve a ideia de apropriar-se do Dit (ks Uues, tirando-lhe o cunho de leviandade e renovando o csljlo do poema, no qual não se conheciam as ruas que mu- daram de nome. Este poeta foi Henrique deraud, que publicou este novo Dit copiado d'um manuscripto dos Archivos Nacionaes, como continuação, da Taille (contribuição) imposta aos liabilantes de Paris em 1292 na sua obra intitulada Daris no reinado de Filippe o Delia.

Não receiamos que a este propósito o registro da Taille não contenha al- gum dado particular que se refira á prostituição, o que prova que as mulheres publicas não estavam comprehendidas, pelo menos sob esta designação, nas Tail- les extraordinárias, e\ccptuando-as de pagar um direito proporcional á sua mesma indignidade.

O poeta (|ue quiz dar nova forma ao poema de Guillot e (jue não fez mais que reproduzil-o, abrcviando-o, consagroii-sc especialmente a tirar-lhe o seu caracter obsceno e sórdido, e este anonymo, em logar de apiesenlar Guil- lot andando de rua em rua á descoberta de maus togares, teve de inventar uma fabula bastante divertida. Põc-se elle mesmo cm scena; ha pouco chegado a l'aiis onde nunea tinha estado e vem a esta capital procurar por loilas as ruas a sua mulher, a quem tinha perdido perto de Notre-Dauie. Nada pôde dislra- hil-o d'estas pes(|uizas ijue são iiifructuosas, c nenhuma das mulheres que en- contra a cada passo pode fazel-o esquecer a sua: d'esta forma percorre UIO ruas, que tem o cuidado de enumerar e exclama depois:

Tanl iay quise, que j'en sw-is las. Or la quiere qui la voudrà: Jamais mon corps ne la querra.

N'esla nomenclatura de ruas, não falia senão de mulheres que se alu- gavam na rua de Larandieres e na rua das Commanderesses : mas cita por ou- tro lado as ruas mais mal afamadas, sem fazer allusão á natureza da sua fama.

Desde o Dit des Dnes de Guillot, até á primeira ordenação do preboste de Paris que lixa os togares cm que a prostituição podia excrcer-se sem se ex- por a penalidade alguma, ha um intervallo de mais de um século. Esta orde- nação que Delamare insere, data de 18 de setembro de 1307. se pressente a iiillueneia moralisadora do reinado de Carlos v. N'esta ordenação mandou o |»rebostc, que todas as mulheres de vida dissoluta fossem habitar os bordeis c lugares públicos que lhes estavam destinados, a saber: «no Ahreuimir Ma- con, na Uucherie, na rua de rroidniantel, perto da cerca Dnineau, no Glati- ípiij, na Cour-HoberI, em Baillehoé, em Tijron, na rua de Chapou, no Champ- IJeury.

São, pois, os mesmos logares pouco mais ou menos, que Guillot tinha designado no Dii des Rucs, mas o seu numero é muito mais rcstricto e deve

UlSTOHlA DA Phostituição Tomo u— Folha U.

1 06 HISTORIA

deduzir-so qiic ;i |'()|icia prebosfal se csfoirava em diminuir os deploráveis ef- eitos (la iii)er(inaíícni, disputando-liie o ierreno cm que estava auclorisada a prodiizir-se.

O prebostc de l'aris além d'isso proliihe a todas as pessoas honradas o alu- garem casas ás mulheres puhlicas em qualquer outro logar, soh pena de per- da do aluguer estipulado; tamhcm prohihe a cslas mulheres comprar casas tora dos togares marcados para o excrcicio da sua vil profissão, soh pena de perder as mesmas casas. As riiialdas que se encontravam exercendo em outros toga- res além dos designados podiam ser presas e levadas para a prisão do Cliatelet por denuncia dos visinhos. Com a prova do facto, expulsavam-sc da capital, exigindo-iiies previamente sobre os seus bens oito soldos a cada uma para pa- gar aos agentes da auctoridade. Segundo as apparencias, a medida da policia era executada com todo o rigor.

Os asylos de tolerância que o pndjosle de Paris concedia á pros'ituiç.'ão, eram grupos de casas c não ruas inteiras. Depois vemos abrirem-se do mesmo modo as chamadas Cortes dos Milagres, que ei'am habitadas pelos bobos, men- digos, ladrões c outros malfeitores, como as (]òrtes das ribaldas reuniam as mu- lheres publicas e os homens dissolutos, seus cúmplices ignóbeis.

O Bebedouro Macon (Ahreui-nir) era. no século xiv, um grupo de edifícios que rodeavam um beco immundo que descia até ao rio perto da ponte de S. Miguel, ao voltar da rua de Huchette. Este Bebedouro, que os títulos de 1272 chamam Aqmitorium Matisronensis e Adaquatoriuiii comitis Matisconensis li- rava o seu nome da visinhança do palácio dos condes de Macon, situado na rua ([ue lem ainda este nome. Este mau logar que chegou aos nossos dias ti- nha então uma írisle celebridade e os libei-linos faziam-lhe honra com impuras analogias do .seu nome, que obstinavam cm pronunciar d'um modo deshones- lo. Por causa d'este grosseiro equivoco mudou-se o nome de Bebedouro Maco- ncnse em Bebedouro do Cagnart, isto por servir de albergue nocturno aos coí/- nardifvs, salteadoirs de rio, ou talvez antes porque os habitantes ribeirinhos creavam alli patos. Seja como lor, havia n'este logar muitos cagnardiers, va- gabundos perigosos ijue assim se chamavam, segundo Pasquier, pelo seu gé- nero de vida, pois á similhan^a dos patos tinham a sua casa na agua. Borcl, ao contrario, pretende que cagnardier se deriva de canis, significando gente que vive como os cães.

E' difíicil designar o logar que o prehoste chama Boucíicrie (Açougue) sem outra designação; mas, ainda que muitos houvesse estabelecidos nos dif- ferentes dislrictos da capital, presumimos que se tratava da Grande Doucherie do matadouro de Paris, que existia desde o século decimo em frente do Cha- telet e que tinha ido augmenlando progressivamente até formar uma espécie de |)ovoação no meio da cidade. Matavam-se e dividiam-se alli as rezes cuja carne se distribuía logo por toda Paris.

Comprehcnde-se que o prebostado auclorisassc a existência dos ribaldos no meio de uma povoação de ribaldos, como os carniceiros e demais gente d'esta laia. Em lodos os tempos e em todos os paizes houve um estigma de infâmia sobre estas profissões que respiram o cheiro de sangue ; no emtanto exigiam-se certas condições di" moi-alidadc n'aipi('llas que cortavam a carne nas mezas da Grande líoucherie.

A cerca Bruneau, cuja reputação (luillot linha descfipto, comprchendia ainda no .século decimo-(|uinto um grande espaço de hortas e jardins, posto que as ruas de Sa.ini-.lean-de-líeauvais e de Saint-llilaire, livesseui sido abertas 110 terreno d'esta cerca. Os bordeis (ui antros das mulheres de \'ida linliam-se es|)alliado ha muito tempo pidas immediações da (Jrrra Itrunel e i|ueni salie mesmo SC mesiuo denti'o d'(dla, ili'nlni tios recinlus e cnlre o vinhedo.

A rua de Froidinaulrí, (|uc r.e chamou allcrnalivamente i'reincntci, Fres-

DA PROSTITUIÇÃO 107

mantel, Fremanteau, clc, cm\iú\m Frirjidum mantelluin (Manto frio) c foi de- pois a rua de Froinanlel, com desjirczo da sua etymologia, tloveu com certeza o seu nome a uma cómica ailusãn ás praLímalicas de S. Luiz, que tiravam o manto e pelliea ás mulheres cduviclas de prostituição: as que haliitavam n"esta rua de prostitutas, eram naturalmente despojadas do seu manto : d'aqui a al- cunha de damas de Froidmantel.

O feudo de Glalií/ny, que pertencia em 1241 a Roberto c a Guilherme de filatigny, deu o seu nome a um lahyrintho de ruas estreitas e sujas que a prostituição oceuj)ava por privilegio e de que tinha feito o famoso Vai d'Amoitr (valle de amor.) O destino impudico de Glatigny existiu até ao século xvii cm que as ruas adjacentes foram reedificadas e melhor occupadas.

>'em Sauval, nem os seus continuadores nos dizem em que quarteirão es- tava situada a Cnurl Roberto de Paris e o nome sob que é designada, não nos ajudaria também a encontrar a sua situação na TaiUr de i27i se nos tirasse da incerteza. Esta Corte, que havia de ser muito peijuena, pois o registro da Taille conta n'ella treze pessoas de importância, communicava com a rua de Baillehoé, que lhe servia de corollario e que reunia a mesma classe de ha- bitantes. Henri([ue Geraud pri>tende que a rua de Renard-Saini-ilerr]] atra- vessou o solar da Corte Roberto de l'aris.

A rua de Cliapon, que não mudou de nome, fomou-o no setfulo xiii de um de seus habitantes, chamado Roberto lleynon ou ikgon, ou Capon, que suppomos ter sido rei dos Truões, porque hegon ou begnon parece derivado de &fí/!/í?ms, que quer dizer originariamente uíendigo, em inglez hegging : cajion que vem de capus, falcão, era synonymo de begnon, não cremos (jue por anii-phrasc se ti- vesse dado o nome chapem a uma rua especialmente destinada á prostituição.

Finalmente a rua de Champs-Fleurg, que sob o nome da rua da Biblio- theca, conservou sempre as suas tradições bordelarias, abriu-se depois d'alguns annos no logar occupado pelo parcjue do Louvrc.

Na Taille de 1292 esta rua S() figura com quatro contribuintes.

Esta rua de Cluunps-Flenrg compunha-sc apenas d'alguinas casilas no meio duma pequena cerca e assombreadas por arvores, onde a prostituição nada tinha a receiar dos olhares curiosos dos transeuntes que alli iam procurar os que sabiam alli estar.

CAPITULO XI

SUMMARIO

A taberna do «Cano douiailo».— A rua Glatigny.— A rua do Fumifr.— A rua do Inferno.— A rua Fcrry.— A casa Cocatrix.— As alioliadas da C.alandiia i: do Mercado Palu.— A illia Oourdaine. -O Forrain ou a MoUo anx Papelards. —Os arrabaldes.— O Campo (i.iillanl.- As (|uatro tabernas Meritórias.— I) Cbatuau de Paille.— A taberna da Mula.— Os lupanares da Universidade.— O campo d'Albiac.— A rua Craciosa.— Os campos do Matadonro.-A rua d'Aronde.— A rua de Git le-Cucur. -A rua de Sac-à-lic— A rua [iordit.— As Cortes dos Milagres, etc, etc.

oNTiNUEMos a nossa viagem pornographica pelo vellio Paris, de- (lifando-nos a enumerar as ruas que não foram meneii)iiadas no |)oema de (luiilot nem nas ordenações do Chateiel. O aniigo nome d'estas ruas c quasi sempre o distinelivo do seu earaeter particular. .4pesar do uso geral que afastava do eenlro das cidades as mu- lheres de vida, para as levar extramuros, e, por assim di- zer, para tora da vidacommum, a prostituição tinlia-se mantido ao principio em muitas ruas da cidade, em volta de Saint-Denis-de-la-Chatre, qiie existia quando se formou a primeira confraria da Magdalena, como o dissemos pelas tradições recolhidas por Dubreul e Sauval, de onde se que o Vai d'amo%ir e Glatigny foram invadidos de preferencia pelos rihaldos que alli iam commeller o peccado, segundo os termos dos antigos oííicios.

Pode pois allirmar-se que a maior parte dos detestáveis becos que de- sappareceram ha poucos annos com os trabalhos executados atravez da antiga cidade luleciana formavam na idade média o theatro permanente da prostituição, ainda que os regulamentos da policia municipal procurassem eircumscrevel-a ao seu asylo de (llatigny. As ruas de Marmousets, Cocatrix, Enfer, Pcrpignan e outras que formavam um labyrintho de casas, agrupadas umas sobre outras, privadas de luz e de ar, convinham maravilhosamente aos costumes bordclarios. Sabemos, por exemplo, que a rua de Pcrpignan se chamava rua Charoiii, por causa de uma taberna do Carro dourado {De carro aurico.) (luiilot fallou d'esta taberna :

En Charoui-bonne Uiverne achiez ovri

Qualquer taberna tornava-se, em caso necessário, n'um logar de prostitui- ção. Esta taberna de Charoui devia ter um jardim plantado de ro.seiras, pois que a ma, tomou successivamente os nomes significativos de Champrousiers, de Chatiiji[leury e de Cliainiirosij. Não seria acaso este campo de rosas, tuna testemunha do prazer que se ia buscar a esta taberna, que foi substituída por um jogo de bola, e de que a rua t(jmou o seu ultimo nome de 1'anpiijnoin ou Perpiynan.

O nome de ]'al d'amour applicava-sc mais particularmente á entrada muito estreita da rua de Glatigny que descia até ao rio e conduzia ao porlo

I 10 HISTORIA

Saint Landnj. No cacs crcsfe porto, ondo vinham parar alguns barcos carrega- dos de lenha c de Irigo, corria uma linlia de casas, presas umas ás outras e sustendo-se junlo da agua que lhe banliava os seus carcomidos alicerces : estas casas pertenciam de direito á mais abjecta prostituição, que cm toda a parte ve- mos refugiar-se nas margens dos rios. A rua húmida e escura f|ue aquellas ca- sas formavam por deti'az, chamava-se l'ort-Saint-Landrtj-sur-l'eau ou rua do Fumier.

A familia dos Ursinos não recciou alli edificar um palácio, onde viveu um dos seus mais illustres membros, Juvenal, preboste dos commerciantes, e chan- celler de França, no reinado de Carlos vi.

A presença d'estc grande personagem n'uma rua tão mal afamada serviu para fazel-a mudar de nome: e com elleito se chamou desde então rua dos Ur- sinos; mas a extremidade inferior (cia inferior,) chamou-sc rua do Enjer (do inferno,) allusão á vida que tinham os seus habitantes.

arriscamos uma conjectura, talvez temerária, sobre a rua de Marmou- sels, que Guillot parece apresentar-nos como frequentada pelos ribaldos, ainda mais do ([ue pelas ribaldas, todavia n'uma lista das ruas de Paris que o abbade Lebeuf julga feita em I ioO, se registra esta rua sob o nome de Marnwuzí-- te^. Sabemos também que um grande edifício, chamado Casa de Mannousets {Domas Marmosetaram) para a qual se subia por escadas exteriores, existiu n'ella até ao século xvi. Este edifício seria um bordel?

Perto d'elle, havia um logar d'esta classe, chamado a Còrie de Fe>-rtj, que deu o seu nome á rua de Trois-Canettes.

Ha ainda a citar um covil análogo na casa de Cocatrix (<lomus Coqua- tricis,) contigua á de Marmouseís, e que tirava o nome da casa em que estava situado. Esta rua que os archeologos de Paris pretendem ter tido o nome de um dos seus habitantes no século xui, podia ollerecer também, por causa do seu vil nome, campo pai'a investigações curiosas da ctymologia. Cocalre na nossa antiga lingua significa um castrado; cocatri.r é em sentido restricto um verme que se gera nos poços e cisternas, e em sentido figurado uma mulher publica. Na Verba erótica da edição de Rabelais, o erudito Aulnaye define a palavra Cocatrix, por prostituta. Em apoio d'esta definição e para não deixar duvida alguma sobre as antigas franquias da rua Cocatrix os auctorcs da grande His- toria de Paris, Felibien e Lobineau tiraram dos registros do parian.ienio as pri- meiras linhas de um decreto que começa assim :

«Na tcrça-feira 15 de junho de l;JG7, entre Joanna, a 1'eliiere, appcllan- te, de uma parte e o mestre João d'Aliy e os restantes habitantes da rua de Marmousets, de outra. . . A appellanle disse que vive na rua de Cocatrix, onde tem tido bordel ha muito tem|)o, sem memoria do contrario.» etc.

Esta passagem bem prova, que as ruas em que havia l)iii-dci eram con- sideradas estranhas ao regimen e ao direito conimum.

Em opposição dos logares mal afamados, de Glatigny, encontravam-sc, todavia, no centro da cidade outros asylos de prostituição, conhecidos somente pelos mais vis vagabundos; eram estes o Caignnrd e os antros da Calandria e do .Mercado fala. Ainda (jue o as|)eclo iTcstes logares seja actualmente Ião triste como repugnante, íormar-se-hia dillicilmente uma ideia do cjue eram no século XIII e xiv, quando serviam de asylo nocturno á mais immunda e as(|ue- rosa libertinagem. A rua da Calandria, nome tirado de uma avesinha palra- dora, caracterisava as reuniões de mulheres, (|ue havia n'ella desde pela ma- nliã até á noite, e que nada mais faziam do ([uc pairar eilis|nilar, quando não faziam outra cousa |ieior. Cheia de lama e inunundicies csla rua (icscmbo- eava no Mcicado l*alii, cuio nome indica um taníjue ou lagoa (palas,) mas (|ue não era mais (|ue uma cloaca, um tnyu panais, como si; dizia n'aquelle tempo.

1>A PROSTITUIÇÃO 1 I I

Mas tinld islo craiii msas, cuniiiarado cdtn os becos que a(|ui eonduiain e '|ue nãu fdiain let-hados até ao século xvii. Tin (l'es(es becos, que no tempo lie Sauval existia aiiiiia em |iarle, entre as primeiras casas do Petil-Ponl, (i'()nte pequena) e algumas outras do .t/rirc/ití-AVíí/" (Mercado novo) cbaniava-se o Caiijnaril por causa, diz Sauval (tit. i pag. 174,) de servir Je passagem aos liomens c mulheres de vida, que passavam a noite nas casas do Pelit-Pont em (lebodiada eiin\iveiicia.

Eiiilim a prosliluicão erraiile linba ainda no rentro da cidade ilois campos (lc leira noclurna; um sob o arvoredo de uma pequena ilha, que, chamada a ilha (h\ Gnnrílaine no século decimo quinto e a ilha Aiu-Vache.s (das Vaccas) Ires séculos antes, formou depois a porta occidental da ilha da Cilé; c o outro n'um outeiro que se elevava na evtiemidade oriental e se chamou sempre o Terrein (Terreno.) Esta pequena proeminência que os escombros provenientes da re- construccão de .\ossa Senhora linliain levantado no leito do rio, de que o cabido da calitedral se tinlia apropriado sem d"elle tirar partido, era todas as noi- |i's o ponio de reunião dos libertinos e das suas despresiveis instigadoras, sendo por isso chamado desde I2.')8, a .Uitl/e au.r l'apelardí> (Motto Papeíar- (lorum.)

Uma cita(,'ão lirada de um serm;"io de Roberto de Sorbon, sobre a consciên- cia, nos íará comprebender o sentido equivoco em que o povo empregava aqui a palavi-a Papelanls, para significar os vergonhosos perseguidores das mulhe- res perdidas: !itw prnpter hoc dicuntur pnpelardi qnia frecueníant confessio- nea. E' para notar que o sermão de Roberto de Sorbon, de onde Ducange tirou esta singular cilacão, é quasi contemporâneo do baptismo do iogar cm que os papelard>> encontravam coui quem conversar.

Emquanto á ilha de Uourdaine, que tinha sido a ilha aux Vaches, segundo antigos títulos que os archeologos não intentaram explicar, o seu nome tem analogias ou similhanças com (joudlne, gourijandiíif e gordane que eram syno- iiymos de ()i'0stiluta. Esta ilha, onde foram queimados os templários em tempo de Eilippe, o Furitioso, parece ter sido um Iogar de supplicio consagrado par- ticularmente ao castigo dos crimes obscenos, pois que se queria afastar do povo os culpados que se mancharam com esta espécie de crimes, e que podia ser um objecto de escândalo nos seus últimos momentos.

No quarteirão ou districto da 1'nivcrsiilade, que comprchendia tantas ruas desertas, tantas cercas de campos desbal)it:idas, tantos bordeis e tabernas, a prosliluiç,-ão linha uma grande quauntidade d'- asylos que os agentes da aucto- ridade não ousavam violar, e onde allluia a mocidade estudiosa. A descripção, que faz da vida dos arrabaldes uma ordenat-ão de Henri(|ue ii, em 1348, pôde applicar-se ao estado d'estes mesmos legares, dois ou três séculos antes.

«Muitas casas dos ditos arrabaldes são apenas guaridas de gente mal- vada, tabernas, jogo c bordeis, e a ruina de um grande numero de jovens, que attraliidos pela ociosidade, consomem e perdem alli |irofusamcnte a sua juven- tude.»

Fácil é imaginar as necessidades de libertinagem que dominavam aíjuclla povoação universitai'ia, composta de robustos jovens, pervertidos na sua maioria. As ordenações de S. Luiz, s(3 auctorisavam dois asylos de ribaldas, o Abreuvoir-Mucon e Froidinanlel, perlo da cerca liruneau, na Universidade; mas Guiiioí indica-nos seis ou sete ruas, onde se exercia claramente a pros- tituição. Os escriptores do mesmo tempo, e Santiago de \ itry principalmente, dizem-nos que cada casa do quarteirão das Escolas linha pelo menos um bordel.

Alain de llle, o Ihalor niiirersal, dizia dos estudantes do seu tempo : que eram mais alfeiçoados a contemplar as bellezas das mulheres, que as de Cicero. E Santiago de Vitry, apresenta os llamengos, como os mais corrompidos.

112 HISTORIA

«São pródigos, diz, amam o luxo, os prazeres da meza c a libertinagem, fendo uns costumes cm extremo relaxados.»

Era, pois, necessária uma grande quantidade de mulheres fáceis para satisfazer as paixões d'esta mocidade indisciplinada que ia em magotes tanto para os bordeis como para as aulas. Rabeiais, no seu Pankujrud, referi ndo- nos as proezas de Panuríje, diz-nos que a policia municipal não tiniia ainda acção no século decimo sexto, sobre as franíjuias da Universidade, e (juc a som- bra de um estudante, |iunlia em fuga os agentes da vigilância.

D'aqui resulta que as mulheres dissolutas se encontravam sol) a protec- ção dos estudantes que as tinham fora do alcance dos regulamentos do t"dia- lelct. Além das ruas Platrirre, Cordeliers, Bnn-Pait.s, Maijers, Prrlres-Saiiit- Seoerin, em que o auctor Dif des- Pnes <le l'aris, confessa ler encontrado mui- tas ribaldas (mninle ineschinele) admiramos que não tivesse ainda encontrado mais no Champ d'.llbiac. O Clianip liaill.ard era uma praça, ou antes um campo, ladeado pelos muros que fechavam o recinto Filippe Augusto, que se estendia desde a porta Saint-Victor até á de Sainl-Marcel; a rua aberta n'estc terreno, no século decitno terceiro, chamava-se rua dcs Murs (dos muros) por causa da su.i situação; pouco depois, chamava-se d'Arras, tomando o nome de um collegio que em i;J32 alli se fundou; mas o povo que lhe deu o qualifi- cativo Champ-Gaillard, para assim exprimir o seu destino nocturno, não subs- tituiu este nome que ao mesmo tempo era justificado pela existência d'uma ri- balderia frequentada principalmente por estudantes.

Este logar, tinha ainda no decimo sexto século a celebridade sutlicicnte, para que Uabelais, que d'elle não falia unicamente de ouvido, o cilassi" com mais outros três para caracterisar as desordens promovidas pelos estudantes de Paris. No capitulo vi do livro ii é onde Lemosin, que mal escrevia o francez, narra os feitos dos seus collegas.

nCerlaines diecules, nous inoisons le.s bipnnaire.s de Chainp-llaiUard, de Malsan, de cid-de-sac de líourlioii, de Huelea et en cestes ecslase veneireique incidcnm nos verelres es penetissimes recesses de pudendes de ces merefricules aviicahilissimes.y>

A obscena linguagem do estuJantc que, estropiando o latim, julgava es- crever clássico, é felizmente bastante intelligivcl para se produzir como um monumento de grammafica erótica da rniversidade.

No mesmo capitulo de Rabeiais também se trata de quatro tabernas que deviam ter tão fama como os bordeis, pois de muitas ordenações do pre- bostado consta que a maior parte das tabernas eram servidas por mulheres publicas ou pelos seus rufiões ou corretores.

«Depois, diz o estudante de Pantagruel, iamos ás tabernas meritórias de Pomme de Pin, de Caslcl, da Madeleinc e da Mule.»

Aqui nos appareccm as laberiue meritória;, dos historiadores romanos, es- pecialmente de Suetonio, o que nos prova que a palavra merilrix deriva do verbo mereri c do substantivo meriíitin. Não cmprebenderenios por meio de uma dissertação archeologica o lixar a situação d'a(iuellas tabernas merilorins, e limitar-nos-hemos a fazer observar (|uc os seus nomes parecem concordar com os das ruas onde sem duvida estavam situadas; assim a rua Madeleinc e a de Pomme tornaram-se depois no decimo quarto século nas ruas de la Li- corne c na de Trais Canettes, conservando as suas tabernas com o nome de Madeleine e Pumme-de-Pin; a rua do Chatel ou fhaleaii compuiiha-se d'uma |)arte da rua Ferroneric terminando na de Arlire-scr, c uma casa chamada Chatenii-Felu, ou (Jhateaa-de-pnilíe durou ainda por muito tempo entre a cgreja de Sainl-ÍMndry c O rio. Não era este um sitio bem escolhido para estabelecer uma taberna e o mais?

Em (]uanfo á taberna Mnle, o seu nome tira-o da rua do Pa.fdr-la-Diule,

riA i'iii.srirtn;ui I lli

aiitif^u iKiiiic que prevaleceu solirc o (l( //'"- /i''///<í/í' (|ur llic i|ui/:('f;iiii [iòi(|u;iii(|ii se abriu a praea Real.

>'ão receiainos porlanlo o coinpreheiulcr entre ds lo<;ares mal afamados de l'aris estas quatro famosas tabernas, fre(|ueiiteniente mencionadas pelos jjoetas e historiadores do secubi dezeseis.

Esta digressão a respeito das tabernas, distaniiou-niis um pnuco dos lupa- nares dá universidade, de que vamos continuar a fallar sem todavia lera pre- tensão de todos conhecermos. A rua llrariosa, ao principio idiamada Alhiac, foi aberta n'um terreno chamado Cha)n}i dWlbiar e que (lesde tempos immemo- riaes era dedicado á prostituição : as habitavões que o vicio alli occupára por direito hereditário, como veremos logo, foram destruídos em lo^io. Os ety- mologistas encontraram nas contas de Paris o appcilido úo ema familia llbinc e d'uma outra (irario-sii (|ue dão como padrinhos (Kcsta rua Ião mal habitada em todos os tempos: mas, arriscando uma hyixitbesc mais vcrosimil, prelc- rimos reconhecer no appellido Alhiac uma allusão aos Albigenses {Albiaci c Alliige)i.ii.<t) que eram hereges não S(í em religião, como lambem em amor, se- gundo a opinião popular que confunilia sob a denominação de l/Aú/^.s/s e (/'!/- liKir a todos os liiierfÍH(js cheios de vícios e maculados poi' impurezas.

O Clifiiiij) irMhiiir devia pois ser o campo de leira d"estas impurezas e a rua (|ue se abriu n"esíe logar h\] cbamatla (Irdciusa. ou por ironia ou por an- tinomia.

Outros campos havia cm (pie as ribaldás tinham os seus bordeis (bouii- cles (Ui pechr) como o Chainji de la Houcherie. perto da rua Miiiirai.s Garro 1 1 s : II ('limnii l'eiir, junio da rua Bolloir: o Cbamp de f lllueiie, ele. A palavra ChíiDiii designou ordinariameíile um silio em que se comprava c vendia. Tra- tando das ruas c travessas habitadas pela prostituição não devemos csquci-er a Aronde ou Ilirondelle immcdiata ao Abrenroir ][arnn que Rabclais, pouco dado a clvmologias obscenas, chama Maicrm.

Esta rua de VWrundelle, escura e inununda, (jiie se cncoiilra por de traz das casas do cães S. Miguel, tinha tirado o nome da tabolela d"uma ca.sa de pro.slituição. IVrto (ralli, seria lacil descobrir-se equivoco muito signiticativo no nome da rua (lii-le-Cwiu-, que altcrnatlvamenle, por corrupção maliciosa ou invídunlaria, se chamou \"dlequeu.r, r,HÍIle(iuenr, liHles-Dueur. llui-le- conte, etc., etc.

A pequena distancia d"esta rua havia também a rua fafée, a que so es- crupulosos chamavam rua Parée d'Andouilles. As ruas immcdiafas, cuja in- duslria nos c recordada pelos seus antigos nomes, estiveram igualmente infes- tadas de mulheres de vida; a rua Sac-á-I.ic, alcunha que se dava a estas mulheres, veio a ser de Zacarias; a rua E(>eroii. chamava-se (lainjai {Gnuf- ijinj, prazer alegre) e assim inculcava o género de divci-fimcnto que alli se en- contrava.

Finalmente, n'este dédalo de travessas e becos, (|ue tinham substituído as vinhas de Laas ou Liaas, onde a prostituição errante passeava os seus amo- res : entie a rua líurepoi.r e /(/ Ponpée é onde mis pielciulfmõs localisar o lu- panar do bccco sem sabida de Bourbon, que os c(jmmcnt;ulores de Rabelais collocam perlo do Louvre. Numa palavra, o districto da Universidade era mais abundante em logares de ))rostituição que os mais districtos de Paris, ou pelo menos, n'elle havia muito mais prostitutas; e isto não é necessário provai-o, se se considerarem os costumes licenciosos dos estudantes que não sabiam dos limites dos seus domínios, ipic n"elles tinham prazeres de sobra para que os fossem buscar a outra parte.

Mas os eruditos, que teem escripío sobre as ruas de Paris, dedicaram-se a descobrir-lhes os seus antigos nomes e velhas tradições pornographicas sem ler em conia (pie esses nomes das ruas, adtpiiridos na sua grande parle em vir-

HisToau DA Prostituição. Tomo u— Folha IJ.

1 I i- IIIMIIKIA

IiuIl' de ooi-orrciR'ias popiilaces, linliaiii |)assa(l() a liiiineiis, e nàn im-.iiii us lio- inciis que (la\'am <t nome ás ruas. Assim quando querem esludar a oiifiem cly- molo^iea da rua Bordet, que parte da ronie (Je San1(i-lh'iioteni, e sobe alé á rua Moulfelunl, no mesmo sitio em que era a porta Bordelle que lhe deu o nome, dizem que um tal l'edro de Bordeiles (Wo/y/sÍíí) viveu n'esta rua no século duodécimo e que lhe legou um nome que não podia ter uma interprefafão li- cenciosa.

«£' um erro |)opular, di/.ern os auctores do Dicllounaire hisloriqae de la tille de Paris, julgar que em virtude da similhan(,'a do nome, esta rua, n'oulro tempo, tivesse sido consagrada á prosliluiçào.»'

Todavia, certo c, que Pedro Bordeiles assim foi designado nas actas, por- (jue possuía uma casa chamada Bordeiles, Bourdelle e Bordel, por causa do seu primitivo uso e dns numerosos bordeis (|uc Paris continha. A rua Bourdelle, (|ue conduzia á porta do mesmo nome, nada fez para desmentir este nome des- honroso, mais confirmado ainda pela visinhança de um Cliamp-Gaillard, que se Iransfíjrmou em Cheniin-Gaillard, quando se abriu uma nova rua, agora clia- rnada Clopin, nome moderno, em que ainda .se reflecte a tradição dos maus costumes de Iodas estas ruas próximas dos muros e das portas da cidade.

nos resta (iesere\er a situação |)ornograpiii(a de ceilos centros de ri- baldeha chamados Còrles duf: Milagres, poi-que os misei-aveis que alli se reu- niam e aparentavam as mais lastimo.sas enfermidades para excitar a commiseração publica, sabiam d"esfes antros. Coxos, mancos, cegos, leprosos, cobertos áv. chagas e á noite voltavam sãos, alegres r. di.spostos para as orgias e libertina- gem.

Estas Vorie.s dm; Milaijre.s eram ])ovoadas por ladrões, mendigos, vaga- bundos, ratoneiros e ereaturas abjectas, que de mulheres so tinham o nom<' que infamavam. O mais antigo d'cstes covis de infâmia era a Cirande. Truande- rie, ([uc colonisou todos os districtos de Paris, em que a policia do prebosle lhe consentiu abrir delegações. As duas grandes snccursaes da Traanderie fo- ram as do Teiiiple on das ÁHinnnes na rua Fraiirs-lioitríjeoif; e a Curte, dos Mi- lagres por exeellcncia junto de FiU.es-Dieii, entre as ruas Sniiil-Denis e Mon- torgaeil.

Além d'estas havia mais de \ inte cortes da mesma espécie, onde se levava a mesma vida iorpe; mas b;'.slará citar a Coar de la .lussienne na rua Mont- ata!re, ao lado oratório das prostitutas, dedicado a Santa Maria Egypciaea; a Cnar Gentiens na rua de Coquille::; a Coar Urissel na rua MirtHkrie ; a Cour de Haiiera na rua Bordei ; a Cour de Sainte Cataline e a Coar dn rui François na rua Poacena ; a Cour de Bacon na rua l'Arhre-Sec, ete., etc.

Sauval, fallando dos perigosos habitantes da rua Francs-Bourgeois, diz: «a todas as horas a rua e as casas eram theaíro de prostituição c de crimes,» mas S«uva! ainda faz um quadro mais hi>rrendo da principal Corte dos Mila- gres, que elle poude vèr em todo o seu esplendor, ([uando servia de refugio a tudo quanto havia de criminoso e infame em Paris. Alli, á sombra da impuni- dade, .chegava a prostituição ao ultimo grau do vicio.

Esta Córie dos Milagres tinha lido noutros tempos uma extensão consi- derável, mas, pouco a pouco, se viu apertada eiitre a rua de Montorgaeil, o convento das Fiííes-Dieu e a rua Saial-Saaveur, coinpondo-se então unii'amrnle d'uma praça irregular (> d'um beceo sem sabida, sujo e ma! cheiroso.

«Para alli ir, diz Sauval, extravia-sc qualquer frequentemente nas tra- vessas asipierosas, peslilentes ; para entrar é preciso descer um comprido de- clive tortuoso c desigual. Vi uma ea.sa ostentando velhice e porcaria: não li- niia quatro toezas em (piadrailo e todavia alli \i\ ia uma multidão di' eieafiças, iilhos legítimos, natnraes e espúrios.»

Sauval, que Ião curãosos dados sobi^e os liabilanies (Pesias Ciirieí^ de Mi-

A corte doi mila

grcs

[>A nidSIIILK.ÃO I li)

Uiijrrs iTcollicii, ii;h) mis di/, iiir('li/nR'iilc iiiida .'icci<a i!;is iiiirlh'jii's ijiic o /•(•>- )íado arijulico registrava sob o governu do j^rão Cocsre. Mais notável é aiiKJa não possuir o retrato physico e moral das vassallas d'cste rei dos miseráveis, sabendo uma extravagante pailieiílaridade do seu infame oflicio.

<'As menos feias das mulheres, diz Sauval, prosliluiain-se por dois iianh. as outras por um ilobir. a maior parle por cousa alguma. Muitas delias costu- nia\am dar dinheiro aos que faziam filhos nas suas companheiras, com o fim de se apoderarem d'elles para ter com <|uc ganhar a vida, excitando a compai- xão publica, arrancando assim esmolas.»

O preço das prostitutas da Grã Côrie i!o.\ Mila(jve>i eia sem duxida o mais baixo (jue poilia dar-se a uma niulher em troca das suas vergonhosas complacências; no tempo de Snuval dois liirrds xaliam cerca de dois soldos da nossa moeda e o doble, dinheiro tornez, equivalia a dois terços d'um liard, islo é, Ires soldos da actual moeda. Duvidamos que o preço da prostituição algunin vez tivesse descido mais, nem que por niais vil preço uma mulher entreg;)sse o seu corpo.

Esta espécie de prostituição eslava compli'lamcnte fora da acção da j)n- licia do (Jiatelet. .\s desgraçadas que a exerciam, protegidas pelos privilégios das Cortes dos Milagres, pertenciam á raça cosmopolita dos vadios c dos ladroes (juc povoavam estes asylos do crime. Andavam cobertas de farrapos; uma grande |)arlc d'cllas tinham segui-amentc nas veias sangue cigano, distinguin- (lo-se pela sua repugnante fealdade, pela to: acobreada, pelo cabello encarapi- nhado: as brancas e de (Uibello loiro eram as formosas e por isso serviam pai'a altrahir para aquelles antros os oncaulos que, pordcndo-se. ao escurecer se en- contravam nas cercanias d'uma Còrtt dos niilagres.

\ bella excitava os desejos da viclima que espreitava ás esquinas d;i> ruas; umas vezes mos!iMva-sc lavada em lagrimas, inventando uma fabula c;i- paz de commovei' ((uabjuer; outras sahia ao encontro do itoprudentc que a cila SC olíereeia e com mil pretextos o arrastava atraz de si; e ainda outras injuria- vam o viandante, provocandoo com insolências a Icrctni ella iniia pendência que lhe desse motivos para gritar por soccorro. Knfão os cunq)lices, tingidos pães, ir- mãos, amigos, acudindo aos gritos atacavam o homem, rouhavam-o, niallriiÍ!!- vani-o e, se procurava defender-se, assassinavam-o.

A mesma sorte esperava o desgraçadí), (juando se deixava scduzii- por estas sereias das encruzilhadas e se arriscava a seguil-as ale ao seu antro; um pue. mil marido, um irmão, apparecia sempre pedindo-lhe contas de uma seduc- ção, ipie lhe nãn davam tempo de consummar, c, pnr vontade ou isor fon;a, tinii.M de pagar uma iudemnisação que comprchcndia tudo (]uanlo levava comsigo, .sem excepção da própria roupa. K graças tinha a dar, se com a camisa podia salvar o corpo.

Escusado é dizer que estes artifícios e ciladas eram ensinados pelos j)aes aos tilhos, pelos maridos ás mulheres, pelos irmãos ás irmãs. Desde a mais tenra idade, as creanças eram abandonadas á mais hedionda corrupção; fa/:iam do corpo a mais vil das mercancias, vendido, sacrificado á sórdida e immora! avareza dos pães ou dos amos; não tinham noção alguma do bem ou do mal, principalmente no que era relativo ao pudor; homem ou mulher, os seus pri- ineiíos (lassos na vida eram dados para a prostituição e uma vez entrados no caminho da infâmia nunca mais de sabiam.

.\'cstes antros viviam as prostitutas (Fondc sabiam cm busca de for- tuna e para onde voltavam quando tinham envelhecido no olficio. (lontinuavum ainda a vil preço a vergonhosa industria e se não encontravam (piem lhes com- prasse o corpo mudavam de mister, len<lo a hnfnn-ilicha, fazemlo licores amo- i'osos, tillros, aimiletiis, vendendo gordura e cíiiirllo irenfi>rcado jiara m;ilelicins e mais operações de bruxaria.

1 1 6 HISTORIA

Os propriclarios das casus ilc uma rua doslinada á prostiluiriíu luiblica DUiica SC p"ek'iu!('raiii lilieilar- ila veriiuiilinsa imlustria para que concoiiiaui. alugando ôs prédios que lhes produziam avultadas rendas. Vemos, pelo eoiilra- rio, ii'um processo renovado frequenlemcnte e relativo á rua Bnillehoe. que o ilestino d'estas ruas constituía um privilej^io mui vantajoso em favor dos pro- prietários nu inquilinos, que sempre se mostraram stdicilos em derendcj-d c conserval-o.

Este processo, de que enconlramus vestígios dispersos nos registros do parlaiiKíiito, durou mais d'um século, renovando-se sob todas as formas entre os interessados, que por uma parle eram os proprietários das coisas d'esía rua infame e que ])oi' outra eram o cni^a e concisos de Scini-^lerrij. O prebasfe di" Paris e o rei alternativamente iíílcriinham na questão que mais enredavam com éditos c ordenações eontradilorias. O parlamento, por seu turno, tomando eo- nliecimento do assumpto, contentava uns e outros, sem força para aniquilar direitos, fundados na legislação de S. Luiz e robustecidos por um uso cnn- liimado.

l"in decreto de de janeiro de l;í88, inserto nas |u-o\as da llisioiretlr Pari>' de Felibien e Lobiiieau (til. iv, pag. •>3f<."'i dá-nos a conbecer o estado da questão e as pretensões reciprocas das duas parles litigantes. O cura e os có- negos linliam obtido ordens reaes, que supprimiam delinitivamenle a prostitui- ção na rua BaUleliue e uma ordem do preboste de Paris, João de Folleville, determinou que as mulliercs publicas, babitantes d'esta rua, immediatamente a desalojassem: como estas infelizes se vissem apoiadas pelos proprietários dos prédios que oceupavani, não se apressaram em obedecer á ordem do pre- boste, e este enviou archeiros, (|ue á força as fizessem sahir e artistas (jue nni- lassem as entradas das casas.

l'rejadicados nos seus interesses. e indignados com este abuso da aucto- ridade, (is príqn-ietarios levaram a demanda perante o parlamento, quei\ando-se- do cura e dos cónegos de S;únt-Merr\ , a quem accusavam de haver abusado da boa do rei e do preisosfe. Estes honrados proprietários deram amplos po- deres de representação a Ires dos seus companheiros ([ue eram : Santiago de Rraux. Filippe (Tibier e (iuilherme de >"evers.

Hcsuniamos agora os argumentos com (juc cada uma das parles defendia a sua causa, que com grande çm|)enho lõi discutida cm audiência solcmnc pelos nicllinies advogados do foro de Paris.

Por parle da egreja dizia-se que o rei S. Luiz ordenara que as ribaldas não vivessem em lo(jares e mais Iwnesta-^í: o preboste de Paris decidiu (|uc a ma Baillehoe csta\a nas condições de boneslidades prescriplas pela ordenação do rei c da rua, e expulsou as ribaldas, condemnando os i)riq)rietarios das ca- sas alugadas áquellas mulheres dissolutas no quádruplo do nlugurr.

«A rua, dizem mais os defensores dos cónegos, é immediala ás maiores e melhores da capital, onde vivem muitas famílias honradas, além dos cónegos <• capellàes da egreja. Além disso grandes inconvenientes podem resultar, pois (|ue se uma ribalda matar um homem, pode ella acolher-sc á egreja: que esta rua Uca em caminho de Sainl-Merrv, para ir cresta á rua deViderie e emtaes ruas não deve haver más mulheres. Item, que a rua está próxima da egirja, c pci-to d"clla não deve haver faes mulheres, pois é o caminho que os cónegos e ea- pellàes, seguem para ir á egreja.» A oulra parte dizia:

«Que bom era que taes mulheres vivessem próximo das ruas princijiaes. onde menos mal fazem do (|ue nas ruas escuias c nos arrabaldes ; que a dita rua serviria i)ara o ollicio d'ellas e que se alguém praticasse algum delicio, s() poderia fugir pela rua principal, onde mais facilmente seria preso do que se o didiclo fosse coMimcllido distanie da grande artéria : ipu; as taes mulheres sem-

DA PROSTITUIÇÃO 1 I 7

|nr (inliaiii vivido na ilila i'ua, (iiie aiifigamontt' tinlia liilo uma poi'(a,-a ijiial, |iiir iiiii inconvciiionlo qualijuei-, foi tirada.»

\ este |)roposi((), i-ccordava-se que, su!) o reinado de r,;irlos v, ílugues Uibriol, pi-cljoste de Paris, lendo visitado os bordeis, supiirimiu muitos d"eílcs, deixando subsistir os de Bailleboe, justificando a permissão, dizendo que os cnvergonliadiís melhor oii.siiridm firíjiienlar este do (jue os outros. Também se prciendia, que a egreja de Saint-Merrv tinlia interesse em (|ue outro destino náo tivesse á rua «pelo rendimento (]ue d'abi se auferia e ponjue ln'rironi))) hnnentorant dominibm aa-pe lupniiarin exercniUir , eíe., e graças a Deus, nunca liial algum foi praticado cm Bailleboe.»

Argumentava-se com as ordenações de S. Luiz, que determinou que. como em Glnlignii e na Còrle-Roheno de faris, houvesse bordeis em Bailleboe, r que, tendo elles desapparecido agora da Carte Roberto, era conveniente que os i)ou\esse nesta rua.

Os proprietários objectavam também que a rua em questão não era o ca- minho natural para a egreja, sendo-o mais directo pela rua Sainl-Merry, c que se |)0(lia |)rescindir de por alli levar o vialico aos enferiuos, embora não hou- vesse escrúpulos de o levar pela rua Tiron que não era mais honesta.

«E é conveniente, conciuia esta parte, (jue o bordel esteja próximo da egi'eja, pois que se taes mulheres peccam não estão condemnadas e bom é que alguma vez vão á egreja, o que mais facilmente larãff se d'ella estiverem perto do (juese a grande distancia habitarem. Item. não é inconveniente que perto das egrejas haja bordeis, jiois que Glaiignij com os seus está junto de SoÁul- Denis-de-la-Chnrtre, uma das mais devotas egrejas da cidade, e o mesmo suc- cede com a de Saiiit-Landry.»

Os defensores na replica evitaram tocar a espinhosa questão da conveniência de approximaros bordeis das egrejas, limitando-sc a dizer que a leífra da pragmá- tica dl' S. Luiz, se oppunha a (]uc as mulheres de vida vivessem perlo das egrejas; em apoio d'este argumento citaram o levto da lei romana Deterivs ext quod penes i-acrosanctas mies morentur.

E se por direito natural o mais intimo da cidade pode i^equerer que es- las mulheres sejam postas tora da sua visinhança, com mais forte razão o pôde fazer um parodio que, tendo de amiudadamentc ir á egreja, tem de seguir a dita rua como caminho mais curto para a egreja Saint-Merrij.

Não sabemos ao certo quando terminou esta demanda, mas deve Icr-sc como um dos seus últimos episódios a pragmática de Henrique vi, rei de In- glaterra e França, que em 15-25 se declarou pelo parodio e cabido de Saiiit- Merrij. E' provável todavia que, apesar de todas as ordenações reaes e de to- das as ordens dos pi'ebostes, a prostituição não abandonasse uma rua de ([uc (\stava de posse por tal e tanto tempo que não lia memoria do contrario.

Mas o parocbo de Saint-Merrij castigou a um dos proprietários da refe- rida rua, a quem tivera como adversário na questão das tendas do peccado. iiindemnando-o a jusliíicar-se n'um domingo á purta da egreja de haver co- mido carne á sexta-fcira.

O cabido, tendo triumpbado, mudou o. nome da rua, que tomou o da im- mediata Brisemiche, perdendo assim o seu antigo caracter ignominioso, pois que pronunciando-se Bailleboe fazia o povo uma mimica obscena que não tinha ra- zão de ser a respeito da rua Taillepain ou Brisemiche.

Todas estas ctymologias de Baillehoe eram igualmente significativas, que, se escrevesse Ba illeliore ou Bailbbore ou Baiilchort, quer se prefira ado- ptar a antiga orthographia Baillehoe íiaíllehoche , porque o verbo haille variava de significação segundo a palavra que lhe i^ junta e esta palavra tinha sem- pre iim sentido obsceno; houe é um instrumento de trabalho; horec uma mu- lher publica: //os/ um choque violento; hoehe mosca. !\"uma palavra, havia

I 18 HISKIRIA

sempre iiin seiílido obsceno nos dillerciiíes noini^s desta rua iju", imtiIimkIo os seus nomes indecentes, não se tornou mais honesta, pois ainda no ultimo sé- culo as mulheres de Brisemiche tinham uma celebridade proverbial.

O documento que analysamos ao fallar do litigio entre a egreja (]e Saint- Merry c os proprietários de BaiU^hoe permitte-nos fixar alguns pontos de ar- chiologia pornographica. Quasi podemos com certeza atfirmar que as ruas de- signadas para a prostituição haviam sido n'outro tempo, de noite, fechadas com portas; que estas ruas frequentadas pelos ribaldos e mais gente perdida eram frequentemente tbeatro de rixas e assassinatos; que apesar (Kisso o aluguer das casas, era alli mais elevado, produzindo avultados rendimentos aos pro- prietários : que as mulheres publicas linhara entrada franca nas <'grejas, onde iam menos para orar, dn (jue em busca de aventuras: e, finalmente, que a visinhanya d'uni bi>rdel era vantajosa á egreja, por eauvsa das esmolas que as suas paroehianas davam ao padre e para a fabrica do culto. Além d"isso, con- clue-se lambem, que, desde então, uma razão de dií'eito consuetudinário sub- sistente até aos nossos dias auctorisava a todos e a cada um dos visinbos ho- nestos a apresentai' queixa contra toda a mulher de ma vida, que quizesse fa- zer expulsar da sua visinhanya pelos agentes do Chatelet encarregados da poli- cia das mulheres publicas e dos logares da prostituição.

CAPITULO XII

SUAiAlARlO

o livrn da Taille de Pjiís.— O rei dos ribaldos da rainha Maria.— Isabel Epineta.— Joaona, a Normanda.— Edclina, a Raivosa.— Aaliz, a Berna. Aaliz.a Mourisca.— ,4 Bailesa c .K»\izSans-ari)ent.—\s7nfíz, a.\lunrlra.— Joanna, a lifbil.— Margarid?., a Gala.— Genoveva, a Festejada. .luanna, a Grande.— I.sabel, a Cluita.— Mahent, a Lomtiania. Margarida, a Brava.— Isabel, a Co.\a.— Isnez, a Serviçal.— Julieta, a Intriguista.— Joanna, a Ilorsontieza. Maheut, a Normandia.- Gila a (2o.\a.— Mahi), a Escosseza.- Ignez, a Branca de mãos.— .loanninlia, a Brincalhona.— .\melina, a Pe.juena.— .imflin;!, a Gorda. -Maria, a .Nei;ra.— Ignez, a Grossa.— Joanna, a Sabia, etc.

ibsEMOs QUE O livi'o /(( Tailk tlc Paris, do auno do 1202, não (•(intinlia facto algiiin relativo á prostituição; mas, dcpoi.s do no- vamente ter examinado este li vi o tão preeioso para a historia de Paris n'aquella época, julgamos dever modificar a nossa primeira opinião que, posto que verdadeira ao primeiro relan- i[iBi„.........,„.....,niaaaga|j ^,^^^^. ^j^ ollios, não devc ser acceite sem certas reservas ; pois

se, com elieito, cm parte alguma nos as.sentos do la Taille .se encontra a de- signação precisa das mulheres que exerciam a profis.sào de prostitutas, aqui e alli julgamos, pelas alcunhas e appeilidos que as caracterisavam, reconliecer al- gumas.

Certo ó, que estas mulheres não pagavam impostos na qualidade de pros- titutas ; mas pagavam-os na qualidade de inquilinas das casas que habitavam na capital, que não eram os bordeis onde davam largas aos seus vicios e de- pravação (boa! telex au feche.)

Infelizmente nada sabemos das condições d )s impostos c não é fácil com- prehender, por exemplo, a razão porque Paris, no tempo de Fiiippe, o Bello, contendo uma população de 400 mil almas, apenas tinha 15:200 contribuintes, scguntio os cálculos do sábio Henrique Gerardo, pagando ao todo 12:218 libra.'? e dez soldos. Estes contribuintes não eram os habitantes mais ricos, pois es- tes eram exceptuados da Taille pelos .seus privilégios campestres : nem tão pouco eram os mais pobres, como o vemos pelas diflerenças de fortunas menciona- das nas variações da Taille. Não merecem confiança as hypotheses de Dulaure que pridende que o numero das Tailles indique o de fogos. Se isto assim fosse o registro da Taille não mencionaria em quadro especiai, os filhos, os servos, os artistas, convivendo na companhia das pessoas sobre quem recahia o imposto.

Vamos também apresentar uma hypothe.se que se não funda em provas escriptas: emquanto a nós a Taille comprehendia unicamente os habitantes de rez do chão com portas para a rua. Esta conjectura, que nenhum documento con- tradiz, tem a vantagem de explicar naturalmente a notável desproporção que existe entre o numero de habitantes e dos contribuintes, entre os quaes as imilheres não chegam a ser a decima parte.

lâU

IIIS lliKIA

A Tíulle tle I á92 jwrniiítir-nos-lia assigiialar um lado conliriiuulo por muitas ordenações posteriores do preI)osíado de Paris :, as ruas destinadas á li- bertinagem publica S(5 recebiam as mullieres de vida nos bordeis a certas boras do dia. Veremos que ellas não babitavara de noite n'eslas mesmas ruas, como se o legislador tivesse querido que respirassem o arda vida lioncsta, ar- rancando-as momentaneamente á atmosphera da sua infâmia. as encon- traremos pois nas ruas immediatas, mas não nos será diíTicil o reconheeel-as pelos appellidos e alcunbas e pela uniformidade do imposto.

Antes de proceder á procura d'epsas muliíeres nas parocbias em que es- condiam a sua existência, ás vezes cbristã e lioncsta na apparencia, pois muitas d'e!las eram casadas, e tinham família, devemos tirar do livro da Tailk uma particularidade que o editor deixou passar desapercebida e que se refere á histor a da prostituição. Nos assentos da arraia miúda, que residia no bairro Sainl-Ciermain-rAuxerroise em quem incidiu o imposto de um soldo c doze dinlieiros por cabeça, e\tranba-se o encontrar o rei dos rihaldos da rainha Maria (V. p. o do lib. (/" la 'lailíe.) Quem c este rei dos ribaldos morador na rua Osteriche, actualmente rua do Oratório, em frente do Louvre ? Seguramente não se traia de oíficial da casa do rei de França e a intima quota que lhe impo- seram suUicienlcmcnte prova a inferioridade da sua condição. Não era decerlo o rei dos ribaldos da corte de Fi'an(;a quem pagava ao fisco a mesma ([uantia que Adão, o sapateiro, João, o aiendiíjo e uulros da mesma laia.

Como dissemos em cada centro de ribaldia havia um rei de ribaldos c esta espécie de mordomo encarregado de manter a ordem no antro era apenas uma grutesca caricatura do rei dos ril)aldos da casa real. O da rua Osteriche jicrlencia a mais inferior ribaldcria da cidade e o seu pomposo filulo não im- pede que tivesse sido um paiife da peior espécie.

Emquanto a essa rainha Maria de ijuem se declarava olíicial e ministro, não podia ser senão uma ribalda ou alguma velha que tinha subido ao throno da devassidão pelas acclamações das suas companheiras. Não pôde concluir-se ou- tra cousa (Fesse titulo dado a unia mullier ciiamada Maria, tendo um rei de ribaldos taxado com \i dinheiros; e inútil é demonstrar que este vil rei dos ribaldos não podia pertencer á rainha Maria de Barbante, viuva de Filippe o Co- rajoso, que n'essa época ainda era viva.

Podemos atfirmar com fundamento, e por este singelo raciocínio, que pelo menos cm certas ribalderias as mulheres publicas elegiam uma rainha, como outras co!'porações de mulheres, especialmente as lavadeiras e vendedo- ras de peixe, ele. Esta rainha linha naturalmente um rei de ribaldos encarre- gado da policia interna do estabelecimento em que reinava esta impudica so- berana, se era o nome de rainha o que davam á gerente da ribalderia. vi- mos no séquito dos reis de França no século xvi uma gerente d'csia ordem, a quem as ordenações de Frauciseo i e de Henrique ii não concedem as'hon- ras d'um obsceno reinado.

Geralmente dando-se aos bordeis o titulo irónico de alihadia na linguagem pittoresca do povo, a directora de tal abbadia chama va-se abhadessa ou prio- resa. Pôde comtudo suppor-se que a rainha .Maria tinha sido elcila por uma das associações de libertinos, larápios e jogadores (|uc siniulavani uma còrle com uma burlesca imitação dos oíiiciaes e dignafarios da coroa.

Tratemos agora das mulheres sem profissão que a Taille de 1 2d2 nos aponta como habitando as ruas suspeitas nas immediaçõcs das destinadas á profissão. Primeiro encontramos entre a nenie niiuda da cilada parochia de Sainl-Ger- inain com o imposto de \2 dinheiros a 1'lerida da, Hoscaije, do Bosque, (jue vivia f(Jra da porta Saiiit-Honorc e por conscguinie fora do fosso da cidade ; Isabel VEpiaeíe na rua de froiílaiantel, que acaba de desapparecer com os seus antigos aniros de i)rostiluição ; Joanna, a formanda na rua lUauroir, que

DA PROSTITUIÇÃO I 2f

ainda ha quarcnla annos existia com o nome de Beauvais; Edelina VEnragiée na rua Riche-Bourc, iinje ciiamada Cod-Saint-Honoré ; Aali: la fíernre á es- quina da rua dos Poaiies ; Aali: la Morelle na rua Jeham Etront, de que não ha vestígios ; a BaiUie e Perronelk-aux-chiem na rua l'aulins ; Leloys, filha de Anlh-sans-nriifnl na rua Areron, liojc a de UaiUeul.

E' para notar que as ruas sombrias e mal cheirosas, onde residiam essas mulheres, cuja profissão bem indicada c pelos seus alcunhas, nunca deixaram de ser habitadas pela escoria da população.

Entre a ralé do bairro Saint-Du-ilache encontramos Perone.Ue do Serenes ou Sirenes, Igne: VAlelleie, Joanna la Maigrct, Margarida la (ialaise, Geno- oeia la Bien-feteè, .loaniia la Grand, etc. Estes nomes tecm-se conservado tradicionalmente entre a gente dada á baixa prostitui^'ão.

Nos mesmos bairros e nas mesmas ruas, a Taille de 1*92 menciona ainda com alcunhas análogos outras mulheres que viviam também do seu corpo, mas que d'ellc tiravrtm mais lucro, pois que no imposto figuram com 3, ."{ c mesmo •) soldos: taes ci'am fiira de portas de Sainl-Honorr, Isabel a Ch.aAa e Maheul a Lombarda na rua Froidinantel ; Margarida a Braça, [sabei a Curuja e Jgiie:: a Sercinil na rua Biamoir; Jnliela a íntrigaista, Joanna a llourgoin- que, Mahenli a Nornw.nda e Gila a Coxa na rua Jtiegebòurg.

[)cvc-se observar que estas ruas pobres e mal afamadas eram lambem occupadas por artistas da mais infima classe, pescadores, sapateiros, ferros-ve- Ihos, etc.

Nas ruas de mais passagem e melhor habitadas são mui poucas as mu- iliercs de reputação ccjuivoca. se encontram nas immediações das ruas des- tinadas á prostituição, mas onde não viviam, como adeante pro\aremos. Assim na rua Glaligny, em que a prostituição campeava Ibrtemente, cnconlram-se : Margarida la Crispininr, .Inuo le Pasteur, Eloisa la Chandaliere, Samtiago le cordomier.

Mas, encontrando no numero dos inquilinos d'esta rua infame um certo Jeharra:, pagando 22 soldos de contribuição, um Guiberlo o Bontano com 2o soldos de imposto, a mulher de Nicolau e suas duas filhas, pagando 38 soldos e Gil Marescot que paga 30, inclinamos-nos a tomar estes individuos, como do- nos de bordel, cuja clicntella iam procurar ás ruas próximas.

N'clla encontramos Mabil 1'Eseote, Perronelles la Grmenle, l.orencela, Ignez-Mains-Blanches, Jeanetle la Papine e outras que reconhecemos como mu- lheres de virtude fácil. N'um centro de prostituição não menos activo, do que o Vai d'unioiir, em Baillehoe e na Corte de Roberto de Paris, apenas contamos quatro mulheres sem profissão entre 38 contribuintes, dos quaes o mais sobre- carregado não paga mais do que •') soldos, e estes são : Anielina Baleasse:., Amelina la Pelitle, Inês la liogoítona e Mahenf la Mornianda, com 2 soldos de imposto cada uma; a creada de Maheut figura com o mesmo imposto da ama, de cujos trabalhos c beneficios, aparentemente pelo menos, participava.

Mas nas ruas adjacentes ha mulheres, reconhecidas pelas alcunhas, sem duvida pertencentes á ribalderia de Baillehue, embora tivessem o seu domici- lio naqucllas honestas habitações. Inicamcntc citaremos Gbristina e sua irmã Maria na nova rua de Saint-Merrg ; Juliana c Ignez na mesma rua; Ainelina a Gorda no claustro : Maria a Negra, Maria a Ricarda e [gnez a Sabia na rua Simon-le-Franc, etc.

O pessoa! da prostituição n'estes bairros populosos não era decerto este, mas comprehende-se o motivo, porque na Taille figuram algumas prosti- tutas e não todas.

Dcve-se ter lambem em conta que nem todas as mulheres de fácil vir- tude se entregavam exclusivamente á prostituição e que a maior parte d'cllas estavam comprchendidas na calhegoria de diversos ollicios. Do espirito das Or-

UlSIORIA DA PnOSTITUIcio. TOMOII— FoLHA 16,

122 HISKIIUA

Henai/õcs Je S. Ijiiz, que regiam a proslidiirSo, pareee deduzir-se, qiio tiida a inullicr era livre do seu corpo c com cUe á vontade podia negociar, comfanto (jue se não entregasse ao peccado senão nos antigos bordeis c ruas destinadas a este mister desde tempos remotos. Segundo os termos de muitos decretos do parlamento, Delamarc, que tinha á vista todos os monumentos da legislação do Cliatelct, d'oulro modo não apreciou as mulheres que, entregando-se á prosti- tuição, só eram tidas como tal no exercício d'essas funcções.

Resulta d"esla disíincção numa e n'outra phase do seu género de vida que a authoridade municipal não devia intervir nas licenciosidades secretas das mulheres, que escrupulosamente obedeciam ás ordenações c que eram ribal- das communs, quando frc(|uentavam os logarcs destinados á prostituição. A mu- lher que se prosliluia n'um desses silios ficava, ])or assim dizer, rehabilitada logo que d'elle sahia. Assim se explica uma sentença di« magistrados de Bor- déus que condemnaram um homem a presidio por ter violado uma mulher pu- blica. Angelo Stcfano Garoni transcreve esta memorável sentença no seu tra- tado de jurispi'udencia intitulado: foiíimpoinriti in tiiulam ile inerelririlrus et Ifnonibiis Consiiíul Medial.

«Os logares infames da prostituição, diz Dchimarc no seu Tratuda da po- liria., eram communs a muitas destas mulheres publicas e as suas vivendas estavam d'elles distantes. Eram pontos de reunião, onde tinham liberdade para o seu commerciar impudico e que se lhes marcavam para as tornar mais conhecidas e obrigai' a afastar as (jue ainda eram susceptíveis de algum pudor. Ei'a-lhcs prohibido (segundo o /('r,''o verch' antigo do Chatelet, foi. I'j9,) com- nietter o peccado em qualquer outra parle, sob as penas estabelecidas nos re- gulamentos. Mas ellas illudiram estas sabias precauções, indo aos logares pú- blicos tão tarde, que não eram conhecidas, nem eram vistas entrar.»

Desde então, marcaram-se-lbe as horas d'entrada e sabida nos bordeis, que não se abriam antes de amanhecer e ei'am fechados ao pôr do sol. Todavia, não consta que as rameiras esíivcssem sujeitas a qualquer inscripção; mas, pódc-se afoitamente dizer que eram obrigadas a pagar um imposto lixo, des- cripto nos rendimentos da cidade, ou formando parte dos rendimentos do rei dos ribaldos da casa real. O preboste de l'aris, a 17 de março de 1374-, pu- blicou uma ordem, rezando assim:

«Todas as mulheres que se reúnem nas ruas de tV.atiíjiijj. \lin'aroir Ma- con, Kaillehoe, Court-Hohert, e n'outros bordeis, são obrigadas a sabir ao dar das dez da noite, sob pena de vinte soldos de multa.»

A multa, que equivalia a vinte francos da nossa moeda, prova, a nosso ver, que o jircço dum dia de peccado não lhe era inferior; metade d"esta multa pei'lcncia aos agentes do ("hatelel. Mais tarde esta penalidade teve de dei\ai'-se ao arbítrio do juiz, elevando ao dol)i'o e mesmo quatripulo, o que logar a suppòr (|ue mulhei'es de mais elevada classe ás vezes não temiam ar- riscar-se nestes infames logares e que pouco se importavam com a multa, com lauto que a troco d'ella gosassem da im|>unida(le e alcançassem o segredo para a sua vida dissoluta.

A 'M) de junho de 130o, o preboste de l'aris |irohibiu a loilas as nuilhc- r'es |)ublicas o pcrmanei-erem nos bordeis depois de dadas as sele da noute, sob pena de prisão e multa arbitraria. Uelamare, que cxtrahe esta disposição do livro roxo antigo do í.hatelet, accrescenia uma particularidade confrontada com os registros do prcbostado.

"As ordens, diz, são rennva<las duas vezes poi' anno e esia rt'tirada cra- Ihc marcada ás seis d'inverno e ás sete de verão, horas a que havia o toque das almas.»

Tal era a força do uso, tal era o império do costume n'aquellcs antigos lcni|)iis, (|ue loram necessários muitos séculos para desalojar a j)rosliluição de

II V riiii'^ 1 1 1 ( II, AH

I->:|

miia lias iiias i|uc i.uiz i.\ liu' lia\ia tlihliiiailo. Oiiaijilo miia ur(lciiai;ã<) do |)rL'- liosle do Paris, datada de 18 de selembro de 1307, eonlirmoii o deslino d'eslas ruas, o l)i?po de Maeim dirigiu represou taeõcs a Carlos v, para eonse54UÍr que (la rua Ciiaj)"!) fosso retirado tão verjioiílioso inisler. Os bispfis, condes de CÍia- ioiis, desde remotos tempos possuíam um grande palaeio na rua Transnonaiii, então eliamado Trou-saenunain, entre as ruas Cltapou e Vaun-á-Vilain, hoje Montinerencij. As mulheres de vida tinham-se apoderado de todas estas ruas; reuniam-se totlos os dias no seu usjilo da rua C.hapon e alli os seus can- tares, as gargalhadas, os ralhos e obscenidades continuamente perturbavam a consciência dos piedosos habitantes do palácio dos condes de Chalons.

O bispo, inembi'o do conselho privado do rei, teve de empregar lodn n seu valimento, para eonseguir afastar para longe do seu palaeio e ao niesnn» tempo do cemitério de S. .Nicolau, esta visinhanea que insultava não so os vi- vos, mas também os mortos. Carlos v publicou a ;$ de fevereiro de UHi7, uma ordenação, em que era reslalieleeido o edilo de S. I.uiz contra a |)ioslitui(:ão em geral. l'ara cliegar, não á completa execução do edito, mas para unicamente o appliear á rua Chapon, as conclusões que tirava da ordenação de láoi, não eram nem justas nem lógicas. Depois de recordar a antiga ordenação (|ue ex- pulsava da cidade (de rilhi) as mulheres |)ublicas {iinhUcw iiieretrlce.s) conlis- cando-lhe todos os seus bens e até o vestido e as pelicas (u.síitws ad íanicdiii cel pdliceain,) ordenava aos proprietários da rua Chapon, (]ue tivessem alugado casas ás meretrizes, as despedissem immediafamenie sem que pai'a o futuro as pudessem tornar a ter como inquilinas, sob pena da multa de um anno da renda, a fim de que essas vis creaturas, dizia o edito, não continuem a viver na citada rua, nem iiYdla tenham as suas reuniões {qaod ibidem mui, Uipanaria II lie ri us de eelern iton leneanl.) isto em honra do bispo e no interesse das pes- soas honeslas que viviam nas visinhanças ou na própria rua, por onde nem mesmo passar ousavam. A ordenação parece que quer altribuir ao nome da rua uma origem que documentos mais antigos desmentem {.saltem melu pene dirlus cicus.)

Sauval attirma que as meretrizes resistiram ás ordens do rei, fuhdando-se nos privilégios confirmados por S. Luiz e provando que a rua Chapon lhe tinha sido concedida com um logar d'asv!o, por Filippe Augusto, antes que esta rua tivesse sido comprehcndida dentro dos muros da cidade. Os bispos de t^balons insistiram na queixa, auctorisando-.se com a ordenação de CaHos v para se ve- rem livres da inconmioda visiniiança; mas não o puderam conseguir: tanta au- ctoridade conservava a legislação de S. Luiz e tanto era o poder do costume na administração municipal.

<,<As ribaldas mantiveram-se firmes, diz Sauval, e não sahiram da rua Chapon até lo6o, quando os asylos das mulheres publicas totalmente desap- pareceram de Paris.»

As ordenações dos reis não eram também melhor executadas, quando se tratava de -impedir a prostituição nas ruas, em que o direito antigo e consuetu- dinário não podia ser invocado. Estabelecidas uma vez as meretrizes n'uma rua ou bairro, ahi se fixavam de tal modo, (|ue era impossível desalojal-as, apesar de todas as ameaças de multa e prisão. Tinham, se vè, uma repugnância in- vencível em ir residir para os lugares que lho estavam designados, e (|ue indu- bitavelmenie lhes infiingia uma notoriedade infamante, e, portanto, preteriam expòr-se aos rigores da lei, e exercer occultamente a profissão nas ruas em (jue a policia nem sempre tinha sobre ellas os olhos bem abertos.

F.m 1:581, Cailos \i exigiu a execução das ordenações de S. Luiz, contra os que alugavam casas ás mulheres de vida nas ruas não coinprehendidas no numero dos seus logares iVasiihi. Carlos a '.\ de agosto dirigiu uma ordem ao pre- boste de Paris impondo-lhe a sua execução : sem razão apoiava-se nas antigas

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■ISi IIISTOUIA

nrdoiiações do rei sanio que c\piils,ivani da eidade c dos eainpos (tam de campis (imun lie cilli.s) ás mulheres de vida dissoluta e proliibia sem exeepyão a pros- filuição : mas não exigiu apenas que aquella legislação fosse applieada ás me- retrizes (|ue habitavam as ruas de Beanbourfj, Geolfroi-V-Aiufetiii, Jongleurs, Simon-le-Fraiic, assim como nas immediac;ões de SuiM-Denis-de-ia-Chartre e da fonte Manlxir. Como no edito de Carlos v, os proprietários (Cestas ruas, a quem se pretendia libertar de tão ineommodos hospedes, eram avisados jiara não alugarem casa alguma a mulheres suspeitas, sob pena de pagar de multa um anno do mesmo aluguer ao bailio ou ao juiz do ('hatelet.

Ha dados para crer que o preboste de Paris fez immedialamente diligen- cias para que as ordens do rei fossem cumpridas; houve proprietários multa- dos, mulheres ])resas c expulsas: mas ap(>sar de tudo isso a prostituição man- teve-se no domínio conquistado.

Todas estas ruas, excepto o claustro de Saini-Denis-dc-la-Charlre, ti- nham feito parle da aldeia Ikauliouru (jue Filippe Augusto reuniu á cidade : este Ileaabuurii, pois, estava naturalmente occupado pelas rameiras que, de geração em geração, lhe perpetuavam il infâmia. A fonte Maubuf', cercada de vivendas pobiTS, era o centro d'essa ribalderia possuidora do mesmo nome da fonte (Mau- bui, porco, sujo.)

O estabelecimento das meretrizes nas circumvisinhanças da égrejaSamí- Bfiúa de-la-Cliartre na cidade, remontava ainda a maior antiguidade, pois, como provamos, a confraria da Magdalena tinha tido principio n'esta paro- ehia; coisa natural era, que as alegres comadres, que formavam e.ssa confraria, se agrupassem em volta da egreja da sua padroeira e considerassem este bairro como um antigo feudo da corporação.

O preboste de Paris, ao publicar as rcaes ordens de 3 de agosto com o fim de proteger a honestidade de umas certas ruas, julgou também dever re- cordar que outras ruas havia parlicularmcntc destinadas á prostituição; mas, receando põr-se em contradição com alguma ordenação real, como acontecera com a que fora expedida para a reabilitar a rua Chapou, teve o cuidado de não designar quacs fossem essas ruas. Prohibiu ás mulheres publicas o «ter bor- deis, exercer a sua vergonhosa industria e morar nas ruas boas de Paris ; mas que se desalojem e saiam com seus bens das ditas boas ruas e vão viver para os bordeis, togares c ruas destinadas para isso; sob pena de desteri'o.» Este edito, que Ducange transcreveu do noto litro verde do Chalelet, não de- signava os logares (|ue o prebostado marcava para o commercio da prostitui- ção, c as meretrizes aproveitando esta lacuna dis])crsaram-se por todos os baii'- ros de Paris, onde estabeleceram um .sem numero de bordeis.

Teve pois o preboste de explicar esta amphibioiogia com outro edilo mais explicito, que Ducange transcreve no seu (llosario (palavra Hijinurniii) com a data de I39.J e como tirado do licru negro de Chatelel.

«Item, ordena-se a todas as mulheres publicas e de vida dissoluta, que, actualmente vivam nas ruas honestas de Paris. . . que d'ellas saiam immedia- lamente depois d'este pregão e se retirem e fixem as suas moradas nos bordeis e logares públicos antigamente designados e que são : ruas do [bri'iuuir de }Iascon, de (jlatigtig, de Tirou, de Coiirl Hoíieri, lluillelioe, rua CliajKin. rua I'aU'e, sob pena de prisão e multa voluntária.»

Este pregão feito ao som de trombetas nos becos de Paiis tem a origi- nalidade de ter feilo esi]uecer a ordenação do ivi relativa á rua Cliajioa ; talvez que um dfcreto do parlamento houves.se suspendido os eHeilos d'esta onlena- ção. Entre as ruas tidas como infames não é citada a rua Cliamp-Fleurg, mas vc-se (pie foi substituída pela rua PahV, que .se chamou de S. Julião e mais tarde da l'oierne ou ruusse-l^iiifrne, por pouco distar da cisterna di' Sainl-.Ni- colas-Huidchjii.

DA ritosfiTUiijÃo I i'3

Esla rua, liojo chamada do Mouro, tiiilia um centra de pi"oslituii,-ão, cha- mada a ('urlf do Houro, (lcnomina(.'ão tirada talvez d'alg;umas increlrizes que deviam ser mouriscas ou sarracenas. Aqui havia um dos principaes asylos da prostituição, ainda que não pretendamos encontrar esta rua Palée na do Petit- llurkur, onde (ieraud, Jaiilot e Lcbeuf julf^aram dever iocalisal-a. A grande rua Palée, duas houve d'este nome segundo cremos, era o logar dasylo das mulheres publicas íla rua Heauhourg e ruas próximas.

Também havia em Paris um grande numero de logares de prostituição não auctorisados, mas a (|ue o prehostado fechou os olhos até I5G'), em que Carlos IX os eomprehendeu n'uma medida geral prohibiliva. Uma ordenação de Carlos VI de 14 de setembro de 1420, durante aoccupaçãode Paris pelos inglezes, renovou as antigas prohibições ás mulheres de vida de morarem em outros sitios que não tossem o -I/í/yímoíív, Mucon, lilatnjau, Tiron, Cour-ítuhert, Ihiilie- lioe, e rua Paire, sob pena de prisão. (Delamare leu rua /'rtccV no registro negro do Chatelet, d'onde copiou este documento.)

Mas quatro annos depois, morto Carlos vi, Henrique vi, rei d'lnglaterra e também do França, deu ouvidos ás queixas dos contribuintes e parochianos da egreja de Saint-Merry, que pediam a suppressão das vergonhosas franquias de Baillehoe «em cujo logar de Baillehoe, dizem os reaes despachos de Hen- rique VI datados d'abril de 1424 e entregues em Paris ao conselho do rei, resi- dem e estão continuamente mulheres de vida dissoluta, chamadas bordelarias, que alli teem um bordel publico ; coisa mal vista e não conveniente ao preito que deve prestar-se á egreja c a todo o bom catholico; de mau exemplo, vil c abo- minável também para a gente honesta e de bons costumes.»

Para satisfazer aos desejos dos queixosos, que se escandalisavam com o espectáculo d'aquella libertinagem, o rei inglez prohibia «que d'ani em deante houvesse qualquer prostituta na rua Baillehoe, ou nas immediaçôes da egreja de Saint-Merrti, attendendo a que na cidade havia muitos outros logares destina- dos ás meretrizes e mesmo mui distante d'esse tal, como o que se chama Cor- te-Roberlo e em outras partes mais distantes da egreja.»

Ordenava-se ao preboste de Paris que fizesse executar este edito irre- ro(/arel, expulsando immediatamente da rua Baillehoe as mulheres publicas. Provável é que esta ordenação tivesse o etleito das antecedentes, pois a rua Baillehoe continua a ser consagrada ao vicio. Notamos nas ordens de Henrique VI que os logares destinados ao vicio estavam ermos, não occu[i(tdos, emquanto que o pregão do preboste de Paris, soleinnemente apregoado em 1393, ordena ás mulheres publicas que façam as suas iiabitações nos mesmos sitios que desde antigos tempos lhe tinham sido designados.

Concluiremos d'estes documentos (|uasi contemporâneos que a legislação relativa ás mulheres de vida se transformara n'este ponto ; que eram obri- gados a residir no theatro da sua libertinagem e não tinham a faculdade de occultar o seu domicilio em todos os bairros, embora vivessem honradamente. Resulta, além d'isso, da ordenação de Henrique vi que apesar da penalidade as mulheres dissolutas recusavam juntarem-se nos bordeis que continuavam de- sertos e abandonados.

l'm decreto do parlamento citado por Sauval, prova a teimosia com (jue esta classe de mulheres se afastava das ruas destinados á sua infame indus- tria para se dissiininarem pelas ruas honestas que ellas manchavam com as suas torpezas. N'estc decreto ordena-se ás meretrizes que abandonem a rua Cannels e outras immediatas, intimando-as a que vão habitar os antigos bor- deis {Antiquiws de Paris, tit. iii, pag. 9o2.)

Kão pode duvidar-se, segundo os termos d'este decreto, que o preboste de Paris reconheceu a necessidade de que a morada, e o logar onde as prosti- tutas i)raticavam os actos deshonestos, fosse a mesma, nem que as ihuis decen-

]2Ct IJÍSTdlílA

tes eram peniiaiicnteinoiííe liabiladas por estas uuill)eres, (juo priínilivaini^nlc iam a t^ertas lioras do dia e nunca de noite.

Tem de procurar-se na lopographia de Paris antiga as ruas percorridas pela prosílluição errante e que as ordenações dos reis, os decretos do parla- mento e as ordens do preÉDStado não designam nominalmente. Estas ruas em que fartivameníc se exercia, a prostiiuiccio eram baslanlo numerosas e ordina- riamente o alcujiha obsceno que llie punha o po[)uhiciio, designava-as á i'epro- vação da gente honrada o;ue prudciítemente delias se afastava. Alem das cor- tes de milagres, onde se conlandia.m ladrões e meretrizes da ultima espécie, podiam contar-se umas vinte casas tão mal afamadas, como as que S. Luiz de- signara para a libertinagem publica. aeima'íizemos observar que estas ruas ficavam sempre proxiiiias (le qualquer centro de prostituição. Assim a rua Fransnonain eslava por assim dizer dependente da rua í.hapon.; a rua íknirg-l- Abbé da rua Hueleu, a de Coeatris da de Glatigny.

Desde o principio que as ribaldas tiveram de escolher residência próximo do logar das suas reuniões paia a!li poderem ir a Iodas as horas sem se expo- rem aos. insultos e arruaya do populacho. A rua Bouvíj-l-Abbé que foi aberta tora do recinto de Fiiippe Augusto, no termo d'abbadia^Sítíítí-.U(íí7iíi-í/e-s-C'((n/i/>s'. participava da reputação da rua ou antes do beco .sem sabida chamado Hueleit, entrada da actual rua de nome Grand-Hiiiieur. (Sauval, t. i, pag. 120) apresenta uma locução proverbial que nos faz conhecer quaes eram os prin- cipaes habitantes d'cssa rua. São da rua Bour<j-l-Abbé, os que não querem mais do que amor e simplicidade (^nimplesss.)

Em quanto á'rua Hueleu, exclusivamente destinada, desde a origem até hoje, á prostituição, não devia o nome, como o diz o abbade Lebeuf, a um ca- cavalheiro chainado ílàgo Lúpus (eai francez antigo Ihie-ku,) que viveu no século XII e fez inuiías doações á egreja de Saint-Magloire ; senão aos gritos [hiices) que se davam á gente honesta que o acaso levava a este logar infame. Esta ctymologia está coníirmada pelo nome dado á dos ínnocentes que esta rua teve pela mesma cpoclia. Depois tomou o de Grand-lluelea para a distinguir da Petit-Hueleu, sua immediata, ao principio beco Palée e mais tarde comparada á de Hueleu pelo vergonhoso destino que tomara.

«Quando se via entrar um iiomem n'uma d'estas ruas, dizem os auctores do .Dicíionaire íiltiloriqas de. la cille ds Paris, facilmente se adi\ inhava o ijue alli o levava e dizia-se aos garotos : !íue-le, isto é, grita atraz d'elle, Faz-lhe Irura.y* Seja como fôr, de todos os eeiUros de prostituição de Paris, o de líuelen foi o que mais terrível fama leve e foi elie que determinou as severas medi- das de repressão que Carlos ix estendeu a todos os logares impudicos da ca- pital. Pode com boas auctoridades susteiitar-se que os garotos tinham costume de grilar ao lobo {im loup) e por corrupção honloulou, quando um homem na rua fallava com uma meretriz, ou quando uma d'ellas tinha a imprudência de apresentar-se em publico com os dislinctivos da sua vergonhosa industria.

As ruas que eouununicavam com a rua Chapon niio eram habitadas por melhor gente do que cila. Por muito tempo a rua Triuisnonaiii serviu para trocadilhos mais ou menos obscenos do populacho que lhe chamou Tro)isse-.\o- nain ou Tasse-i\onain e Trolte-Piilain. X rua Ferpillon cm cujo nome se julga encontrar o d'um, dos seus primeiros habitantes, foi ao principio chauuula Ser- pillon, palavra antiquada, que corresponde a torcbun (rodilha, trapo velho para limpar.)

A rua Monlmoréney, onde os fidalgos d'este. titulo em outro Icmpo tive- ram um sumptuoso palácio, era unicamente conhecida pelo nome Coar aa I (7- lain (Còrle do villão) por causa de uma espécie de (]òrtc de .Milagres que nella havia. A nsaior parle das ruas, tora dos muros, ou para além do recinto das muralhas, construído por Fillippe Augusto, linham-se dedicado á prostituição

DA ritOSTITUIÇAIi

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livre, que alli nfnínlava socegadamcnte as ordens do prcboslado c ns agentes da policia do (^iialelet. Assim as ruas das De)i,rzPorl!'s (Duas porias,) a de Ikanrepaire (Bom asyln,) c da Itenarã (da Rapnza) a de Lion-Saint-Snuvet' (Leão de S. Salvador) de direito perlenciam ás prostitutas de intima espécie. A rua Deu.r-1'oiies que tirou o nome das porias que tinha, e que á noite eram ieeiíadas, l'oi induvitavelmente um lo;.;ar de prosíituiç,'ão, o que suilicien- tcmente está demonstrado polo alcunlia obsceno, conservado até ao século xv. Com este nome obsceno está designada n'uma das listas das ruas de Paris, publi- cada por Lebeuf, conlbrme um nianuscripto da abbadia de Santa Genoveva {Hi.tt. rle In villr et du diocese de l>aris\ tit. iii, nag, 603.) Na conta do Domínio de Paris, do anno de líil (Sauval, tit. iii, pag. 273,) o cobrador da cidade declara haver recebido de .íoão Jumauli as rendas de uma casa, curral c es- tabulo em Paris, rua llvatec... próximo dfí Tíre\^... marcada com o Escudo de Borgonha pertencente ao censo real.

A rua Tiver . . . de que n'csia conta se trata conservou a sua infame de- nominação ate ao século xvr, em que a rainha Maria Sluarí, muUier de Fran- cisco II, passando alli uma vez, perguntou pelo nome da rua ás pessoas que a acompanhavam, dando por isso logar a que lhe fosse mudado o nome primi- iivo. Seja como fòr, esta anedocta, que Saint-Foix assegura ter colhido da tra- dição local, deu logar a que em 1809 se lesse o nome de Maria Stuart no le- treiro da rua Tirebondin.

Os nomes das ruas, inventados e corrompidos pelo povo, que gosava com os trocadilhos mais deshonestos, quasi bastariam para dar $> conhecer os covis da prostituição publica e particular na antiga Paris. Sem sahir dos novos bair- ros que compunham a Cidade e que se ramificavam para o norte e para a mar- gem direita do Sena, além e áquem do recinto de Filippe Augusto, encontramos nos antigos inventários, as ruas Truanderie, Pmls-d'Ãiiwur, de Poilec...., de Merdevel, de Putiç/neuse, de PiiJe-y-mm-sc, etc.

Estes nomes por si dizem o que eram as ruas que os tinham. A rua da Truanderie, única que atravez seis séculos conservou o seu nome, dava não asylo as prostitutas vagabundas, mas também a mendigos, a ladrões, a vadios, n'uma palavra, aos truões. A rua Puils-d'Amour, agora Pelite-Truanderie, tinha um poço celebre de que falíamos e que as namoradas conheciam per- feitamente. Este poço, cuja recordação se relaciona com a de muitas chronicas d"amor, estava no centro da pequena praça Ariana, cujo nome primitivo pa- rece ter sido praça da Rainha, provavelmente por causa d'alguma rainha de ribaldos ou d'amor sagrada com a agoa d'aquelle poço.

A rua Poilec... pode ainda ser reconhecida peio seu moderno nome l'elicon, que um indiscreto pudor crismou em Pwíjh', (Purgada) no principio da Revolução ; esta rua nunca variou d'habitantes e n'elia ainda .se encontram os seus maus costumes. A rua Merderel ou Merderet ou Merderiau limpou-sc um pouco com os nomes posteriores de Verderet e Verdereíe, mas em parle manteve os seus antigos usos e a prostituição passeia alii agora como n'outros tempos.

A lua PatiíjnenM no bairro de Santo António é actualmente (leofjroij- l.asnier. .i i'ua Puíentj-Musse tomou um nome mais honesto, transformando-se em Petil-Musc. Guillot no seu iíenerario indica outra rua do mesmo nome que Lebeuf julga reconhecer na de Cloche-Perce ou da Cloche-Percce.

Não é preciso dizcr-se que estas ruas e vielas, frequentadas pelas mere- trizes e seus infames saleliíes, eram notáveis pela sua porcaria e mau cheiro e ainda n'este estado nos appareeem no século xvii, quando os commissarios das vias publicas fizeram uma visita sanitária á capital. Este exame evidenciciu ((ue a maior parte dos burdcis eram cloacas infectas que perigosamente infeciunavam o ambiente.

CAPITULO XIII

SUMMARIO

Ord'--uaçâo iumptuaiia de Filippe Augusto— Leg^lslação dos reis de França contra a diisoIuçSo e superflui- dade dus vestuários.— As rainbas da rihaldia.— ProliibifSes do6 prebostes da Paris e decretos do parlamento.— De- ■•reto de 2G de junho de 1 ili).— Pragmática do rei Ueurique vi d'Inglaterra.— Decreto do parlamento de 17 d'abril de 1429, proUibindo os enfeites das doazellas.— Uainlias e priucezas d'amor.— Ordinário de Paris.— Joaninha, viuva de Pedro Mi:.'ijel, Joaaninlia Xeufville e Joauninha Florida.— Os cintos de prata.— Inventários dus despojos de Marga- rida, mulher de Pedro Rains e de Louren^a Villeis.— Joanua a Paillarde e Ignez a Peiíuena.— OrdeuajSo d'Henrique II— Joanninha Ruisson— Dos e das que viviam da alcovitiee em bordeis, alui'a\ am quartos para o peccaJo e regiam casas de meretrizes.- O mercado dos Porceaux.

v VIMOS que o preboste de Paris pur uma ordenação de 1360. sob pena de conlisco c de mulla, prohibira que as nuiiheres publicas trouxcsscisi nos vestidos ou nos ciiapeus botões de prata ou dourados c usassem pérolas e capas torradas de pelles. Esta ordenação, a mais antiga que conbeceinus relativa á policia sumptuária das prostitutas, foi certamente precedida de outras que não Ibrain conservadas nos archivos do (Ihatelet de Paris. Filippe .4ugusto, foi o primeiro rei que iiuiz corrigir o luxo no vestuário, ou para melbor dizer, foi o primeiro que, st^b o j)rcte\to de reformar o vcstuarin para interesse pu- blico, o fez servir para designar a hierarcliia social, segundo o nascimento e fortuna. Prtde pois suppòr-se que desde os primeiros regulamentos de Filippe Augusto, relativos ao luxo, as prostitutas de profissão não poderam tornar-se a vestir como damaí e castaUãs, mas d'esla legislação de Filippe Augusto ape- nas ficaram ircordações.

A legislação, sobre o mesmo assumpto, de Filippe. o Formoso, que sem duvida nada mais era do (jue a confirmação do antecedente, não leve a mesma surte, podciu!o-sc datar de láíli a legislação dos reis de França, contra a dis- solueão (■ auperjluiilade dos vestuários. Na ordenação de iiOi não se trata das rnulberes publicas, nem do vestuário que lhes pertencia ; mas deve crèr-se não tereiu sido mais privilegiadas que toda a mais gente de baixa condição, que não devia usar nem cair, nem arminíio, nem ouro, nem pedras preciosas, e que eram obrigadas, dentro do praso de um anuo, a desfazer-se d'esscs artigos probibidos, adquiridos anteriormente á ordenação.

A execução de similhanle ordem não era cousa fácil e enire as desobe- diências mais teimosas encontram-sc as das rainhas de ribaldia que sustenta- ram, que um edito relativo ás mulheres vulgares não .se podia entender com ei- las e que o rei de França não podia querer desbonral-as até obrigal-as a usar vestidos de 12 soldos a vara.

A ordenação de Filii)pc, o Foriaoso, foi o ponto de jiartida de todas as ordenações do mesmo género, que fivcnim por hni ieno\ai-a c completal-a.

HisroniA nx l'uusTiTUir..to Tomo ii—Koliu 17.

I 'V) HISTOKIA

ndilicionaiitlo-llic piTscri|j(;ões t|iii.' variavam cdm as iiiiidas o nsns. Muitas dVs- las oi-deiiae6t>s d('\em tor sido publicadas antes da de \'.Wi, (jue, unicamente dirigida aos habitantes de Monipeilier, especialmente ás mulheres, está cheia de minuciosidades sobre a f(5rma dos vestidos e qualidade das fazendas. E' dif- ticil de aerediiar-se que muitos regulamentos sumptuários, pelo menos tão igualmente minuciosos, não tivessem sido applicados ás mulheres de Pai'is no largo espaço de lemp',' que medeia entre o primeii-o edilo, lií'i, e o de 1367. o qual apenas tinha força de lei em Monipeilier. Apenas se encf)ntra o edito do preboste de l'aris, datado de 1360, |)or nós a<'ima citado e que.ajienas se re- feria ás mulheres communs. Ceríamente houve outros éditos análogos, sem con- tar com o que exclusivamente tratava dos cintos dourados, que a ti'adição trouxe até nós, embora o texto original tenha desapparecido ; o texto também era uni- camente uma paraphrase de um artigo da ordenação de Filippe. o l-ornwso. Mas motivos ha para crer (}ue as meretrizes de Paris se nifstraram pouco dó- ceis ás ordens do prebostado e que se pozeram ena aberta hostilidade com os agentes encarregados de fazer executar a lei, pois que no decurso do século xv vemos muitas vezes i"i'apparecer, '■ sempre com augmenio de severidade, as prohibições (jue o preboste diiMgia ás suas humildes súbditas e que os decretos lio parlamento não cessavam de corroborar.

Por uma ordenai-ão de 8 de janeiro de I il'i, unicamente relativa á pros- tituição, o preboste prohibiu, sob pena de confiscação e multa arbitraria, tanto em Paris como em outra parte, tjue as mulheres dissolutas tivessem a ousadia de usar eideites d'ouro ou prata nos seus \eslidos e chapéus, botões de praia ou doui-ados, pendas, cintos de ouro (ju dourados, capas forradas de pellí'>, c tivelas de prata nos sapatos. Oeu-se-tlies o praso de oito dias para abandonar esses enfeites e d'elles se desfazerem, passado o qual praso os agentes do prebostado poderiam prender as desobedientes em qualquer logar em que fos- sem encontradas, exceptuando nas egrejas, send" levadas ao (".batelet onde lhe seriam tirados os vestidos e castigadas como merecessem.

Esta ordenação foi renovada e apregoada ao som de trombetas nas ruas e esquinas de Paris em I ilíl, o que prova n.ão ter sido muito observada pelas interessadas e que a sua persistência em não obedecer' linha desanimado o /elo dos agentes do prebostado.

O parlamento, apesar da guerra civil, da pesle e da fome que então de- \aslava a capital e muitas províncias do reino, considerou bastante importante a questão sumptuai'ia relativa ás prostitutas, e a 26 de junho de 1130 evjie- diu imi decreto no qual a essas infelizes era prohibido o usarem vestidos de «auda e toda a espécie de pell<'s de quahjuer valor que fossem, cintos doura- dos, botões nos chapéus, sob pena de prisão, conliscação e multa arbitraria passado um praso de oito dias depois i!a publicação do decreto.

O decreto do parlamento tião foi melhor obedecido, de que o lora o edito do |)reboste de Paris; e foi mister que cinco annos depois este magistrado repe- tisse as suas ordens, sem que todavia ainda desta vezcolhesse melhor resultado.

\s prostitutas não queriam renunciar aos enfeitos e constantemente illu- diau) o cumprimento das ordens, (juer modiCcando alguma cousa nas inven- <;ôes da moda, quer imitando o luxo das mulheres honestas.

Parece que o producto da apprehensão dos vestidos c jóias prohibidas dava n'aquclle tempo um resultado avultado, pois o preboste de Paris dVlle se apropriava como um dos rendimentos do seu cargo; mas IIenri(|ue vi, rei de Inglaterra, que em 14 de maio de Ií2l era senhor de Paris, não quiz i'on- senlir que esla infame fonte de rt'ceila se desviasse do seu erário e un)a or- denação d'a(iuelle anno reeommendava ao preboste, que (Palli em dcanfe não tornasse a apropriar-se dos cintos, jóias, vestidos e enfeites prohibidos das mu- lheres dissohilas ( r. irnhr df Drilfii. ilns rfis iln V." Ht/iins-tiiiA

'JiHsri 11 II A(i

l;íl

Liii iKivi) (lecrelo lio parlaineiilo ile. 17 ile abril ilf I lili (iiidiiliiu <mi;- (•rifi'ites usados pelas meivlri/A's» os veslidos tie cauda, Iodas as fM>llt>s, (|ui-r fossem usadas em eollaiinlios, piínlMs, dei)i-iiaiid(i ou com iiuaiquer outra ap- plieação. O mesmo decretn tambero prohibe \iboloes nos i liapeiis, cintos de seda, de ouro ou de prata» que são cnleites para niulliercs lioriradas.

A repetição d'eslcs decretos prova a teimosia das prostitutas em des- obedecer ás ordenações; não podiam convencei--se de que iiaviam de estar su- jeitas, como a gente de íuimiide condição, á legislação sum|itiiaiia, que á inedidu que o luxo augmenlava em todas as classes sociaes, se lurnava mais rigíirosa. Durante os séculos \\ e xvi, em que os reis de França davam n triste exemplo da prodigalidade no luxo, eram elles os próprios todavia que sob as mais severas penas prohihiam tudo aquillo que podesse concorrer para a dis- ■iolu(;ãú dos vestuários; nem sequer permitliam ás suas damas de honor e gen- tis-bomens que usassem certos tecidos reservados para os principes e prinee- zas : prohibiam a toda a classe de gente o us(j de certos bordados e passaman- taria <le ouro, de prata, ou de seda; mas as mulheres publicas, que se intitula- vam rninlia.s e princesas dr nmor, nao faziam caso dos éditos, e nas ruas que lhes eram destinadas continuavam passeando essas surperíluidades proliibidas. Deve suppor-se que assim vestidas não se aventuravam a percorrer as ruas Iwiic.stjs, pois que, despertando a attenção, teriam contra ellas concitado o odií. dos transeuntes iionrados. .lá dissemos qui' as meretrizes não eram s_vmp;iihi- cas ao povo, que frequentemente as injuriava, lhe atirava lama e muitas ve- zes pretendia espancal-as.

De vez em quando era necessaiio dar satisfação á \ingança popular, cas- tiganilõ uma dessas mulheres descaradas que voluntariamente contrariavam as leis; e para isso prendiam-se na rua algumas dessas desgraçadas, a (juem a voz publica accusava como meretrizes e que estavam adornadas com enfeites probibidos. Estes castigos nunca alcançavam as mais culpadas, ([Ue, sendo as menos p<dires, traziam sempre no bolso com que cegar a \igilancia dos agen- tes ilii preboslado, ainda que fiisseni encontradas com toda a .sua innnpii, como então era uso dizer-se. Havia muitas até que mensal, Oii semanalmente, paga- Tam a esses agentes uma certa quantia paia nunca ser inquietadas no pacilico goso do luxo prohibido.

As que eram levadas para a prisão, geralmente tinham no corpo al- guns farrapos, despojos insufíicienles para pagar os emolumentos á policia. As- sim Sauval e Delamare copiaram das contas do dominio de faris verbas curio- sas, que demonstram a pobreza das victimas vulgares do Cbatelel. O extracto do Ordinário de Paris, no capitulo Forfaiturfs, Lspace^i ti Áubaines, do anno de 1438 merece ser conhecido, como Sauval o reproduz nas Provas das suas Antiguidades de Paris:

«Pela venda de uma capa, com que Joaiininlia, NÍu\a de Pedro Miguel, mulher de amores, eslava coberta e apertada com um cinto de seda preta, com fivela e oito botões de prata, com o pezo total de duas onças e meia, em cujo estado foi encontrada passeando pela cidade, desobedecendo ás ordenações, c pelo que foi presa, sendo a dita peça de vestuário e enfeites confiscados |»ara o rei e vendidos em hasta publica a 10 de julho de i427, a saber: as pecas de vestuário pelo preço de sete libras, doze soldos, cuja quarta parte pertence aos agentes que a prenderam. >•

«Pelo valor de um cinto velho de seda preta em que havia uma chapa, oito botões de prata e uma fivela de ferro branco, encontrado a Joaiiiiinha Neufville, presa |)or isto.»

Não se detinhanr, não se prendiam senão as mulheres que se encontra- vam na via publica com vestidos que não deviam trazer; d'onde resulta que eram livres de se vestirem a seu gosto no interior de suas casas e ainda no

*

lo? . iiisior.u

recinto dos logares próprios para o evercifio da sua escandalosa profissão. As inuiliercs d'amores, (jue não eram obrigadas a ncnluinia declaração prévia nos re- gistros do (Ihatelet e que se suhtrahiam d'csta forma á ignominia da sua con- dit'ão, podiam pelo seu nascimento e pelo seu estado civil, conservar uma appa- rencia dMionrailcz, occultamio a sua verdadeira profissão, até que [>or um acaso fatal se descobrisse o segredo da sua existência vergonliosa. .\ssim, Joan- ninba, viuva de Pedro Miguel, não tinba alcuniia onde se rellectisse o escân- dalo da sua eonducta; Joanninha iN'eufville tinba um bom appellido entre agente honrada: emcjuanto que .loanninba, a Fleurie, ou Poissonière, tinba dois em to- gar d'um, e o uiíinio parece indicar que se dedicava alternaiivam(>nte á pros- tituição e á venda de peixe.

Além d'isso, dissemos n'um capitulo anterior que o actual bairro atra- vessado pelas ruas Poissonière e Moniorguiel era inteiramente occupado pelos habitantes das Cortes dos Milagres e pela clientela da prostituição. Aecrescen- taremos agora que os vendedores de peixe, tendo necessidad'' de estar próximo do logar oiid(> o peixe desembarcava, alojaram-se ao principio no sitio cha- mado Vollarroiíeu.r. que mais tarde veio a ser a rua dos pescadores. Facilmenti' se adivinham os motivos que contribuíram para dar a alcunha de Pescadora » uma mulher fácil, que frequentava os mercados de peixe, ou que andava rodeada de pescadores. O nome de Joanninha não era commum e genérico para designar todaS as miilhercs publicas, como o cn'' Rabnlaux. Não devemos esquecer no- tar ainda que os objectos contrários á ordenação encontrados em poder das mu- lheres de vida, eram equiparados aos objectos perdidos na via publica, os quaes, não sendo reclamados em tempo opporluno, pertenciam ao fisco. Depois d'um praso de 50 dias, uns c outros eram vendidos em hasla publica, e o pro- ducto da venda, (jue era iníinio, distribnia-se pelo rei, pela cidade c pelos em- pregados da policia.

Sauval não ana!\ sou todas as vendas d'esta espécie deseriptas nas con- tas do Ordinário de Paris, mas tomou nota d'elias e d'ahi .se conciue que eram mui raras, pois menciona muitos annos em que não encontrou nenhuma, pelo menos nos registros do prebostado. A conta de I i'i-7 contem este artigo :

'(\'enda tie um cinturão com fivela e quatro bolões de prata eneonti'ado em poder de Gmjomie la Uroijitre, mulher de ribaldia, pertencente ao rei por confiscação. .

.Vos cintos de prata ou com cila adornados faziam os agentes de policia especial guerra, provavelmente para assim justificar o provérbio. .4s multas, a que o uso illegal dos ciiitos dava logar, estão registradas nas coiitas dos an- nos ISoi, 1457, 1 'itiO, 1 Í-6J e 1464. Desde esta ultima epocha as persegui- ções são menos frequentes, o que leva a crer eslarem os cintos fora de moda. O extracto do capitulo das Forlailnres íie 1 íõ7, csiá concebido n'estcs termos:

v<Muitos cintos para uso de mulheres, com fivela e botões de prata per- tencentes ao rei por ferem sido confiscados a nuillicres de vida. que os usavam nas ruas de Paris confra as ordenações rí'guIadoras do assumpto. »>

Na conta de I i.'j9 i-nconíra-se » inventario da roupa de duas mulheres de vida fácil, de apjiellidos nobres, poslo que vesti.ssem com grande ditierença. A primeira pelo vestuário miserável, revelava o triste estado a que o vicio a havia reduzido, sem que os encantos lhe tivessem dado meios para levantar-se da sua abjí-eção : sem dusida para ser presa com tal vestuário devia ser velha f feia :

••i'm vesti<lo eurto de~|'anno cinzenio coiii enfeites de seda branca, e tudo isto no fio, umas velhas calças de panno violeta remendadas, e um gibão de fusfão como o f|iie Margarida, mullxT de Pedro Piains, eslava vestida, foram declarados pert(Micentes ao rei, etc.»

K' singular encontrar-se uma mulher puldica com gibão e calças comn

IH IMUISI I ll« V(J

I3:{

SC, |)(ir iH'cossi(l;ule, tivesse (luerido (iisl'art.'íir-se em hoiiieiii. A se^undii ré, que sem duvida Ibi presa por aecusayàn do povo ao sahir da e^-^eja, di-n mais lu- ero aos agentes t|ue a levaram ao ('lialeie(:

«Um cinto com fivela e botòcs de prata dourada de peso de duas ouças c meia, com um cinturão mais largo pòr baixo, também guarnecido de prata dou- rada; um rosário de coral, um li/nit.v Dei de praia com fechos de jtrata ilou- rada e uma capa de vcllii lo forrada de vair, declarados perleneentes ao rei nosso senhor, em virtude de eontiscaçãõ feita a l.durenea de Vilieis. mulher de vida, presa por uso d 'estas prendas, etc.»

Era esta uma mulher ?iol)re, qualilícada de prostituta, obrigada a aban donar ao rei os objectos de luxo que nem mesmo por devoção tinha direito de trazer. Esta Lourença de Villers sabia \òr, pois que ia á egreja com o seu Ágnus Dei. ou livro de missa, o que decerto era uma excepção entre as mulheres de vida.

Na conta 1460 as multas por usar vestidos e cintos proliihidos pare- cem dever ter sido numerosas, mas não d'uma grande utilidade para os que as lançavam : a «.Joanninlta a Bnllariíe, prostituta, foi apprchendido um vestido de panno cinzento com forros Itrancos, pois loilo o género de forros eram tam- bém prohibidos ; a líjacz a Peqiifwi, mulher casada, mas de' vida dissoluta, e como tal pi'esa muitas vezes por igual razão, foi apprehemlido um cinto em mau usT. E assim com raras excepções a todas as demais.

l.síe ultimo artigo, como atiirmamos, prova que muitas vezes mulheres, casadas exerciam a profissão prostitutas. Sendo o uso dos cintos n'aquella época objecto de espcciaes perseguições, cremos que uma ordenação particular teria motivado as que em maior grau solTieram as ribaldas, contrariando-as.

Estas mulheres eram incorregiveis, quando se tratava dos seus adornos ; Iodas tinham mais ou menos paixão pelas jóias e não temiam e\põr-se á pri- são e ás multas para ter o goso de se enfeitarem com adornos douro, ou de prata, ou mesmo até de estanho prateado. ISão era isto porque quizessem disfarçar a sua profissão deshonrosa e pretendessem confundirera-se com as mulheres ho- nestas. Elias nã» se revollavam contra o espirito das ordenações com que se pretendia remediar a confusão das classes sociaes entre homens e mulheres de lodos os estados, os quaes, diz uma ordenação de Henrique ii, p07' esle meio, não podem dislinguir-se uns dos outros. As ribaldas de profissão, pelo contra- rio, não pretendiam apparentar o que não eram, mas gostavam de adornar-se para chamar a attençào e para rivalisar entre si cm luxo.

t]omo os coitares, braceletes c anneis eram prohibidos, illudiani esta pro- liibição, u.sando jóias devotas: rosários, nominas, cruzes e anneis bentos; cm- Ijora os agentes policiaes não tV)ssem todos bastante devotos para fechar os olhos a estas piedosas contravenções e não deixassem de esperar as culpadas ás por- tas das egrejas para as levar ao Chntelel ng meio da gritaria do populacho.

Parece que Luiz xi, fazendo elle próprio um grande abuso de nominas íí amuletos, de rosários c 'Agnus Dei, providenciou severamente contra as mu- ilicres de vida que usassem objectos similhantes que não lhes eram confis- cadas em proveito do rei as jóias, que nem o seu caracter de devoção podia pòr fora do alcance da lei, mas eram também condemnadas em multa as mulhe- res que as usavam. Em 1403 Joanninha Ruisson foi condcmnada a quinze soldos, quatro dinheiros parisii (uns vinte e cinco francos) pelo uso illcgal de dois rosários de coral. Luiz xi mandou também castigar rigorosamente todas as ribaldas que fossem encontradas vestidas de homem nas ruas de Paris.

No capitulo de crimes e delirtos do Ordinário de Paris em 1491, lè-se o seguinte :

«Pela vcn<la d'um fato preto de homem e d"um chapéu, tudo velho, com que Joanna a ribalda eslava vestida e que n'esse estailo foi levada presa para

\'\í ' HISTORIA

O (.'-liatflct lit' Paris, a il <li' maio ultimo, declaiados clu rei por lontisfação.» Não ousamos cmillir opinião acerca do disfarce masculino, que parece ter lid(» muitas vezes um fim deslionesto nos actos da prostituição. Junto das ribal- das havia sempre alcoviteiros ou auxiliares da libertinagem, que, apesar das ter- ríveis penas das leis, mui tranquillamente se entregavam ao seu infame eorn- mercio : mui raras vcices eram perseguidos e mais raramente ainda julgados e Cí.ndemnados. Ordinariamente quando as queixas dos visinlios ou das victi- mas obrigavam a justiça a fazer demonstração de publica severidade, eram pres(is CS accusados, mas tudo terminava por uma composição em dinheiro, por un)a confiscação dos immoveis e pelo desterro. Muitas vezes o culpado era absolvido em virtude do que pagava, mas do que mui rapidamente se indem- nisava com o protiucio do seu negocio.

Aqueiles ou aqueilas que tinham bordeis, alugavam tenda.'' para u peea- (Jú, administravam um eslabelecimenlo de niuilieres publií^as, emprestavam di- nheiro cism usura, moveis ou roupa, aqueiles que, n'uma palavra, viviam á custa da prostituição legal, eram tolerados, senão protegidos, e na sua infame intervenção se reconhecia uma influencia salutar na libertinagem.

As mulheres que se <>mpregavam n'esta infâmia era preciso serem vigia- das por uma auetoridade que lhe regulasse o seu procedimento e que constan- temente as vigiasse: era-llie portanto facultado o terem um ribaldo ou uma ri- balda como regente. Estes chefes de ribalderia disfarçavam-se geralmente com um nome honesto e decente: umas vezes tomavam o de porteira, de ciiinarci- ra, de estalajadeira, ou de negociante; mas sempre, homem ou mulher era pessoa de idade madura, de velhice apparentemente respeitável, de altitude austera, de palavra sisuda e grave, de ares solemnes, o que não impedia que o digno personagem constantemente estivesse evposlo ás desgraças da prisão, dos açoutes, do desterro, ele, segundo a leltra da lei romana.

A lei franceza prescrevia a pena de morte para os intermediários convi- ilos d'esla industria ; mas esta penalidade, posto que permanecesse como es- pantalho no Código penal, quasi nunca era applicada. Emquanfo ao re.sto, a opi- tiião dos jurisconsultos não tem variado com relação a um crime, que sob o ponto de vista moral e o da applieação da lei não encontrava a mesma tolerân- cia.

Alcoviteiros e alcoviteiras, diz o celebre José Damhoudere na sua Pratica farense de causas criminaes, que servia de formulário a todos os jurisconsul- tos, do século .\.vi, alcoviteiros e alcoviteiras que levavam as mulheres a pec- car eram por direito, castigadas corporalmente, e por costume, para o desterro ou outra pena arbitraria, segundo os paizes ou cidades.».'

Os antigos criminalistas faliam muito sobre este ponto r ronc<K'dam em (]ur a pena foi deixada na lei como útil precaução, para atalhar os excessos da libertinagem, oppi>ndi» ás mais atrevidas auxiliares uma barreira legal.

O douto João Durei, no seu Traiíé .de pelnes et nmendes. (ediç. de Lvon, 1583, i1. IO.'),) é tão explicito a este respeito címio J-. de Dainhoiidcre:

"*)s (jue alugavam ou emprestavam casas para exercer o lenocinio, diz, perdem o seu direito de propriedade e são condemnados a mais dez libras cm ouro de multa. De fado (ts nossos práticos, segundo as penas ordenadas por direito, castigavam-as corporalmente ou com a morte. >>

í'odem citar-.se mais d'um exemplo de pena capital, dada a culpados de ambos os sexos, segundo as circumstancias especiaes do seu crime. Assim, Duret, cita este paragrapbo, em (jue ikis a conhecer os casos em que se re- queria a pena de morte contra os in.stigadon's da libertinagem.

«(,>ue se o pae, a mãe, o irmão, a irmã, o tio, a tia, o tutor ou curador é quem entrega assim a (ilha, parente ou menor, ou que a alcovilice seja para induzir ao adultério, a morl(> é pena siinicienle.»

fíA PROSTITUIÇÃO 135

Outro jurisconsulto da tnesnia época, Cláudio Lebruii de la Rochette, no seu tratado pratico, intitulado Les Procès ciril et crimineis, icdiç;. de It)l7,) emprega um capitulo inteiro para estabelecer os dilTerentes graus d'alcovitice, concluindo que a impudicicia, filha da ociosidade e da mesma alcovitice pro- duz a íornicavào, o adultério, o rapto, o incesto e a sodomia.

«Seja, diz elle, que os execráveis verdugos das consciências tenham a^^ mulheres, de que são correctores, nas suas casas, seja que com boos palavras, promessas e artiticios as attrahiam, ou que levem junto delias os homens liber- tinos, em nada diOerem dos ijue próprio corpore cpiaefsinm fnciunt, como disse I/lpano na lei Pulam. (Pár. f.enorinium, ff'. />.' rim ni/pr. I. Arhletns. Par. i, //'. /?'' his qui nor. úi/a»)!.)»

Cláudio Lebrun de la Rochette, faz notar em seguida a indulgência dos tribunaes francezes sobre o facto do lenocínio :

«E ainda eram castigados antigamente, diz, com o ultimo supplieio, pro- vando-se que o alcoviteiro costumasse sub^^rnar as jovens que arrasl-tva a per- dição, que as seduzisse com presentes ou palavras persuasivas, c (jue por esta forma as obrigasse contra sua vontade á prostituição a que as queria expor, para tirar lucro de similliante torpeza. . . Porém os tribunaes soberanos dos parlameíitos d'eslc reino e os inferiores castigavani-os mais levemente, iiini- tando-se a substituir o desterro peia fustigacão. ilcnfro ila cidiíde, ondf exer- ciam o seu olliciu ou onde fosseni presos.»

Cremos que a tolerância com os terceiros, não se comprehendia com aquelles que trabalhavam em corromper a juventude e a innocencia, mas com os que geriam lupanares ou seus donos. Fazia-se disfinceão entre estes e os vis e detestáveis tentadores que corronipiani a innocencia, eonspií-amlo sem cos.sar contra a honra do sexo feminino.

«Que se evitavam aqui o castigo humano, dizia d'estes corruptores o honrado Lebrun de la Rochette, não evitariam o divino, que sempre ao mau com usura o castigo da sua maldade.»

Emquanto aos proprietários c gerentes dos bordeis, por toda a parte lhes era dada uma protecção tacita e a elles se recorria, como intermediários officiosos, para a execução dos regulamentos da policia. Auclorisavam-se de preferencia as velhas para dirigiros estabelecimentos de prostituição, e chamavam-se maqnerel- les publiqws. Oucange cita um documento, datado em I.3'j0, que confirma esta qualificação: ín domo rupmiinm iiviqufrellw publirO' in \'ill.a ]'aleniianis. E' quasi certo que a matiucrelln publica existia e praticava o seu oificio sob a to- lerância da lei munifipal.

Todavia, as ordenações dos reis, os decretos do parlamento e ós edictos do preboste de Paris tinham reprovado, prohibido e eondemnado muitas vezes o mnquerellaiie em geral, sem fazer reserva alguma, nem adiiiiltir nenhuma i-irwunistancia attenuante. Numa ordenação de ÍMH7, anai\sada por ÍRdamare. o preboste de Paris prohibe «a todas as pessoas dum e outro .sexo o adminis- trarem mulheres para fazer peccado do seu corpo, sob pena de serem expostas no pelourinho e queimadas (quer dizer marcadas com ferro camlentei e expul- sas logo da cidade.

Esta ordenação, como se vé, comprehendia indistiiictamente as pes- soas que administravam uma ribaldia de mulheres publicas. Todas as ordena- ções relativas ao aluguer das casas tocavam indirectamente a questão de nia- qu^rellage, e os indignos auctores d'esta vileza, não podiam pratical-a sob a qualidade de proprietários ouinquilinos principaes. O ediclo prebostal de 8 de janeiro de Itlo, reproduzido textualmente cm Iil9. occupando-sc de prohibir ás mulheres libertinas de se inslallarem nas ruas honestas, prohibe também a qual(|uer pessoa procurar mulheres p.lra fa:i'r pecrmio <h vc» rorpo, sob pfn.i

1 36 HISTORIA

de serem postas uo peiourinlio, marcadas com ferro em biai;a e expulsas da ci- dade.

Tal é o castigo mais frequente que se lhes infligia, quando estes instru- mentos de Safanaz, como lhes chamava Lehrun de la Rochetle, tiniiain ajudado a algum escândalo publico. A's vezes condemnavam-se á fustigacáo ou a cor- tarem-se-lhes as orelhas; pai-ece também que algumas maqmrellas foram en- terradas vivas.

Estas penas traziam comsigo muitas vezes a confiscavão, a suppressão c demolição da casa que tinha sido Iheafro do crime. Pelo menos é isto o que nos permitte suppòr uma passagem das Contas do Ordinário de Paris durant<= o anno de 1428 :

«De Mcolau Landemer e de Isabel, sua mulher, pela venda de um terreno cm que houve casas, quatro bordeis e ediOcios hoje destruídos, sitos cm Parií-j na Cite, em Glatignij, pegando com outra por uma parte... e por outra foi- mando a esquina de uvn bei-o pelo (]ual se desce para o Sena.»

Sabemos que, segundo um cosfiime que dafa da mais remota antiguidade, se deslruia uma casa que tinha sido maculada com um crime e se deixava o ter- reno vasio por um tempo determinado na sentença, como para purificar o logar inaldifo." Cremos, além d'isso. que uma casa cm que ti\essc ha\ido por muiln tempo bordel, não era occupada por gente honrada sem previamente ser reedi- ficada.

iN'o capitulo seguinte, consagrado a factos dispersos da prostituição em dif- ferentes cidades, vér-se-ha que o castigo infligido aos alcoviteiros sotlria algumas variantes .segundo os paizes. Entre as execuções que tiveram logar em Paris não encontramos uma única em que o pacienie fosse um maqvtreau ( rufião i mas em troca as maguerellas abundavam. Sau\al diz-nos (t. ii, pag. o90} que uma ixnquerella que jurara escandaloòtunente, em 130!, foi exposta no pelou- rinho ou patíbulo de Santa denoveva. Em Paris havia vinte (m vinte e cinco justiças particulares com patíbulo, onde os rnoqutrellcs f as inaquerdlas-, \n<diíw.\ ser açoutados.

U mesmo bispo de Paris tinha um pafibul(j ile justiça no a.frio de Nossa Senhora, e as sentenças do funccionario, que fazia as vezes de bailio do bis- pado, recahiam com frequência em mulheres dissolutas; o que prova que a prostituição não esla\a de todo foi'a do alçada da justiça episcopal. Em 1399. esfe funccionario para castigar uma mulher convicta de lenocínio, condcmnou-a a ser posta no pelouriniio com (j cabello queimado, desterrada da ferra do bispo e confiscação de bens. (\. o Glossaire de Ducange e tiarpentiei' na palavra Cn-

Outra execução do mesmo género fe\e logar anteriormente.

( uia, chamada Izabel, que tinha vendido uma joven a um cónego da '•alliedral, foi exposta sol)re o patíbulo c n"ellc atortnentada e chamuscada com uma tocha, depois do que, foi desferrada perpetuamente. Mas, em 1357, izabel obteve carta de remissão do i'ei, provavelmente por mediação do cónego, que parece não ter sido perseguido pelo liraço secular. A tocha (|ue figura no stip- j)lício d'esta mulher, servia para chamuscar, queimando tudo quanto tivesse pelo eor|)o. Estas execuções affrahiam mais gente que todas as outras.

iNa conta do Ordinário de 1416, {Provas das Antir)., de Paris, tit. ii!,j !é-se que os empregados do Chatelet compraram uma dúzia de varas de álamo verde, para conter o povo que assistia á justiça das waqufnrUaò-. que foram conduzidas pelas ruas de Paris, avergasfadas, chamuscadas e expostas no pe- louriídio. ,\as mesmas contas se encontram muitas outras d"esfas mulheres, levadas ao pcioininho com o mcsnio cerimonial c cmii o mesma distribuiv^to de paniNula aus espectadores.

O jtehjniiiiho i'm (pie MrilÍM.iri;nM''nle cr.iin p\])'l^l:l>< as prostituliís. i'iit o

DA PROSTITUIÇÃO

137

Has Hall.es, que foi constriiido na mesma praça onde existia o poço Lori. Antes, nii no próprio momento das execuções, punha-se em cima d'esle poço um ta- blado em que se collocava uma espécie de jaula giratória, por cujas aberturas as pacienics mostravam a cabeça e as mãos, ficando assim exposlas á vista do publico durante um dia de mercado. O carrasco, que presidia ao supplicio, de- via successivamcnte virar para os quati'o pontos cardeaes os criminosos, de- pois de ler cumprido as prescripções da sentença, coriando-lhes as orelhas, íla- geilaiidu-os, etc. Em geral, as prostitutas, que sofTriam esta pena infamante, eram escarnecidas pela multidão, (jue lhes atirava insultos e lama.

Nem todos os pelourinhos eram moveis, como o das Halles de Paris: or- dinariamente só tinham uma escada sobre um tablado: o paciente, atado e col- locado na parte superior, em posição muito incommoda, noticiava á multidão por meio de um letreiro que lhe estava fixo no peito, nos hombros ou na ca- beça, o crime commeltido. Dubreuil diz ler visto no átrio de Nossa Senhora, pertencente á justiça do iispo, um sacerdote que tinha nos hombros o letreiro: Propter fornicationis.

O chibatar-se e eN.por-sc as proxenetas foi sempre coisa para alegrar o povo de Paris, que se agglomcrava no caminho da victima e a acompanhava até ao logar do supplicio. Todas as mulheres publicas e todos os libertinos se deliciavam em presenciar o castigo d'aquellas infames mulheres, que en- riqueciam á sua custa. Esíe género de execuções, sempre acompanhadas da mesma atlluencia e da mesma alegria, poucas vezes se reproduzia, em vir- tude do escândalo a que dava causa.

Comtudo podem citar-se alguns exemplares no século xvii. Lebrun de la Kochelte, no Procés Criminei, falia d'uma celebre alcoviteira de Paris, chamada Dumouiin, que por este modo foi castigada no reinado de Luiz xiii, e embora salvasse as orelhas, foi perpetuamente desterrada do reino.

Nos registros do parlamento pôde descobrir-se um grande numero de decretos e execuções do mesmo género : algumas d'estas execuções foram to- davia espectáculo mais trágico. Nas contas do prebostado de Paris, em 1440, encontra-se um facto, citado por Sauval, e vor nós altribuido a um crime de alcovitice com a aggravante de roubo. Eil-o aqui :

«Pela venda dos bens moveis das defuntas Joanninba fíonne-Vallet e Maricas Bonne-Cosle, enterradas vivas jtela justiça de Paris, pelos seus cri- mes, ele, cujos bens foram arrestados, mas depois entregues muitos d'elles a certas pessoas a quem pertenciam, por serem mal adquiridos pelas referidas mulheres.»

Na feira dos porcos em Saint-Roch, tinham logar os supplicios das mu- lheres condem nadas a serem enterradas vivas, castigo muito usado antes de serem enforcadas, como se fazia aos homens.

A primeira que foi enforcada em Paris era uma miserável, que exercia to- dos os ofTicios inherentes á prostituição.

Em 1440, segundo os historiadores de Carlos vii, foram enforcados três infames, réus convictos de todo o género de crimes: um d'elles foi executado na poria Saint-Jacques: o outro com sua mulher na f orla. Saint-Denis: «Posto

HI8T0BIA DA PROSTITDIÇÃO. TOMO H FoLHA fS.

138 HISTORIA

que fossem marido e mnllier, diz Sauval, viviam juntos como se nào fossem casados;* o que prova prostituir o marido a mulher, e ser esta igualmente eiimplice das torpezas e infâmias do marido.

Sauval circumstancía miudamente esta historia patibular:

«Como em França, diz eile, ainda se não linha visto enforear uma mulIuT. Paris inteiro correu ao logar do supplieio. A ia desgrenhada, vestida com larga túnica atada na cintura. Cus diziam que ella havia pedido para ir assim, por ser este o uso da sua terra natal; outros aliirmavam ser ordem dos juizes, para que as mulheres por mais tempo se lembrassem da execução.»

Este supplieio todavia não foi excepcional, pois Sauval cita mais dois casos tirados das Contas do preboslado em 1457.

«A chamada Herminia Volcuciann. condemnada a ser cnleriada \iva sob o patíbulo de Paris, (isto é, em Montfaucon) pelos seus crimes, etc.»

«A chamada Luiza, mulher de Hugo Ghausier, enterrada no mesum lo- gar, para o que se fez uma cova de sete pés de comprido.»

A pena de morte applicava-se de muitas maneiras, segundo a vontade do juiz, que umas vezes ordenava a expiação do crime por meio do fogo, e ou- tras por meio da agua. Entre as mulheres enterradas vivas em Paris, ou lan- çadas á agua e afogadas na Pont-au-Change, pódc-se aflirmar sem receio de errar que muitas haviam praticado actos horríveis, (jue a jurisprudência da Edade Média contava como peccados contra a natureza.

«Emquanto ás mulheres que se corrompiam umas ás outras, chamadas pelos antigos (ribades, diz o austero auctor do Procès CrÍDiixel, não peide du- vidar-sc que entre si commellem uma espécie de sodomia... E é digno da pena de morte este crime, como bem o observa nas suas Resoluções M. Boyer.»

Não recorremos ao b^slemunho de Niddau Bover, auctor das Resoluções^ hurdigalenses, para mostrar que os parlamentos dos tribunaes inferiores eram sempre intransigentes com respeito ás mulheres de vida, que anli- e)l»^s compareciam sob o peso d'uma accusação criminosa.

Daremos a razão dVsta severidade, citando a passagem do livro de Le- brun de la Rochette, que consigna n'estes lermos a opinião unanime dos ho- mens da lei, acerca dos infames auxiliares da prostituição:

«Emquanto aos alcoviteiros e alcoviteiras (maquereaux el maquereUet; ' são absolutamente insupportaveis como inimigos da honestidade, traidores do pudor conjugal e virginal, as.sassinos da santa sociedade humana, dilTamadores da legitima successão dos herdeiros, tições do inferno e verdadeiros instru- mentos do espirito immundo, que nunca foram tolerados em nenhuma repu- blica bem constituída, por não mostrarem senão paganismo e alheismo, como se pôde vèr nas Consliluições de Justiniano, novell. 14."»

Todavia, um dos primeiros códigos escríptos em franccz, o l ihrt- de jos- tice el de piei, que contem os usos de França misturados com uma traducçã" litteral do Digesto, impõe a pena de desterro e confiscaçãi» de Iumis aos au- xiliares da prostituição :

«.4quellc que faz maus ajuiilainenlos de boribdaria deve perder a cida'le, e seus bens são para o rei. (Livro xviii, eap. 24).»

DA PROSTITUIÇÍO . 4 39

Este artigo coinpietava-se com o seguinte, que prescreve a fustigaçào antes do desterro :

«O alcoviteiro de mulheres deve ser fustigado e expulso da cidade, e os seus bens silo do rei.»

Temos seguido passo a passo os vestigios da legislação contra a prosti- tuição e seus immundos auxiliares, nos códigos e usos da Edade-Média. A lei, como temos visto, era quasi sempre implacável contra os réos d'esta deplorá- vel aberração, embora não houvesse nas suas disposições titulos especiaes para estes crimes.

Outros capítulos da nossa obra serão ainda empregados no mesmo as- sumpto. Poderíamos adduzir milhares de citações, comprovativas do qi\e vamos asseverando, á custa de longo e paciente trabalho de investigação. Resolvemos, porém, ser de ora avante o mais sóbrios possivel na transcripção de textos an- tigos, para não fatigarmos a paciência dos leitores.

CAPITULO XIV

SUMMARIO

Estadu da pjustltuifâio legai uai províncias da antiga França.— Cosfumi s de Beauvoísís.— A piOítitulijSu uo ducado de Oiieans.— O Livre de jostice et de plct.— .^s pro'v\aÚ3s rio Norto.— Organização da libcrlinageai pdilica em Tolosa, Montpellier, Narb'jnna. otc— Costumes de Bayonna, de Marselha, Montfoil, Kodez, Nimes, ete.— As multie- res do costumes livres 'ie liagnolles e de S. Saturnino.— Bordéus. Supplicio, deDOminado da accal/ussadc- Mars-.- Iha, Sisteron, .\viul)3u, Lyon. «to.— Costumes diversos.— Os lombardos e as prostitutas Troyes, AnieDS. LaoD. Meaux. etc— Ruas sem aucloridade local, destinadas á prostitiii^-So.

uRDENAç.\o de Luiz IX, relativa á prostituição, c sempre a única base da jurisprudência sobre esta matéria que os outros reis de França apenas ousavam tocar, depois do santo rei, tjue não rc- ceiou pòr-liie a mão, para a fecliar em prudentes limites; mas os juristas e os magislrados, sem deixarem de acceilar a ordena- ção de \2'ái, ou anies a de l2oG, alteraram ás vezes o texto e interpreiaraiii-no também de difterentes modos, segundo as necessidades: juntaram-llie ainda, como corollarios indispensáveis, certas disposições da lei romana que estava em vigor nos íribunaes, e que se confundiam, mais ou menos, com as fradicções consuetudinárias, ultimits vestígios dos usos e dos códigos bárbaros.

Estes usos mudaram completamente o estado da prostituição legal em cada província e ainda em cada cidade. Era necessário con.'^ultar n liisloria particular d'estas cidades e províncias, e .sobre tudo fazer um exame delido da legislação local, para mostrar as extravagâncias annexas á tolerância da pros- tituição, e especialmente á penalidade que soíTria em certos casos. Nós apenas podemos esboçar ligeiramente um assumpto tão abundante e complexo, cujos niateriaes se achariam dispersos em muitos volumes, que não lemos paciência para consultar, e que não nos otíereceriam, talvez, mais do que numerosas repe- tições inúteis. Julgar-se-ba, noemtanto. por um rápido extracto dos nossos apontamentos, se seria possível fazer, cidade por cidade, e ainda villa por vilia, uma verdadeira pornographia da França antiga, apoiada em textos au- thenticos.

Notemos de uma vez para sempre que a prostituição nunca lem titulo es- pecial nos corpos de leis, de ordenações ou de usos ; encontra-se misturada em varies outros títulos, onde figura entre trechos heterogéneos, que não teem re- lação com ella e que lhe são completamente estranhos. Ha usos geraes onde não se encontra, como se o pudor do jurisconsulto a tivesse eliminado de pro-

1 HISTORIA

posilo. Assim, iu»s celebres Coulumes de. Beaucoisis, (|iie foram a fonte prin- cipal do direito francez por espaço de quatro séculos, inutilmente se procura uma decisão, que se refira á libertinagem publica. O caracter pessoal do juris- consulto, a austeridade de seus costumes e a modéstia da sua linguagem, op- punbam-se sera duvida a que admittissc no formulário dos costumes do seu paiz o escandaloso capitulo da prostituição.

O auctor anonyrao do Lirre dejostice ei de plet, redigido ao mesmo tempo nas escolas de direito de Orleans, não se mostra tão reservado nas cousas nem nas palavras. Começa por paraphrasear a ordenação de S. Luiz sobre a reforma dos costumes, e traduz no seu dialecto orleanez o artigo concernente á prosti- tuição :

«As mulheres publicas dos campos e das cidades sejam expulsas, e en- Ifm (1 juiz llips confiscará os bens. Item, todo aquelle que alugar casa a mu- llier de vida, ou liver bordel na sua casa, fica obrigado a pagar ao bailio ou ao preboste, ou ao juiz, tanto quanto valha o aluguer da i'asa n'um anno.» Vé-se, pois, que a escola de direito de Orleans mantinha em vigor com força de lei a primeira ordenação de S. Luiz, que tinha abolido a prostituição, e não a segunda, que dois annos depois a auctorisava sob uii. regimen de to- lerância.

Km virtude d'este principio fundamental, registrado no Livre de jostice et de piei, vimos no capitulo precedente as penas com ((uc eram castigados o ma- qiierel de íiiulheres, e o (jue /«^ maus ajunlamenlos de bordelaria. Este não era mais que um industrial, que fazia bordeis em sua casa, tirando d'elles um lucro infame: o outro procurava corromper em .seu proveito as mulheres que arrastava ao vicio. Este ultimo alcoviteiro, mais culpável que o simples bor- delciro, pois como tal estava na cathegoria de ladrão, era considerado infame, sob a denominação de maurenomex.

Entre os alcoviteiros da peor espécie, o Licre de josllre designa, todavia^ fundando-se na Lei romana que incessantemente cita, a ignominia dos taber- neiros e taberneiras, que geralmente não se limitavam a dar de beber aos seus freguezes, mas também lhes offereciam uni pedaço de carne, para nos servir- mos da expressão consagrada em taes logares.

A ordenação de S. Luiz, que precede o Licre de jostice, contem unica- m<'nlc este artigo, (|ue a Irailuci-ãn do auctor an(jn_vmo não deixa muito clara:

"Ninguém seja admillido a vi\cr numa taberna, se não fòr pessoa seria, ou se não morar no mesmo edilicio da taberna.)^

O final d'cste paragrapho pôde entendcr-se de diversas maneiras: pode julgar-.se que a taberna nunca podia transformar-se em hospedaria, e que uni- camente se compunha d'uma loja sem domicilio annexo c sem andares supe- riores destinados a dormidas.

Uma passagem da velha traducção do Digesto confirma a opinião, cm (jue eram tidos os laix-rneirus e pi-incipalmcnle as tabernas, tanto em França como entre os i\omanos :

«Se uma mulher é taberneira e tem na sua lahcrna mulher leviana, que prostitue i)ara ganhar com ella, deve ser tida como alcoviteira.»

DA PROSTITUIÇÃO H3

O antigo direito francez ditlere radicalmente do direito romano em todos os pontos em que o cliristianismo o niodilieou; assim, posto que aquelle que possuía um bordel era qualificado como rnaurenontex, a mulher de vida não participava d'esta nota infamante, e isto por uma rasão de caridade evangé- lica, que dava sempre á mulher tempo para arrepender-se e voltar á vida ho- nesta. Não era então raro vér, para resgatar uma alma, um hom ehristão pro- curar esposa n'um logar de prostituição. Fundando-se, pois, niima decretai de Clemente iii, o auctor do Licre de jostice et de piei, pôde dizer:

«Estabelece-se que todos os que esposarem mulheres de bordel o façam em remissão de seus peccados, Note-se bem que é obra de caridade chamar ao caminho da virtude os que andam no da perdição.»

(> mesmo livro propõe, no emlanln, um caso de consciência sobre o ma- trimonio d"cste género, e para resolvel-o, in\oca nma decretai de liinocencio m, intitulada Significasti :

«Houve um homem que trouxe para a sua coinjianiúa nina prostituta, tendo abandonado sua mulher e sendo por isso excominuugado : quando a mu- lher d'esse homem morreu, tornou elle a tomar a prostituta para a sua compa- nhia. Pergunta-se: Podem viver juntos? Responde-se : se tentaram o assassínio da mulher, ou se o homem não deu pala\ra de casamento á prostituta sendo viva a mulher, o homem deve ser absolvido, se o requerer.»

O Livre de jostice et de plet, no qual se trata do matrimonio com um tal impudor de expressões (|ue não ousamos reproduzir, não é todavia indulgente para com as mulheres que se prostituem, nem para com os homens que as favo- recem na |)rostituição. Não tinham estes o direito de testai', nem podiam obter juizes :

«Testemunhada a fama, o rei pôde fazer justiça nos ([uc tem bordeis.»

As que exerciam o mesmo oHieio, ou tinham tai)ernas, eram egualmente incapazes para com a justiça:

«Prohibe-se que a mulher seja taberneira ou proprietária di' bordeis, c se o fòr. ou os tiver, está fora do direito commum.»

Estas duas passagens, que parecem contradizer as que aiílcriormenie citámos, provam a existência permittida ou tolerada de certos bonleis adminis- trados por homens e mulheres, que como os judeus consentiam cm viver s/ib o constante rigor da lei, rigor (|ue muitas vezes altenuavam |ior meio de c(ni- tribuições secretas.

Apesar d'esta tolerância necessária á vida publica das grandes cidades, a policia dos costumes era sempre regulada por leis austeras reprimidoras dos excessos e escândalos. Assim, a fornicação, ordinariamente impune, tinha um artigo penal no código consuetudinário :

«Os que se entregam á fornicação devem moderadamente ser castigados com pena corporal.»

Mas em circumsfancias excepcionaes o castigo era applicado aos (|ue fornicavam. Todavia a mulher, que se separava do marido para eommetter egual delicto, perdia os seus direitos conjugaes. Mas o rapto, a violação, o adultério, a .sodomia eram rigorosamente castigados pelo direito commum.

i 44 HISTORIA

«A lei que o imperador Justiniano fez sobre o adullerio é de direito com- mum, e por esta mesma lei é castigado o delicto, quando easualmente alguém tom relações com uma virgem ou viuva.»

Os sodomitas de ambos os sexos não eram toda\ ia condemnados á morte, senão dcpi ; de terem sotlrido duas penas corporaes pelo mesmo acto:

«O que fôr provadamcnte sodomita deve perder os testículos. E se é pela segunda vez condemnado, deve perder o membro viril. E se o é pela terceira vez, deve morrer. Uma mulher sodomita deve perder um membro de cada vez, e á terceira, deve morrer. E todos os seus bens pertencem ao rei.»

Taes eram as penas relativas á policia dos costumes no ducado de Or- leans.

V penalidade que o código de Justiniano tinha intrudiizidn na legislação franceza encontrava-se em todas as partes infinitamente modificada, conforme o caracter dos habitantes. As provincias do norte a este respeito eram mais in- dulgentes que as do meio-dia: n'aqucllas, a prostituição reinava sem receios, e o regimen dos costumes, abandonados a si próprios, mantinha-se nos limites bastante dilatados (l'uma fácil tolerância. Tolosa, Montpellier, Narhonna, e ou- tras cidades do Languedoc, tinham a libertinagem publica sob uma organisação mais regular do que aquella que por esse tempo existia em Paris.

Todavia Carlos d'.Anjou, conde de Provença e rei das duas Sicilias, a exemplo de seu irnicão Luiz ix, esforçou-se por expulsar dos seus Estados a prostituição legal, sem conseguir, porém, alcançar melhores resultados do seu esforço, mais piedoso do que politico, e teve de renunciar á guerra contra as ribaldas, que pouco se importavam com as suas ordenações. Dirigiu então a sua attenção contra as mediadoras da prostituição, que com razão considerava o ele- mento mais perigoso do vicio, e até então subtrahido a todas as medidas de rigor.

Ojnformc os usos de Provença, ordenou que todos que especulavam, cor- rompendo ou prostituindo mulheres, fossem expulsos do território ducal, sem forma alguma de processo; que se, passados dez dias depois da publicação da sua ordenação, fosse encontrado algum miserável exercendo esta impia indus- liia, a justiça |U'oce(lcsse, e o culpado, além da confiscação dos seus bens e do desterro, fosse castigado com penas corporaes.

Carlos d'Anjou probibia também a todos os seus empregados dar asylo em suas casas a alguma nuilber de vida, sob pena de privação do emprego e de uma multa de cem libras.

O i,anguedoc, no emtanto, não cuida\a da reforma, a exemplo das pro- víncias limitrophes, onde a prostituição eslava re|)rimida por leis e costumes, que tendiam a deslruil-a completamente.

O Coulunie de (íayonna, feito sem duvida sob a influencia das Constitui- ções hespanholas, impunha a pena de açoutes e desterro ás alcoviteiras; mas em caso de reincidência, eondemnava-as á morte.

O Couíime de Marselha não era menos terrível com respeito ás alcovitei- ras, ainda (|ue as ribaldas communs fossem toleradas cm certas ruas d'esta ci- dade, onde ;i pi-escnça de tantos forasteiros e gente de mar tornava indispcn- sav<'is os íjordeis. Apezar d'isto, as rib.ildas que existiam no porto (l(> Marselha

DA PROSTITUIÇÃO J4o

deviam abster-se de trazer vestidos ou adornos de còr vermeiiia, sob pena de multa, e em caso de reincidência incorriam na de tustigação. No capitulo se- guinte, faremos a bistoria das ahhadias obscenas de Tolosa, de Montpeliier e de Avinbão.

Procuremos agora os vestigios da prostituição n'algumas outras cidades do Languedoc. Em Narbonna, ainda que arcebispado, os cônsules da cidade pos- suíam o privilegio de ter na jurisdicção do visconde uma rua denominada quente, onde os fuiiccionarios d'este titular não tinham direito algum de jus- tiça, e as muliíeres communs, que habitavam n'esta rua sob os auspícios da au- ctoridade consular, tinham a liberdade de exercer o seu impuro commercio em todo o viscondado, sem serem admoestadas por isso.

Em Pamiers, residência de um bispo, as mulheres publicas não habita- vam no interior da cidade: segundo os usos do condado de Montforl, confirma- dos em 1212, estas peccadoras não podiam abrir os seus bordeis, senão extra- muros e a certa distancia das portas.

Em Rodez, que também tinha o seu bispado, a prostituição existia todavia, como parece, dentro do recinto da cidade, porque o bispo, que se chamava Pe- dro de Pleine-Chassaigne, prohibiu em 1307 aos habitantes receber nas suas ctsas mulheres publicas, cujo vestuário ordena também que não defira do trajo das mulheres honradas. Prohibe, pois, ás rameiras trazer capa, mantos, véus e vestidos de cauda, determinando que estes não devem passar dos íorno- zellos.

Em INímes, onde o bispo era também senhor temporal, a prostituição foi confiada a uma meò-rva de ribaldas, que arrendava este commercio impudico, recebendo plenos poderes dos cônsules, a quem ia cumprimentar em certas epo- chas, levando-lhes um presente de investidura, chamado osculo.

Bcaucaire, que ao menos não tinha bispado, mas que attrahia ás suas feiras celebres uma grande quantidade de commerciantes, não podia passar sem um bordel privilegiado, que se abria ao mesmo tempo que a feira de Santa Ma- gdalena, e se fechava quando ella. Este bordel estava sob a auetoridade d'ou- tra mestra ou directora, que se chamava abadessa, e ([ue não obtinha este cargo lucrativo senão sob certas condições. Não lhe era permiltido, por exemplo, dar hospitalidade por mais d'uma noite aos passageiros que queriam alojar-se no seu estabelecimento. Em 1411, uma abadessa, chamada Margarida, hospedou na sua casa um tal .inequim, ficando tão satisfeita com elle. que ampliou a hospedagem por seis noites mais. .4.ccusada d'esta contravenção, foi condem- nada a pagar uma multa de 10 libras tornezas ao castellão de Beaucaire. Mr. Re- buteau consigna este facto curioso na sua memoria sobre a Prostituição na Eu- ropa, mas esquece-se de dizer-nos a fonte d'onde o tirou.

As rendas que a prostituição dava ás cidades de Nimes e Beaucaire foram consideráveis, no tempo em que a feira d'esta ultima cidade er^a mais frequen- tada; mas no século xvi, quando as guerras de Francisco i e Carlos v impedi- ram a concorrência de commerciantes a esta celebre feira, as ahhadias do amor, tão alegres e prosperas n'outro tempo, estavam quasi descrias ; pois nas contas da recebedoria ordinária de lo39. António Baireau, contador da Thesouraria de

Historia da. PRosTiimç.io. Tomo ii— Folha 19.

) Í(j HISTMllIA

.Ninifs (• Beaucaire, (n/. apenas constar uma soinma do quinze soklos de direitos, recebidos durante trez annos das abbadias da localidade.

Além d'estas hospedarias-bordeis mal afamadas, arrendadas a Luiz Cln- ches, havia outra que não dava rendimento á cidade de Beaucaire, por estar quasi sempre desoccupada.

Não havia uma povoação no i.anguedoc que não tivesse, se nàoabbadia. pelo menos algumas prostitutas.

As de Baguoles não podiam Irazer. sem se exporem a castigos, chapéus com tlores, véus, pelles de arminho, capuzes abertos adornados cora botões,, etc. As de S. Saturnino não podiam receber nos dias de festa, nas ([uatro têm- poras e nas vigílias. Em 1414, Izabel, cognominada a Padeira, foi condemnada a uma multa de dez soldos, por ter recebido no dia de Pasclioa um chamado Jorge, que era todavia seu amante certo.

Estes costumes do i.anguedoc. que a heresia dos albigenses tinha rela- xado bastante, espalharamse pelas províncias limiírophes. Todavia a cidade de Bordéus, que se distinguiu entre Iodas pela .severidade da sua policia de costumes, parece ler afogado algumas vezes as ribaldas e os incorrigíveis alco- viteiros, aiirando-os ao mar.

Ducange, na palavra Accalins.sore, diz-nos que este supplicio estava em uso em Bordéus, onde a gente de baixa classe pronunciava sem duvida a sen- tença e dirigia a execução. O paciente era fechado numa gaiola de ferro, que se submergia no mar, e que .só se retirava quando a asphyxia era completa. Ducange diz expressamente que as victimas d'este supplicio eram afogadas.

.\ccrescenta que a mesma penalidade era applicada aos blasphemos em .Marselha, quando não tinham 12 dinheiros para se livrarem do mergulho na agua salgada, da qual bebiam mais do que seria para desejar, por entre os gri- tos e canções da canalha, que se divertia com os seus esgares alllictivos.

Um castigo análogo se impunha também em Tolosa aos blasphemos, aos rufiões e ás vezes, diz l.afaille, ás mulheres publicas, que transgrediam os regulamentos de policia, .lousse, no seu Traclado da Justiça criminal de França, publicado em 1771, descreve o mergulho tal como se praticava ainda no .seu tempo com grande divertimento dos amadores d'este género de supplicio.

(londuzia-se á casa da cidade a infeliz que linha sido condemnada por qualquer delido da prostituição; o executor ligava-lhe as mãos. punha-lhe um barrete feito de pão d'assucar e enfeitado com plumas, e prendia-lbe no hom- bro um cartão com um rotulo, que dizia a classe do delicio. Este rotulo era ordinariamente a palavra Proxeneta. Uma multidão, tão curiosa como sarcástica, acompanhava a ?-é, diante da qual se lia a senlença, e eonduziani-n"a assim proccssionalmente até á ponte que atravessa o Garonna: uma barca recebia-a com o verdugo e seus ajudan- tes, e levavam-n'a para um rochedo situado no meio do rio, onde a faziam en- trar na gaiola de ferro, feita de propósito, que se submergia três vezes na agua. '(Conservam-n'a dentro delia algum tempo, diz .lousse, de forma que não possa sulfocar-se, o que produz um espectáculo que excila a curiosidade de Ioda a povoação.

Castigo de uma adultera em Tolosa

DA PROSTlTlirÃn 147

Depois leNavaiii a polue iiuillu-r meio afogada ao hospital Ja casa tie cor- recção, oiidc havia de passar o resto de seus dias, a não ser que obtivesse per- dão e tornasse ao seu pi-inieiro oíílcio.

Lembramo-iios de ter lido que se impunha igual castigo ás mulheres publicas, accusadas e convictas de terem communicado o virus venéreo a al- guns libertinos, que davam parte civil, e reclamavam a visila medica do seu contagio ; mas não podemos dizer qual (j logur e a épocha em que se lazia sol- frer esta submersão infamante a estas perigosas inimigas da saúde publica.

Apezar das ordenações de Carlos de Anjou contra a prostituição, em ge- ral, a Provença nunca chegou a vèr-se livre da praga, que o temperamento ardente de seus habitantes devia naturalmente propagar, e que impedia as desordens das paixões sensuaes. Comprchende-se facilmente que a prostitui- ção legal não podia íer um curso regular c patente num paiz, onde a cavaila- ria e a poesia tinham idcalisado as relações Jus clois sexos, onde o culto da mulher se tinha subtrahido de certa forma a toda a mancha material, e onde as Córles (/c Amor, elivollas nas abstracções do sentimento, pareciam ter tomado a empreza de malar o homem pelo homem, de aniquillar o corpo em proveito da alma.

Vimos, todavia, anteriormente que a prostituição existia ás claras em Marselha para uso dos marinheiros e forasteiros, que necessitam de encontrar n'um porto de mar meios de se distraireni do aborrecimento de uma longa \ iagem .

Havia mulheres de prazer ua maior parle das grandes cidades; mas dis- simulavam a sua profissão vergonhosa sob nomes c apparencias honestas. .Não eram, por essa razão, menos perseguidas pela policia municipal e eccle- siastica, \end(i-sc multadas ou presas pelo mais frivolo prele\lo. l!,m Sisler- non, por exemplo, o preboste da cidade encarcerava por um odioso abuso de poder as mulheres estranhas, que iam fixar a sua residência na cidade episco- pal com seus amantes favoritos. O mesmo funccionario accusava de libertinagem estas mulheres sem protecção, obrigava-as a pagar uma contribuição para recu- perarem a sua liberdade e para viverem em paz.

Os habitantes queixaram-se d'estas iniqiias exacções, e por decreto de 20 de abril de 1380, Foulques d'Agonst, senescal dos condes de Provença e de For- calquier, prohibiu que alguém incommodasse as forasteiras que queriam resi- dir na cidade com seus amigos, com a condição de viver honradamente.

Eduafdo de Laplane, que menciona estes lados, diz-nos qne os magistra- dos da cidade de Sislernon, para obstar sem duvida aos intoleráveis abusos que a permanência de laes mulheres causava na povoação, resolveram adquirir por conta do município um edifício destinado a receber as mulheres communs, e albergal-as somente de passagem.

Esta decisão foi tomada em 139i, mas dez annos mais tarde ainda se não tinha feito a acquisição. Ate I i24 as mulheres de vida encontraram em Sisternon um refugio, onde não eram vexadas com multas e prisões.

.\sque, todavia, chegavam pela passagem de Peipin era-lhes lançado, como aos judeus, um impostn de o soldos, em beneficio das freiras de Santa Clara.

148 HISTORIA

Estas religiosas deviam sem duvida expiar com suas rezas os peccados que a prostituição errante atlraliia aos muros de Sisternon, om pelo menos ao seu território, porque a casa de refugio das ribaldas não estava na cidade.

O estabeiccinicnto d"esta casa em Sisternon parece-nos confirmar tudo que a tradicção diz de um estabelecimento análogo na cidade de Avinhão. Mas trataremos depois esta questão de archeologia histórica, que merece ser exami- nada sem ideias preconcebidas.

E' incontestável que os costumes italianos se acclimaram com os papas no condado de Aviníião, e pode sustentar-se que a cidade papal não mudou os hábitos das mcrcíri/.es r()manas, a quem o chapéu vermelho fios cardeaes não intimidava.

f)e Avinhão a Laon, a prostituição teve apenas que passar o Rhodano, e esta grande cidade tinha muitos habitantes para que a policia não fosse tole- rante com os costumes. Guilherme Paradin, nas suas Memorias da historia de Lyon, menciona um regulamento municipal de 1475, que recorda as ordena- ções do preboste sobre o mesmo assumpto. Ordenava-se 4i'este documento ás mulheres publicas de Lyon, que deixassem as boas e honestas ruas, e se reti- rassem a duas casas de asylo, onde podiam exercer o seu miserável officio sob a vigilância dos cônsules. Cada uma d'estas casas tinha uma única porta, a íim de que as ribaldas (]ue commettiam algum delicto n'esles logares de liber- tinagem não podessem fugir no momento da captura. Determinava-se além d'isso que o trajo particular das mulheres dissolutas, a quem sob pena de contiscação se proliibia empregar nos seus enfeites cintos guarnecidos de praia, pelles caras e alé a pelle negra ou hranca df carneiro, excepto unicamente os chapéus de mulher honrada, eram obrigadas a trazer sob pena de prisão e sessenta S(ddos de multa «conlinuamenle cada uma no braço esquerdo sobre a manga do vt's- tido, Irez dedos abaixo tio hombro, uma divisa vermelha pendente nuMO ao lado do biaço.» Signaes distinclivos das mulheres publicas não se viam senão nas cidades cm que se tolerava ou reconhecia a prostituição.

Apesar d'estas condescendências da lei em favor do vicio, o len-ie.inio não participava dos bcneíicios da tolerância, e aquelles que o exerciam ficavam sem-, prc fora do direito commum. Prendiam-se, açoitavam-se, c\pulsavam-se da cidade, confiscando-se-lhes os seus bens.

«Ás vezes a proxeneta, diz Sluyart de Yougians, era montada num burro, às avessas, quer dizer com a cara para a cauda, levando um chapéu de palha e um rotulo.»

Passeiavam-tra assim [n-hx cidade, entre os escarneos e ultrages do povo, e depois de ser açoitada pelo verdugo era expulsa do paiz ou encerrada n'uma casa de correcção.

Era o que suecedia em Lyon e n'i»nlras cidades, onde o culpado, «mi- trado, açoutado publicamente, desterrado para sempre, sob pena de perder a vida,» segundo o auclor do Trnité des fieines el amendes, arrastava no seu cas- tigo o cúmplice que se lhe tinha associado ao delicto, alugando ou emprestando a sua casa. Além da conliscação da casa, o cúmplice pagava uma multa de dez libras em ouro. Durct, (jueixando-se da indulgência de tal legislação, dá-nos a

DA 1'ROSTITUIÇÃO \ í-9

entender qii(> a pena de morte era ainda appjicada em certos easos no seu tempo.

As cidades, que não tinham ribaldas em estabelecimento, contentavam-se com as que o acaso liics trazia, as quaes corriam o paiz procurando fortuna, apesar de não poderem permanecer mais de vinte e quatro iioras nos jogares iiabifados, onde se demoravam com os seus rufiões. Geralmente hospedavam-se nos arrabaldes n"um bordel isolado, ou n'uin logar de refugio reservado para ellas, quando não ao ar livre, sob as arvores, ou no meio do trigo.

Por um decreto, feito em lo 1.3, em consequência d'uma disputa entre o titular do logar e os habitantes do Roche de Glun e de Alençon, prohibiu-se a estes habitantes hospedar nas suas casas por mais d'uma noite as ribaldas pu- blicas e os seus rufiões, que atravessavam o paiz.

Muitas citações poderíamos adduzir, em testemunho da existência das prostitutas errantes, que andavam de povoação em povoação mercadejando com o seu corpo, em companhia de ribaldos favoritos, a quem sustentavam com o producto do seu ignóbil trafico.

Os ribaldos não eram inúteis ás vezes ás suas damas ou queridas; pro- fegiam-n'as contra as violências a que as desgraçadas estavam expostas cons- tantemente, pela impunidade de taes ultrages. As leis, todavia, eram previden- tes a este respeito, c a violência feita a uma mulher publica era equipara<la pelos jurisconsultos á violação d'uma mulher honesta.

Assim, nos privilégios que o senhor 'de Chaudieu outorgou em 1389 aos visinhos de Eyrien, perto de Valence, privilégios confirmados no mesmo anno por Carlos vi, diz-se que todo aquelle que violar uma mulher dissoluta, ou qual- quer outra pertencente a um logar de prostituição, pagará 100 soldos de multa. Uma parte d'esta multa pertencia de direito á mulher que solTrèra o damno, que a lei considerava, não como ultrage, mas como um roubo feito com amea- ças e violências.

Se o legislador se apresentava ás vezes como protector das mulheres pu- blicas, cuja deshonra não as entregava á mercê de quantos as queriam ultrajar, igualmente protegia aquelles que tinham de precaver-se contra as inystificações de mulheres tão astutas e de seus depravados auxiliares. L'ma das especulações mais lucrativas e fáceis era accusar de violência um homent que nada mais tinha feito do que comprar um género de commercio, que voluntaiiamenle se lhe ofTerccia. Os ricos banqueiros judeus, lombardos ou italianos, em cujas mãos se concentrava todo o commercio de dinheiro, viam-se sem cessar expostos a accusações d"este género. Uma mulher introduzia-se nas suas casas a titulo de criada ou de qualquer outra espécie de serviço, e depois fazia a sua queixa á justiça, pretendendo ter sido violentada. Exigido o juramento da lei a esta li- bertina, não vacillava ella em prestal-o sobre o Evangelho, e o innocente ban- queiro só podia vèr-se livre da justiça, pagando uma grande multa, de que a accusadora e seus cúmplices obtinham a maior parte.

Esta maneira de explorar a fortuna e a posição delicada dos lombardos tor- nara-se Ião f.-equenie no século xiv, que elles não queriam estabelecer banca em nenhuma cidade de França, sem que a sua honra e bolsa estivessem ao abrigo

(las ciladas da prostituição. Em consequência d'isto, l'ez-se esta clausula quasi idêntica nos despachos dos reis Carlos v e Carlos vi, concedendo ás associações dos lombardos o privilegio de abrir banca e emprestar dinheiro nas cidades de Troyes, Paris, Aniiens, Ninies, Laon e .Meaux :

«Item, se alguma mulher com fama de vida estiver nas casas dos ditos commerciantes, e quizer dizer por astúcia e preversidade ter sido forçada pelos ditos commerciantes, ou por algum d'elles, não seja recebida a querella d'essãs más mulheres, nem os ditos commerciantes, on algum d'elles, soffrani por isso cm suas pessoas ou em seus bens.»

Graças a este paragrapho dos seus privilégios, os lombardos não ti- niiam que temer da malicia das mulheres, que entravam nas suas casas, sem outro tim que não fosse o de fazerem papel de victimas. Esta clausula de pre- caução dá-nos também a entender que os lombardos se achavam, como es- trangeiros, dispensados de guardar as ordenações civis c eccicsiasticas, que prohibiam ás pessoas honestas hospedar na sua casa uma mulher libertina por inaisd"uma noite. A permanência da prostituta em casa d"elles não trazia conse- quência alguma desfavorável, pois nem incorriam na pena, nem sequer no vitupério da lei.

Todas as disposições relativas ás bancas ou casas de desconto de Paris, de Troyes, de Amiens, de Laon, de .Meaux, etc, provam a presença frequente ou habitual das rihaldas n'estas ditferenles cidades e as tentativas de seducção que renovavam sem cessar contra os lombardos e italianos. Estes podiam por sua parte pcrmittir-se todas as desordens moraes que a lei castigava na con- liucta dos nacionaes, súbditos do rei. O sábio e virtuoso Carlos v disse-o cla- ramente, nos privilégios que concedeu em 1366 aos commerciantes italianos, estabelecidos em iNimes: estes commerciantes não podiam .ser inquietados nem castigados por motivo de simples fornicação, a não ser quando convictos de rapto ou adultério.

E', pois, de presumir que a licença dos costumes d'cstes estrangeiros iníluisse no estado moral da população que os rodeava, e que se corrompia com o .seu exemplo e contacto, visto que tinham junto de si um cortejo de mulhe- res dissjilutas e de homens libertinos, que passavam vida alegre e se corron^- piam mutuamente.

Todavia, não attribuiremos á sua installaçãu na cidade de Troyes, em 1389, o estabelecimento das tendas (bouticles) que as mulheres communs, em collegio (cloiístières) tinham desde muito em vários pontos da cidade, segundo podemos fazer^ constar pelo seguinte artigo d'um documento anterior, citado pelos continuadores de Ducange na |)ala\ ra íUiuisurw, e que prova a antiguiilade de similhantes estabelecimentos:

filiem, que Iodas as mulheres de vida cloinlicre, ou mulheres communs dlllamadas, tenham e façam as suas tendas nos legares designados desde muito para isso na cidade.»

As cidades próximas de l'aris, situadas, pur assim dizei', dentro da orbita da corte do rei, tinham como dever serem as primeiras a obedecer ás ordena- ções reaes, e imitarem escrupulosamente a organisação da policia parisiense,

DA PnoSTITlIÍÇÃO 151

nomo pgiiíilmonlc iinil;nnni os costmiies. as mod;is, os ii<o,« o .-it^ o modo t\r fallar da gente da còi"le.

A imitação não exceptuava as casas libertinas, mas ati^ahi se \ia com preferencia, e para a este respeito citar um caso extravagante, é tradi^-iio que um libertino da província, tendo estado em Paris, e tendo frequentado as ruas de denominações desbonestas, foi o padrinbo da rua Pou\:se-Pe)iil. cm Issoudun, e da Retrousse-Pcnil , em Blojs, como de Iodas as outras ruas destinadas á prostituição legal.

Não precisamos dí' Iradu/.ir a obscena denominaçào, para os lellorcs po- derem avaliar a rude franqueza d'csfes qualificativos. Em quosi todas as cida- des da França se encontram vestígios destes títulos imimindos, dados ás ruas parliiularmente consagradas ao exercício d'esle in\eterado cancro social.

A mercadoria immunda linba d'este modo bem publicamente exposta a •íUM obscena labolela.

CAPITULO XV

SUMMARIO

PioTinr-ias centrites da França.— Champagne.—Touraiue.—Berry.—Poitou—Orli-ans.— As mulheres casadas de Montluson ei|iiipaiadai as prostitutas.— Reconhecimeato de Breull. Costumes burlescos e ridiculus. —A calçada ''n terreno pantanoso de Siiloire.— O senhor de Pnizav e as mulheres fareis. O rei de França e as prostitutas de. Vemeuil.— As prostitutas de Proyines.

|;S puovK\ciAS cciitracs (Ia França eram as que oppunham menos obstáculos á prostiluivão, que alli encontrava iim meio perfei- tamente prctpicio. .\ prostituição era n'es?as provincias permit- tida, com tanto que se submettesse aos usos e costumes locaes, >■ se mantivesse sem causar perturbações : o escanrlalo ora castigado.

Deve notar-se que n'estas províncias a civilisação adoçara mais os cos- tumes do que nas outras: se a libertinagem publica vivia em boa paz com a auctoridade dos senhores e dos municijtios, a doçura do caracter de seus habi- tantes isentava-a naturalmente do cortejo de crimes e violcncias, que a liber- tinagem arrasta atraz de si.

i prostituição achava-se, portanto, naturalisada cm todas as povoações da Champagne, da Touraine, de Berry, de Poitou e de Orleans, devendo unica- mente pagar em cada um d'estes pontos por onde passava, ou onde se fixava, .segundo o que mais lhe convinha, o tributo feudal, e acceitar os usos e costu- mes, que ás vezes não eram escripfos, mas sim guardados de século para sé- culo pela tradicção do paiz.

Entre estes tributos havia alguns tão singulares, que hoje não se coni- prehende como poderam ser justificados por qualquer razão. Sauval extrahiu dos .\rchivos do Tribunal de contas, um documento do anuo de I i98, men- 1'ionando que o Coutume de Jlontiuson equiparava as mulheres casadas, que batiam em seus maridos, ás prostitutas; todavia umas e outras não prestavam homenagem igual ao castellão de Montluson. Ouali|ucr mulher que batia em seu marido era obrigada a dar ao castellão ou á castellã, ou um escabcUo ou um pau. Qualquer ribalda, que chegava áquella povoação para n'clla exercer o seu vil officio, devia por uma vez pagar quatro dinheiros, e além d'isso, em re- conhecimento de vassallagem, ir publicamente á ponte do castcllo, e pondo-se BisToau DA. PaoETiimçÃo. Tomo n Folba 20.

154 HISTORIA

n'e!la de cócoras, expellir ventosidades . . . que não devia abafar debaixo das saias.

O texlo latino do reconhecimento da terra de Breiíil, feito pela mui alta, mui nobre e mui poderosa senhora de Montluson, em 27 de setembro de 1498, é o seguinte, que damos textualmente, graças ao veu d'aquella lingua morta:

Item in et super qualibet, uxore marium suum verberante, unum tripodem.

Item in et super filia comimuii, sexus videlicet viriles quoscumque co- gnoscente, de novo in villa Montislucii eceniente, qualuor denarios seniel, aut unum, bumbum, sim vulga/riíer Pet, super pontem, de castro Montislucii sol- ■oendum.i)

Os commentadores que não evitam estas passagens escabrosas Utão deixa- ram de mostrar o seu engenho na descripção d'este sujo emblema. Dizem uns que as mulheres de vida não podiam dar ao senhor de Monlluson mais do que valiam, e a este propósito citam um provérbio empregado n'outro tempo a respeito das prostitutas: a mulher de vida airada não vale w»! crepito de ventre. Outros archeologos a este respeito lembraram uma passagem não expli- cada de Pantagruel, em que Rabelais nos diz como d'estes sons nascem os ho- mens, e das ventosidades surdas os huniunculos, o que deu logar ao rifão: A ventosidade estrepitosa é nobre e leal, a surda é vergonhosa e traidora.

Fácil seria compilar um grande volume sobre estes arroios sub-intesti- naes dos ribaldas de Moníluson, mas preferimos encerrar a discussão d'este delicado assumj)ío, recordando que em virtude dos usos do direito feudal a homenagem e a lealdade dependiam do género de serviço que o vassallo prestava ao senhor e aos seus logares-tenentes. Â historia dos feudos está cheia de ser- vidões burlescas e ridículas, entre as quaes as impostas á prostituição não eram as mais extraordinárias.

Nos censos feitos em 1376 e outros annos pelos senhores dos condados d'Ange, Souloire, e Betisy, na Normandia, o senhor de Belhisy declara á sua soberana. Branca de França, viuva do duque d'Orlcans, que as mulheres pu- blicas, que cheguem a Bethisy ou em Bethisy vivam, lhe devem pagar quatro dinheiros, e que este imposto que outr'ora lhe dava desenove soldos annuaes (o que suppunha a chegada de trinta ribaldas por anno) não rendia mais que cinco soldos, em virtude de não accudirem tantas ribaldas áquella terra, diz Sauvel.

O senhor de Souluire também declara que todas as mulheres, ao passa- rem pela calçada do pântano de Souloire, deixem ao juiz a manga do braço di- reito, ou quatro dinheiros, ou outra cousa. Para comprehender o que seja esta oit- tra cousa, é mister a!)rir a pagina 110 les Réponses de J. Boissel, Bordier e José Conslant, sobre dilTerentes perguntas relativas aos Usos do Poitou. O se- nhor de Poizay, na parochia de Verruge, reservava para si em 1469 o direito de impor tributo a cada mulher publica chegada á parochia, ou de lhe confis- car os seus pertences, fisando em quatro dinheiros o valor (festes objectos.

Parece também que em todos os feudos o senhor tinha direito a este im- posto uniforme de quatro dinheiros, por cada mulher de vida que entrava no território do seu respectivo feudo, com intenção de n'elle exeicer a sua in-

DA PROSTITUIÇÃO 155

dustria. Mas ordinariainenie o senhor envergonhava-se de receber o imposto da prostituição, e substituia-o por qualquer costume ridículo, que lhe mantivesse os seus privilégios leudaes.

O rei de França era menos escrupuloso relativamente á origem dos im- postos que lhe entravam no erário; pois que, em 1283, segundo um docu- mento inserto no Glos-taire de Dueange (palavra Piaagium, ultima edição,) re- cebia ainda o tributo das ribaldas de Yerneuil, a 4 dinheiros por cabeça.

A prostituição, n'este paiz da lingua d'oil, não tinha o sello de infâmia que imprimia ás pessoas que viviam á sua custa nas provindas da lingua d'oc. Os romances dos trovadores normandos, champagnezes e outros, estão, como se pôde vèr, cheios de particularidades tiradas da vida amorosa das mulheres communs e libertinas. Os poetas, que sem duvida as frequentavam e que cos- tumavam percorrer com ellas o paiz, não sentiam repugnância alguma em fa- zer figurar nos seus versos estas alegres companheiras da sua existência vaga- bunda. M. Bourquelot, na sua Histoire de Provins (pag. 273) diz-nos que as mulheres communs eram notáveis pelos seus encantos e voluptuosidade.

Habitavam estas em muitas ruas, cujos nomes impudicos revelam a sua ;intiguidade, estando noutro tempo calçadas de ribaldas, segundo a expressão local que se conservou, e que a rua Pavée d'AndouiUes de Paris recorda.

Estas ruas, destinadas especialmente ao domicilio de mulheres de vida, provam a existência de uma demarcação que separava do resto da popu- lação as mulheres publicas, impedindo que se confundissem com as honestas. Estas não possuíam nem a belleza nem a seducção das impudicas, mas acha- vam-se tão satisfeitas com a sua boa fama, que não julgavam encontrar pena bastante severa para castigar a maledicência ou calumnia que tocasse na sua reputação. Com este receio obtiveram dos condes de Champagne appoio e pro- tecção para o caso cm que qualquer d'ellas fosse injuriada por outra, e tractada como prostituta em presença de testemunhas.

A que irrogava similhante injuria, sem razão nem provas, devia pagar 5 soldos de multa e seguir a procissão em camisa como as penitentes, levando uma pedra que se chamava de escândalo, emquanto que a injuriada ia atraz d'ella, picando-a nas nádegas com um alfinete.

E' evidente que as mulheres publicas eram as que ordinariamente se tor- navam culpadas n'esta classe dinjurias ás mulheres honestas, e a lei tomava a dcfeza das insultadas, que não saberiam responder na mesma linguagem a essas mulheres desbragadas. A Coutume do Champagne occupa-se especialmente d'este dclicto de injuria.

O homem ou mulher, que ultrajasse assim uma mulher de bem, devia-lhe além d'isso a multa de o soldos, e, «se acontece, accrescenta a lei, no artigo 45, que a mulher a quem se diz a injuria tenha marido, esta multa subirá, á von- tade do senhor, até sessenta soldos.»

Os Usos de Cerny e de Fere, outorgados por Philippe Augusto, auctorisa- vam qualquer homem de bem, que ouvisse ser injuriada uma mulher honesta, por outra de vida, a fazer-se advogado ex-olficio e a vingar a insultada, ap- plicando á insultante duas ou três boas bofetadas, de forma que o defensor não

156 HISTORIA

tivesse nenhum ódio antigo contra a mulher, maltratando-a assim por sua pró- pria satisfação em nome da honestidade publica.

O uso de Beauvoisis não particiilarisa as injurias e tillania.s, que valiam o soldos de multa para um villão c 10 para um nobre, dizendo unicamente que o facto peior, depois d'um caso de morte, é dizer em presença d'um marido que se gozou sua mulher, e por isso Philippe de Bcaumanoir refere que, sob o reinado de Philippe Augusto, tendo um homem dito a outro : «És um ma- rido ludibriado, e cu mesmo assim te fiz,» o injuriado tirou um punhal e fe- riu-o. Preso e submettido a juizo, foi absolvido pelo rei e seu conselho, consi- derando que tinha procedido no uso de legitima defesa.

.4s mulheres de vida, tanto antigamente, como agora e como sempre, eram propensas á injuria e capazes dos mais indignos meios para intimidarem as pessoas honestas que as temiam. Uns dos meios mais communs consistia no odioso uso que faziam da condiçãii de mulheres casadas, ameaçando com uma querella (radullerio ao imprudente que as frequentava, e que se via obrigado a comprar-lhes o silencio. Para praticar estes indignos manejos e explorar em seu proveito os remorsos da libertinagem, occultavam cuidadosamente a sua condi- ção de casadas, revelando-a no caso de terem commettido adultério interes- sado. A lei familiar não admitlia a excusa de ignorância em similhante crime, e foi preciso que o direito consuetudinário adoçasse n'este caso excepcional o ri' gor do direito commum. D'aqui provêm o artigo das Franquias de Perusa em Berry, que datam do anno de 1260, e emanam da justiça senhorial. O artigo é o seguinte :

«Se uma mulher casada chegar a Perusa com o fim de exercer a prostituição, sem homem próprio que a acompanhe, a nada é obrigada para com o senhor.»

As mulheres, que mercadejavam com o seu corpo e que não tinham de apresentar um marido para as salvar do crime de adultério, exerciam frequen- temente uma especulação análoga, mas inversa: ameaçavam com denuncia os homens casados que queriam fazer cabir nos seus ardis. A lei feudal castigava este adultério com a mesma pena imposta ao outro: um homem casado, que tivesse relações com uma mulher publica, podia ser accusado e condcmnado. Evitava-se sempre applicar esta rigorosa jurisprudência, fechando os olhos a este género de delidos, mas, quando havia denuncia ou queixa, o juiz perse- guia o delinquente, que por feliz se dava em unicamente pagar uma multa, pois que a penalidade mais frequente eram os açoites, applicados aos dois cúmplices, que nús percorriam a cidade, recebendo o castigo das próprias mãos dos espe- ctadores, que extraordinariamente se divertiam n'estas occasiões.

NVsle antigo uso, pelo menos no principio, eslabelecido em toda a França na edade media, encontramos uma tradicção da Roma atiliga, a respeito dos adultérios das cortezãs e dos libertinos.

Os [sos d'.41ais, redigidos no século xiii, e pela primeira vez publicados em continuação dos Olim, formulam nVstes termos a penalidade do adultério:

ditem estabelecemos, que se algum homem ou mulher casados forem apanhados em flagrante crime de adultério, os dois cúmplices percorram a cidade, sejam chibatados, e a mais não sejam condemnados.»

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Os dois percorriam, pois, junfos a cidade, mas a mulher ia na frente, para que elia fosse a primeira a ser chibatada. A mesma compilação dos Olim ci- ta-nos muitas applicações d'esta penalidade. Em 1273, o prior da ahhadia de Charlieu fez correr ou fustigar pela cidade a muitas pessoas surprchendidas em adultério dentro do território d'ahbadia. Os habitantes da cidade fizeram queixa ao bailio de Mâcon, sustentando que o prior se revestira d'uma auetoridade que não possuia na dita cidade, e o bailio reivindicou esse direito em nome do rei. Mas o prior, fundando-se também cm antigos privilégios da abbadia, conti- nuou no exercicio do mesmo direito, fazendo chibatar de igual miuio a todos quantos eram surprehendidos em adultério, sempre nos limití's da sua juris- dicção.

As justiças senhoriaes, desavindas umas com as outras constantemente, disputavam o terreno da sua jurisdieção, principalmente em questões de policia moral. Em 1261, em Amiens, o bispo sustentava que tinha direito de justiça sobre os sodomitas, que viviam na cidade ; os outros habitantes sustentavam o contrario: que este direito de justiça lhes pertencia desde a creação do muni- cípio. O conflicto foi submettido ao Conselho Real, e Luiz ix o resolveu, orde- nando que a cidade fosse mantida no seu direito de fazer justiça e castigar cor- poralmente os sodomitas.

Em Saint-Quentin os frades, por uma parte, e as auctoridades municipaes, pela outra, disputavam em 1304 o direito de baixa justiça nos arrabaldes da cidade. Os frades queriam prender e expulsar as mulheres ligeiras, que haviam invadido as visinhanças do convento; as auctoridades municipaes queriam que estas mulheres vivessem em paz nos terrenos do convento. O conselho do rei, ao qual a questão foi submellida, resolveu que os frades podiam desembara- çar-se da visinhança licenciosa, mas que as auctoridades municipaes podiam fazer justiça e castigar as prostitutas cm todo o território municipal.

Sem duvida entre as duas partes fez-se uma transacção, que regulamen- tasse nos arrabaldes de Amiens o exercicio da prostituição.

Estes regulamentos eram, com pequenas diílerenças, os mesmos em Ioda a parte: determinavam perseguir os alcoviteiros, coníinar a libertinagem em cer- tas ruas e logares, impedir que as prostitutas se podessem confundir com as mulheres honestas.

João de Borgonha, conde de Nevers, na ordenação de o de março de 1481, intimou todas as mulheres libertinas a que usassem na manga direita um dis- tinctivo roxo, sendo-Ihes outrosim prohibido o aprcscntarem-sc em publico sem este signal infamante, sob pena de prisão, e habiiar em outra parle que não fosse entre as fontes, antiga moradia d'ellas, como também frequentar os ba- nhos da cidade.

As desobediências aos regulamentos eram castigadas de muitos modos. .4bbeville tinha um pelourinho especial, expressamente feilo para as mulheres publicas apanhadas em flagrante. Era este instrumento de supplicio um caval- lete de madeira, collocado na praça de S. Pedro. Depois de serem açoitadas violentamente eram postas em cima do cavallete, que não tinha espaço, onde se sentassem. Eram depois expulsas ao som de campainha, c se alguma d'ellas

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voltasse á cidade, para exerctT a sua industria vergonliosa, era-lhe então cor- tado um membro, ou novamente expulsa com grande soleranidade.

Os alcoviteiros convictos do seu infame commercio eram n'esta mesma cidade mais severamente castigados, que em qualquer outra parte. Eram pas- seados pelas ruas até chegarem ao logar do supplieio, onde o carrasco lhes cor- tava e queimava o cabelio, sendo em seguida perpetuamente expulsos, e avisa- dos de que seriam queimados vivos, se na cidade tornassem a ser presos.

«Em 1478, Bclul Canline d'.4bheviIlo, por ler querido convencer Joanni- nba, (ilha de Vitace de Qucme, a que fosso com um chamado Franqueviile, ho- mem d'armas da guarnição da dita cidade, foi conduzido n'um carro pelas ruas da cidade, e os cabellos foram-lbe queimados no pelourinho, sendo para sem- pre desterrado sob pena de fogo.»

Além d'isso, a pena capitai, como dissemos, estava também inscripta na lei, embora em casos de reincidência, revestidos de circumstancias ag- gravantes, fosse applicada

«O castigo dos alcoviteiros, segundo os privilégios da cidade de Gand, diz J. de Damhondere, era o desterro, e o das alcoviteiras, o corfar-se-lhes o nariz, e também o desterro, o pelourinlio, a escada e o cadafalso.»

O erudito auctor da Pratica forense das causas criminaes, a respeito da jurisprudência da cidade de Brugj^s, sobre o mesmo assumpo accresccnia :

«Eu, que ha muitos annos hz parle do conselho da cidade de Bruges, nunca vi castigar com a morte os alcoviteiros ou alcoviteiras, ou adulteras, se- não com o desterro; e dentro da cidade ou do paiz, com o pelourinho, com a fustigaçào, ou penas similhantes.»

Esta jurisprudência, que era a do parlamento de Paris, adoptou-se con- secutivamente em todos os tribunaes da França; mas o costume local enearre- gou-se quasi sempre de modificar a legislação.

N'umas partes, por exemplo, a multa era considerável, como no districto da tribunal de Ronnes, que castigava na multa de mil libras a venda de mu- lheres ou creanças; n'outras, confiscavam-se os bens moveis ou immoveis aos condemnados; n'umas partes ajuslava-se á cabeça da alcoviteira uma mitra có- nica de papel amarello ou verde; n'outras, um chapéu de palha, indicando que o seu corpo esperava sempre um comprador; n'outras ainda eram marcadas com a lettra M. ou /'. no braço ou nas nádegas. Passeiava-se a condemnada sobre um burro lazarento, sobre um carro, sobre uma carreia, ou sobre uma zorra; era açoutada com vai-as, com correias, ou com cordas que tivessem nós. Este supplieio era sempre uma festa para o povo, que n'elle tomava parte, gritando, c escarnecendo da infeliz, que lhe era abandonada como um instrumento das suas diversões.»

«Na repressão d'esla classe de dclictos, diz Sabateu na sua Historia da legislação sobre as mulheres publicas e togares d? prostituição, desenvolveram nossos pacs um rigor extraordinário em castigos, cuja forma offendia a huma- nidade e a decência, que elles .se propunhan) desaggravar.»

Mas o povo era sempre ávido de presenoear esles escândalos, e de per- seguir os culpados com os seus dichotes e impropérios, e ás vezes prescindia

Castigo infligido a uma proxeneta na idade média

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da sentença do juiz e fazia correr nús aquelles que surprehendia em flagrante, como facto privativo da sua jurisdicção. Assim, na maior parte dos privilégios que os municípios obtiniiam dos senliores, iiavia quasi sempre o cuidado de fazer conlirmar o direito que se attriijuiam de castigar os adultérios, e foi necessário que os senliores e os próprios reis de França restringissem este di- reito a certos casos particulares, perinittindo sempre aos delinquentes o pode- rem substituir a pena por multa.

Nos privilégios da cidade de Aiguesmortes, reconhecidos em 1350 pelo rei João, a corrida das adulteras foi em principio admiftida, mas as rés po- diam a ella eximir-se, pagando uma multa fixada pelo magistrado. Se a corrida tinha logar, os cúmplices não eram açoutados e a mulher7 embora núa como o homem, devia cobrir os seus órgãos sexuaes.

O rei, pelo mesmo sentimento de pudor, prolti!)ia que os homens e mu- lheres estivessem na mesma prisão.

Acontecia frequentemente que o populacho d'uma cidade, impaciente por vêr o espectáculo d'uma corrida tão pouco decente, accusava de adultério in- divíduos que encontrava isolados, delatando como flagrante delicto uma sim- ples conversação amorosa. Era, pois, necessário que a lei explicasse claramente o que era o flagrante delicto, sobre que pesava a pena do adultério.

Não podia haver duvida, em virtude das minuciosas circumstancias que sobre o assumpto explanava o código dos costumes, liberdades e franquias, ou- torgadas pelos condes de Tolõsa aos habitantes de Moncuc, e formalmente con- firmado por Luiz XI, nas suas reaes ordens de 30 de novembro de li63.

.\ Normandia em Iodas as épochas esteve Ião adiantada como Paris, no que respeita á prostituição. Falíamos d'aquclle logar de libertinagem que havia na cidade de Rouen, na segunda metade do século xii, e que o duque da Nor- mandia, Henrique ii, rei de Inglaterra, pozera sob a vigilamla especial '!o em- pregado chamado Bakleric. Este personagem tinha o titulo de guarda de todas as mulheres publicas, exercendo a sua industria em Rouen, e accumuhiva este extravagante titulo com o de marechal do rei-duque, e com as funcções de guarda da porta da prisão do caslello, sendo-lbe retribuídos tão variados servi- ços com a percepção do direito de 2 soldos diários, sobre todos os ([uc fossem encontrados á caça nos bosques immediatos.

O logar de libertinagem que havia em Rouen, desde o tempo dos primei- ros duques da Normandia, e que sem duvida alcançou os seus privilégios no tempo de Guilherme, o conquistador, foi provavelmente o Iheaíro das prédicas de Roberto de Arbrissel. Consta que o piedoso fundador da ordem de Fonte- vrault caminhava descalço pelas ruas e praças publicas, para chamar ao arre- pendimento e penitencia as pcccadoras.

«Um dia que veio a Rouen, conta a chronica, entrou no lupanar, e sen- tou-se ao lume para aquecer os pés. As cortezãs rodcaram-n'o, julgando que elle havia alli entrado para peccar; mas elle diz-lhes palavras de salvação, of- ferecendo-lhes a misericórdia de Christo. Então a ribalda, que governava nas ou- tras, disse-lhe:

«Quem és tu, que d'esse modo falias? Vinte annos ha que entrei

460 HISTORIA

n'esta casa para servir o diabo, e a ninguém ouvi fallar de Deus ou da sua mi- sericórdia. Se essas cousas que dizes fossem verdadeiras. . .y>

«N'esse mesmo instanie fel-as sahir da cidade e, radiante d'alegria, ás levou para a solidão do deserto, onde lhes fez chorar lagrimas de penitencia, e onde as fez passar do poder do demónio para o poder de Christo.»

A abbadia de Fontevrault, que o piedoso Roberto havia fundado para de preferencia acolher as mulheres perdidas, nem esteve ao abrigo das tentações do diabo, nem das calumnias do século. Segundo parece, o fundador teve de submeíter-se a extraordinárias provas para vencer a carne, aquella carne, que era o seu tormento c o prendia ás vaidades, do mundo. Era accusado de com- partilhar o leito d'estas religiosas, e estimular a carne cm contactos sensuaes, para depois ter a gloria de domar as suas paixões. O abbade de Mendome, Geoffroy, escreveu-lhe uma carta ccnsurando-o por este facto.

Roberto gabava-se de nunca haver succumbido n'este novo género de marlyrio; mas n'uma carta de Marboch, bispo de Rennes, publicada por J. Mainferme no seu Clipeus ordinis mascenlis forterbaldensis expressamente se diz que a maior parte das religiosas ficaram gravidas do .seu director espiri- tual.

N'esía curiosa citação se que o recolhimento do bemaventurado Ro- berto se distinguia dos togares de libertinagem publica, apenas pela escanda- losa fecundidade das recolhidas.

Cada cidade da Normandia tinha o seu lupanar, e pôde dizer-se com ap- parencia de rasão, que os alcoviteiros e alcoviteiras que figuram nos antigos Usos normandos, adquiriram esta designação nas costas da Mandia. Comtudo, não vemos que os duques da Normandia fossem tão favoráveis á prostituição legal como Guilherme ix, duque da Aquitania e conde de Poiliers, que esta- beleceu ou quiz estabelecer em Niort um lupanar, pelo systema dos mosteiros de mulheres. Guilherme de Malmesbury cita este facto singular na sua chro- nica, e accrescenta que, construído o editicio, destinado a este lúbrico mostei- ro, o duque determinara confiar a sua administração ás mais formosas prosti- tutas dos seus estados.

Este duque de Aquitania, que foi um galante trovador e um desenfreado libertino, havia resolvido, em virtude de razões policiaes, di? M. Weiss, na fíiographia Unicersal, crear um tal estabelecimento, depois imitado em mui- tas cidades da França, da Itália e da Hespanha. Não sabemos se esta foi a cau- .sa pela qual o papa Calixto ii citou Guilherme perante o concilio de Reims em 1329. Seja como fòr, o duque não se corrigiu, e continuou cantando o amor, (' dando a seus vassnllos exemplos de uma vida licenciosa.

As ribaldas normandas, poitevinas, e angevinas, muito tinham feito sem duvida para merecer a fama de que gosavain ; as de Angers eram de todas as mais afamadas, como o prova este provérbio corrente no século xv: «Angers, cidade baixa e de altos campanários, de ricas ribaldas e pobres estudantes.»

A visinliança de Anjou c Poitou não conseguiu perverter a casta Breta- nha, onde a prostituição sempre teve uma existência occulta e timida, que por acaso era descoberta pelos ingénuos bretões. Ahi pelos fins do século xv,

DA PROSTITUIÇÃO 161

nas informações colhidas para canonisar Carlos tle Blois, uma fesfenmnha, cha- mada João de Fournet, homem d'armas da parochia de S. José, diocese de Dol. attestou perante os commissario? ecclesiasticos o modo como o santo duque ha- via convertido uma peccadora, que pertencia, de mais a mais, à intima espécie d'estas desgraçadas.

Na sexta-feira santa de l3o7, indo Carlos de Blois da cidade de Dinan para o castello de Léon, acompanhado pir Alain de Tenou, seu thesoureiro, por Ctodofredo de Poiíhlanch, seu mordomo, pelo cavalleiro Bardy, c por outros homens d'armas, viu uma mulher sentada á beira do caminho. O duque per- guntou-lhe o que fazia alli, e ella, levanfando-se, respondeu-lhe que ganhava o pão com o suor do seu corpo. O duque chamou de parte o seu thesoureiro, e ordenou-lhe que se approximasse da mulher, e a interrogasse sobre o género de vida que exercia, pois que não havia compreliendido a rcsposia da pobre creatura; a qual confessou tristemente ser uma prostituta, a quem a miséria obrigava a exercer tão vergonhosa industria.

Ouvido isto, o duque disse á infeliz que ao menos se deveria abster de peccar durante a semana santa. E ella replicou-lhe que, se tivesse vinte soldos, se absteria até ao tim do niez. Carlos pegou na sua bolsa, que não estava muito recheada, e d'ella tirou quarenta soldos que entregou á infeliz. Ao recebel-os, prometteu esta não peccar durante vinte dias.

Godofredo de Ponblanch quiz que ella jurasse o que promettia; mas o duque não consentiu que a mulher se expozessc a perjurar, e continuou o seu caminho, aconselhando-lhe que perseverasse nas suas boas intenções.

Esta meretriz, chamada Joanna Dupont, cumpriu a sua palavra, e jamais esqueceu os bons conselhos de Carlos de Blois; renunciou para sempre á vida dissoluta, e com os quarenta soldos de que fez um pequeno dote. casou-se com um rapaz da sua terra, filho de .Matheus Rouce, de Pludiilian, sem que tornasse a peccar contra a castidade.

Pôde deduzir-se d'esta aventura que Joanna Duponi, como mulher dos campos e bosques, não ganhava mais que um ou dois soldos diários, esperando os passageiros á beira dos caminhos, como as estrangeiras da Judéa, citadas pelas velhas Escripturas.

As províncias occidentaes, onde ós costumes francos se tinham conser- vado em toda a sua impureza, foram sem|>re Ihcatro de todas as depravações da prostituição. Na Lorena e na AIsacia, como n'outros tosares, havia usos e ordenações que castigavam os excessos da libertinagem, sobretudo quando se tractava do clero, que se lhe entregava com o maior escândalo; mas em cada cidade a impudicicia publica encontrou instituições protectoras, se é licito em- pregar esta expressão, para caracferisar a organisação do vicio sob o ponto de vista da policia edilitaria.

M. Rabuteau,. depois de descrever o estado da prostituição nas regiões do meio dia «onde vemos sem espanto, diz elle, paixões fogosas, produzindo as suas naturaes consequências,» admira-sc de não encontrar costumes mais severos nos paizes do norte.

«Sc olhamos, accrescenta, pai-a os paizes em que o clima menos ardente HtSToniA DA Pbostitoicão. Tomo ii— Folha 21.

i62 mSTORTA

parece dispor para costumes mais puros, encontramos os mesmos excessos, ou talvez ainda mais grosseiros.»

Este facln, segundo o nosso modo de vêr, tem uma causa histórica, e é filho de condições cconomico-polilicas. Os povos ausírasianos tinham conser- vado os seus hahilos de uma luxuria feroz, e a legislação nacional nada tentara para modificar os instinctns hrutacs, que o abuso das bebidas fermentadas, faes como a cerveja, o hydromcl e os vinhos do llhcno, exaltavam até ao delirio. A. prostituição era, pois, admittida como uma lei de necessidade, para garantir a honra das mulheres casadas, que, ainda assim, nem sempre se preservavam dos ullrages c allcntados da sensualidade masculina. O legislador não condem- na mais factos do que os que resultam d'esla fonte impura. A alcovitice é cas- tigada mais severamente que a violação, mas a mulher conserva o direito de vender-se, sujeitando-se ás formalidades da policia municipal. A lei srt era se- vera com ella, quando se entregava á gente da Egreja.

Carlos ni, duque de Lorena, resume a antiga jurisprudência na sua or- denação de 12 de janeiro de 1583, que eondemna a ser cliibatadas as «mulhe- res notoriamente infames, que frequentam as casas dos ecclcsiasticos.» Os re- gulamentos da prostituição legal, posto que mais amplos e menos austeros do que esses, que rasões d'ulilidade, de moralidade c prudência haviam feito adoptar nas grandes cidades do meio dia, pouco dilTeriam entre si.

As mulheres de vida estavam como que separadas da sociedade; ha- bitavam bairros e ruas infames; não podiam exercer a sua industria em ou- tra parte; usavam um trajo especial, ou um signal distinctivo como os judeus; pagavam um imposto ao (isco, e governavam-sc independentemente, conforme, os estatutos de uma associação regular, análoga á dos grémios.

Em Strasburgn, as ordenações municipaes de 1409 e 1430 dizem-nos que as mulheres publicas estavam confinadas nas ruas Bieckergass, Klapper- gass, Greibcngass, e por traz dos muros da cidade, onde estas mulheres haviam habitado sempre, dizem as ordenações muitas vezes renovadas no decurso do século XV.

Com elTcito, conservam-se nos archivos d'csta cidade os regulamcntus e estatutos, concedidos cm 24 de março de 1435, pelo magistrado de Strasbur- go, á communidade das mulheres públicas, estabelecidas na rua e casa cha- mada Picken-gass. Eslcs regulamentos, compostos de três artigos, comprehen- dem as medidas policiaes a que estavam sujeitas as casas de libertinagem. Es- tas casas chegaram a multipliear-se de tal modo, que, pelos fins do século xv, os funccionarios públicos, encarregados de as vigiar e de arrecadar o imposto que n'ellas incidia, contaram mais de cincoenta e sete em seis ruas dilTerenles; unui rua, a de llndnujass, tmha nada menos que dezenovc d'estes esta- belecimentos; havia tanibcm um grande numero na viella fronteira ao Ktlte- ner, e não poucas ao lado da casa chamada Sehnahelburg. Kock viu o regis- tro da policia, onde constava que a prostituição legal tinha uma centena de bordeis na cidade episcopal de Strasburgo.

Os especuladores d'estes haréns, abertos á lubricidade publica, enviavam os seus agentes e angariadores mesmo aos paizes estrangeiros em procura de

DA PROSTITUIÇÃO < 63

mulheres, que por contracto alugavam o seu corpo, e que uma vez presas nos Klapper, ou bordeis de Slrasburgo, se viam reduzidas a condiç^fio mais detestá- vel que a da escravidão.

Finalmente em principies do século xvi, as casas publicas não basta- vam para conter as prostituías, que de toda a parte aflluiam, c que não encon- trando onde se albergassem, invadiam o campanário da cathedral e das outras eg rejas.

«No que respeita ás andorinhas ou ribaldas da cathedral, diz uma orde- nação de lo2l, permiltir-se-lhes-ha o demorarcm-sc por ahi mais quinze dias; passados os quaes, jurai"ão abandonar a cathedral e outras egrejas ou togares santos. As que quizcrem persistir na libertinagem serão intimadas a retirar-se para Riebery (extra-muros, perto da porta dos Carniceiros) e para outros sí- tios que lhes serão designados.»

Quinze annos mais tarde, graças ao protestantismo, que segundo a notá- vel phrasc de que se serve Mr. Rabutcau «deu certa dignidade á vida particu- lar,» só havia cm Slrasburgo duas casas de prostituição. N'esta ultima épocha, as mulheres publicas ainda usavam o signal distinctivo, que o magistrado de Slrasburgo lhes impozcra em 1384. Esle signal era um gorro cónico c alto, ne- gro e branco, que se usava por cima du véu. A' excepção da còr, este chapéu foi o que Izabel de Baviera, com grande escândalo das mulheres honestas, in- troduziu na corte de França.

A prostituição não era menos intensa nas terras de Messin, do que na Alsacia, em Wetz do que em Slrasburgo, compartilhando das suas lubricidadcs o clero secular c regular. N'um atoar, ou ordenação dos magistrados do anno de 1332, prohibe-se á gente da Egrcja o «ir de noite e de dia ás casas com- muns, e a outros logarcs que .se não devem referir.» Este atoar faz constar «a grande dissolução que existia entre os monges de Santo Arnaldo, S. Clemente e S. Martinho,» que percorriam de noite as ruas, arrombando as portas das ca- sas, frequentando as tabernas c logarcs infames.

Tal estado de cousas peorou ainda pelos fins do século xvi, e o chronista Philippe de Vigneulles attribue tão monstruosos excessos á aflluencia da gente de guerra que a cidade havia tomado a soldo. «Pelas ruas apenas se via ribal- deria, diz, e por isso, tudo estava dillamado.» Publicaram-se severos edictos a respeito da Pedra Bordelaria na presença dos Treze (magistrados da cidade.) Esta Pedra Bordelaria devia ser o pelourinho, onde se justiçavam os condem- nados cm Metz.

Um dos edictos publicados com data de 6 de julho de 1493 encontra-se na Chronica inédita de Philippe de Vigneulles:

«Que todas as mulheres casadas, que deshonram seus maridos, c as jo- vens entregues ao vicio, se não querem viver como mulheres de bem, vão para os bordeis de Anglemure (beco sem salda, perto dos muros). E que ne- nhum habitante as receba, ou lhes alugue casa cm boas ruas, sob pena de qua- renta soldos de multa. E que as ditas mulheres não se encontrem em festas da cidade, e que ninguém as leve a danças, sob pena de dez soldos de multa.»

Metz tinha muitas ruas destinadas á habitação e trafico das mulheres

i64 HISTORIA

dissolutas, e as que não desappareceram cora a cidade velha, ainda conservam o seu primitivo uso. Perto do beco sem saida de Anglemure, que era o foco prin- cipal da libertinagem urbana, existia a rua de Bordaus, ou Bordeis, que acabava na muralha de circumvallação, parailela á rua de Stancul, mas que foi fechada. Esta ultima, que sobe pela vertente oriental da collina de Sainte-Croix, onde estava situado o palácio dos reis da Austrasia, é estreita, sombria, fétida, como todas as ruas da sua espécie.

.4s mulheres de vida compromcttiam-se, mediante uma quantia fixada n'um contracto, a servir corporalmente nas casas de tolerância, que algumas ribaldas tinham arrendadas, sob a vigilância dos magistrados. Assim, qualquer mulher solteira, que causava escândalo com os seus maus costumes, era con- duzida vergonhosamente ao bordel, e entregue ás ribaldas, que traficavam com o seu corpo, se antecipadamente não lhes dava um bom resgate, sempre superior ao que a nova mercadoria lhes poderia produzir.

Philippe de Vigneulles conta a este propósito, uma interessante historia, que data de 1401. Uma garse (mulher alegre,! indo para a cathedral n'um do- mingo de Ramos encontrou o seu amante, que a levou para casa, em vez de a acompanhar à missa. Isto foi sabido pelos magistrados, que citaram o auctor do escândalo perante o tribunal, e que apenas o condemnaram a pagar qua- renta soldos de multa; mas a joven, que foi julgada mui viciosa (de malvaise voulente, ) (oi mettida n'uma casa de prostitutas. O amante, porém, diz o chro- nista, resgatou-a das mãos das ribaldas, pagando quinze soldos, levou-a outra vez para sua casa, vendeu todos os seus bens, e foi viver para longe com ella.

Outro chronisfa, o deão de Sainl Thiebaut, refere-nos um facto que indica o preço da prostituição, verdade seja que n'um tempo em que a abundância das mulheres publicas estava em desproporção com a do trigo. Em 1420, obtinham-se quatro mulheres por um ovo, diz Emilio Begin, appoiando-se na auctoridade do chronista, pois que um ovo custava um gros, e uma mulher quatro dinheiros, e ás vezes ainda mais baratas se encontravam.

A alcovitice, todavia, não deixava de ser um commercio lucrativo, e ape- sar dos perigos que corria, não obstante o exemplo dos castigos applicados ás alcoviteiras, abundavam as mulheres infames, que viviam de traficar, até com as suas próprias filhas.

«A uma mulher foram cortadas as orelhas, diz Philippe de Vigneulles, por ter praticado muitos crimes, e ter levado uma moça, que era sua filha, para o bordel, onde foi deshonrada.»

Um século mais tarde, pelo mesmo facto, ter-lhc-hia sido applicada a pena capital.

A historia especial de todas as cidades da Lorena e da AIsacia está re- cheada de muitos factos análogos, (|ue demonstram a unidade da jurisprudên- cia em matéria do prosliliiição. rnicamenie consignaremos aqui dois casos es- peciaes, relativos ás cidades de Saint-Dié e Montbeliard. N'esta ultima, um ri- baldo que percorria as ruas vestido de mulher (ni39) foi preso e entregue ao carrasco, que o expôz no pelourinho, o açoitou, e finalmente o expulsou das terras do senhor de .Montbeliard. E' provável que este ribaldo fuesse do seu

OA PROSTITUIÇÃO 165

disfarce feminino lun uso abominável. Vimos também que em Paris as ri- baidas, disfarçadas em irajos de homem, eram egualmcnte presas, embora ordi- nariamente se Mies impozesse a pena de confiscação no trajo que nílo perten- cia ao seu sexo.

Em Saint-[)ié, as mulheres de vida, que habitavam nas ruas Noze- vilh- I' Destord, podiam gabar-se do .seu temperamento prolitico, pois que as quatro aldeias próximas, Pierpont, Saint-Helène, Buli e Padoux, chamadas as quatro aldeias viris, tinham sido povoadas com os seus filhos varões, os quaes se casaram e se tornaram súbditos do capitulo cathedral de Saint-Dié, o que tam- bém acontecia aos habitantes de maus costumes dos bairros immundos de Des- tord e Nozeville.

CAPITULO XVI

SUMMARIO

Influencia dos costumes e dos usos da Itália, na Pruveuça e no LaDi'Ucdoc, na Edade- Media. A grand© ab- hadla da rua de Comeuge, em Tolosa.— Distinctivo das mulheres da grande abbadla.— O bairro de Groses.— A casa do Ccuteilo- Verde.— Vicissitudes da prostitui.jSo legal em Tolosa ate fins do século xvi.— Hospício da prostituição lesai em Montpellier.— Os especuladores do bordel de Montpellier. - Ijlara Panais.— Guilherme de la Croix e as duai. Olhas de Clara Panais.— A caba de Dandrea.— U bordel privileg^lad<i .ic .Avinháo.— Kstatutos de Joanna de Napolos A pnxtitulçíio em .AvinhSo antes dos estatutos de 1347.

REZ cidades lia em Franea, em cada uma das quaes a prostitui- rão legal teve um asylo estabelecido por um real privilegio e

j arrendado em beneficio da communa. Estas trcz cidades são .\vinhi3o, Tolosa e Montpellier, onde por causa dos bons cos- tumes havia a instituição de uma abbadia obscena, que a au-

ctoridade municipal administrava, como um estabelecimento de utilidade publica.

Julgamos dever fazer a historia d'estes trez estabelecimentos no mesmo capitulo, approximando-os assim, para fazer comprehender a influenciados usos e costumes da Itália, na Provença e no Languedoc, na Edade-Media.

«Desde os mais remotos tempos, diz uma ordenação de Luiz xi, por DÓS citada, é costume n'este paiz do Languedoc, e especialmente nas boas ci- dades do dito paiz, haver uma casa fora das ditas cidades para habitação t^ n- sidencia das mulheres communs.»

Com elTeifo, em Tolosa e no tempo dos seus primeiros condes, foi aber- ta uma casa de prostituição a expensas da cidade, dando a esta crescido ren- dimento, e assegurando a tranquillidade das mulheres honradas. Este lupanar estava situado na rua de Comenge.

A heresia dos Albigenses, que não podiam ter contacto carnal com mulher alguma, provavelmente contribuiu para a decadência momentânea da prostitui- ção em Tolosa, e para empregar a formosa expressão, de que se serve Mignet. analysando a doutrina d'aquellc austeros hereges, o deus da matéria que do- minava nas regiões tenebrosas dos corpos polluidos foi impotente para lhe de- fender o templo. Uma ordenação doannode 1201 rehabilitou a rua Comenge, tras- ladando para o arrabalde de S. Cypriano o estabelecimento impudico, que a des- honrava. Todavia- julgaram-no ainda mui próximo do coração da cidade, e foi mudado para extra-muros, cerca da porta e no bairro de Croses.

1 fiS HISTORIA

Se se tivessem fechado as porias d'esta casa publica, que chamavam a grande abbadia, e que não albergava as ribaldas da cidade, mas também as que eram attraidas a Tolosa, os estudantes da Universidade c os libertinos ter- se-hiam sublevado para manter o que elles chamavam os seus antigos privilé- gios.

A cidade e a Universidade, perfeitamente d'accordo, haviam feito as des- pezas para a insfallaçào das mulheres communs, e compartiam, boné jure et justo titulo, como com-proprietarios, os benefícios d'esta explorarão infame.

As prostitutas, que viviam ou estavam de passagem na grande abbadia, eram obrigadas a usar um chapéu branco, com cordões da mesma côr, insígnia da profissão e libré da casa. Não era sem violência e rcpugnanciaque cilas obede- ciam a esta prescripção do regulamento sumptuário, que as impedia de se ves- tirem e adornarem a seu gosto e capricho, pois que a côr branca do chapéu não ia bem com as outras cores da moda, e era detestada pela impura communi- dade da grande abbadia. Todavia os magistrados mostravam-se inflexíveis ob- servadores das antigas ordenações, e rigorosamente castigavam toda a contraven- ção da lei.

Em dezembro de 1389, o rei Carlos vi, visitando as principaes cidades do seu reino, fez uma entrada triumphal na capital do Languedoc, onde foi rece- bido com grande pompa, e onde alguns dias se demorou. Toda a população to- mou parte nas festas da recepção, e as hospedas da grande abbadia sahiram a receber o rei com doces, vinhos e dores, a fim de lhe supplicarem uma gra- ça, (^om effeito, em commemoraçào da sua feliz chegada, pediram-lhe que as livrasse das injurias e vitupérios, a que a branca insígnia a que eram obri- gadas por uma antiga ordenação sujeitava a collegíada. Parece que ogríto 0//ia o chapéu branco! dado nas ruas de Tolosa, fazia sahir das casas e das lojas um grande numero de rapazes, que perseguiam o vistoso toucado, alirando- Ibe pedras e lama. As prostitutas queixaram-se, allegando que as ordenações relativas ao seu vestuário tinham sido feitas sem auclorisação do rei, a quem supplicavdm as emancipasse d'aquolla escravidão.

O assumpto foi levado a conselho de Estado e discutido em presença do bispo de Noyon, do visconde de Melun e de messires Enguerrand, Dcudín e .íoào Estouteville. Carlos vi, que ainda não estava demente, recebeu com pa- ternal interesse a supplica das jo\ens da grande abbadia, e segundo os termos da ordenação expedida por tal motivo, «desejando dispensar graças e favores a lodos, e assegurar a liberdade aos habitantes do seu reino», outorgou ás sup- plícanlcs c suas successoras na dita abbadia, que podessem trazer no braço uma braçadeira de cor diíTerente da do vestido que usassem, sem que por tal facto incorressem em multa, embora ordenações houvesse em contrario.

O Sencscal de Tolosa e todos os funccionarios públicos foram, portanto, encarregados d'ahi em diante de proteger as habitantes da abbadia, e de paci- fica e perpetuamente fazer-lhes gosar os beneficios desta real graça, sem as molestarem, ou permittírem (|ue fossem molestadas, pelo trajo que usassem. A collegíada da grande nbbadia bem depressa se arrependeu de, por graça especial do rei, se ter libertado do uso da antiga insígnia. A população de To-

DA PROSTITUIÇÃO 169

losa revoltou-se contra esta liberdade auctorisada pela real ordenarão, e como obedecendo a uma deliberação geral, maltratava todas as que encontrava na rua sem chapéu nem cordões brancos. O Senescal de Tolosa, e assim os mais func- cionarios públicos, recusaram ouvir as queixas que diariamente lhes eram apre- sentadas pelas maltratadas; e não podendo estas obter justiça nem protecção, em vez de renunciarem ao beneficio da real ordenação, que as libertava d'um distinctivo infamante, preteriram conservar-se reclusas no seu asylo. Mas nem por isso os seus perseguidores as esqueceram, c á própria abbadia as foram in- sultar.

Estas perseguições foram pouco a pouco afastando os clientes da casa, que dava á cidade um rendimento considerável, empregado em despezas de utilidade publica. A. renda foi continuamente baixando, e o thesoureiro do Capitulo, que a recebia annualrnente das mulheres communs e dos seus arrendatários, teve de dar conta do deficit, causando impressão nos capitulares, que viam de- sapparecer um rendimento tão fácil como seguro. Por causa d'isto, fez-se uma syndicancia, d'onde se concluiu que as moradoras da abbadia alli não viviam em segurança; que grande numero de libertinos e de homens maus de noite e de dia iam áquelle estabelecimento, onde praticavam actos inauditos; que es- tes perversos, sem temor de Deus nem da justiça, inspirados peio espirito mau, arrombavam as portas, penetravam no interior da casa c |)ara se apoderarem das desgraçadas, que se entrincheiravam nos seus aposentos, demoliam as pa- redes, ou abriam grandes buracos nos tectos; que finalmente feriara c ultraja- vam do modo mais atroz as pobres victimas da sua feroz e cruel lubricidade. Estas, para se subtrahirem a taes violências e ultrajes, fugiam da Grande Ab- badia, que nada mais era do que uma ruina abandonadar

Os capitulares inutilmente procuraram remediar o mal e attrahir as fugi- tivas ao estabelecimento, promettendo-lhes apoio e {)rotccção: o habito tinha-sc inveterado, c apesar das disposições e esforços da guarda urbana, os assaltos á abbadia repetiam-se frequentemente, sempre com a reproducção dos mesmos escândalos e torpezas.

Convencidos da inutilidade dos meios de que dispunham, os capitulares dirigiram-se ao rei, supplicando-lhe viesse protegel-os; Carlos vii, que então reinava n'algumas províncias do seu reino, dirigia-se a esse tempo ao Langue- doc, para exaltar o zelo dos seus partidários, e sem diíFicuklade foi a Tolosa: alli examinou o assumpto em conselho, recordou que seu pae havia outorgado uma graça, alegremente recebida, ás ribaldas de Tolosa, e por um real decreto de 13 de fevereiro de 1423 ameaçou com toda a sua cólera os auctorcs dos exces- sos que muitas vezes se haviam reproduzido na Grande Abbadia; recommen- dou aos seus agentes que protegessem o estabelecimento, que desde então fi- cava sob a sua especial guarda, e mandou diante da porta collocar dois postes, pintados com flores de liz, em signal da protecção real.

As armas da França pouco respeito impozeram aos desordeiros, que de vez em quando repetiam os seus ataques nocturnos contra a Grande Abbadia, dando a desculpa de não terem visto as flores de liz, com a escuridão da noite; mas as pobres peccadoras, por mais que tocassem o sino d'alarme, pedindo soccorro e

BuTORU djl PaosniDiçio. Tomo n— Folha. 22.

no - HISTORIA

auxilio, por muito felizes se ciavam em salvar a vida. Por fim tiveram que. aban- donar, o estabelecimento, que sem defesa as entregava aos seus verdugos, e voltaram para o bairro de Groses, onde menos evpostas estavam ás violências d'aquelles ferozes libertinos.

Os capitulares viram então elevar-se a cifra dos rendimentos impudicos da cidade, e esta grave considera^"ão obrigou-os a fecbar os olhos á invasão da libertinagem publica, no interior de Tolosa. As prostitutas permaneceram cerca de um século nos becos immediatos á porta de Groses, d'onde sahiram em 1525, quando a Universidade se apoderou das casas que ellas occupavam, e alli construiu edifícios para seu uso.

Então foram novamente relegadas da cidade, e para ellas á custa do mu- nicípio se adquiriu uma grande casa, situada extra-muros, n'um sitio chamado Pré-Moulardi, pertencente a M. de Saint-Pol.

Esta casa de prostituirão chamada Chateau-Vert, ou Chatel-Vert (Cas- tello Verde) não tinha que receiar dos assaltos dos estróinas, e offerecia um retiro pacifico áquellas pobres mulheres, que por conta da cidade continua- vam trabalhando na sua infame industria: mas o estabelecimento do Chateau- Vert era n'aquolla épocha regido por alguns regulamentos severos.

Em 1557, tendo apparecido a peste em Tolosa, ordenou-seás mulheres publicas que permanecessem encerradas no seu castello, e que n'elle ninguém admittissem, até que o flagello cessasse: algumas desobedeceram a tão justa ordem e foram açoitadas na praça do mercado ; outras fugiram para cidades on- de a peste não reinava.

reappareeeram em Tolosa em 1560, quando as condições da salubri- dade publica tinham melhorado, a ponto de lhes serem reabertas as portas do ChateaU-Vert. O seu regresso foi alegremente celebrado, mas os capitulares, envergonhados com os epigrammas, que lhes dirigiam a propósito da direcção suprema que tinham n'este bordel municipal, c também sabendo que eram ac- cusados de comprar as vestimentas com o imposto do Chateau-Vert, fizeram d'este imposto cedência aos hospitaes da cidade. Os hospitaes apenas o perce- beram seis annos, passados os quaes á cidade devolveram tão oneroso privile- gio: os rendimentos da exploração do Chateau-Vert eram absorvidos e até excedidos pelos encargos correspondentes a esía impudica propriedade, pois que os hospitaes eram obrigados a receber e a tractar gratuitamente as enfermas que sabiam do Chateau-Vert. JXecessario é, todavia, lembrar que n'este período de seis annos os doentes tinham sido mais numerosos do que nunca, e que o trataraciitu da s^j/iiiUs era então caríssimo.

Para tratar d'es1a questão, que n'esse tempo preoccupava todos os ma- gistrados do reino, reuniu-sc um conselho solemne no Gapitulo. A questão era simplesmente esta : a radical abolição da prostituição. Os notáveis da cidade as- sistiram a esta reunião, e na maior parte opinaram pela suppressão do Chateau- Vert; mas prevaleceu o parecer do abbade Casedicu, que de accordo com o pri- meiro presidente opinou que a suppressão fosse addiada para momento mais opportuno.

Com eCícito, cidade alguma havia onde a prostituição legal fosse mais

DA PROSTITUIçiO 471

necessária do que em Tolosa ; os costumes eslavam relaxados, e as paixões, sob a influencia do clima, tiniiam necessidades imperiosas que era necessário sa- tisfazer dentro de certos limites. Dois factos recentes provavam que a auctori- ridade dos magistrados da cidade não podia exercer grande vigilância sobre as mulheres publicas, que tão pouco o Chateaii-Yert convenientemente vigiava. Em 1590, quatro d"estas desgraçadas haviam sido encontradas no convento dos Grandes Agostinhos; haviam alli entrado com o habito monástico, e satisfa- ziam toda a communidade nos seus desejos sensuaes. Trez d'estes monges dis- farçados foram enforcados nas Ires portas do convento, e um verdadeiro frade, o cúmplice principal, foi levado com ferros aos pés perante o bispo.

Em I06G, outras trez mulheres d'esta classe, que também se disfarçaram para entrar no convento de Beguines, foram egualmente enforcadas sem forma de processo.

Comtudo o Chateau-Vert conservou as suas altribuições e franquias até 1587. N'esle anno, pozeram-se cm vigor em Tolosa as medidas que a epidemia reclamava. O Chalenu-Vert foi fecbndo e seiladas as portas; mas as prostitu- tas, ao sahirem d'alli, não mudaram de vida e, apezar da peste, que não as amedrontava, exerciam ás escancaras a sua infame industria.

Um dos capitulares, a quem o medo da epidemia obrigou a fugir do seu posto e a refugiar-se no campo, foi testemunha involuntária das licenciosida- desque se praticavam em torno da cidade. Quando a peste terminou, e este capi- íoul voltou ao exercício das suas funcções, referiu em conselho o que havia visto de vergonhoso nas vinhas e nos campos, que por então substituíam o Chateau-Vert. Em virtude d'isto, não mais se pensou em reabrir aquelle bordei, e deu-se caça a todas as ribaldas que tinham levado vida desordenada durante a epidemia. Foram encerradas na prisão da cidade, e puchavam ás carroças da limpeza das ruas. Taes foram as vicissitudes da proslituição legal em Tolosa, até aos fins do século xvi.

A historia dos asylos bordelarios de Montpellier não remonta a épocha-tào antiga, ou, pelo menos, os documentos authenticos que a descrevem não são anteriores ao século xv; mas era Montpellier, como em Tolosa, vemos que, se- gundo o uso estabelecido desde remota antiguidade nas principaes cidades do Languedoc, a prostituição legal tinha extra-muros um hospício sob a vigilân- cia dos magistrados, que percebiam um imposto das mulheres communs e dos arrendatários privilegiados. Nos princípios do século xv, este infame privilegio pertencia a um tal chamado Panais, que estabelecera o seu negocio n'uma casa situada oxtra-muros, n'um sitio vulgarmenlc chamado o Bordel.

Alli, diz o real despacho de Carlos viu, que confirma o artigo privilegio de Panais, alli é onde as mulheres publicas e communs téem a sua morada e existência de dia e de noutc.»

Panais gosava pacificamenle do seu privilegio, e enriquecia-se, pagando enormes direitos á sociedade. Tinha dois filhos, Alberto c Guilherme, a quem procurava dar uma educação esmerada, mas, tendo morrido o pac, os dois ra- pazes herdaram o privilegio annexoá casa do Bordel.

Como este privilegio dava muilo lucro, os novos proprietários não pen-

172 HISTORIA

saram em deixal-o, mas tiveram de associar-lhes Guilherme de la Ooix, pertencente á nobreza de Montpellier, e contando entre os seus avós o celebre patrono dos empestados, S. Roque. Desde então a propriedade indivisa do Bordel permaneceu nas mãos de la Croix e dos irmãos Panais, que, sem dei- xarem de explorar o negocio da prostituição legal em Montpellier, chegaram a ser banqueiros.

O maior numero dos magistrados que compunham o conselho quizeram oppôr-se a que as mulheres de vida, ainda mesmo com o distinctivo do of- ficio, entrassem na cidade, e para lhes tirar de todo o pretexto de frequentar os banhos públicos, onde secretamente exerciam a sua infame profissão, intima- ram os arrendatários do Bordel, a que n'elles contruissem estufas e banhos. Os irmãos Panais e o seu associado Guilherme de la Croix consentiram em fa-' zer estas grandes e sumptuosas despezas, que tinham por único fim tornar com- pletamente sedentárias as habitantes do Bordel; mas aproveitaram tão bôa oc- casião para que lhes fosse renovado e confirmado o antigo privilegio d'esta casa de toleradas, em virtude do qual, e mediante a somma de cinco libras torne- zas, pagas annualmente ao rei ou ao seu logar tenente, «desde agora em diante pessoa alguma, seja qual fòr o seu estado ou condição, poderá na parte antiga de Montpellier estabelecer bordel, taberna ou hospedaria para as mulheres pu- blicas, sob pena de confiscação das ditas casas, bordeis, tabernas ou banhos.»

0 conselho da cidade, a quem foi presente um instrumento publico, passado e assignado pelas partes interessadas, rectificou as clausulas do contracto, e augmentou as vantagens dos arrendatários do Bordel.

Mas estes em breve trecho foram perturbados no gozo do privilegio : um dos associados, Alberto Panais, tendo cedido a sua parte a sua filha Jacobina, que a levou em dote a Estevam Bucelly, com quem contrahiu matrimonio em

1 i-65, um tal chamado Paulo Dandn^a, que habitava na mesma cidade, julgou-se auctorisado a especular com a mesma industria, dando por caducado o privi- legio de Panais. Obrava assim por inveja ou por outro móbil, e era protegido pelo reitor ou bailio da velha cidade. E para isto começou a recolher dentro d'unia casa, sita no centro da cidade, a todas as mulheres publicas. Mas a exis- tência d'uma casa de libertinagem no centro da população honrada era uma infracção de todos antigos usos do Languedoc, e os habitantes das circumvisi- nhanças, sacerdotes e seculares, queixaram-se ás auctoridades, e protestaram contra o audaz emprehendimento de Paulo Dandrca, pois que viam «ser a causa um grande vitupério e deshonra, e máu exemplo para as mulheres ca- sadas, suas filhas e servas, e também pelo escândalo e outros inconvenientes que podia produzir.»

Dandréa, com o apoio secreto de certos libertinos que desejavam a crea- ção d'um bordel central, sustentou os seus pretendidos direitos, e manteve aberta a porta do seu alcouce. Mas Guilherme de la Croix e Guilherme Panais eram ricos e poderosos, principalmente o primeiro, e enipenbaram-se para que fosse fechada a casa de Dandrca, aberta em contravenção das ordenações dos reis e dii privilegio de Panais, e ao levar perante o rei a sua demanda, não se enver- gonharam de se declararem proprietários e emprczarios do Bordel.

DA' PROSTITUIÇÃO 173

Justamente por esse tempo Carlos tii enviara aos estados do Languedoc, como seus representantes, messires de Monlaigu, Hebert e Hallc, conselheiros reaes que foram a Monipellier, onde em 1438 se reuniram ao estados. Estes Irez personagens tomaram conhecimento do assumpto, em virtude das queixas que riuilherme de la Croix e seus consócios dirigiram aos estados, que não des- denharam occupar-se da questão.

Os representantes do rei fizeram comparecer ante elles os interessados, e depois de na presença do procurador da cidade os terem ouvido, prohibiram a Dandréa, sob pena de multa de dez marcos de prata, o alojar ou receber em sua casa qualquer mulher publica. O procurador da cidade e o sencscal de Beaucaire foram, conforme os antigos usos de Montpellier, os encarregados da execução do decreto. Os herdeiros e successores de Panais foram, mediante a renda annual de cinco soldds fornezes para o rei, confirmados no gozo do seu privilegio, «sem que ninguém d'ahi para o futuro podesse construir ou estabe- lecer outra casa para as ditas mulheres publicas.»

Não contentes com isto, os consócios em 1 469 sollicitaram do rei a con- firmação do decreto, que lhes foi outorgada mediante fiança.

Vinte annos depois, Guilherme de la Croix, conselheiro do rei e the- soureiro das suas guerras, não renunciara por isso á empreza do Bordel de Montpellier. Como hahiluolmenfe não residia n'esta cidade, e Guilherme Panais se não occupava muito n'este negocio, receiando vèr irromper a concorrên- cia que n'outro tempo lhe havia feito Dandréa, sollicitoii de Carlos viu a con- firmação do real privilegio que obtivera de I>uiz xi.

Carlos VIII appressou-se a publicar, em favor do seu amado e leal conse- lheiro e em bem e inleresse da causa publica, a ordenação que lhe garantia os direitos sobre a prostituição de Montpellier, e egualmente os dos seus consó- cios Guilherme Panais e Jacobina, mullier de Estevam Buccelii, todos honra- dos habitantes da dita cidade.

Como em Montpellier, em Tolosa e nas principaes cidades do Langue- doc e da Provença, em Avinhão havia também um bordel privilegiado, estabe- lecido em virtude de ordenações reaes e municipaes: e este grande estabeleci- mento, o mais celebre de todos os da França pelos estatutos que o regiam, pa- rece ter sido organisado, tendo por modelo as casas publicas de Itália. A au- Ihenticidade d'esles estatutos, que o sábio medico Aslruc pela primeira vez publicou em 1736, na primeira edição do seu tratado De morbis mnereis, pa- rece-nos incontestável, apezar da longa refutação que M. Júlio Courtet pu- blicou em a Rcvue Archeologique (anno 2.°, fasciculo 3."). Segundo Júlio Cour- tet, Astruc foi victima d'uma mystificação, e os estatutos apocriphos, attri- buidos á rainha Joanna de Nápoles, seriam obra de M. Garcin e dos seus amigos.

Em uma nota anonyma, escripta á mão n'uni exemplar da Cacomunade de Linquet, narra-se a historia d'esta mystificação, em que como cúmplice en- trou um filho de Avinhão, M. Commin, que nasceu dez annos depois do ap- parecimento do livro de Astruc. Por todos é sabido o que vale em geral uma nota de calligraphia feita n'um livro, e muito nos surprehende que a critica

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haja fundado em similhante nota a contestação d'um facto histórico, que atra- vessou o século XVIII, spíMiio séptico e cynico, sem ser desmentido, nem sequer posto em duvida.

Indubitável é que, se os mystiricadores de Avinhão se tivesssem diver- tido á custa de um sábio tão illustre como Astruc, em toda a Europa haveria repercutido uma immensa gargalhada, e o tratado De morbis venereis, em que o documento citado foi impresso pela primeira vez, não haveria escapado ás consequências de tal myslificação, isto é, aos commenlarios satyricos, resultado inevitável de qualquer myslificação. Em todo o caso, o gracejo de M. Garein e dos seus amigos, haveria pelo menos transpirado cm Avinhão, e Astruc não re- editaria os estatutos apocryphos na segunda edição da obra, corrigida e augmen- tada em 1740.

Além d'isso, esta obra, traduzida cm frar.ccz e também em outras mui- tas linguas, teria encontrado quem refutasse o seu famoso capitulo sobre o Bor- del de Avinhão ; e, pelo contrario, se demonstrou que a tradicção local a res- peito d'esía casa de prostituição era constante e vulgar, quando Astruc escre- veu a um individuo de Avinhão (ahi por 172o ou 1730; a fim de obter, se pos- sível fosse, uma copia do original dos estatutos de 1347.

M. JuIio Courtet diz que a copia foi tirada d"um supposto original, que uns indignos falsarios intercallaram n'um magnifico manuscripto do século xiii ou XVI, intitulado Slattila el pricileíjia reipublicae Avenionensis. Este manus- cripto, que faz parte da magnifica bibliotheca do marquez de Cambis Velleron, passou em seguida para o Museu Calvet, onde Júlio Courtet o examinou. Os Staluln prostiliuli cifi latis Acenionis, que M. Couríct julga «uma imitação pouco hábil não do cstylo mas também da maneira escrever do século xvi» estão transcriplos n"uma folha de pergaminho «a segunda das quaes tem a co- pia d'uma bulia do Papa Gregório, cailigraphia do século xvi.»

Basta esta circumstaní ia para provar que se não quiz enganar ninguém, c que o antigo possuidor do manuscripto, no século xvi sem duvida tentou complctal-o, accrescentando-lhe uma copia, feita por oiiira mais nu menos de- feituosa que podo cnccmtrar.

O marquez de Cambis, que era de Avinhão, e que por isso vivia na fonte de todas as noticias concernentes ao assumpto, não teria deixado de fazer desa- pparecer as folhas que deshonravam o seu manuscripto, em vez de mencionar no seu catalogo os singulares estatutos, «que estão (diz a pag. 46-j) em lingua provençal, como então se fallava, e que pouco diflere da de hoje.»

E' provável que o original existisse ou tivesse existido nos archivos do palácio dos papas, ou nos dos condes de Provença, e que algum curioso o trans- crevesse a seu modo, alterando e modernizando o texto provençal, ou mesmo traduzindo-o para esla lingua do texto lalino. O que parece certo é que a exis- tência d estes estatutos nunca foi tida por duvidosa, e que a sua aulhenlicidade é além d'isso confirmada por tudo que sabemos a respeito da prostituição da Provença na Edade Média.

As considerações moraes, feitas para demonstrar a inverosimilhança d'estes estatutos, auctorisados por uma rainha joven, não lêem valor para quem estuda

DA PROSTITUIÇÃO 175

a policia dos postumes n'aquella épocha. Joanna de Nápoles, condessa de Provença, nada innovava n'cste assumpto: não fez mais de que com a sua auctoridade suprema saiiccionar as regras da administração urbana, que os ma- gistrados d'Avintião iiaviam feito no interesae da causa publica, baseando nas razões que impelliram Carlos vii a publicar ordenações sobre assumpto aná- logo.

A dissertação de Júlio Courtel ajudar-nos-ha a demonstrar que, anterior- mente aos estatutos de 1347, a prostituição se bavia installaJo á moda italiana na cidade papal d'Avinlião. No concilio de Vienna, celebrado em 1311-131 2, o piedoso e sábio bispo de Mende, Guilberme Durandi, pediu a severa repres- são dos excessos da liberlintigem; indignava-so de que o niarecbal da corte rle Avinlião tivesse por tributarias as mulheres communs e os seus escandalosos cúmplices: pretendia que aquella peste publica, que se expunha em almoeda á porta das egrejas, diante das casas dos prelados, e mesmo sob os muros do palá- cio dos papas, fosse desterrada para os bairros menos frequentados; reclamava lambem que o marechal renunciasse aos infames reditos da prostituição. (V. Vitce pap. Aren. publie. por Raluce, t. i, f.'" 810).

Todos os padres do concilio concordaram cora as queixas do bispo de Mende, mas não se arriscaram a um projecto de reforma, que haveria |)reju- dicado muitos interesses particulares, c o marechal da corte do papa continuou percebendo os impuros impostos. As ribaldíis muiíiplicavam-se c espalhavam-sc por toda a cidade. «Não havia, diz Courtet, logar, por sagrado que fosse, que e.stivesse ao abrigo da sua inacreditável audácia.»

Petrarca, que n'esta cidade residia em 1326, assombra-se da desordem dos costumes, que a mudança da Santa parecia haver favorecido, como se o papa e os cardeaes de Roma houvessem trazido atraz de si um cortejo de homens e mulheres depravadas.

«Kiu Roma, a grande, diz Petrarca, não havia mais que dois ruíióes; lia pequena .Vvinhão havia onze. Cum iii niapia Roma duo fueriui knones, in parva Avennio sunt undecim. (Obras latinas de Petrarca, edição de Bale, íl. 1:184).

Bem se comprehende que a prostituição, a si própria entregue, necessi- tava de um regulamento similhanfe áquelle que nas demais cidades da Provença d'ella fazia uma instituição de utilidade publica. A rainha Joanna, ameaçada no seu reino de Nápoles pelo exercito de seu cunhado Luiz da Hungria, acabava de depor a coroa, tincta no sangue do seu esposo; havia-se refugiado em terras de França, c, dejiois de ter casado em segundas núpcias com seu primo e amante Luiz de Tarento, dispunha-se a vender ao papa o condado d'Avi- nhão, para assim comprar a absolvição do seu crime e o apoio do papado.

Em virtude, pois, d'estes graves acontecimentos, a rainha Joanna, que vivia em Aix, redigiu ou antes sanccionou os estatutos da prostituição legal em Avinhão, como Carlos vii e Luiz xi haviam sanccionado outros do mesmo gé- nero para as cidades de Tolosa e Montpellier.

Estes estatutos (e o seu primeiro artigo affirma-o) foram formulados pe- los cônsules ou governadores da cidade, na forma ordinária de todos os privi-

1 76 HISTORIA

legios concedidos a lupanares, e a joven rainha nada mais fez do que assignar sem ler, sob a responsabilidade do seu chanceller, que os havia approvado.

Pôde affirmar-se com certeza que o primeiro a quem í" concedeu a ex- ploração d'estes privilégios, estando muito interessado em obtel-os, não olharia a despezas para pssim assegurar a approvaçào da ruiiiha e para fazer reconhe- cer os seus direitos, antes da cedência do condado á Santa Sé.

Eiii uuunu do que «iUrmanios, poderíamos reproduzir o texto provençal dos estatutos, tal como Astruco reproduziu, e sentimos que Júlio Courlcl não acompa- nhasse o manuseripto do museu Calvet, cheio de raspaduras e emendas, d'este texto. Basto este ficto p;;ra excluir du todo a ideia de fraude da parte do co- pista ou do traduetor do texto original.

Vamos dar uma fraducçào do velho texto provençal, mais litteral do que aquella que se no livro d'Astrue, inopportunamente reproduzida com os seus erros e desbotadas periphrases :

I

No anno de mil trezentos c quarenta e sete, aos oito do mez d'agosto, a nossa boa rainha Joanna permittiu o bordel em Avinhão. Quer que as mulhe- res licenciosas não vivam na cidade, mas que estejam encerradas no bordel, e que para serem reconhecidas usem uma insígnia ou laço vermelho no hombro esquerdo.

II

Se uma joven commettcr uma falta e quizer continuar no vicio, o guar- da-chaves da cidade ou o capitão da policia conduzil-a-ha, ao som do tambor c com o laço vermelho no braço, pelo meio da cidade, e alojal-a-ha com as demais no bordel, e prohibir-lhe-ba o sair para fora da cidade, sob pena de uma multa [lela pi'imeira vez, e de ser açoutada e desterrada pela segunda.

III

A nossa boa rainha ordena que o bordel seja situado na rua de Pont- Traucal, perto dos frades Agostinhos, nas immediações dA porta Peirc; outro sim ordena que haja uma porta ao lado, por onde lodos entrem, mas que es- teja fechada á chave, a fim de que qualquer homem não possa vér as mulhe- res sem licença da governanta, que todos os annos será nomeada pelos cônsu- les. A governanta guardará a chave e advertirá aos frequentadores que não ar- mem tumultos nem maltratem as infelizes. No caso contrario, havendo a menor queixa contra qualquer que provoque desordem, os desordeiros serão presos.

IV

A rainha determina que todos os sabbados a abbadessa e um barbeiro, nomeado pelos coneules, inspeccionem todas as mullieres do bordel, e se n'al-

DA PUOSTITUIÇÃo 177

guma encontrarem enfermidade venérea, que seja separada das oulras c isolada, de modo que ninguém com ella esteja, a fim de evitar que contagie a juventude.

Item. Se acontecer que no bordel alguma mulher conceba, a directora providenciará de modo que ao frucfo mal não succeda, e prevenirá os cônsu- les para que ministrem o necessário ao nascimento d'esta creança.

VI

Item. A abbadessa não permittirá que homem algum entre no bordel na sexta-feira santa, no sabbado d'Alleluia e no dia de Paschoa, sob pena de ser expulsa e açoutada.

VII

Item. A rainha quer que todas as libertinas do bordel vivam como irmãs. Quando houver alguma queixa, a directora deve reconcilial-as, e cada qual sub- metter-se ao que esta decidir.

VIII-

Se alguma roubar, a directora deve convencel-a a restituir o objecto rou- bado, e se a ladra resistir a esta ordem, deverá ser fustigada dentro de um quarto, por um agente de policia: e, no caso de reincidência, será açoutada pelo verdugo da cidade.

IX

Item. Que a directora não consinta a entrada no bordel a nenhum judeu, mas, se acontecer que algum alli entre ardilosamente c tenha relações com al- guma mulher, seja preso e açoutado.

Astruc, publicando estes estatutos, diz que foram copiados dos registros de M. Tamarin, notário e tabellião apostólico, em 139:?: mas não pôde alcançar esclarecimento algum d'este Tamarin, nem do seu manuscripto, á excepção d'um extracto dos mesmos registros, d'onde consta que um judeu de (larpentras, cha- mado Doupedo, publicamente foi açoutado em Avinlião, em 1408, por haver entrado furtivamente no bordel e ter tido cópula com uma das reclusas.

Um facto análogo é referido no Appendix Marcm Hispaniae, em que o sábio Pedro de Marca cita um documento do anno 1024, onde se diz que um judeu chamado Isaac foi corporalmente castigado e os seus bens confiscados, por ter commettido adultério com uma christã.

Astruc, que descobriu este precioso facto de costumes (Traiié des ma- ladies vener. tit. i, pag. 21 0,) acrescenta algumas reflexões aos estatutos da rai- nha Joãnna.

Historia da PBOSTiTmcÃo. Tomo ii— Foi.ha ZS.

Í78 HISTORIA

Júlio Courtet diz que o artigo que se refere aos contágios venéreos, o qual faz duvidar o serio Merlin da aulhcnlicidade dos estatutos, bastaria aos olhos de muitos para invalidar o supposto original. veremos, ao fazer a historia da prostituição cm Inglaterra, como os estatutos dos lupanares de Londres prohibiam em 1430 a existência nos lupanares de mulheres infestadas d'esta enfermidade.

Em resumo, e depois d'um serio exame da questão, concluímos que, se não possuímos o texto original dos estatutos do bordel de Avinhão, temos pelo menos os regulamentos que parecem conforraar-se com os que a tolerância mu- nicipal havia posto em vigor nas cidades do meio dia.

Náo esqueçamos citar n'este momento o antigo rifão popular:

Sur lepontd'Avignon tout le monde y passe,

todo o mundo pas^a pela ponte, de. Aúnhão, que prtde muito bem ser uma engra- çada ironia, com referencia á fama da rua chamada Pont-Traucatou-Troué.

Esta rua tinha uns estabelecimentos tão mal afamados, que n'um synodo celebrado em Avinhão a 19 d'()ulubro de 1441 foi prohibido aos ecciesiasticos e homens casados o frequentarem estes logares da prostituição. Os que ousavam contrariar esta prohibição e que incorriam nas excommunhão do synodo, eram obrigidos a pagar cm beneficio do bispo dez marcos de prata, se fossem sur- prehcnilidos sahindo de dia dos lupanares, e vinte marcos, se fosse de noite. O veguer de Avinhão, João Blanchier, foi o encarregado de fazer executar estes estatutos synodaes, e de vigiar a policia interior dos lupanares públicos.

Poucos annos depois, em 1437, o conselho da cidade oecupou-se também das lupanares da Servelerie, que nada mais eram do que albergues da pros- tituição, como as Sluphae Pontis-Trouati.

Todavia Courtet cila uma medida de policia relativa ás mulheres disso- lutas de Avinhão, fccto extrabido dos archivos municipacs d'esta cidade. O ve- guer mandou apregoar ao som de trombetas, pelas esquinas, que nenhuma d'estas desgraçadas trouxesse em publico manto ou véu, nem rosário de âm- bar, nem aunei de ouro, sob pena de mulla e confiscação d'estes objectos.

Pelo mesmo tempo, também pela voz do pregoeiro se declarava que as mulheres publicas de Paris se deviam conformar com as leis sumptuárias, e suf- ficientemente isto prova que não podiam esconder o seu caracter infame, feita uma vez a profissão em qualquer alihadln publica. Opporiunamenie encontra- remos nos usos e costumes da prostituição napolitana a origem tradiccional do Bordel de Avinhão, essa estranha fundação de uma rainha joven, bella e galan- teadora.

Além d'i.sso, se as ahhadias impuras eram estabelecimentos de fundação real ou municipal, na maior parte das cidades da Provença as mulheres per- didas, que se entregavam á prostituição, não tinham auclorisação para exercer a sua vergonhosa industria, fora do asylo que lhes estava designado. Era sem- pre considerada como infracção dos regulamentos de policia a sua presença nas

UA FKoblTrUI^ÀO 1 79

ruas com trajos de mulheres honestas. Um artigo dos estatutos de Aries, feitos em 1454, prova-nos que estes regulamentos de policia, vigentes n'esta cidade, não dilíeriam dos que enconlramos estabelecidos em Avinhão pela mesma épo- cha. Eis o artigo dos estatutos, que Millin cila, no seu Ensaio sohre a língua e lilteratura provençal :

«Qualquer mulher publica, reconhecida ou disfar\-ada na rua das mulhe- res honestas, que leve manlellelc, véu na cabeça c anncl de ouro ou praia, ou qual(|ucr outra jóia, serácondemnada por cada objecto em 50 soldos, e na perda d'esscs objectos.»

Esta passngem da legislação arlesiana parece distinguir as mulheres de vida das noctívagas e libertinas, que viviam em ruas honestas. Os objectos que não lhes era perniillido usar, eram os mesmos que os filhos abandonados e as mulheres perdidas de Avinliào não podiam trazer.

INão enconlramos documento que nos permitia calcular o preço corrente do Bordel da rainha Joanna, mas devia ter sido módico n'uma província em que, segundo um provérbio popular, a melhor mulher não valia lo soldos. Na verdade os provérbios são env Iodeis os paizes Ião hoslis ás mulheres, que deve suppòr-se -o não collaborarem ellas n'clles. A sombra do homem vale cinco mulheres, dizia-se tanto em Aries como em Avinhão.

CAPITULO XVII

SUMMARIO

A prostituição legal e a piostituiçuo livre. - Influencia da cavallaria na huuesliJade publica O pagem de Imiira (la dama de Belles-Cousines.-- O verdadeiro cavalleiro destruiddor da porrupção. A camisa de Covey.— O c-astelIJo Coiicy e a dama de Fayel.— Principalia amoris prcecepta, de mestre AaJrés, capellão de Luiz vii.— Aa Cortes do amor.— A jurisprudência amorosa.— Decretos do amor.— O maireúo Bois-vert.— O bailio de Joye, ij reguei- dos amores, etc.

sTUDANDo OS iiioialistas o poetas da Edatle-Media, observamos que a prostituição legal era tão antipathica ao povo, como á no- breza, que a consideravam como uma macula da sociedade, e que de commum accordo tentavam impedir que ella produzisse escândalos, queincommodassemos olbares, os ouvidos c os pen- samentos da gente bonrada. Todavia a prostituição não estava menos solida- mente estabelecida n'essa classe infame, que vivia fora da decência publica e era composta de ribaldos e libertinos de todas as cathegorias.

Preciso era que cada cidade tivesse um asylo de libertinagem para esta popu- lação fluctuante, que sem cessar se renovava, e constantemente se subtrabia á acção regular da policia municipal. Era esta uma garantia permanente contra as emprezas d'aquelles perdidos, enfants perdus, como em toda a parle eram cbamados, temidos pelas mulheres honestas e pelos seus maridos, mas feliz- mente desviados dos seus maus intentos de rapto e de violência, quando lhes era permitlido frequentar mulheres publicas e achar com cilas distracções.

Andavam, pois, muitas d'eslas mulheres percorrendo o paiz acompanhadas dos seus amantes, que viviam á grande, á custa do obsceno trafico feito á sua vista; mas pôde allirmar-se que estas infâmias não eram sabidas fora, e que o bordel porvençal e o lupanar normando em nada corrompiam os costumes da familia e da cidade.

Estes costumes as mais das vezes não eram muito exemplares, mas, por mais relaxados que fossem, não tinham relação alguma com os actos da prosti- tuição legal, pois que as mulheres communs, fazendo da prostituição modo de vida, tinham relação com homens de vil estofa; ribaldas c ribaldos forma- vam uma conectividade infame, isolada no meio da sociedade.

Embora a sociedade não tivesse contacto com a prostituição, nem por isso tinha uma grande continência: a fornicação e o adultério em toda a parte en- travam, e em todas as casas eram bem recebidos.

i m HISTOKLA

No seu castello, o senhor tinha um serralho de servas e pagens; no con- vento, o frade occultava as mais criminosas acções; na loja, o negociante de- sejava a mulher do seu colicga e visinho; e mesmo o iuimilde arlisfa não se privava dos prazeres que nada lhe custavam. Em parle alguma, naquelle trans- bordar de immoraiidade, a prostituição propriamente dita exerceu influencia perniciosa ou influiu na corrupção geral, antes teria atlrahido a si elementos impuros da vida social, se comsigo não tivesse o eslygma infamante, se as mu- lheres que d'ella faziam profissão tivessem conservado algum prestigio aos olhos da sociedade, se a opinião publica não tivesse infligido o mesmo desprezo e deshonra aos homens que ousavam penetrar nos lupanares.

Constituída assim a prostituição, errava ella o seu fim fundamental, pois não servia para depurar os costumes, deixando subsistir outra prostituição li- vre mais activa, mais audaz e mais contagiosa. Pôde dizer-se, repetiu ol-o, que por espaço de muitos séculos, em França, estas duas classes de prostituição não estiveram ligadas entre si por laço algum, nem similhança alguma houve nos seus actos e pessoas. .4 auctoridade civil d'uma d'estas prostituições se oc- cupava; a outra, que não tinha nem trajo próprio, nem casas especiaes, nem regulamentos de policia, innoculava-se em todas as classes sociaes, e espalhava a corrupção por entre as genercsas e brilhantes instituições da cavallaria.

Para reformar os costumes, principalmente para lhes pôr um freio .salu- tar, para encaminhal-os para a honra e para a virtude, um sábio legislador, um phiiosopho desconhecido, um grande polilito, creou a cavallaria, que a pro- pósito nasceu no meio d'uma sociedade corrompida e gangrenada, fazendo im- perar o espirito sobre a matéria, defendendo, por assim dizer, a sociedade de todas as prostituições da alma e do corpo. A cavallaria foi apenas uma forma altrahente, dada á pbilosophia, á moral religião: protegeu e salvou a hones- tidade publica, apesar dos inevitáveis excessos dos cruzados e das influencias desmoralisadoras da poesia.

Cremos que a cavallaria não foi ainda apreciada sob este ponto de vista, como sendo a inimiga implacável de toda a espécie de prostituição, como sendo a salvaguarda dos costumes : oppoz ás grosseiras c degradantes fyrannias do amor material, as nobres e puras inspirações do amor metapliysico: instituiu as Cortes do amor, aquelles graciosos tribunaes de galanteria, para abolir as cortes dos ribaldos; domou e pacificou as paixões dos sentidos; cimentou a vir- tude no respeito pelo similhanle, e por assim dizer, ergueu um pedestal de amorosa admiração e um tlinuio de honra, onde sentou a mulher. É este, evi- dentemente, o principio da cavallaria, a emancipação d'um sexo que a prosti- tuição tinha submetlido á mais degradante das escravidões. Ao principio, a mu- lher era escrava e via-se humilhada pela sua indigna condição; depois, era rainha, e a sua soberania apoiava-se no amor; mas não era o amor carnal, cujos gosos criminosos sullbcam o inslincto do bem e predispõem o coração para lodos os vicios; era o amor perfeito, o amor heróico, que nasce dos mais bellos sentimentos, exallando-sc pela imaginação, e desprendendo-se dos laços da natureza physica.

As primeiras lições que recebia um pagem, escudeiro ou donzel, que se

OÁ. PROSTITUrçIO I8S

destinava á profiss.lrt da cavallaria, consistiam unicamenlp no amor a Dpus r ás damas, isto é, segundo Laciirno di' S.mla Polaya, a religião e a galanteria. Eram ordinariamente as próprias damas que se encarregavam de ensinar a es- tes jovens o ealheeismo c a arte do amor.

«Parece, diz o sábio aiietor das Memoria'} da antiiia cai-allaria, parece que n'aquelles séculos ignorantes c grosseiros, não se podia representar aos ho- mens a religião sob unia fornia haslaole material, para que estivesse ao seu al- cance, nem siniultaneainenie dar-llies uma idéa do amor bastante pura, bas- tanlf" melapli}>ir:i, para prevenir os excessos de que «^ra capaz uma nação, que era tudo conservava o caracter impetuoso que mostrava na guerra.»

Lacurne de Santa Peiaya não fez mais do que entrever as causas pbiloso- phicas da instituição da cavallaria, que na sua origem apenas foi uma barreira moral e religiosa, opposta ao allieismo e à prostituição.

Para bem comprchender o espirito da cavallaria, é preciso ler na Histoi- re fit plaluant' chroniqw, da flit Jehui ds Siintré os conselhos que lhe a dama de Belles Cominas, quanto este na qualidade de pagem entra ao ser- viço d'esla princcza. A dama, que falia latim como um Padre da Egreja, com- menta-lhe edificantemente uns certos peccados mortaes. Vejamos em que ter- mos o aconselha a evitar o peccado da luxuria. «Na verdade, meu amigo, diz-lhe ella, este peccado tem de ser estranho ao coração do verdadeiro amante, pois mui -grande deve ser o seu receio de que a dama adivinhe esse pensamento deshonesto, e d'elle se enoje. Assim, continua ella, citando-lhe as palavras de Santo Agostinho :

tLururiam fugias, ne cili noniine fias; carni non credas, ne Christwn iiomine cedas.

«Isto é: iMeu amigo, foge da luxuria para que não tenhas mau nome; não confies na tua carne, para que peccando não oííendas a Chrislo. E a este respeito na sua primeira epistola diz S. Pedro apostolo:

tiOsecro cos, tanquam advpnas et peregrinos, abstinere ws a carnalibus desideriis, qui niilitant adcesus animam.

«Quer dizer, meu amigo, que vos rogo que vos abstenhaes dos desejos carnaes, que dia e noite batalham contra a alma. E a este respeito diz ainda o philosopho :

«Sex perdu))t rere homines in miiUere: Ingenium, mores, animam, vim-, l.umina, cocem.

«Isto é, meu amigo, que o homem apaixonado por más mulheres perde seis coisas: a primeira a alma, a segunda a intelligencia, a terceira os bons costumes, a quarta a força, a quinta a vista c a sexta a voz. E por isto, meu amigo, livra-te sempre d'este peccado.»

A dama de BelUs Cousines termina os seus conselhos com esta citação de Boecio:

«Luxuria est ardor in tmione, fmdor in recessu, brecis delectaíio corporis et animae destine li o. ■«>

«Isto é, meu amigo, a luxuria é uma chamnia quando dois corpos .se unem, uma cousa repugnante quando se separam, breve deleite do corpo e per-

I8'í HISTORIA

dição da alma.» António de Salle, escrevendo a historia do Joãosiniio de Saintré', para prazer e recreio da còrle de Carlos vii, tirou o assumpto da sua obra de uma chronica da corte do rei João, e exlrahiu de um livro de. cavallaria muito mais antigo os documentos moraes da dama de Belles Cousines.

As ceremonias do acto de armar cavallciros provam, todavia, melhor que a cavallaria foi instituída para corrigir os costumes e extirpar a prostituição. O noviço preparava-se para entrar na ordem da cavallaria com practicas d'auste- ridade e devoção, que o tornavam digno d'uma ordem monástica: jejuns rigoro- sos, noites d'oração n'uma egrt'ja, sermões dogmáticos sobre os principaes ar- tigos da e da moral chrislã, banhos e abluçõcs, que indicavam a pureza necessária no estado da cavallaria, hábitos brancos, que eram o symbolo d'es- sa mesma pureza. Eis aqui a preparação: uma promessa solemni- ao do al- tar de ter vida honesta ante Deus e ante os homens.

«O que quizer entrar n'uma ordem, seja em religião, ou em matrimonio, ou em cavallaria, ou em outro qualquer estado, diz um dos personagens do ro- mance de Perceforest, deve primeiro que tudo limpar e expurgar o coração e a consciência de qualquer vicio, e adornal-o com toda a virtude.»

Os numerosos escriptos em verso e prosa, que tractam dos costumes da cavallaria, repetem sem cessar que um bom cavalleiro deve ser o destruidur da corrupção. Era pois a cavallaria uma espécie de sacerdócio, que pregava com o exemplo para melhorar o povo, para fazel-o virtuoso, para manter a bôa or- dem na sociedade, e para d'ella expulsar todos os vicios.

«Ninguém deve ser investido cavalleiro, diz o respeitável fidalgo de la Tour, no seu Guidon des guerres, se não deseja o bem do reino e de todos, e se não sabe ser valoroso na arte da guerra, e se não quer, obedecendo ás ordens do príncipe, apaziguar as desordens do povo e combater tudo que prejudica o bem coram um.»

A prostituição nunca foi favorecida pela cavallaria, que intentava des- truil-a. E apesar de tudo a cavallaria, empregava como meio eíBcaz o amor das damas para excitar os nobres, que desde a sua tenra edade se iam educando na arte da galanteria, a propugnarem pelo bem da sociedade.

«Os preceitos do amor, diz Lacurne, cercavam as damas de considera- ções e respeitosas deferências, o que sempre :J caracter distinctivo da nação franceza. As lições que os jovens recebiam relativamente á decência, aos cos- tumes e á virtude foram sempre exemplificadas pelas damas e cavallciros a quem serviam.

«O primeiro acto da cavallaria era a escolha d'uma dama ou donzella para amal-a e servil-a: assim começava o pagem da donzella os seus deveres de cortezia, e a esta dama dos seus pensamentos oíTerecia então todas as suas em- prezas e feitos d'armas. Para por cila ser amado, e merecer-lhe distincções, mostrava-se esforçado e valente, honesto e cortez, leal e virtuoso. O nome e as cores da sua dama serviam-lhe de talisman nas circumstancias mais dilficeis da sua vida; como santa da sua devoção a invocava na ferocidade dos comba- les, e se ferido cabia, cxhalava o seu ultimo suspiro n'elhi pensando c lion- rando-a.»

I>\ CltiiSTirillJÀn IS)

Nada menos se assimilliava ao amor matéria ilo (|iii- esla profunda e amo- rosa dcdicaçào jtor uma dama, (|iu' ordinariamcnli' não rL'eom|)ensav;i um sen- timento tào exaltado e Ião profundo senão eom um rasto bi-ijo: mas esle sen- timento cada vez mais ardente e puro era uma forea invencivel, que ineessan- teniente se auginciitava pela ideia fixa e peio êxtase: como uma sombra seguia a mullier que o inspirava, e que nem sempre lhe correspondia, e atravez do tempo c do espaço sem esfriar nem desistir continuava amando, a nâo ser que a amada, d'essc alTecío se tivesse tornado indigna. «Quanto mais amor me pri- veis, mais fiel e amoroso me torpareis,» dizia á sua dama Alberto de Gapen- sac, cavalleiro e trovador.

Na linguagem da cavallaria nota-se uma espécie de cumprimento, que con- sistia em mutuamente desejar, entre escudeiros e cavalleiros, as graças ou fa- vores das suas damas. Estes favores limitavam-se ordinariamente a um sorriso, a um doce olhar, a um simples beijo, á dadiva de um cinto, ao presente (fuma camisa. Olivier de la .Marche termina com o cumi)rimento do estylo a carta que escreve ao mordomo do duque da Bretanha. (Liv. ii das suas memorias.) No mesmo sentido diz a rainha a João de Saintré «Deus vos a alegria do que me desejaes.» O que João de Saintré desejava, era viver junto de sua aiiKida :

«Alli foram tantos os beijos dados e reccbibos, que contados não podiam ser, e. perguntas e respostas todas as que o amor queria e ordenava.

«E n'esfa suavíssima alegria estiveram até que força foi partir.»

Apezar destes beijos dados e recebidos, apezar d'estes largos colloquios de amor, jamais João de Saintré nem a sua dama foram além dos limites da verdadeira cortezia. Dizia -se que os amantes se compraziam em excitar a sen- sualidade, afim de provar quanto podiam combatel-a e vencel-a; mas, procu- rando o perigo e expondo-se a elle com orgulho, é de crer que alguma vez succumbissem. Este amor quasi mystico ao qual tudo era permitlido, excepto a ultima expressão dos seus mais ardentes desejos, não temia satisfazer com cerl;i medida os seus appetites sensuaes: frequentemente crcr-se-hia ver aquellcs terríveis assaltos que o demónio da carne dava aos santos d;!S lendas, e a])enas serviam para, depois de novos esforços, escudados com o pensamenio do Re- demptor e de sua divina Mãe, firmar uma nova vietoria.

Cavalleiros e damas não fugiam da tentação, com|)raziani se até em d"ella Iriumphar, e todas as vezes que não iam além do amor decente e virtuoso, não davam recusa a algumas compensações de sensualidade melaphysica. Por isso o famoso castellão de Couey, que partira para as cruzadas, enviou uma camisa que para levara vestida, a uma dama de Fayel, que amava com puro amor de cavalleiro, embora ella estivesse em poder de marido e não ti- vesse intenção de ser adultera de facto, posto que de intenção o fora. .\ dama, quando o amor a impedia de dormir, vestia de noite esta camisa, ima- ginando que o contacto do panno na sua carne macia eram os beijos ardentes fio seu amante. São estas as jjroprias palavras da dama de Fayel, nos cantares do castellão Covey.

Tudo era amor e amor na cavallaria: mas amor leal e discreto, cujo

UísTOHU 1'aosTiTuiçÃo. ToMO II— Folha H.

1 86 HISTORIA

código foi redigido pelo Mestre Andrés, capellão de Luiz vii, sob o titulo di- Prvicipalia amurin praecepfa. Nem uma lei ha n'este código, que não ti- vesse sido escripta sob a inspiração dos mais nobres sentimentos c da mais respeitável moral. Disso se pode ajuizar pelas seguintes máximas:

«Não te apoderes de favores que te recusem (in amores exercendo sola- liutii, coluntntis non e.ccedas amantis).

«Ainda nos mais vivos transportes do amor, nunca percas o pudor (z» amoris praestando solalium et recipiendo, omnis debet verecundia rubor adesse.)»

Quanto está distante similhante doutrina da Arte de amar de Ovidio!

O Mestre Andrés, apesar de capellão, não era noviço era amor, mas a de- finição que do amor dá, tal como deve ser honestamente practicadn, não pa- rece ir de accoi-do com os costumes do digno clérigo :

«O amor paro, diz, c aquelle que absolutamente une com os laços d'uma ternura intima o coração de dois amantes; mas este amor consiste na contem- plação espiritual e na paixão ardente. Pode chegar até ao beijo, até ao abraço, até ao contacto da carne núa, esquivando-se sempre ao ultimo estremecimento do amor.»

Esta legislação do amor não era lettra morta. A cavallaria tinha estabe- lecido em cada província, e especialmente nas do meio-dia. Cortes do amor e Tribunaes da galanteria, areópagos femininos, onde se discutiam todas as cau- sas do amor. Estas sessões eram celebradas de tarde, á sombra d'um olmeiro secular; o tribunal era presidido por um cavalleiro distincto, chamado Prin- cipe do amor ou da mocidade, eleito pelas damas de que se compunha a corte, e que tinha por accessores grandes personagens da nobreza e do clero.

A forma dos julgamentos era a mesma que nos tribunaes de justiça real e senhorial, todavia as sentenças tinham sempre um caracter metaphysico e não applicavam aos réus nenhum castigo corporal ou pecuniário: era unica- mente a censura o castigo dos culpados.

Estes Tribunaes do amor, de que faziam parte as mais nobres e honradas damas, eompriam missão mais delicada ainda, quando doutoralmente resolviam as questões do amor que lhes eram propostas.

«Emfim, diz Papon, na sua Historia da Provença, a galanteria era de tal modo o espirito dominante d'aquelle século de ignorância, que em tudo se misturava, sendo o thema, o logar obrigado, de todas as conversações. .4s da- mas, os cavalleiros, e os trovadores exercitavam-se discutindo seriamente so- bre esta importante n)aleria ; nenhum sentimento do coração escapava á sua sagacidade; todos os casos eram previstos e resolvidos.»

Attribuição foi sempre das Cortes do amor o pronunciar sentenças n'esta questões diíliceis c minuciosas, que os advogados de ambas as partes discu- tiam com grande exaggero de eloquência c sciencia amorosa.

Deve comprehenJer-se bem o influxo que similhante jurisprudência teve na prostituição; nas sentenças de amor que até nós chegaram não se notam cir- cumstancias graves accusadoras da conducta licenciosa d'uma ou outra das par- les litigantes. Não se encontra um acto de libertinagem otíensor da moralidade dos juizes: em nenhumas d'ellas se encontra o amor, a causa de todos estes

s

DA rit(isirriiiçÃo 187

litígios, acompanhado de manifestações obscenas. Todas eslas causas são pec- cadilhos d'amanfes, ligeiras bagafellas de cxaggerada galanteria; nn, se o pro- cesso era mais grave, a corte do amor transformava-se em tribnnal de honra.

Um secretario, enviado junto d'uma dama, esquece os seus deveres de intermediário e confidente, e supplanla aquelle que o enviara, requestando por sua conta a dama que -foutro era. A condessa de Flandres, assistida de ses- senta damas, condemna os culpados, declarando-os excluídos da companhia das damas e dos conselhos plenários dos cavalleiros.

Mestre Andrés cita outro exemplo de jurisprudência amorosa. Um amante para tomar outra abandonou a sua amada, mas em breve cansado da segunda requestou de novo a primeira. Esta desprezou-o, mas além d'is.so denunciou o seu procedimento á viscondessa de Narbonna. O tribunal do amor presidido pe- la viscondessa resolveu que o volúvel amante ao mesmo tempo perdesse o af- fecto d'uma e d'outra das requestadas, por não ser digno de possuir o coração d'uma mulher honrada (mdlas probce (emince debtdt ulteriíis amore gaudere.)

Condemnar com tanto rigor a inconstância d'um amante não era decerto ser indulgente com a prostituição.

Mas com maior rigor era castigada a infidelidade da mulher, pois que uma dama cujo amante desde aniios fazia a guerra na Palestina foi accusada perante o tribunal da condesa de Champagne de ter acceitado as declarações d'um outro. A dama allegou em sua defeza que se havia conformado com as leis do amor, que ordenavam prantear por dois annos o amante que se finara, e que o amante que não noticias suas pôde, sem que aggravado seja, assi- milhar-se a um morto. Mas a condessa de Champagne resolveu cm these que a mulher nunca deve abandonar o seu amante por causa de prolongada ausên- cia.

Os tribunaes das damas eram inexoráveis para com tudo quanto se assimi- Ihasse á prostituição do corpo, ou do coração. Um cavalleiro que encheu de presentes uma dama a quem amava e de quem em recompensa não recebeu fa- vor algum queixou-se á rainha Leonor de Goyena, mulher de Luiz vii, e esta bella princeza tão competente na matcríra proferiu esta memorável sentença:

«A mulher deve repellir todas as dadivas que com intenção amorosa se lhe façam, ou se as recebe deve pagal-as entregando o seu corpo; mas em tal caso colloca-se na cathegoria das cortczãs.» {Ilist. des mceurs ei de la vie prhée des [rançais, por E. de la Bcdollíère, t. iii, pag. 324 e seg.)

Roberto de Blois, no seu poema Chastoimenl des dames, reproduz esta máxima fundamental do direito de amar, a respeito da questão de uma mulher receber joías do homem que a requesta.

Os Decretos do amor (Ar reis d'amoiir) que Marcial d'Auvergne eolligiu e redigiu nos fins do século xv, e (jue um' chistoso jurisconsulto commentou em estylo palaciano, não são d'uma moralidade muito severa e alguns parecem d"uma galanteria algum tanto devassa. Cremos, pois, não emanarem das anti- gas Cortes do amor da Provença, mas serem leitos no tempo de Marcial d'Auver- gnc n'alguma corporação de damas e cavalleiros, formando tribunal á similhança dos grana jours de Pierrefeu, de Signes e Romanin. não é esta a doutrina

i SN HISTORIA

siiiiplus c austera da cavallaria piimiliva, ijiie não tomava o amor como tli\ci- timento: é uma galanloria refinada, mas maliciosa e libertina; senle-se que o amor se materialisa c vè-so passar com frequência e sem grande escrúpulo aos prazeres mais sensuaes. Este tribunal também differe das verdadeiras Cortes do amoi' em impor muitas às vezes consideráveis e penas corporaes aos delinquen- tes, que têem como perspectiva o látego, embora brandido por mão de damas.

As questões são julgadas por juizes de dilTerentes instancias ou reeui-s.is, como o mniri'- dos ho-sques virdes, o bailio da alegria, o cetjuer dos amores, etc. Os títulos d'esíes magistrados fazeni-nos suspeitar que a sua jurisdicção era apenas uma brincadeira. D'entre os extraordinários pleitos que Marcial d'Au- vergne coUigiu, escolheremos dois por onde se avaliará o que os outros va- liam. No século \i, ha uma dama que apresenta uma queixa contra o .seu amado, perante o juiz dos bosques e das aguas sobre (actos de amor, aceusando-o de a ter feito cahir ao rio para lhe apalpar as nevadas pomas (pnur Ini mettre la main sur les tetins;) e \ioy tal a offendida requer que o audaz amante seja severamente punido coi» castigo publico.

O amante contesta que tendo com ella cabido á agua não era aquella a occasião mais própria para apalpai' fosse o que fosse.

Todavia o procurador dos amores nas aguas e nos bosques responde ser proiíibida pelas oi'<lenaeões a caça ardilosa, caça em que taes peças (as pomas) jiódem cabir, e termina, pedindo para o caçador uma pezada multa.

O amante replica que, se lançou as mãos ao peito da dama, foi isso uma consequência da queda, sendo então natural agarrar-,se ao que mais próximo lho ficara.

O tribunal considerou este argumento, todavia resolveu que o amante desse á amada como indemnisação de lhe ter molhado o vestuário, um vestido novo de còr verde.

No quarto pleito uma dama também é a queixosa. Accusa o amante de lhe ler beijado o vestido tão bruscamente que lhe rompeu o corpele, de modo (|ue se chegou a ver alguma cousa da camisa. Pede, pois, que a tão violento enamorailo seja prohibido o tornar a tocar-lhe sem sua licença. Este pedido da dama foi completamente deferido, e por mais que o amante protestasse, foi a sentença em ultimo recurso confirmada pelo maire dos bosques verdes.

As sentenças dos tribunaes do amor não eram as únicas a condemnar as más acções dos que pertenciam á jurisdicção cavalheiresca; a opinião <lava tam- bém as suas sentenças e não perdoava, quando recabiam sobre acções vergonhosas e reprehensiveis, nem ao nascimento, nem á jerarcbia, nem á riqueza. O ser bem conceituado era condição tão essencial para os homens, como para as mu- lheres, que por honestas queriam passar, nem os mais poderosos senhores e nem as mais illustres damas p-uliam sublraliir-se ao vitupério da gente humilde.

«As damas que, respeitando-sc a si próprias, respeitadas queriam ser, diz l.acurne de Santa Pelava, bem certas estavam (jue ninguen» lhes faltava á con- sideraçàíj devida: mas se pela sua cj)nducta, pelo seu procedimento, davam lo- gar a legitimas censuras, deviam rcceiar encontrar cavalleiros dispostos a fa- zer-liies essas censuras.»

iiA piiiisrnuiçÃd 189

O cavalleiro do la Tour toiítava em 1371 a suas filhas que o modelo do cavaliaria messiir .lontViov se tinha consagrado á repressão do mau procedimento das damas.

«Quando cavalgava pelos campos e via um castello habitado por alguma dama, perguntava sempre a (|uein pertencia. Se a dama proprietária era accu- sada de algum facto deshonesto, ainda que tivesse de torcer meia légua não dei- xava de ir até junto da porta do castello, onde com um lápis fazia um signal na porta para que fosse escarnecida. Ao contrario, quando passava em frente de um castello de dama ou donzella bem afamada, se não tinha muita pressa vi- sitava-a e dizia-lhe: «Minha boa amiga peço a Deus quen'essa situação ho- nesta vos conserve, para que sejaes honrada e adorada.» E por este meio as honestas cuidavam em cousa alguma fazer que lhes prejudicasse a sua honrosa fama.»

Não se sabe qual fosse o signal feito pelo cavalleiro JeoíTroy nas portas das damas mal afamadas, signal que provocava o desprezo dos que passavam, o que a gente do povo não deixava de fazer, quando encontrava alguma mulher de vida.

Apezar de tudo, se a moralidade publica, graças á cavaliaria, fazia pro- gressos (liariíjs em todas as classes da sociedade, e se difliindia até ás mais Ín- fimas, a prostituição dos seus antros infamados continuava deshonestando a linguag(>m usual e as poesias dos romanceiros. Estes poetas da lingua d'oil não eram como os trovadores, cavalleiros ou escudeiros, creados nas Cortes d'amnr e desde cedo educados pelas lições da galanteria.

Os romanceiros, geralmente <le origem popular, conservavam nas suas obras a macula original, e applicavam a composições de grande estro, de grande amenidade e malícia, a crua e gros.seira linguagem apprendida com seus pães ; chamavam a todas as cousas pelo seu nome e com preferencia empregavam a expressão mais popular, e que sempre era a mais pittoresca. Os seus primeiros ouvintes eram sempre os villões, e se este publico tinha grande competência no que era jovial e burlesco, não era em demasia rigoroso para as obscenida- des das descripções e das palavras.

E não pára aqui tudo. Os romanceiros que abandonavam o arado para fazer romances e canções abraçavam uma vida vagabunda e desordenada, e to- dos se faziam libertinos vivendo com os. histriões que com razão passavam por serem os homens mais depravados. Estes histriões compunham ordinariamente versos que cantavam ou recitavam mais ou menos intelligcnlemente, acompa- nhando-os de pantomimas, danças e gestos. E' certo que algumas vezos o actor era conjunctamente o romanceiro e o histrião, mas isto .só acontecia excepcio- nalmente, pois que os romanceiros não eram tão desprezailos como os histriões.

Com effeito estes últimos mereciam bem o desprezo com que por todos eram tratados. Dados a lodos os vícios, e especialmente aos mais infames, ne- nhuma lei social reconheciam e vagabundeavam d( povo para povo, de cas- tello para castello, arrastando atraz de si grande multidão de mulheres fáceis e de crianças: tinham pois escola de prostituição. Não eram todavia ricos; mui- tas vezes eram encontrados semi-nús, como os descreve um poeta do século

I9U HISTORIA

xui, suns sorliiii ei sans colelle, i(mi oh sapatos rolos o coltorlos úa lombas. Estes miseráveis linham sido lodos rdiicados e creados nas Cartes dos Milaçires, segundo é de crer : os seus coslnmes e linguagem d"isso linham sempre vesli- gios, e eram elles os que percorrendo o paiz, corromfjiam a lingua e os costumes.

Ao principio, appareceram nas reuniões lioneslas, nos festins de gala, nas lestas cavalleirescas, e alii recitavam canções de gestas, as epopeias phantas- licas da Tavola Redonda e de Carlos Magno; ent.ão excitavam o enthusiasmo do auditório, composto de senhores e damas, que se não cançavam de ouvir recitar feitos de armas e de amor. Appareciam, no emíanto, dessiminadas por aquelles velhos romances scenas bastante livres e lermos licenciosos, mas a in- tenção do poeta era sempre correcta e o histrião nada accrescentava á indecen- lia do quadro. Então eram elles generosamente pagos; davam-se-ihes vestidos novos, e .'.ustento para elles, para seus auxiliares e animaes, pois que ensina- vam lambem macacos, cães c pássaros habilidosos em diversos exercícios; dava-se-lhes pousada no castelli) c quando, com os alforges bem recheados, partiam, eram convidados a voltar.

Mas este paraizo no reinado de S. Luiz transformou-se n'um inferno: os romanceiros ainda faziam canções de gesta de doze a vinte mil versos; mas os histriões não as decoravam e tão pouco as recitavam : notável transforma- ção se havia feito no gosto; se não desejava ouvir á mcza os feitos maravi- lhosos do rei Arthur, ou .Vrturo, e do imperador Carlos Magno; preferia-se me- ditar estes assumptos no retiro dos gabinetes. Os histriões de boa vontade se prestaram a este capricho da moda determinado pela influencia das cruzadas ; aligeiraram pois o .seu reportório, e contavam contos amorosos e devotos. Os romanceiros, pelo menos aquelles que se inspiravam na consciência popu- lar, corresponderam ao favor com que eram recebidos os seus contos, e inven- taram um grande numero d'clles mais alegres uns que os outros, que se divul- garam ao som da role, por toda a parte onde o riso honesto ainda tinha eeco.

Mas o abuso não tardou muito a fazer condemnar este género de di- versões: os romanceiros excediam os limites da decência nas suas composições, c os histriões ainda mais exaggeravam a obscenidade; luis r outro's foram con- siderados como instrumentos do demónio e se lhes imputou, com justiça tal- vez, um novo desenvolvimento na prostituição.

O piedoso Luiz ix protegia todavia a musica, por isso que depois de comer c antes de dar graças recebia os tangedorcs que diante dVIle t()cavam; mas esta benevolência i-eferia-se unicamente á musica e não á Icttra, pois que, se- gundo um te\lo antigo, adoptado em muitas edições dtí Joinville, expulsou do seu reino a todos os charlatães, «os quaes no seu povo muitas sensualidades introduziam». Estas sensualidades não desagradavam comtudo a certos nobres, que apezar das castas lições da cavallaria moslravara-se apaixonados parli<la- rios da gaia seiencia, e nunca fechavam a porta aos mais libertinos histriões : mas em geral os pobres tangedorcs eram como os leprosos afugentados dos cas- tellos, e os seus instrumentos, aniuinciando a sua presença á beira dos fossos d'uma residência senhorial, nblinham o mesmo resultado que os cães ladrando á lua.

DA PRUSTITUigÀII 191

Segundo um apologo salyrico, cscripto om laliui por a(iuolla ópoca (Fa- hliaux de Legran d'Aussy, t. iv, pají. 3')7), Deus ao crear o tnumio, n'(>llt' ool- locou três espécies de homens : os nobres, os clérigos e os villócs. Aos primei- ros deu as terras, aos segundos os diziínos o as esmolas, c aos Icrceiros o Ira- ballio e a miséria; mas feita assim a divisão, os tangedores e ribaldos reclama- ram pei-ante Deus para que lhes fosse fixada a sua sorte e lhes fosse dada al- guma cousa com que viver.

«O Senhor, diz o auctor do Apologo, ordenou aos nobres que alimentas- sen) os tangedores, e aos sacerdotes que soccorressem os ribaldos. Estes obede- ceram a Deus e por isso se poderão salvar; mas aquelles, os nobres que em ne- nhuma conta tem tido as ordens de Deus, não devem esperar salvação.»

Os histriões, não sendo recebidos nos castellos, completamente esque- ceram os cantares de gestas e a poesia honesta; tinham encontrado um publico mais fácil de contentar-se, menos escrupuloso sobre a natureza dos seus pra- zeres ; batiam á porta do popular e do mercador, e ao sentar-se nas tabernas c na casa dos bons plebeus que os recebiam com jubilo, tinham a certeza de fazer escancaradamente rir o auditório com os seus contos licenciosos, que con- tavam depois de ter bebido.

Estes contos, preciosos monumentos da imaginação e jovialidade dos nos- sos antepassados, formam uma notável collecção, somente publicada em parte por Barbazan c traduzida por Legrand de Aussy. D'este rico reportório, Boc- cacio, Ariosto, l.a Fontaine e outros muitos poetas extrahiram assumptos e ideias cómicas a que nova forma deram.

«A collecção dos romances, diz Emilio de tíedollière, abunda em inven- ções chistosas e c-m traços de communicativa jovialidade, mas também às ve- zes contém repugnantes obscenidades: as mais sujas palavras da língua fran- ceza são alli prodigamente empregadas; as funcções mais vulgares do corpo hu- mano são assumpto para grosseiras chocãrrices; as partes mais secretas do corpo são alli descriptas com (ermos que fariam corar as prostitutas de hoje.»

E em appoio d'esta apreciação geral dos romances do século xiu e xiv. o notável auctor iki Historia dos costumes e da vida particular dos Irancezes cita alguns títulos escolhidos na edição de Barbazan ; mas que nós omittiremos por decência.

Para ler uma ideia d'esta litteratura é preciso ler os contos mais livres de La Fontaine que se deleitava na leitura dos romanceiros, mas, nem mesmo assim serão comprehcndidas as monstruosas liberdades d'aquelles poetas, que ti- nham o seu Tarnaso iium bordel, se se não compararem as suas obras com as de rirevourt, Piron e Robbé, desavergonhados romanceiros do século xviii.

«E' evidente (diz ainda Bedollière, t. iii da obra citada, pagina 3íl), que os nossos antepassados pronunciavam, sem espanto nem pudor palavras que nós proscrevemos; mas ainda assim, não eram alheios á delicadeza, e os con- tos escandalosos inspiravam justa i-epugnancia ás pessoas honestas.^)

Com elíeilo, no Jeu de Rohin et Marion. comedia lyrica re|)resentada no século XIII, e cujo auctor. Adam de Hale, ei-a um dos romanceiros mais esti- mados do seu tempo, um dos personagens da peça, chamado Gauthier, sob pre-

192 . HISTORIA

(exto (Je recitar uma sirventa, (\\z uma sórdida poesia. Robin interrompe-o, censurando-o: «Basta, basla, (lautliier, não quero ouvir essa canção!»

Os tocadores ambulantes tiniiam concorrido para a propagação da linguagem obscena, recitando e cantando as poesias dos trovadores, e estes cuja reputa- ção litteraria recommendava convi modelo na arte de versificar e de bem dizer, exerciam uma funesta iniluencia, tanto na linguagem escripta, como na lingua- gem fallada; pois que qualquer que em prosa ou verso- escrevia, com este exem- plo se auctorisava para usar das palavras mais indecentes, e para descrever as imagens mais impudicas.

Os trovadores nas compoáições de generu íikiís rle\;ulo não se corrigiam do mau costume de misturar com a linguagem poética a linguagem. dos bordeis c labcruas.

O auctor do celebre romance Partenoplex de Blois faz uma descripção em cores tão vivas e indecentes, que nos limitamos a dar a seguinte amostra : «Abriu-Hie as pernas, e quando n'ellas introduziu as suas, roubou-lbe a flor da virgindade.»

O auctor do romance de (Varin não põe na bocca dos seus personagens linguagem mais decente.

.\'s vezes o trovador Ir.iíaxa de um assunsplo serio, sem por isso niu^lar de vocabulário. Nos Milagres de ISossa Senhora, o pnefa traductor, a (juem o assum- pto edificante não bavia purificado, comprazi;i-se em descrever os episódios de uma noite ri' noivado, em que graças á immaculada Virgem o noivo desempe- nhou um bem triste papel, contando-se alli em termos desbragados as infructi- feras tentativas do pobre esposo para consummar o matrimonio n'aquena noite.

Os poetas e escriptores que não tinham bocca na corte, isto é, que não co- miam á meza dos reis ou dos príncipes, não sabiam liem distinguir entre a lin- guagem honesta e a deshonesta: ignoravam o valor real das palavras e nem se- (|uer suspeitavam que a lingua tivesse diversos termos, rada ijiial apriiiiriado ao seu assumpto. O sentimento da delicadeza litterari;\ tão pour" lhes fazi:i |)revèr que, |)assan''io d um assumpto profano para um assumpto sagrado, deviam mudar de linguagem.

l,'m (fesies escriptores foi encarregado, paia uso de um príncipe de França, de verter em francez a santa Bíblia. O traductnr fez o seu trabalho com toda a consciência de que era capaz, e não teve escrúpulo de introduzir na sua ver- são lilleral um grande numero de palavras, (|ue («mbora empregadas por Moy- sés em hebreu, não podiam ser admittidas nas Santas Escripliiras transplan- tadas pai'a o francez.

Todavia, esta traducção foi copiada por um serilia em [lergamiMliii, or- nada de miniaturas e formosamente encadernada. Assim chegou ás mãos dos reis de França que, por espaço de muitas gerações, leram a Bíblia n'aquelle bello inanuscripto, sem se escandalisarem por em cada pagina encontrarem coi- sas semelhantes ás seguintes, que Paulin Paris transcreve no seu excellente Catalofiue dn inanuscrit-t [rançais di' la Uihíiolhéque da lloi :

«E n'aqui'lle tempo disse Deus a Abraháo : toilos o^ vossos vaióes siMáo circumcisados e eireumcisareis a carne da vossa |i . , i'm signa! da ;ilhaiiea

DA PROSTITUIÇÃO 193

entre mim e vós. Então Abrahão tomou seu filho Ismael c todos os varões de sua casa e circumcisou a carne das suas p. . . (Et autres foijs dist Dieii à ibraham: Chacun masle de vous será circumsis et wus circumsirez la char de wtre v- . ., que ce soit en signe de lien entre may et vous. Lors mena Abra- h/tm Ismael son fils et tous les fraiikes mesmes de la maison et tons les males «t tous les louvriers de sa maison et il circumsisa la char de leur c. . Cap. 17, versic. iO e 23.)-

«Nosso Senhor certamente se lembrou de Rachel, e abriu-lhe a sua. . ., que concebeu, e pariu um filho. (Notre Seigneur d de certes se rememora de Rachel et overi son c. . ., laquelle conceust et enfanta un fils.» Cap. 39-22.)

«Irritaram-se pela desfloração de sua irmã e responderam : Abusaram de noss.a irmã como d'uma p. . . lis se courroucèrent pur le despucelage de leur sorour... et ils respondirent : Dussent-il avoir usé nostre sorour pour putage. Cap. 34, i3 e 31).

Esta Biblia franceza conserva-se, sob o numero 6701, entre os manus- criptos da Bibliotheca Nacional, e causa admiração que, em vez de ser des- tinada ao uso dos Reis Christianissimos, não tivesse sido traduzida para uso (íns bordeis de Glatigny, de Tyron e Brisemiche

De resto, os moralistas e pregadores que se dirigiam ao povo e lhe fal- lavam na sua linguagem não eram mais circumspectos na escolha dos termos que levantavam da lama para misturar com as cousas santas. S. Bernardo jul- gava ainda pregar em latim, quando n'um dos seus sermões energicamente dizia : Vieille femme, menant pute vie de corps, esl putain.

Outro pregador do mesmo tempo tomou para texto do seu discurso estas palavras do Propheta-rei : Laus mea sordet eo quod sit in ore meo, que inter- pretou com toda a energia do seguinte modo: O meu louvor não 6 mais do que trampa e porcaria.

A linguagem da prostituição tudo invadiu, até a própria Egreja, que te- ve a prudência de prohibir aos fieis a leitura dos livros santos, indignamente traduzidos para estylo vulgar.

li»T<J»u OA PEOSTnmcû. Tono ii FolhI 25.

CAPÍTULO XVíll

SUMMARIO

CustumHS públicos e particulares Jesdc. o swulo xj.— João Flora, bispy de OrleaQS.— U Golias da prosUtui- vlo.— Excentricidades licenciosas do duque de Aquitania.— As cruzadas e os cruzados As trezintas mulheres fran oas.— AS concubinas da hoste do rei.— A rcctaguarda dos exércitos em campanha. -As mil prostitutas do capitão (iarnier.— Joanna d'Aic, em Sancrre.— Ordenação d'esta heroinn contra as ribaldas da milícia.— Como a cavallaria comprehendia a hospitalidade.— Decadência dos costumes cavalheirescos.— AbnminaçSes do reinado de Carlos vi.— ámia Pledeleu.— Indulgência de Ambrósio de Lore, preboste de Paris, para com as prostitutas.

INCONTESTÁVEL quc a cavallaría soube reprimir os excessos da prostituição, sem que lograsse extirpal-a dns costumes públi- cos.

A partir do século xii, notou-se um movimento favorável nos costumes públicos e particulares, apezar da acção sempre corruplura da poesia popular, que finalmente devia acabar por substituir a poe- sia heróica ; sem duvida ha ainda uma grande dissolução de costumes entre os nobres e o povo; mas ainda assim os primeiros não dão o exemplo da mais abominável perversidade. Embora os costumes do Oriente se tivessem introdu- zido nos costumes dos cruzados, o peccado contra a natureza não era tão frequente, como na corte da Normandia em 1120.

Segundo Guilherme de Nangis, um prelado não ousa apresentar descara- damente as suas torpezas, como o fez aquellc bispo d'Orleans, chamado João, que em 1092 pelos seus mancebos (concuhii) se fazia appellidar Flora, e que ouvia os infames adolescentes dados á libertinagem, que cantavam de noite pe- las esquinas as canções impudicas, compostas em honra sua: Quidam enim sui concubii, diz o venerando Ives de Chartres, n'uma caria dirigida ao papa Urba- no II, appelleant eiim Floram, multas rhythmicas cantilenas de eo composue- runt, quw fcedis adolescentihus, sicul no.ttris miseriam terre illius, per urbes Francice, in plateis et compitis, cantitantur.

Estes eseriptores satyricos não perdoam, é certo, aos vicios da sua époeba, uccusam a avareza, o orgulha, a crueldade e a gula dos seus senhores ; mas não lhes pôde ser censurado, como aos historiadores do século xi, o viverem nos antros da sensualidade (impudici latis barathriim.) Odorico Vital afQictiva- mente exclamava, que a licenciosidade não conhecia limites, e que se não seguiam os exemplos dos iieroi's, mas sim os passos da mais desenfreada pros- tituição: não se cançava de amaldiçoar os iniquidades do seu tempo (seviíia

190 HISTORIA

iiúqui (emporis, diz, no livro in da sua chronica;) todavia, no meio das espan- tosas licenciosidades do século xi, a Egreja activamente trabalhava na reforma das ordens monásticas, e a cavallaria, cuja instituição se attribue a um velho ermita, descidr. d'uni throno(lradicção symbolica, provavelmente,) começava a regenerar a nobreza, corrigindo-lhe os seus maus costumes.

á salutar influencia da cavallaria se piíde attribuir a conversão do maior peccador que o século xi produziu. Entre tantos filhos do diabo, como então eram chamados, (iuilherme, nono do nome, duque da Aquitania e conde de Poitiers, foi, para nos servirmos de uma figura biblica, o Golias da prosti- tuição, qualificado por Emilio de la Bedolière como o Desaiergonhado do un- Jeclmo século. E segundo o juizo d'um trovador contemporâneo (Choix de poé- sies orig. des Trouhadours, t. v, pag. Hoj o maior libertino e seductor de mulheres, cuja fama percorreu o mundo. (Si fo uns deis maiors trichadors de dompnas et anet lonc teinps per lo mon per enganar las donnas). Todos os pro- cessos eram bons para elle, comtanto que lhe facilitassem as suas conqui.sta.s amorosas: não desdenhava as suas humildes vassallas, e tinha especial ten- dência para as religiosas, a quem ia seduzir nos próprios conventos.

mencionamos o seu projecto de bordel, feito pelo modelo das abbadias, e destinado a receber uma communidade de mulheres publicas, sob a direcção das mulheres mais desavergonhadas do Poitou. Não se sabe a causa porque, de- pois de estar construído o edifício, não se pòz em practica o seu projecto. Ena- morou-se da bella condessa de Chatellerault, chamada Malborgiana, e vivia com eila em concubinato, tendo abandonado a mulher legitima.

Mandou pintar no seu escudo o retrato da sua amante, dizendo que a queria levar aos combates, como ella o levava para o leito (dictitans se illam^ velle ferre in prctlio, sicut illa portabat eum in íriclinio).

Guilherme de Malmesbury, que conta na sua chronica as excentricidades licenciosas do duque da Aquitania, deixa perceber que esfe grande libertino, embora ama.sse a condessa com grande paixão, não lhe era todavia fiel.

Uma noite de sabbado d'Alleluia estava o duque n'nnia egreja, onde se pregava a respeito da resurrcição de Jesus-Christo.

Que fabulai Que mentira! exclamou elle, desatando ás gargalhadas.

Se é essa a vossa opinião, disse-lhe com vivacidade o pregador, para que permaneceis aqui?

Vim aqui, respondeu o impio, para vér as galantes raparigas que assis- tem á festa.

Uma outra vez, estando enfermo, e como o frade que lhe assistia á ca- beceira o julgasse em perigo de vida, dizendo-lhe :

Irmão meu, preparae-vos para uma santa morte:

O que tu querias, respondeu-lhe o moribundo, era que eu deixasse os meus bens aos parasitas, isto é a vos.sês ; mas juro-fe que não vos deixarei nem um obulo. Pelo que respeita á minha libertinagem, nem me arrependo nem me emendarei, se d'esta escapo: pois que homens mais sabedores do que tu me teem aflirmado (]ue as mulheres são um bem commum, e que entregar-se qualquer ás suas caricias é apenas um peceado venial.

ti\ PRiiSTITlIÇÃO 197

Comtudo nã(t morreu iia inipenitencia final, porque innuenciado pelas regras da cavallaria, repenfinamente passou do culto da matéria á contempla- 1^0 espiritual, dn incredulidade á té, do escândalo da sua vida immunda, ás praeticas edificantes do ascetismo, ('om etíeito, tendo-se feito soldado de Chris- to, expiou os seus peccados com exemplar arrepenflimento. então era velho e não podia continuar com os seus amores, como no tempo da juventude, ainda que se soccorresso das excitações fictícias, que o charlatanismo medico oflerecia aos velhos lihertinos, e cujas receitas foram compiladas pelo douto Arnaldo de Villeneuve sob o titulo : Ad virgam erigendam.

Guilherme de Aquilania nos seus bons tempos levou muito longe as suas investigações sensuaes, e a fama honra-o com algumas receitas eróticas de sua invenção, que também se encontram nas obras de Arnaldo de Villeneuve, que por pudor as traduziu em latim: íí desiderium et dulcedo in coilu augmenMi- tur. Lt mulier haheat dulcedinem in coilu.

As cruzadas foram o mais bello monumento da cavallaria, e todavia nào pôde negar-se que aquella prodigiosa multidão de homens de todas as edades, de todas as classes e paizes, alentaram no seu seio os germens corruptores da prostituição. O abbade Fleury, fallando d'aque]les exércitos innumeraveis, que cahiam sobre o Oriente, diz com razão que eram peiores que os exércitos ordi- nários :

«Imperavam nVsses exércitos todos os vicios; os que os perigrinos ha- viam trazido dos seus respectivos paizes, e os que haviam adquirido nos pai- zes estrangeiros.»

mencionamos, sob a auctoridade de Joinville, que na primeira cru- zada de S. Luiz os barões tinham os bordeis em volta da tenda real. Maior devia ter sido o escândalo nas cruzadas precedentes, principalmente na pri- meira, que revolveu a Europa antes de transformar o Oriente.

«Os cruzados, diz Alberto de Aix, portaram-se como gente grosseira, in- sensata e indomável, emquantn o amor carnal n'elles abafou a chamma do amor divino. Traziam comsigo um grande numero de mulheres vestidas de ho- mem, e na sua companhia viajavam sem distincçào de sexo. entregando-se á sensualidade, (*) {Hixt. des Gauks, t. xix, pag. 684).

Alberto d'Aix accrescenta alguns pormenores que nos permittem advinhar outros mais escandalosos :

«Os perigrinos não se abstiveram das reuniões illicitas, nem dos praze- res da carne; incessantemente se entregavam a todos os excessos da meza, di- vertindo-se com mulheres casadas e solteiras, que abandonavam para com outras se entregarem ás mesmas loucuras e vaidades.»

Para explicar as vaidades a que o chronista se refere, é preciso lembrar- luo-nos dos innumeros vagabundos e fanáticos que violavam as virgens, des-

(') O auclor do livro De Gesta Urbani II liiuita-se a iiieueiouar o facto: Innumerabiles feminas secum habere non timuerant. qiiae naturalem habitum m«t- rileni nefarie niHtaverunt. rum quibus fornicaverunt.

1 98 HISTORIA

lnmrando a hospitalidade que se lhes dava iia Hungria. (Puellis eripiebatur, oiolentia ablata, virginitas: desknneslabantur conjugio.) Não foi sem causa que a mão de Deus se estendeu sobre aquelles miseráveis, «que haviam pec- i'ado na sua presença, revolvendo-se no lodo dos prazeres carnae'*.» Nem a terça parte d'aquelles bandidas chegaram á Palestina.

.\s Cortes dos Milagres e os Jogares da prostituição tinham dado largo contingente ao exercito dos cruzados. Era n"esfe exercito que os ribaldos, os /)ic'i mi, os truões e os vagabundos, formavam phalanges terríveis, augmentadas com as mulheres perdidas, que iam em companhia dos seus amantes resgatar a Cruz!

Mas além d'isso todos os exercites da Edade-Média eram sempre segui- dos de um grande nuniero de gente de ribaldia, que acompanhava a bagagem e a saqufava em caso de derrota. Os soldados não podiam passar sem este cor- tejo embaraçoso e incommodo, servindo-se das mulheres para recreio, e dt)s homens para os ajudarem n'algumas fadigas e principalmente para aniquila- rem a região por onde passavam.

Os cruzados não renunciaram aos costumes guerreiros, ao dedicarem-se à conquista do Santo Sepulchro, e quando as mulheres lhes faltaram na Pales- tina, onde a religião mahometana se oppunha a todo o contacto illicifo com os christãos, mandaram vir da Europa um reforço de prostitutas, que também a seu modo concorreram para o triumpho geral das cruzadas.

Um historiador árabe, Ben-ad-Eddin, conta, que durante o cerco de S. João d'Arce, em 1189, «trezentas mulheres francas, recolhidas nas ilhas, che- garam n'um -barco para consolação dos soldados francos, a quem inteirameute se entregaram, pois que estes soldados não entram em combate se de mulhe- res os privam.»

O mesmo his(oriad.)r, citado por Hammer na sua Historia do império Otlomano, accresccnta que o exemplo dos francos foi contagioso para os ini- migos, que também quizeram mulheres para o seu exercito, onde nunca ha- viam sido toleradas. Aquella multidão de mulheres acompanhou sempre a re- ctaguarda dos exércitos francezes, até aos fins do século xvi. deofíroy, monge de Vigeois, calcula em mil e quinhentas o numero das concubinas que seguiam as hostes do rei em 1180, e os adornos para estas reaes cortezãs (meretrices regice) custaram sommas enormes (quarum ornamenta inestimabili thesaiiro comparata suni). Este chronista sem duvida allude ás mullieres directamente dependentes do rei dos ribaldos, as quaes não exerciam a sua vil industria sem pagarem um tanto a este empregado palaciano.

Emquanto ás ribaldas livres e nío auclorisadas, o seu numero devia ser vinte vezes maior, principalmente nos exércitos irregulares, como os das cru- zadas, e como aquellas Grandes Companhias, que se punluiin a soldo-d"aquelle que mclliur lhes lhes pagava e maior saque liies promettia.

O monge de Vigeois enumera as dilTerentes espécies de soldados (sodoyers) que nos tins do século xu, como pragas de gafanhotos, assolavam as re- giões por onde passavam: Primo liasculi ; post modum Tlieutlwnici ; Flandren- xes ; et, ut rusticè loquar, BrminK-os. Hatmuyers, Asperes. Pailler. !\adar.

DA PROSTITUIÇÃO 499

Turlan, Vales, Roma, Cotarei, Catalan, Aragonês, quorum dentes et arma omnem Aq)iiíaniam croroserunl. Cada um d'estes corpos de milícia devasta- dora levava alraz de si um grande numero de prostitutas, que incessantemente augmentavam, i' que tomavam parte no saque das cidades conquistadas pelo fogo c peio sangue.

Por Ioda a parte, na historia militar da França e das demais nações da Europa, se encontra essa influencia das mulheres libertinas, nos exércitos em campanha: a recfnííuarda compunha-se sempre d'essas mulheres e dos seus companheiros, rlbaldo-; e truôes, para quem, segundo uma expressão consa- grada, nada era fatigante nem pesado quando se tratava do saque. Esta recta- guarda incommoda era ordinariamente tão numerosa como o resto do exercito. Na Chronica de Modena, escripta por João de Bazans (V. a grande coUccção de Muratori, t. xvi, pag. 600) lé-se que um capitão allemão chamado Ganiier, que á frente de hez mil e quinhentas lanças invadiu o território de Modena, de Régio c de Manlua. em priíicipios do anno de 1342, levava na rectaguarda das suas tropas mil prostitutas, mancebos e ribaldos (mille merelrices, regalii et ribaldi.)

Os caudilhos da guerra, por mais honestos que fossem, nada podiam con- tra esta prostituição; teriam visto sublevar as suas tropas e abandonar uma bandeira que n.ii> protegia as mulheres destinadas au passatempo do sol- dado.

Joanna d'Arc, que linha um grande horror pelas mulheres deshones- tas, finboraos inglezes lhe chamassem Putain des Armignats (Hist. de França, pop Michelet, t, v, pag. 73), conseguiu tirar da sua missão divina bastante au- toridade para expulsar do exercito do rei todas aquellas impudicas ribaldas. Primeiro que íudo, ordenou que os soldados se confessassem <.<e fez-lhes aban- donar as suas mulheres,» diz n auctor anonymo das Memorias concernentes a esta casta heroina.

«E' saber, diz João Chartrier, na sua historia de Carlos vii, que de- pois da batalha de Patoisy, adita Joanna mandou apregoar que homem algum do seu exercito tivesse em sua companhia mulher infame ou concubina.»

Todavia foi mais forte o costume que esta ordem, e algumas d'aquellas mulheres, que se viam appoiadas pelos amantes, atlrontavam as ordens da don- zella. Esta, n'uma revista que Carlos vu fez em Sancerrc, antes de partir de Rennes, viu «muitas mulheres libertinas, que impediam alguns soldados de cum- prir os deveres do serviço,» e desembainhando a sua espada de Fierbois, correu para aquellas miseráveis, ferindo-as por tal forma que a lamina se despedaçou.

Carlos sentiu muito este acontecimento, e disse á heroina que melhor fora ter pegado n'um pau, para não ter perdido assim a espada que possuia por milagre.

A donzella comprehendeu que a presença de uma mulher prejudicava a disciplina do exercito, e para não excitar a sensualidade nos seus companhei- ros de armas vestiu-se de homem. «Parece-me, dizia, que d'esta forma con- servarei melhor a minha virgindade de corpo e alma.» Com efíeilo a sua vir- gindade nenhuma otTensa recebeu, apesar de «muitos grandes senhores quere-

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rem saber se seriam adrnittidos na sua companhia carnal : mas qnando a viam tão galhardaiiienle vestida, lodos os maus desejos lhes passavam.

A ordenação de Joanna d'Air confra as ribaldas ila milicia não lhe so- breviveu, sendo apenas um parenthese de honostidade na vida dos homens de guerra, que não se separaram das ssuis mulheres. E' possivel que aquella mul- tidão de mulheres dissoluta;*, aggregadas ao serviço permanente de um exer- cito, tivesse ás vezes influencia favorável nas consequências ordinárias da to- mada de uma cidade, porquf o soldado, tendo a sua amada entre as mulheres publicas do exercito, mostrava-se menos propenso ao ultrage e violação das prisioneiras.

Seja como íòr, o numero das mulheres communs, filiadas, para assim di- zer, sob a bandeira de um cabo de guerra, diminuía ou augmentava, conforme o bom ou mau êxito da expedição. N'aquelle tempo em que o saque era condi- ção inevitável da guerra estas mulheres, apoderavam-se da melhor parte da presa.

Quanto mais provido e melhor pago era um exercito, tanto mais aflluia de toda a parte a prostituição. Assim, o exercito que Carlos, o Temerário, duque de Borgonha, levou ao paiz dos suissos, em 1 476, estava amplamenf'" pro- vido de pt^ssoal feminino, e depois da derrota de Granson, os vencedores en- contraram no campo do duque, refere Filippe de Commines «grande multidão de serventes, mercadores e prostitutas;» mas os suissos ligaram pequena im- |)ortancia a esta espécie de prisioneiros, e pelo que respeita ás prostitutas, sol- faram-nas, e deixaram-nas vaguear á vontade pelos campos, julgando que tal mercadoria não traria grande proveito para os seus concidadãos.

Apezar d'esta indifferença para com as cortezãs flamengas e borgonhezas, os suissos não tinham sob as suas bandeiras vida mais austera que o seu ini- migo; pois que, em tempo de paz, mantinha-se nas povoações á custa do es- tado um certo numero de mulheres publicas, que em tempo de guerra se in- corporavam nas companhias de cada cantão. ÍRec. d'édits et d'ordon. roy. por (Neron e Girard, 1720, tit. i, pag. 643.)

Voltemos á cavallaria, que fnem sempre dava exemplos de castidade e continência. Os cavalleiros que entretinham amores platónicos com as damas e donzellas de alta gerarchia, sem d'ellas obterem mais do que favores hones- tos, ás ; vezes um beijo, indemnisavani-se d'estas privações com as creadas e camponezas.

Fornecer de mulher o leito de um cavalleiro que pedia asylo n'um cas- tello, era um uso de hospitalidade. L. de Santa Pelava, a propósito d'este uso cor- tez, cita uma passagem muito curiosa de um romance, em que um dama que deu hospitalidade a um cavalleiro, não se quiz deitar sem lhe mandar uma com- panheira de cama.

A castellã também não era muito escrupulosa: talvez a leitura da Arte do amor, composta pelo trovador Guiart, o poeta das immoraes lições galantes, tivesse alTeiçoado esta dama a similhante género de prazeres. E' de crer que nem em todos os castellos houvesse similhantes costumes. Um poeta do século XIII Iranquillisa-nos a este respeito, e pelo modo como ataca a prostitui-

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yão nas cidades, deduzimos que havia uma grande superioridade moral nos costumes e liabitos da cavallaria d'esse tempo.

As leis munieipaes pozeram um freio á prostituição, como dissemos, e a nobreza geralmente corrigida pela cavallaria, distinguiu-se do povo por cos- tumes mais regulares e pelo menos mais honestos na apparemúa. Mas o povo poi' sua vez se corrigiu, emquanto que a cavallaria entrava cm decadência, c os nobres se entregavam a lodos os excessos, (|ue ate enttão tinham evitado; gahavam-se, todavia, de serem t.ão bons cavalleiros como os seus antecessores. Esta decadência dos costumes cavalheirescos começou sob o reinado de Car- los VI.

«Melhor tempo foi o antigo», diz E. Deschamps, um poeta d'esfe reinado, lamentando-se, e são muito justas as suas queixas em presença das orgias da corte, em que Carlos vi c seu irmão, o duque d'Orleans, que se jactava de manter a verdadeira cavallaria, tinham esquecido, como parece, os seus virtuo- sos preceitos. Os torneios celebrados em 1389 em Saint-Dcnis em honra do rei de Sicilia e de seu irmão, que foram armados cavalleiros, acabaram n'uma hor- rível saturnal, de que foi theatro a ahbadia. O religioso de S. Dyonisio, na sua chronica de Carlos vi, julgou não deixar passar cm silencio as desordens da quarta noite.

«Os senhores, diz elle, fazendo da noite dia e entregando-se a todos os excessos da meza, chegaram pela embriaguez a taes desordens, que sem respeito pela presença do rei, muitos dclles mancharam a santidade da casa religiosa c cntregaram-se á libertinagem c ao RáuUevio (adinconcessam venerem el adiil- leria nefanda prolapsi sunt).

As casas religiosas n'aquella época tinham costumes tão relaxados como a corte do rei e dos príncipes; a Egreja tinha caiiido no mesmo grau de deca- dência que a cavallaria, e a sociedade inteira parecia caminhar para a dissolu- ção. Não queremos penetrar nos conventos senão para levantar o véu que co- bria os vicios dos frades c freiras. A prostituição tinha-se apoderado da casa do Senhor, como da casa dos grandes da terra.. Os pregadores n'aquelle tempo repetiam com frequência estas palavras do Anjo do Apocalypse :

«Vinde, mostrar-vos-hei a condemnação da opulenta prostituta que está .sentada sobre as grandes aguas, com a qual se corrom|)crani os reis da terra, c (jue embriagou com o vinho da prostituição os habitantes do orbe.»

Com etfeito, nada pôde expressar bem as abominações do reinado dy Car- los VI, em que ó clero, a nobreza e o povo competiam em torpeza e preversão. Como seria a vida da corte, quando .a vida do claustro era tão-dcploravcl como nol-a descreve Nicolau de Clemenges, arcediago de Bayeux, no seu tratado De corrupio stala ecdesiw ?

«A propósito das virgens consagradas ao Senhor, diz este philosoiilio christão, seria preciso expor todas as infâmias dos logares do prostituição, Io- das as manhas e desavergonhamcntos dascortezãs, todas as obras execráveis da fornicação e do incesto; .senão, diz-me, que são hoje em dia (em 1400) os mosteiros de mulheres, senão sanctuarios consagrados, não ao culto do ver- dadeiro Deus, mas ao de Vénus? senão impuros receptáculos, onde a juvcn-

BiSTOBiA DA Pbostitoição. Tomo II Folha 26.

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tude desenfreada se entrega a todas as desordens da luxuria? O mesmo é vestir o veu a uma joven que expôi-a pu!)licamente n'um logar de abominação.»

Nicolau de Ciemenges leva até á hyperbole a critica dos costumes mo- násticos, mas a desmoralisação dos ccclcsiaslicos era muito escandalosa, e não podia dizer-se se era a Egrcja quem desmoraiisava a cavallaria, se a cavallaria quem desmoraiisava a Egreja. Dulaure, cujo testemunho é geralmente suspeito, appoia-sc cm auctoridadcs respeitáveis para esboçar este quadro dos costumes clericaes e cavalbeircscos :

«Os prelados e sacerdotes subalternos andavam ordinariamente vestidos com trajo secular, cingiam espada, entravam nos torneios, frequentavam as tabernas, mantinham concubinas. Os sacerdotes e os curas occupavam-se em empregos judiciaes, emprestavam dinheiro a juros e enlregavam-se aos exces- sos da meza e da sensualidade. iValgumas dioceses, os grandes vigários obti- nham licença para commctler adultério por espaço de um anno; n'outras, podia comprar-se o direito de fornicar impunemente por toda a vida: o comprador d'este privilegio impudico não tinha mais que pagar certa quantidade de vinho annualmentc, e este encargo tornava-se vilalicio, ainda que a edade inhabili- tasse o privilegiado de fazer uso da sua extranha licença.»

Nas decretaes dos papas, encontra-se a auctorisação d'estes abusos : o câ- none De dilectissimis eshorta os christãos á pratica d'este axioma : Tudo é com- raum entre amigos; até as mulheres, accrescenta. Para obíer licença de com- metter o peccado infame durante os mezes caniculares, houve quem tivesse a audácia de recorrer com instancia ao papa Xixto iv. Sua santidade despachou n'este sentido, palavras textuaes: Como se pede. (Hist. de França, pelo abbadc Villy, tit. V, pag. 10 e seguintes.)

E' verdadeiramente notável que as ordenações reaes e municipaes contra a prostituição nunca fossem tão frequentes nem tão severas como durante aquelle periodo de desmorali-sação. Com as mulheres publicas não se tinha piedade, quando a decência e o pudor pareciam desterrados dos costumes, quando es- tavam em moda os vestidos dissolutos, apezar dos edictos sumptuários.

Havia resuscitado a moda dos sapatos de polaina, e d'aquelles adornos obscenos que os enfeitavam no século xii, segundo Odorico Vital, mas agora mais lubricamente caracterisados.

Verdade é que as mulheres não ousaram adoptar os accessorios de seme- lhante calçado, mas em troca usavam vestidos abertos, ou arregaçados que dei- xavam A'cr a perna quasi toda núa. Emquanto ao seio lraziam-n'o descoberto até ao mamillo. O auctor do Chastoienunt des dames, Roberto de Hlois, censura estas modas impudicas, n'uns versos, cujo sentido é o seguinte :

«Nenhuma encobre o peito, para que se veja a alvura da carne. Algumas ha que deixam apparecer as costas e as pernas. O homem honesto não louva estes desaforos.»

As ccremonias da Egreja, sobretudo as procissões, participavam também d'esta indecencia de trajos, por(|ue em muitas d'ellas tomavam parte homens e mulheres completomente nús.

A este respeito Ic-se na ílisloria de Paris, de Dulaure :

Castigo do uma adultera no Berry, no século XV

DA PROSTITUIÇÃO á03

«Entre os penitentes, uns levavam pedias atadas ás camisas; outros eom- pletamente nús eram ílagellados, e outras vezes picados com alfinetes nas ná- degas.»

N'esta passagem Duiaure não exaggcra nem inventa, como o leilor pôde facilmente vereficar no Glossário de Ducange e Carpenlier, nas palavras: Peni- tentiCR, processiones, villanice, lapides calenalos ferre, putaíjium, naticce, ele, Qucr-nos parecer que os penitentes que seguiam as procissões em completa nudez c que se faziam picar com alfinetes, eram prostituías, exactamente como as que levavam pedras atadas ás camisas, porque taes eram precisamente os cas- tigos ordinários, infligidos pela justiça secular ás mulheres de escândalo. Du- iaure cita-nos um exemplo notável, exfrahido por elle dos registros criminaes do parlamenlo do Paris :

Anna Piedoleu, mulher de maus costumes, tinha uma casa de prostituição na rua Saint-Martin, em contravenção das disposições das ordenanças prebos- taes. O preboste d'essa cpocha, o famoso Hugo Aubriot, fazia executar rigoro- samente as leis, e tendo recebido uma queixa da visinhança, mandou os seus agentes a casa da Piedeleu, a quem tractaram com toda a indulgência, por isso que se limitaram a fazel-a desalojar, sem ([ue em seguida a prendessem. No emtanto a Piedeleu contava sem duvida com a protecção de algum alto personagem, capaz de f;izer frente ao preboste, porque em seguida a esta vio- lência querellou do magistrado, accusando-o de mui los crimes e apresentando testemunhas d'elles, no intuito de o perder.

O parlamento, ouvidas as conclusões do advogado do rei, e evidenciada a falsidade da accusação, condemnou em 1374 a Piedeleu a ser passeada comple- tamente núa pelas ruas da cidade, levando na cabeça uma coroa de pergami- nho com o dislico de Falsaria. Foi assim arrastada ao pelourinho do mercado publico, e alli esteve duas horas exposta, indo em seguida para a prisão, d'ondo apenas saiu, quando mais tarde foi condemnada a desterro perpetuo.

Os espectáculos d'esle género nas ruas tia cidade deviam ser demasiado frequentes n'aquella époeha, e o povo assistia a elics com extraordinário prazer. Como as ribaldas e proxenetas assim expostas tiritassem de frio e tossissem muitas vezes, em consequência dos rigores da estação e do seu estado de com- pleta nudez, os espectadores, sobre tudo a parte mais juvenil e mais gaiata, costumavam então cantar uma canção obscena, adrede composta para estes casos. Pode lèr-se o estribilho indecente, que a terminava no Journal du Bourgeois de Ptiris :

Viilre C. a la loux; commére, Votre C. a la toux, la toux I . . .

A iniciai C. facilmente será decifrada pelo leitor, curioso d'estes sarcas- mos da musa popular.

Era natural que muitas d"aquellas desgraçadas respondessem ás canções impudicas e iiisultantes com injurias c pragas. Assim, quando a tosse epi- demica invadiu a população de Paris, no inverno dtí 1413, os indemnes ou mesmo os que estavam curados d'aquella tosse incommoda e cruel zombavam

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(los doentes, dizendo-llies entre vários outros cliistes, mais ou menos graciosos e livres :

Votre C. a la luu.r, cntiiniére, Volre C. a la toiíx, la toií.v! . . .

O estribilho ireste caso fazia allusão a toda a espécie de males, á lepra, á sarna, á tosse, tantas vezes rogados nas suas imprecações aos cruéis espe- ctadores do seu supplicio, pelas desgraçadas expostas ao frio e aos insultos no bárbaro pelourinho de mercado. Não havia compaixão para com estas peccado- ras, como dissemos, e as creanças era quem mais encarniçadamente as perseguia. A auctoridadc julgava proceder de harmonia com o sentir una- nime da sociedade, recusando-ihcs toda a espécie de indulgência.

Houve, no emtanto, um preboste de I'aris, que as tomou sob a sua pro- tecção e lhes concedeu um appoio lalvez exaggcrado. Foi este magistrado Am- brozio de Loré, barão de Juilly, nomeado em 1 i3G, e fallecido no exercicio do seu cargo em 14io. O povo de Paris não lhe perdoou haver favorecido a pros- tituição, deixando cahir em desuso os antigos regulamentos. Emquanto durou a sua administração, as prostitutas tiveram uma espécie de liberdade, vestindo- se como queriam e habitando em todas as ruas, segundo bem lhes parecia. Ambrozio, no seu leito de morte, arrependeu-se de ter sido tão paternal para com as mulheres publicas, e quiz reparar as desordens que a sua lenidade ha- via introduzido na policia dos costumes.

«Uma semana antes da Ascensão, refere o Bouryeoiíí de Paris, no seu Diário, foi lançado um pregão cm todas as ruas da cidade, para que as ribaldas não usassem cintos de prata, nem- colleirinhos voltados, e para que fossem vi- ver nas bordeis, que lhes haviam sido destinados n'outro tempo.»

Esta tardia satisfacção dada á opinião publica não fez olvidar os escân- dalos que a haviam precedido, e quando Ambrozio morreu, poucos dias depois, o Boiírgeois de Paris eiicarregou-se da oração fúnebre do alto funccionario, e declarou-o menos amante do bem publico, do ([ue todos os seus predecessores nos quarenta annos mais chegados.

Accrcscenta o mesmo papel que o preboste tinha uma das mais bellas o honestas mulheres do mundo, mas «era tão lúbrico c dado aos prazeres venéreos, que linha trez ou quatro concubinas, e levava a sua fraqueza pelas nuiliíercs devassas ao ponto de consentir as prostituías por toda a parte, existindo no seu tempo em Paris um grande numero d'ellas, o que lhe grangeou entre o povo péssima reputação, por causa d'esta sua tolerância para com as prostitutas c onzeneiras.»

Ambrozio de I.orc, antes de ser preboste de Paris e de ser tão benévolo para com as mulheres publicas, fora um dos mais valorosos cavalleiros das hostes de Carlos vii; no emtanto, os seus feitos de armas não o haviam tor- nado mais honesto, embora fosse contemporâneo de muitos cavalleiros de vida exemplar e bons eostumes. l'assára a sua mocidade na corte de (larlos vi, onde a cavallaria consistia apenas em torneios e mascaradas; não pertencia áquella plêiade de cavalleiros castos e honestos, que, como o marechal de 13oucicaut,

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pensavam que «a luxuria é a coisa d'esle inundo mais indigna de iim valente iiomem de armas.»

O bom messirc João Le-Maingre, diz a respeito de Boucicaut «que o mare- chal nunca inferiu aggravo á castidade, quando foi governador de Génova, cidade em que as occasiões de peccado o procuravam sem cessar; mas o lidaigo tem cm si próprio as virtudes contrarias á sensualidade. Nunca pensou cm diver- lir-se deslionestamenie com as genovezas: era para ellas, como se fosse de pedra, embora as damas fossem muito galanteadoras c bem dispostas, e houvesse entre ellas algumas de rara formosura. Um dia em que sahiu a cavallo com a sua comitiva de oííicíacs pelas ruas de Génova, uma dama que estava penteando os abundantes e louros cabellos, chegou á janella para o ver passar. O marechal não fez caso, mas um dos seus officiaes não poude deixar de exclamar : «Oh ! que hella mulher O marechal fingiu não o ter ouvido, mas como o oíficial se voltasse de novo para ver a dama, disse-lhe com um olhar glacial que se- guisse o seu caminho, sem dar occasiào a escândalo e sem se importar com aquella mulher».

O i)iograp!io, que escreveu os feitos de Boucicaut, accrescenta estas pala- vras: «Assim, o marechal está limpo do vicio carnal, e é da mais perfeita c completa continência.»

Boucicaut havia sido educado na corte de Carlos v, que punha a casti- dade acima de todas as virtudes, segundo diz o seu biographo Cliristino de Pisan ; e esta virtude era por elle severamente guardada nos pensamentos, nas palavras, e nas obras. Carlos v, tão severo para comsigo n'este ponto, não o era menos para com seus servidores, os qnaes desejava que fossem castos, «nos vestidos, nas palavras, nas obras, e em tudo.» Quando sabia que alguém da sua corte tinha deshonrado uma mulher, embora fosse seu favorito, despe- dia-o severamente da sua presença, c para sempre do seu serviço.

No emtanto, não lhe faltava caridade christã para com os peccadores, e tendo em cOHsiderat;ão a fragilidade humana, jamais consentiu que um ma- rido condemnasse sua mulher a penitencia perpetua por crime de adultério, tolerando apenas que a conservasse encerrada em casa, quando fosse muito leviana, para não causar vergonhas á familia.

Prohibia severamente que se introduzissem livros deshonestos na còrle da rainha e dos príncipes. Disseram-lhe um dia que um fidalgo da corte havia instruído o delphim em certo jogo deshonesto. O rei despediu immediata- mente o fidalgo, prohibindo-lhe formalmente que se apresentasse de novo na presença da rainha e de seus filhos.

Chrístino de Pisan, que refere estas particularidades no Livro dos feitos e bons costumes do defunto rei Carlos, diz-nos ainda que o solicrano não ad- mittia á sua mesa os que proferiam palavras desbragadas, e que considerava as representações theatraes como predisposição para a luxuria. Accrescenta que o monarcha repetia frequentemente o texto da epistola de S. Paulo aos Corin- Ihios : .l.s- más palavras corrompem os bons costumes.

O reinado de Carlos vi e parte do de Carlos vu foram manchados por todos os vícios e crimes, que o rei Carlos v tanto procurara extirpar do seu, e

2Utí nisroaiA

a prostituição que este excellente monarclia soube severamente reprimir com o seu exemplo, não conheceu depois do seu tempo nem barreiras nem limites.

Para se fazer ideia do grau de preversidade a que haviam chegado alguns nobres, que se entregavam a todas as aberrações da libertinagem, ij.ista lôr-se nos archivos de Nantes o processo criminal de Gil de Rctz, marechal de França, condemnado ao supplicio da fogueira em 1440.

Gil de Retz era um dos mais poderosos senhores da Bretanha. Havia ser- vido valorosamente a Carlos vii na guerra contra os inglezes; combatera com Dunois e Lahire sob o estandarte de Joanna d'.\.rc, e era um homem de letíras. A leitura de Suetonio bavia-o, porém, incitado a imitar as monstruosas desor- dens dos imperadores romanos. .4paixonou-se, como Tibério e Nero, pelas sen- sualidades sanguinolentas, e o seu mais grato divertimento era corromper com abo- mináveis caricias umas infelizes crcanças, que fazia roubar por toda a parte. Quando estas innocentes creaturas eram bonitas, servia-se d'ellas como instru- mento de prazeres infames, ou degollava-as com as próprias mãos.

A superstição e a magia eram os auxiliares favoritos das suas abomina- ções. Tinha uma capella magnifica onde havia cliantres e cónegos porcUe sus- tentados, e mantinha do mesmo modo um collegio de magos e feiticeiros, com os quacs fazia invocações ao espirito das trevas.

Este homem execravel, que tantas analogias teve cora outro preverso, que mais tarde apparecerá n'esta obra, o marquez de Sade, foi alfim accusado pe- rante os tribunaes, preso conjunctamente com os principaes agentes das suas infâmias, e julgado por um tribunal extraordinário, que para este ca.so nomeou seu primo, o duque da Bretanha. As averiguações judiciaes chegaram a provar os horrores da accusação. Nos subterrâneos dos castellos de Chanfocé, de la Suze, de Ingrande, etc, foram encontrados os ossos calcinados e as cinzas das creanças, que o marechal de Retz havia assassinado, depois de ter abusado da sua innocencia.

O próprio criminoso confessou tudo, e não podendo esperar indulgência da parte da justiça humana, pediu perdão ao juiz supremo, ante o qual ia com- parecer.

Os depoimentos dos cúmplices de Gil de Retz iniciam-nos nas scenas verdadeiramente horríveis, de que era theatro o velho caslello de Chantocé. Henriet, cam.areiro do marechal, declara «que Gil de Sille e um certo Pontou, haviam entregado muitas creanças ao dito senhor de Retz, com as quaes crean- ças eile marechal se enthusiasraava e cohabilava pelo ventre, tendo com isso o seu prazer e deleite; que nunca tinha copula com alguma das dilas creanças mais que uma vez ou duas, e que depois as degollava por sua própria mão, e algumas vezes Gil de Sillé, Henriet e Pontou as degoliavam na camará do re- ferido marechal, e que alli mesmo eram as creanças mortas, limpando-se o sangue, que caía sempre no mesmo sitio. As creanças eram depois queima- das na mesma camará e as cinzas deitadas fora, e que o marechal sentia mais prazer em degolal-as, do que em ter copula com ellas.»

Interrogado novamente, Henriet completou estas primeiras revelações com os seguintes pormenores. Disse que «tinha ouvido dizer ao dito marechal de

DA PROSTITUIÇX» t07

Relz que sp comprazia exlraordinariamenlc cm ciírlar a cabeça ás creanças de- pois de as haver gozado pelo ventre, segurando-lhes as pernas entro as suas. Que outras vezes se sentava sobre o ventre das creanças depois de lhes ter cortado a cabeça, e outras lhes fazia uma incizão no pescoço, por delraz, para que se esvaíssem em sangue, pouco a pouco, e n'esse estado as gozava até morrerem, e ás vezes mesmo depois de mortas, emquanlo estavam quentes. Dizia que ninguém no mundo podia saber ou fazer o que elle tazia. Havia oc- casiõcs, em que o mesmo marechal mandava esquartejar as creanças, goznndo extraordinariamente em ver espirrar o sangue.

«O mesmo marechal, depoz ainda Henriet, para evitar que as creanças gritassem na occasião em que pretendia gozal-as, pendurava-as pelo peser)^to por meio de uma corda a três pés de altura a um canto do quarto, e antes de morrerem, desprendia-as, obrigava-as a excitarem-lhe o membro com a mão, e em seguida refocillava-se bestialmente sobre o ventre d'ellas, degollando-ns quando saciava a sua feroz bestialidade.»

Tão espantosas revelações foram confirmadas por Estevam Pontou. o favorito do marechal e um dos seus cúmplices. Este miserável não precisou de ser submettido á tortura para confessar os crimes de seu amo e os seus, accrcs- centando novos pormenores aos que Henriet havia declarado. O marechal de Retz dava dois ou três escudos por cada creança que lhe levavam, e manda- va-as encerrar secretamente n'um dos seus castellos. As creanças eram indi- fferentemente dos dois sexos, e as meninas gosava-as também por meio de in- cisões no ventre, confessando que se deleitava mais assim, do que se as go- zasse pelo órgão sexual.

Gil de Relz, depois d'estas revelações, não teve remédio senão confessar os seus crimes.

Declarou que tinha muitas vezes gosado assim as creanças por ardor e deleite de luxuria, e que costumava niandal-as matar pelos seus confidentes, ou serrando-lhçs o pescoço com uma serra, ou cortando-lhes a cabeça, ou ([ue- brando-lhcs o craneo ás pauladas, ou de qualquer outro modo. Que outras ve- zes as esquartejava elle próprio ou os seus cúmplices, costumando também abril-as para lhes ver as entranhas, pendurando-as de um gancho de ferro para as estrangular. Que assim mesmo moribundas as gosava, e outras vezes lam- bem logo que morriam e emquanto os seus cadáveres estavam quentes, e que tinha um prazer extraordinário em vèr assim as bellas cabeças das creanças, e que terminava quasi sempre as suas moslruosidades por mandar queimar os cadáveres das suas victimas.

Perguntaram-lhe quando e como concebera a infernal ideia d'aquella8 sensualidades diabólicas, e respondeu :

«Que havia começado aquelle género de vida em Chantocé, no anuo cm que seu avô, o sire de Suze, morrera; e que ninguém a isso o incitara, pois que se havia dado áquellas sensualidades e infâmias simplesmente para gosto e satisfação da sua grande luxuria.»

Ao ouvirem estas espantosas revelações, feitas com a maior tranquilli- dade, os juizes benziam-se de assombrados. O mímstro d-' condemnado com os

208 HISTORIA

seus prevcrsos cúmplices; mas a coudemnayão não o anniquilou. Animou os seus cúmplices a jazerem uma boa morte, para que podessem d'alii a pouco vèr-se novamente na grande alegria do paraíso.

O marcchiil foi suppliciado a 26 de outubro de lií-O junto da ponte de Nantes. Esfranguiaram-no sobre a fogueira, e entregaram o corpo á familia. Houve enlào muilas damas illustres que se apressaram a receber aquelle ca- dáver manchado, o encerraram n'uma urna, e o levaram sol-emnemenle á egreja dos Carmelitas, onde foi enterrado, deixando nos espectadores do supplicio a recordação do seu arrependimento e do seu fim chrislão.

CAPITULO XIX

SUM.MARIO

ApparecimeDto das moléstias venéreas em Fiauça. Origem da sypbilis, gallico ou mal f rancei .— ís- pantosos progressos d'eíta aQecçJo venérea em lins do seculu XV. e seu curso atravez da Edade-lktlia.— A elephan- tiasis o outras degenerarões da lepra. A raenlagra easherpes. A íwes !«//i(iiiarí(i.— Perigrinação aos lo- L'ares santo.;.— A pgreja de Xolre Dame em Taris.— O fogo .íar raio,— Vicio dos normandos.— O mal dos ardentes.— Seus horríveis estragos O mal de Saint-llain e o fogo de Santo António.— Invocafões a S. Karcello e a Santa Ge- noveva.—A syphilis do século XV.— Os leprosos e as gafaria-s.— Policia sanitária a respeito dos lepmsos.— Caracteres gcraes da lepra.

Jl APPAUECiMENTo, OU para melhor dizer, o deseiivolvinienlo das li moléstias venéreas, tanto cm França como em toda a Europa, mudou de certo modo a face da prostituição legal, e esteve mesmo a ponto de produzir o seu definitivo extermínio. Em presença das terriveis enfermidades que vinham atacar nos ór- gãos da vida a sociedade inteira, os homens mais iliiislrados e mais exemptos de preoccupações, tiveram de reconhecer que a libertinagem publica era a causa única de tão cruel flagello, ao passo que os espíritos meticulosos e crédulos o consideravam como um castigo do ceu, fulminado contra a incontinência, e applicado precisamente á fonte de todos os prazeres impuros.

Foi então e então que os magistrados se arrependeram amargamente de ferem auctorisado e organisado o exercício do peccado, que tão fataes con- sequências produzira, e o primeiro remédio que opj)ozei'am á invasão d'esta nova e terrível peste foi a suspensão dos regulamentos de tolerância, em vir- tude dos quaes havia em cada cidade mu foco permanente de infecção mor- bosa.

iSo cmtanlo, bem depressa se julgou inútil estorvar o curso regular da prostituição, quando se reconheceu que o mal não provinha unicamente dos estabelecimentos tolerados. Adoptaram-se, é verdade, medidas de policia sani- tária que ainda até então não haviam sido prescriptas, c a vida dissoluta das mulheres publicas ficou submettida á inspecção da medicina. Foi um progresso notável no regimen da tolerância pornographíca, e desde aquella época a ad- ministração municipal teve de occupar-se muito a serio da saúde publica em todas as questões, que até esse tempo apenas tinham interessado á moral e á ordem social.

Temos de tractar n'este capitulo da origem da syphilis, visto que as cir-

HisTOBiA DA Prostituição. Tomo n— Folha 27.

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cumstancias fizeram que !hc fosse dado o nome de mal francez, oiigallico, logo que esta liorrivel enfermidade explosiu na Europa, e visto que este nome se refere também aos acontecimentos que acompanharam o seu apparecimento em França. Seja-nos, licito, porém, antes de mais nada, desenvolver uma these que adduzimus e sustentamos sobre a antiguidade das affecçôes venéreas.

E' certo que estas aílecçõcs, assim como todas as epidemias e contágios, soffreram numerosas metaniorphoses, especialmente nos seus symptomas, em razão da variedade de condi^ws locaes, atmosphericas e naluraes que prece- diam o seu apparecimento. iNinguem ousa negar que esta liorrivel praga, que a sciencia ha perto de quatro séculos tem sempre considerado como um assom- broso Proteu, tivesse antes de 1493, ou 1496, os espantosos caracteres e so- bretudo o virus propagador, que se observai'am pela primeira vez n'aquella épo- cha, em que os casos de excepção passaram a ser casos geraes. Não obstante, o mal venéreo existia, exactamente o mesmo desde a mais remota antiguidade, como demonstrámos, e nunca tei-ia assustado mais que outra qualquer en- fermidade chronica, se uma reunião de circumstaneias imprevistas e inapreciá- veis não lhe houvessem communicado subitamente os meios de se propagar c aggravar com uma espécie de furor.

provámos, appoiados na auctoridade de Celso, de .\reteu e dos mais illustres médicos gregos e i-omanos, que a verdadeira syphilis, apesar de tão desarrazoadamente a quererem dar como contemporânea do descobrimento da America, não tardou em succeder em Roma á lepra e ás outras enfermidades cutâneas, importadas da Ásia e da Africa juntamente com os despojos dos povos conquistados. Não seria difficil fazer coraprehender, remontando áquellas pri- mícias mórbidas, que a espantosa libertinagem romana havia acalentado em seu seio os germens de todas as aíiecções venéreas, e que da sua impura fusão de- viam necessariamente resultar males desconhecidos, que voltavam sem cessará sua origem, corrompendo-a cada vez mais. Insi-stimos, todavia, em julgar que a transmissão do virus não era tão rápida nem tão frequente, como veio a ser, séculos depois, nos tempos modernos, e é alem disso muito provável que os an- tigos, assim como possiriam mais de quinhentas espécies de collyrios para as doenças dos olhos, tivessem não menor quantidade de receitas para as enfer- midades dos órgãos sexuaes.

Passemos agora a seguir atravez da Edade-Media o curso do mal venéreo, sob differentes nomes, até chegarmos á sua ultima transformação com o nome de syphilis, ou grasse vérole.

Esta enfermidade obscena existiu sempre no estado chronico em indivi- fluos isolados, reproduzindo-se por contagio com uma grande variedade de ac- cidentes, resultantes do temperamento dos enfermos e de uma multidão de cir- cumstaneias locaes, que seria impossível enumerar ou caractcrisar. No emtanto, o gérmen da enfermidade provinha sempre de um commcrcio impuro, e não se desenvolvia por si próprio, sem causa preexistente de infecção, no exercício mo- derado das relações sexuaes. A prostituição era o foco mais activo d'esta le- pra libidinosa, que se propagava mais ou menos violentamente, segundo o paiz, a estação, ou o próprio temperamento do individuo. Como apenas os libertinos

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soíam approxiniar-se da fonte impura, o mal Cubava assim cireumscripto n'esta gente de vida desregrada, que não tinha ontacto algum com as pessoas lio- nestas. Havia époclias, porém, cm que por um conjuncto de factos physiologi- cos, a enfermidade se exacerbava e sahia dos seus limites ordinários, associan- do-se a outras enfermidades epidemicas ou contagiosas, muliiplicando-se com peiores symptoraas, e ameaçando contagiar a população inteira, dizimando desde logo uma grande parte d'ella. Depois de ter feito estes estragos, manifes- tos ou occultos, detinha de repente a sua marcha destruidora. Era a medicina que se oppunha aos progressos occultos do flagello? Não, era a religião, que se apressava a impor penitencias publicas, a religião, mais efficaz contra a mo- léstia do que a medicina, que aflasfava os perigos do contagio, fazendo guerra sem tréguas ao peccado da luxuria, sua causa immcdiata. A privação absoluta dos prazeres sensuaes durante um lapso de tempo bastante considerável, era n'estes casos o remédio salutar applicado pelo clero contra o desenvolvimento da obscena enfermidade.

N'estes períodos críticos da salubridade publica, a prostituição legal desap- parecia completamente. Fechavam-se os bordeis, as mulheres publicas eram obrigadas a interromperem o seu perigoso fraPico, sob a ameaça de penas ar- bitrarias, e a policia municipal dictava ordens Ião severas sobre este assumpto, que desde o principio do contagio, no século xvi, a aucíoridade expulsava ou prendia Iodas as mulheres suspeiins, e as delinha em cárceres, ate que a epi- demia deixava de fazer estragos.

Devemos lembrar aqui que o clima da Gallia era extremamente favorá- vel ás enfermidades epidemicas e a todas as alTecções cutâneas. Pântanos im- mensos e bosques impenetráveis mantinham cm todo o território uma humidade pútrida e maléfica, que os calores do estio saturavam de miasmas deletérios e venenosos. A terra, em vez de estar desinfectada pelo cultivo, exhalava sem cessar emanações mórbidas. Os alimentos e o modo de vida dos seus habi- tantes não eram também muito conformes com os preceitos da hygiene. Dor- miam no chão sobre pelles de animaes, sem outro abrigo contra as intempé- ries além de lendas de pelles, ou de miseráveis cabanas de colmo; comiam pouco pão, muita carne e muito peixe, creavam grandes rebanhos de porcos negros, que se apascentavam nas immediaçõcs dos bosques druidicos. Não é para admirar, portanto, que a elephaníiasis e as outras ramificações da lepra se tivessem perfeitamente acclimado nas Galiias no segundo século da era moderna.

O sábio Areteu, que, segundo todas as probabilidades, escreveu no tempo de Trajano o seu tratado De curatione. elephantiasiit, diz que os celtas ou gau- lezes possuíam uma grande quantidade de remédios contra esta espantosa en- fermidade, e que empregavam contra ella sobretudo umas pequenas bolas de nitro, com as quaes esfregavam o corpo no banho.

Marcello Empírico, que exercia a medicina em Bordéus, em tempo ilo imperador Graciano, refere que o medico Sorano emprehendeu a diílicíl em- preza de curar, s(5mpnte na província da Aquitania, duzentas pessoas atacadas de herpas sórdidas, que se espalhavam por todo o corpo.

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provamos (nie o mal vciíitco não era mais do que uma espécie de lepra, contrahida com o habito das relações sexuaes; explicámos também de ([ue modo as abomináveis aberrações dos sentidos produziram, em casos excep- cionaes, o desenvolvimenío das forças do virus, Icvando-o a órgãos do corpo, menos próprios para o receber; applicámos, finalmente, ás origens da elephan- tiasis as liypoilieses, que mais adiante veremos formular aos médicos do sé- culo XV, por occasião do apparecimcnto do mal de Nápoles, enfermidade em que muitos homens de sciencia quizeram reconhecer os monstruosos effeitos das desordens da sensualidade anii-physica.

Foi durante o século xvi que o mal venéreo percorreu a França com os caracteres appareníes de uma epidemia, e com o nome de lues inquinaria, ou inguinaria. Segundo a primeira denominação, este mal era uma impureza, tal- vez uma gonorrhèa, como a que se descreve na Biblia (Leritico, cap. xv); pela segunda era uma inflanimação dos tíanglios, onde se formava uma ulcera ma- ligna, que produzia a morte depois de sofTrimentos verdadeiramente horríveis. Gregório de Tours indica frcqueníemcnte esta enfermidade. Ruinart, na sua edição da obra d'estc historiador, explica que a ulcera inguinal matava o en- fermo como uma serpente: Lues inguinaria aic Jicebalur, quod nascente in inguine, vel in axilla, ulcera in modum serpenlis interficeret.

O Glossário de Ducange, na edição dos Benedictinos, traz os dois nomes desta pestilência, que appareceu pela vez primeira em oiG, e que d'ahi em diante veio (lagellar por varias vezes as povoações dadas aos vergonhosos ex- cessos da libertinagem contra a natureza. Os doutos editores, porém, não se occuparam di> facilitar a interpretação d'estes dois nomes altribuidos á mesma enfermidade, pela comparação luminosa das passagens em que os elironistas contemporâneos fallaram d'ella. A origem infame d'esta enfermidade parece- nos suíTicientementc indicada no próprio horror que ella inspirava, e que não consistia apenas no terror da morte, por isso que os indivíduos por ella accomn\et- tidos pareciam castigados pela mão de Deus, por causa das suas impurezas. A intlammação purulenta dos órgãos sexuaes, os bubões, ou tumores das virilhas, o ílu\o de sangue dos intestinos, os abcessos gangrenosos dos músculos, dizem o sulíicienle a respeito da natureza d'este contagio obsceno.

Reappareceu com outros symplomas em 9o4, depois da invasão dos nor- mandos, que talvez não fossem cxiranhos a esla recrudescência do contagio. Flodoardo, no emlanlo, absiem-se de qualquer conjectura impudica a este res- peito :

«Em redor de Paris, em diversos logarcs dos seus subúrbios, diz elie na sua Chronica, havia muitos homens verdadeiramente aíllictos por causa de um fogo, que SC lhes manifestava em varias partes do corpo, e que os ia consum- mindo até que morte vinha findar o seu mariyrio. Alguns d'elles, os que se recolhiam a um logar santo, escapavam aos seus tormentos, e a maior parle foram curados cm Paris na egreja da Santa Mãe de Deus, Maria, de tal modo que se aliirma que todos os que para alli conseguiram Iransportar-se foram curados do .seu mal, e o duque Hugo lhes dava com que viver. Houve alguns, que ao voltarem a suas casas, sentiram-se novamente incendiados pelo fogo que

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na casa de Deus se havia extinguido, e voltando á cgreja, ficaram novamente livres do seu flageilo.»

Sauval, que nos fornece esta singela traducção, accrescenta que «como os remédios não serviam de nada, houve de recorrer-se á protecção da virgem na egreja de Notre-Dame, que por essa época servia de hospital.»

Ellectivamente encontra-se no Grande Pastoral d'esta egreja, no anno de 1248, um documento capitular relativo ás seis lâmpadas que, noite e dia, al- lumiavam o sitio em que jaziam os desgraçados enfermos d'esta cruel epide- mia, que se chamava fo(jo sagrado. Diz o texto: Vbi infirmi et morbo, qui ignis sacer wcalur, in ecclesia lahoranten consueverunt reponi.

«A maior parte dos auctores que fatiaram d 'esta horrível enfermidade, diz o sábio compilador do Memorial portátil de chronologia (t. ii, pag. 839), estão de accordo cm attribuir-lhe os mesmos symptomas e os mesmos cffeitos. Invadia subitamente os indivíduos, queimava as entranhas, ou qualquer outra parte do corpo, que cabia aos pedaços, e debaixo da pelle lívida ia consum- mindo as carnes e cspbacelando os ossos. O que este mal tinha de mais es- tranho, era que obrava sem calor, e penetrava as suas viclimas de um frio gla- cial, jnas isto era apenas nos primeiros dias; em seguida a este frio mortal succedia um ardor tão vivo na região accommettida, que os doentes sentiam todos os symptomas de um cancro.»

Os progressos do fofio sagrado apenas foram detidos pelos sábios conse- lhos da Egreja, que se exforçava por curar os enfermos a quem havia primei- ramente absolvido. O vicio dos normandos, porém, tinha-se inveterado nas províncias por ellcs invadidas. No anno de 994 reappareceu o mal dos arden- tes com as causas criminosas que pela primeira vez o haviam produzido, e este mal transmillido pela mais .sórdida libertinagem passou logo da França á Al- lemanha e á Itália.

O século decimo foi extremamente propicio a todas as espécies de cala- midades que podem affligir o género humano. Acreditava-se que o anno mil traria o fim do mundo, e n'esta triste previsão os preversos que se julgavam destinados ao inferno passavam o resto dos seus dias entregues desenfreada- mente aos vicios habituaes. Chuvas continuas, grandes innundações e frios ex- cessivos vieram cm auxilio das epidemias despovoar a terra. Os campos por falta de cultivo transformavam-se em pântanos cujas emanações pestilentes in- fectavam a atmosphera. Os peixes morriahi nos rios e os animaes nos bosques, e todas estas corrupções produziam necessariamente um grande numero de en- fermidades.

O mal dos ardentes appareceu de novo em toda a França. O rei Hugo Capeto foi uma das victimas da epidemia, por causa da sollicitude com que vi- sitava continuamente os enfermos. Era infallivel a morte dos atacados, quando a doença se enraizava n'aquelles organismos enfraquecidos. A horrivcl epide- mia contra a qual a sciencia houve de confessar-se impotente, por isso que o vicio lhe disputava passo a passo o terreno, recebeu o nome de mal sagrado, por causa da sua origem maldita, e «porque, segundo diz o livro da Excellencta de Santa Genoveva, n'isto da formação dos nomes casos ha em que a palavra

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vem a significar oxacfamenle o conlrario ila ideia que se tem em vista». E com referencia ao mal sagrado: Morbus igneus, quem physici sacrum' ignem ap- pellant ea nominum insíilutione. qua nomen unius contrarii alterius signí- ficationem sortitur.

A opinião vulgar, sem poder explicar a natureza d'este mal, aífribuiu a apparição d'elle a castigo do ceu, e a cura á intercessão da Virgem e dos san- tos. Com o andar dos tempos talvez os próprios padres da Egreja lhe tirassem o nome de mal sagrado, para, no intuito de lhe imprimir um sello infame e vergonhoso, lhe chamarem mal dos ardentes. Pouco depois, o povo chamava- Ihe também mal de Saint-Main e mal de Sanio Anlonio, porque estes dois beniaventurados tinham fama de haver curado grande numero de enfermos.

O papa Urbano n, informado dos milagres devidos á intercessão de Santo Autonio, e que estavam sendo attcsíados por tantos enfermos, fundou sob a invocação do glorioso santo uma ordem religiosa, cujos membros deviam uni- camente iractar das vicíimas do mal dos ardentes.

A propósito do esiabelecimenlo d'esta ordem religiosa, não devemos dei- xar de mencionar uma circumslancia interessante. E' sabido que o porco eslá sujeito á lepra, c que a carne d'este animal comida com excesso a pôde pro- duzir também : pois n'aquelle lempo começou o porco a ser considerado como o animal symbolico de Santo António. Uma praga conservada ainda no voca- bulário das ultimas camadas populares no tempo de Rabelais, que a consigna nos seus escriptos, dispensar-nos-ha de provar que o fogo de Santo António linha uma origem infame. A ralé do povo e Rabelais diziam ainda no século XVI : Que le feu Saint Antoine tous arde le boyau culier ! Imprecação sór- dida, que se encontra tantas vezes nas obras d'estc escriptor.

Houve ainda muitas recrudescencias memoráveis d'esia impureza nos an- ãos de 104.3 c 1089. A ultima foi a de 11. 30, no reinado de Luiz vi. A esle respeito diz Dubreul :

«Uma exiranha enfermidade lavrou pela cidade de Paris e iogares cir- cumvisinhos, á qual o vulgo chamava [ogo sagrado, ou mal dos ardentes, por causa da violência interior d'esle coníagio, que queimava as entranhas. do doente no excesso de um ardor continuo, cuja causa os médicos desconheciam, não podendo por isso dar-llie remédio.»

Não leve Santo António o privilegio exclusivo das invocações, preces e ollerendas dos enfermos pela cura do terrível contagio. Santa Genoveva, a pa- droeira de Paris, e São Marcollo collaboraram, segundo parece, para fazerem cessar a peste. Desde esta épocha, a capella da Santa em Paris foi transfor- mada em egreja com o titulo de Santa Genotena dos Ardentes, que conservou por muito lempo, mesmo depois do flagello ficar apenas reduzido a alguns ca- sos isolados. Notaremos, no eniianio, que os primeiros atacados da syphilis no século XV .seguiram naturalmente o caminho d'esia anliga egreja procurando n'ella os milagres referidos pela tradicção. Assim, os novos devotos de Santa denoveva confe.s.savam-se herdeiros directos mal dos ardentes, e pela mesma lei hereditária, os outros santos, como Santo António, S. Magin e S. Job, in- vocados desde tempos immcmoriaes na cura das enfermidades leprosas e sar-

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nosas, conservaram as suas afli'i!)uit:ões a respeito fia enfermidade venérea pro- priamente dita, que não era nova para elles.

A partir, porém, do século xii até á apparição do mal de Nápoles, todas as enfermidades vergonhosas, nascidas de commercio impudico ou aggravadas por esse commercio, estavam absorvidas pela medoniia hydra da lepra, que se alastrava por toda a parte, multiplicando-se sob as formas as mais extravagan- tes. A lepra do século xn, tivesse ou não origem venérea, devia principal- mente á prostituição os progressos assustadores que teve n'aquella épocba, e que todos os governos trataram de atalhar por meio de medidas análogas de po- licia e salubridade. Não rcceiamos alDrmar que o desleixo ou suppressâo de si- milhantes medidas produziu a syphilis do século xv.

Do silencio dos annaes médicos por espaço de meio século não devemos inferir que a lepra havia desapparecido da Europa até ao século xi, em que a vemos lavrar novamente com grande intensidade. A historia da vida privada na Edade-Media, seria um monumento irrecusável da existência inimterrupta da elephantiasis, se os escriptores ecclesiasticos não ministrassem abundantes da- dos que vêem confirmar este facto. Os cartórios das egrejas, conventos e mos- teiros fazem repetida menção dos leprosos. Gregório de Tours diz que elles ti- nham em Paris uma espécie de asylo em que limpavam o corpo e curavam as chagas. O papa S. Gregório falia de um leproso, a quem o mal havia desfigu- rado: que))í ile»AÍs cuíiieribus morbus elepliantinus defoédaverat. N'outro logar diz também que dois frades contrahirara a cruel enfermidade, a qual a tal ponto os corrompeu, que os membros lhes cabiam de podridão. Ao século viu, Nico- lau, abbade de Corbia, mandou construir uma enfermaria para leprosos, o que prova que não era pequeno o numero d'elles. .A lei de Rothario, rei dos lom- bardos, datada do anno de 630, é a base de todas as leis sobre este assumpto.

Por toda a parle o leproso era separado do seio da sociedade, que o con- siderava comii morto, e se a miséria o obrigava a viver de esmolas, não ousava approximar-.se de ninguém, e annunciava a sua presença com o som de uma matraca.

Apesar d'estas precauções legislativas, os leprosos conseguiam por vezes occultar a horrivel enfermidade e contrahiam matrimonio com pessoas sãs. D'a- qui a capitular de Pepino para a pronipla e immediata dissolução d'esles casa- mentos. Tem a data de 7137.

Outra capitular de Carlos Magno em 789 prohibe aos leprosos, sob penas scverisssimas, o frequentarem a companhia das pessoas sãs.

Compreiíende-se que as relações sexuaes deviam ser o mais perigoso au- xiliar do contagio, que não se propagava extraordinariamente, graças ao hor- ror geral que inspirava a enfermidade e s(d)re tudo á intervenção preventiva da policia municipal.

(]omo tivemos occasião de, observar, a influencia ecclesiastica era a que maior acção exercia sobre os costumes. A penitencia era ás vezes uma espécie de regimen bygienico, e a conns.são subsliluia as consultas medicas. O sacer- dote occupava-se da saúde pbysica e moral dos lieis, e não os mantinha geral- mente faltando no bom caminho da vida honesta, senão com o temor dos ma-

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les horríveis que Deus mandava como castigo e como seilo da sua divina, co- leraaos libertinos e infames.

E' uma cousa perfeitamente averiguada que as epidemias coincidiam sempre com os tempos de maior corrupção social, e que as desordens dos cos- tumes públicos traziam comsigo as da economia sanitária. As classes morigera- das viam-sc com espanto accommeltidas dos males impuros, que deviam ser endémicos entre a immensa multidão de vagabundos, mendigos, libertinos c prostitutas, tanto das que vagueavam pelos campos cm cata de freguezes, como das que estanciavam nos bordeis mais Ínfimos. Nesta grande massa de gente miserável e perdida, era onde o virus venéreo deixava a sua funesta peçonha, os seus symptomas mais característicos e as suas mais horríveis metamorpho- ses. Caso extranbo! Nunca um physico, ou medico, havia penetrado nos im- mundos albergues d'esta escoria humana para estudar as enfermidades espan- tosas que alli fermentavam, produzindo as variedades mais monstruosas, devo- rando-se umas ás outras! . . . Felizmente os miseráveis que se entregavam a esta vida de infâmias e de opprobrios, ligados peia mais odiosa confraternidade, ja- mais se punham em contacto com a população e honesta, excepto em épo- chas de crises e perturbações sociaes, depois das quaes o rio impuro voltava ao leito immundo, deixando ao tempo, á i-eligião e á policia o cuidado de apagar da sociedade bem morigerada as seus fataes vestígios.

Foi assim que a lepra se precipitou de súbito sobre todo o corpo social, como uma torrente que despedaça os diques, e tel-o-bia completamente ense- nenado, se a prudência e a energia dos poderes públicos não se apressassem a oppôr uma forte barreira á invasão do tlagello. As cruzadas tinham por assim dizer revolvido todo o lodo da sociedade, e misturado na mais extranha con- fusão a nobreza com o povo. Os regulamentos policiaes nada puderam contra o choque tremendo d'esse exercito de peregrinos que iam ao Oriente morrer ou fazer fortuna. A prostituição mais sórdida gangrenou aquellas hordas de gente indisciplinada. No regresso, depois das suas -aventuras na Terra Santa, todos os cruzados vinham mais ou menos suspeitos de lepra. Leprosos verdes, uns; leprosos brancos, outros, quasi todos elles traziam comsigo o amargo fructo da prostituição oriental. E' permittido alfirmar-se que n'aquella épociía a infecção ver)erea não era mais do que uma das formas da lepra.

Tornou-se mister então submetter os ieprxisos a uma rigorosa policia de sanidade, que três séculos mais tarde foi preciso renovar contra o venéreo, e que tinha por fim atalhar a marcha do llagello. Do mesmo modo que determi- nava o código de Rothario, o leproso ficava tido por morto desde o momento em que entrava na enfermaria, e segundo esta ficção legal faziam-se-lhe exorcis- mos e funeraes. O sacerdote lançava-lhe por três vezes terra do cemitério na cabeça, dizendo-lhe n'essa occasião estas lúgubres palavras:

«Guarda-te de entrar n'oufra casa que nãa seja o teu albergue. Quando faltares com alguém, coUoca-te contra o vento. Quando pedires esmola toca a tua matraca. Nunca te aliastes do teu albergue sem levares a libré de leproso. Não bebas agua em poço ou fonte em que outro beba. Não ponhas a mão nem um dedo sequer cm silios públicos, sem que tenhas luvas.»

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Era-lhe igualmente proliibido anelar descalço, passar cin ruas cslrcilas, cuspir para o ar, encostar-se ás parcJcs, ás aiTores ou a (|ual(iuer cousa que encontrasse no seu caminho, dormir á beira das estradas, ele, etc. Se mor- ria, nem sequer linha sepultura junto dos iieis deluntos; os seus companheiros de desgra(.'a eram obrigados a enterral-o no cemitério da enfermaria. IVunca mais podia, ainda mesmo que sarasse, enlrar no convívio dos outros homens, ou viver no interior das cidades sob o regimen da vida commum.

Havia, no emtanto, muitos graus na enfermidade, que não era absoluta- mente incurável, nem se manifestava sempre por signaes apparentes; mas, como ílagellava de preferencia as classes pobres, nem os médicos pensavam em cural-a, nem os doentes em tractar-se. Os desgraçados que se viaiu acom- mettidos, ou por nascimento ou por contagio, consideravam-se como victimas destinadas a moi-rer do (lagello, entregavam-se a todos os csti'agos da enfír- midade, que por falia de tratamento se exacerbava a ponto de desti-uir lodos os órgãos vilães.

A's vezes, o mal permanecia estacionário, e mesmo quando o principio mórbido subsistia no individuo, os eITeitos ficavam paralysados ou adormecidos em consequência de uma boa constituição, ou de qualquer outra causa inapre- ciável. O commercio com os leprosos evitou-se muito mais peio horror que estes desgraçados causavam, do que pelo rigor da lei que os tinha separado dos sàos sob pena de morte.

Em compensação, porém, os leprosos communicavam livremente uns com os outros, tinham as suas mulheres, os seus filhos e o seu lar domestico. Nào se julgavam extranhos a nenhum dos sentimentos que impellem o homem a reproduzir-se, e assim se ia perpetuando a sua raça no meio de uma população que fugia da sua vista e mais ainda do seu contado. Eis o motivo porque a lepra ia passando de geração em geração, infestando as pobres creanças no ventre materno.

O que valia era não se multiplicarem os leprosos, como era de esperar, porque o gérmen, de morte que traziam comsigo dizimava-os sem cessar, de- pois de os haver convertido em cadáveres ambulantes. O tillio de um leproso era ordinariamente mais leproso (]ue o pae, e o mal assim transmitlido tomava novas forças. A familia mais numerosa extinguia-se d'este modo no espaço de um século. Eis o motivo porque a lepra dcsapparcceu quasi completamente com os leprosos ao cabo de alguns séculos, ainda que a maior parte delles fos- sem de temperamento muito ardente e exlremamente aptos para .se i'eproduzi- rera.

O caracter mais geral da Ityira era uma erupção granulosa por tudo o corpo, e especialmente na cara. Os grânulos que sem cessar se renovavam dis- linguiam-se pela variedade das formas c cores : uns, duros e scccos, outros molles e purulentos, inteiros ou fendidos, brancos, roxos, amarellos ou verdes, todos elles repugnantes á vista c ao olfacto. Relativamente aos signaes unifor- mes da enfermidade, o celebre Guy de Chauliac enumera seis principaes, que Joubert define do seguinte modo na sua Grande Çirunjia, no capitulo que se inscreve Ladrerie:

BUTORIA DA PKOSTnmçÃO. TuMO U— FoLHA 28.

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«Redondez dos olhos e das orellias, depilação e luberosidade das sobran- celhas, dilalayão externa do nariz com aperto interno das fossas nasaes, feal- dade dos lábios, voz gangosa, hálito e cheiro de todo o corpo pestilentc, olhar fixo e horrível.»

Guy de Chauliac, que vivia no século xiv, poude observar muitos indiví- duos acommeltidos, o que não succedeu a Joubert, o qual escrevia sobre este assumpto em fins do século xiv, quando a lepra não existia senão de nome.

Os signaes equívocos da lepra eram dezeseis :

«kO primeiro é dureza e tuberosidade da carne, especialmente nas articu- lações e extremidades; o segundo, côr tenebrosa de morpheia; o terceiro, de- pilação c entumescencia das sobrancelhas; o quarto consumpção dos músculos; o quinto, insensibilidade, estupor c adormecimento das extremidades; o sexto, herpes e ulcerações no corpo: o sétimo, grânulos debaixo da língua; oitavo, ardor e picadas como de alfinete no corpo; nono, aspereza da pelle exposta ao ar, que mostra o aspecto de uma ave depennada; decimo, quando a pelle se molha, ])arece untada; undécimo, ausência quasi constante de febre; duodé- cimo, os doentes tornam-se astutos, mentirosos, coléricos, provocadores; de- cimo terceiro, teem o somno profundo e pesado; decimo quarto, pulso débil; decimo quinto, sangue negro ou muito escuro, ás vezes còr de chumbo ou cin- zento; decimo sexto, urina livida, branca, sólida e ás vezes cinzenta.»

Veremos mais adiante que estes symptomas são quasi idênticos aos do mal venéreo, que não foi senão um renascimento da lepra, sob a influencia das guerras de Itália.

A lepra tinha ainda muitos outros caracteres particulares, determinados pelas influencias locaes e climatéricas. Por exemplo, o mal dos o.rdentes, que havia degenerado n'uma gonorrhéa virulenta, provinha ainda da copula com um leproso. N'esta doença, que chamavam ardor, incêndio, queimadura (em in- glez, brenning,) atacados os orgãc^s genitaes de erysipelas, ulcerações, flogo- sis, etc, etc, o enfermo sentia dores cruéis quando urinava. Um illustre me- dico do século XIII, chamado Theodorico, diz textualmente que «todo aquelle que tem copula com mulher que lenha conhecido leproso, contrahe um mal maw» (mauvaix mal.)

N'oulro tractado de cirurgia, attribuido a Rogério Bacon, que escrevia pela mesma épocha, encontra-se uma descripção dos males horríveis que podiam ori- ginar-se de uma cohabitação d'esta espécie.

Muitos médicos inglezes contemporâneos estudaram esta espécie de afife- cção venérea, que reinava em Londres nos séculos xiii c xiv, como teremos occasião de referir, quando fallarmos da Inglaterra. Um d'estes médicos, João de Gaddesden, consagra um capitulo da sua Prac/ica medicina, seu Rosa angli- cana, aos accidenlcs que resultam da cahabitação impura dos leprosos e lepro- sas:

«Quem cohabita com mulher que haja tido copula com leproso, sente pi- cadas entre a pelle e a carne, c ás vezes essas picadas manifestam-se por todo o corpo.»

Os médicos inglezes Ibrnecein-nos a respeito da lepra venérea maior nu-

DA PUOSTlTtlIÇÃO 219

mero ilc dados que os italianos c francezes, porque as leis contra os leprosos eram muito menos rigorosas na Inglaterra que nas outras nações ; assim, os casos do contagio leproso foram alli mais communs e graves que nos demais paizcs.

Graças ás medidas enérgicas e geraes adoptadas em toda a Europa, com excepção talvez da Inglaterra, para atalhar os progressos da lepra e das enfer- midades que d'ella provinham, poude conservar-sc indemne do contagio a maior parte da população. Ao tempo de Malheus Paris, que escreveu ahi por melados do século xiii havia na Europa mais de dezenove gafarias, ou asylos de leprosos. Dois séculos mais tarde, as gafarias de França cahiam em ruinas, por falta de enfermos. Foi entáo que alguns parasitas se apoderaram d'ellas, valendo-se da supprcssão dos titulos de fundação e dos contractos de aluguel, de modo que pela ordenança de loi3 Francisco i provocou quasi inutilmente a acquisição d'esfes titulos, vendidos ou subfrahidos.

Resulta d'aqui que no decurso de dois ou três séculos a grande lepra, ou elephantiasis, havia quasi desapparecido com os infelizes atacados, que não po- deram pcrpetuar-se por mais de três ou quatro gerações.

Quanto á pequena lepra e suas ramificações, apesar de se occullarem sempre sob apparencias menos inquietadoras, foram enfraquecendo nos seus symptomas externos, muito embora o gérmen da enfermidade se manifestasse vivaz n'um sangue que o houvesse recebidn do nascimento ou por transmis- são contagiosa.

A sociedade, que tinha repellido do seu seio os leprosos, viu-se novamente invadida por elles, ou por seus filhos, e a lepra perdendo alguns dos seus sym- ptomas horríveis, continuou a minar surdamente a salubridade publica. Por meio da prostituição esta infame enfermidade introduziu-se novamente nas clas- ses inferiores, e conseguiu insinuar-se até nas elevadas, graças ás suas secre- tas metamorphoses. Chegamos mesmo a crer que o mal de IWipoles, que não era mais do que uma resurreição da lepra, combinada com outros males, andou por muito tempo em silencio pelos antigos mysterios da libertinagem, antes de se apresentar á luz do dia em toda a Europa, sob o nome de mal venéreo.

falíamos aqui do mal que havia infectado os lupanares de Londres, a tal ponto que foi preciso em 1 i30 fazer leis severas, prohibindo, sob pena de morte, dar entrada n'estes lupanares a mulheres atacadas d'este mal, e man- dando vigiar de perto as que estivessem em mau estado. Infirmitas nefanda, é o nome com que as leis sanitárias designavam o contagio, segundo lemos no tomo XXX das Tranisacçõe.'} Phílosophicas, de Guilherme Becketl.

Ouçamos agora o testemunho de alguns médicos, no sentido de provar que as enfermidades venéreas não foram somente contemporâneas do descobri- mento da America:

Guilherme de Salicef, medico- de Placencia no século .\in: Na sua Cirurgia, cap. De apostemate in inguinihus, diz este homem de seieneia «que o bubão, ou abcesso dos ganglios se forma, quando o homem tem ama corru- pção no membro em connequencia de ter tido copula com uma mulher suja.»

O mesmo clinico trata n'outro logar das pústulas brancas e vermelhas

■}'20 HISTdlUA

(lo membro, iliis gielas que n"elle se produzem, ou em redor do prepueio, o (jue provêem, diz el!c, espressamente «do commcrcio com mulher suja, ou com rameira». Lanfranc, famoso medico-cirurgião de Milão, que veio cstabelecer-sc eui Paris em 1495, desenvolve a mesma doutrina sobre as enfermidades dos órgãos genilaes, no seu livro celebre e de grande uuctoridade intitulado: 7'í'rt- clira, aeu af-s romplet.a chirurgiu':

«As ulceras do membro, diz elle, são occasionadas por humores acres, (jue escoriam o sitio em que se detèem, ou também pela copula com mulher suja, que tenha conhecido recentemente um homem atacado da mesma enfer- midade.»

Bernardo Gordon, medico muito celebre da faculdade de Montpellier, e que viveu depois de Lanfranc : Este clinico professa as mesmas opiniões a respeito das enfermidades de (|ue temos fallado, e no capitulo De passionibus virga; da sua obra intitulada LiHum medicniw, expressa-se nos seguintes termos :

«Taes enfermidades são numerosas. Ha os abcessos, as ulceras, os can- cros, as inchações, a dôr, as comichões, etc. As causas são internas ou exter- nas; externas, como por exemplo, uma queda, um golpe, a conjun,c(;ão carnal com uma nndher com a madre impura, cheia de pus, ou de virus, ou de ven- losidades, ou de matérias coi rompidas. Mas, se a causa é interna, estas enfer- midades produzem-se então por alguns humores corrompidos e malignos, que descem ao membro e ás partes inferiores.»

João Gaddesden, medico inglez da universidade de Oxford; Guy de Chau- liac, da universidade de Montpellier; Nale.rio de Tarenta, da mesma universi- dade, c muitos outros doutores, que fizeram as suas observações cm ditíeren- tes paizes durante o século xvi, são unaniriies em reconhecer que o commer- cio impuro produzia enfermidades virulentas, que eram contagiosas, e que de- viam ser venéreas.

Em todas estas enfermidades a lepra linha uma acção muito importante antes e depois da apparição do mnl de Nápoles. Os clinicos que estudaram a lepra, c deram publicidade a estes estudos, são unanimes em declarar que se communicava muito mais pelas relações sexuaes do que por qualquer outro meio. Estas relações eram raríssimas entre as pessoas sãs c as leprosas, mas. a imprudência e a libertinagem produziam-nasás vezes com grave damno da pes- soa sã, (|ue por sou iurno ficava afiecíada da lepra.

liernardo Gordon, por nós anteriormente citado, rcfert; que certa con- dessa atacada pela lepra foi a Montpellier, onde elle a traclou d'esta enfermi- dade. Um esludante de medicina, a quem o doutor collocára junto da enferma para Iractar d'elia, teve a desgraça de a requestar e de merecer os seus favo- res. A ccmdessa ficou gravida, mas o pobre do bacharel ficou leproso. (Lilhim medicinai, parle I, cap. 22.)

Muitos fados análogos se encontram nos escriptos de Forcstus Paulonicr,. Pare e Fcrnel, que escreveram sobre a elcphanliasis, seguindo o con.senso una- nime das escolas de medicina e cirurgia.

João Menardi de berrara resume nos seguintes lermos a questão, em

DA l-ftOSTITUIÇAO

221

princípios do século xvi, sem dar conta <lc ([110 confunde a lepra e as enfermi- dades venéreas :

«Os que têeui, diz clle nas suas Epislohe medicinales, pul)licadas em |.')2;3, commercio com uma mulher, que pouco anies se entregou nos braços de um leproso, de modo que conserve ainda o sémen na vagina, apanham umas vezes a lepra, e outras vezes enfermidades dilíerentes, mais ou monos graves, segundo as suas disposições.»

Em todas estas citações reproduzimos a versão que Luiz, traductor e annotador de Astruc, para não alterar o texto do sábio auclor do tractado Ik inorbU- venereis julgou dever adoptar no interesse do seu systema. Em todo o caso, estas mesmas citações parecem-nos muitas vezes contrarias ao referido systema. Examinando, por exemplo, esta passagem de Menardi, é impossível não se reconhecerem as doenças venéreas n'essas differenles enjermidadea, maif, ou menos graves, produzidas por uma copula inprudente com uma pessoa mais ou menos leprosa.

De resto, um commercio d'esta natureza que implicaria sem remissão a pena de morte para o leproso, tinha sido até julgado impossível pelo legislador, que não o previu em parte alguma do direito criminal.

O direito consuetudinário regula tão somente o que diz respeito ás gafa- rias. Segundo o uso de Boulenois, quando se descobria depois da morte de um homem que tinha sido leproso e que tinha vivido apesar d'lsso na companhia dos sãos, estes deviam ser considerados como seus cúmplices, e todas as rezes de unha fendida, pertencentes aos habitantes da povoação em que o leproso vivera, eram confiscadas em proveito do senhor feudal. Cada parochia era d'este modo responsável pelos seus leprosos, e tinha obrigação de os sustentar, depois de lhes haver vestido uma espécie de libré, e de os ter encerrado em asylos, onde havia um leito, uma meza, e alguns utensílios de madeira e ferro. (Traité de la police, por Delamarre, tit, I, pag. 636.)

Os leprosos, que consideravam a sua enfermidade como uma morte an- tecipada, procuravam incessantemente voltar ao seio da sociedade, mas todas as suas tentativas eram repellidas com horror. Todas as vezes que a incúria da policia urbana permittla a estes desgraçados dissimular a sua triste condi- ção, havia nas cidades um alvoroto indiscrlptivel, que obrigava immedlata- mente os magistrados a restaurar em todo o seu rigor as antigas ordenações.

Em 1371, o preboste de Paris publicou o real decreto que lhe havia di- rigido Carlos v, em virtude do qual todos os leprosos eram obrigados a aban- donar a capital no praso de quinze dias, sob penas gravíssimas, tanto corpo- raes, como pecuniárias.

Em 1388, a mesma auctorldade prohibiu aos leprosos a entrada na ci- dade de Paris, sem expressa licença por ella firmada.

Em 1394 e 1 i02 eguaes prohibições se fizeram «sob pena de serem en- tregues ao carrasco e seus ajudantes, para serem açoitados, e depois de um mez de prisão desterrados do reino.»

Não obstante estes rigores, as disposições da policia eram constantemente illudidas, por aquelle tempo, e a população ia perdendo o seu antigo hor-

322 HISTORIA

ror pelos leprosos, que viviam no meio delia, como se não estivessem ata- cados de um mal contagioso, e isto porque a lepra diminuía notavelmente, ou peio menos os seus symptomas não eram tão manifestos.

O parlamento de Pafis, em II de julho de I4'>3, promulgou uma sen- tença contra um leproso, que havia casado com uma mulher sã. Esta mulher em quem, segundo parece, a lepra não se havia ainda manifestado, foi se- parada do marido, e prohihiu-se-lhe, sob pena de pelourinho e desterro, com- municar com elle. Consentiram-lhe, porém, que vivesse na cidade, com a con- dição de abandonar completamente a venda de fructas a que se entregava, pelo receio de que podesse coramunicar ao povo o contagio da lepra.

Esta sentença é muito significativa, por isso que prova que os regula- mentos da lepra eram mal observados no século xv, e ao mesmo tempo que os leprosos podiam viver fora das gafarias. Xs consequências doesta relaxa- ção da antiga c salutar severidade deviam ser a reproducção da lepra e das en- fermidades d'ella provenienles.

EtTectivamente, poucos annos antes da terrível irrupção do mal venéreo em Itália e França, os leprosos tinham multiplicado e reacccndido o veneno da elephantiasis, e a saúde publica estava solfrendo uma invasão violenta d'este mal, por meio da prostituição, á qual os leprosos de ambos os sexos levaram o seu funesto concurso. Por uma ordenação do preboste de Paris, datada de 1d de abril de I48S, previnem-se «todas as pessoas atacadas do mal abominá- vel, perigosíssimo e contagioso da lepra, de que tèem de sahir de Paris antes da Paschoa, retirando-se para as suas enfermarias em seguida á publicação da dita deliberação do preboste, sob pena de um mez de prisão a pão e agua, e perda de seus cavallos e demais bens, além de um castigo corporal arbitrário; permittindo-se-lhes, no emianto que fizessem administrar o que lhes pertencia por meio de seus crea_dos ou creadas, no caso que Innlo uns como outras es- tivessem em boas condições de saúde.»

R' claro que estes leprosos, que tinham cavallos e serventuários em bom estado de saúde, deviam fazer uma espanto.sa dilfusão da lepra pela parte da população que frequentavam, e esta lepra surda, dei\era-nos assim dizer, trans- mittida assim de individuo para individuo por meio dos prazeres venéreos, cor- rompia piíysicamente aquillo mesmo que o vicio havia corrompido cora a sua impureza ou mancha moral.

Não era a lepra propriamente dita; era o resultado funesto da incon- tinência e devassidão dos bord;^is uma enfermidade horrível, que a prostitui- ção trazia comsigo havia muito, e que tinha constantemente acalentado no) seu seio impuro. Era o mal venéreo, que os francezes denominaram desde o pri- meiro momento da sua apparição mal de Nápoles, eque os italianos, ou por es- pirito de contradicção, ou por um acto Je desforço, denominaram mal jrancez.

O filho da lepra, herdeiro em linha recta das suas funestas tradicções e das suas impuras genealogias, não devia ser menos fatal á humanidade, do que a sua horrível progenitora. Fosse qual fosse o seu berço, nascesse nos im- mundos bordeis de Nápoles ou nas casernas da soldadesca aventureira, vémol-o dentro em pouco alastrar-se por toda a Europa, como um llagello sinistro, que

DA PRosTiiuigSn 223

era ao mesmo tempo uma terrível punição de todas as impurezas e aberrações sensuacs.

Novo Proteu, assume todas as fornias c maiiiíesta-se por todos os modos, atacando a fonte da vida, e empeçonliando-a com o seu viver hediondo, que põe nas gerações futuras um stigma de maldiçSo. A sciencia confessa-se ven- cida, depois dos mais pertinazes esforços; os médicos mais eminentes nâo se atrevem a combatel-o, e evilam-no, como se lhe conhecessem uma força so- brenatural. Mais terrivel do que os seus predecessores, o novo flagello invade todos os povos e proj)aga-se em todos os climas. Não ha repressões policiaes, que o detenham, nem medidas sanitárias que o destruam.

Filho de todas as impurezas dos séculos anteriores, o venéreo devia pu- nil-os severamente e oppôr um dique terrivel á espantosa corrupção da raça humana. Era como que um protesto da natureza contra lodos os extravios e aberrações da luxuria, accumulados em tantos séculos, e que sem clle, chega- ria a corromper toda a humanidade.

CAPITULO XX

SUMMARIO

Nomes sclentificosda syphills: morbus iioous, peslUenlialis scorra, pudendaíira.— Henuminações popu- lares que Ib.i foram dadas.— Os saiivos. qm; tinham a poder dr a curar.— Cuincrdeocia du f.M apparecimenio m Itália com a expadi^So de Carlos viii Qual foi a data precisa d'este apparecimen'o?— Ucsacordo a este reípt-lto eníre te médicos e os histDríadores.— Tradicfões relativaí ã sua uriíii^m.- .^s cuujuueçõc» dos planetas.— O Tjnho envcnonado codi u .^angue dos leprosos.- Caraehumana. A bestialidade castigada por si própria.— .4 ei;ua e os ma- cacos— A syphilis da Eurjpa dío provém da America Os médicos recusam a priocinio tratar d'e.sta enfermi- dade — Menardi e nutras notabilidades medicas sustentam que o mal venéreo procede da lepra da prustituição.

uLGAJios cslarsufficientemenít^ dciiionslrado tjue o mal venéreo oão precisou de esperar pela descoberta da America para se introdu- zir na Europa, e fazer n'esta parte du iiiiiiidu os mais assolado- res progresso:^. Muitos factos c raciocínios aprcscntáiuus que comprovam a grande antiguidade d'csta cruel doenya, cujos vestí- gios se encontram atravez dos tempos, umas vez<'s combinada com outras en- fermidades, outras, e principalmente, com a lepra, da qual recebeu uma pliysio- nouiia completamente no\a. Em toJos os jiaizes foi sempre a prostitui^-ão o mais enérgico auxiliar d'este flagello, que os poderes públicos procuravam conter com lima espécie de cordão sanitário. Quando este cordão se quebrou peia incúria nys governos, o mal recebeu novos alentos, e voltou novamente a estabelecer os seus arraiaes nos centros da prostituição legal.

Eis o motivo porque a lepra venérea appareceu ao mesmo tempo e com egual violência em França, Itália, Hospanha, Vliemanha e Inglaterra, no mo- mento historicu em que Christovam Colomb i voltava da sua primeira viagem ás terras do Novo Mundo. Não temos diUicuIdade alguma cm sustentar que o mal venéreo, ou pelo menos um mal análogo, foi conbecido na Europa, desdeo anno de 1483; que este mal, ou outro da mesma origem e da mesma Índole existia muito antes da descoberta das .Antilhas, embora não produzisse os mes- mos accidentes que nas latitudes temperadas; c que a expedição de Carlos riu à Itália contribuirá talvez para propagar e exacerbar esta odiosa enfermidade. No euitanto, apesar da França e a Itália se cxprobarem mutuamente pela priori- dade da infecção, nada tiveram que invejar uma à outra a este respeito, e tro- caram apenas as pestes que possuíam, e que tinham importado de outros po- vus. Finalmente, desde que logrou pruvar-se o apparecimento do mal venéreo, a enfermidade mudou frequentemente de symptomas, de caracter e de nomes. BarojuA da PaosTituicÃo. Touo n— Volha 13.

iíé HISTORIA

Eiilrc estes, que foram numerosas, temos a distinguir os populares áot scientifieos. Os últimos eram quasi sempre latinos, e encontram-se em todos os livros e formulários de medicina, mas foram successi vãmente desappare- cendo para cederem o logar ao que Frascator inventou para as necessidades da sua fabula poética, na qual o pastor Sjpbilis é o primeiro atacado d'esta hor- renda enfermidade, em castigo de haver offendidõ os deuses.

A maior parte dos médicos italianos ou allemães, que escreveram ahi por fins do século xv sobre o mal novo (morbus noius), sabido da sua antiga obs- curidade pelas guerras da Itália, José Grundbèclí, Carolino Gilini, Mcolau Leo- niccno, António Benivenio, Wendelin Hock de Brackenaw, Estevam Cataneo, etc, serviram-se da denominaçào usual de morbus galllcus (mal [rancei). Coratudo, como se estes bomens de scicncia se desgostassem de admittir na linguagem medica um erro, que era ao mesmo tempo uma calumnia, muitos d'elles inventaram outros nomes, mais dignos da scicncia e menos contrários á verdade bislorica.

Grundbeck, o mais antigo de todos, accrescentou á denominação vulgar de mal francez a periphrase scorra pestilentialis, e a qualificação mentulagra, que quer dizer enfermidade dos membros genitaes. Gaspar Torella, que na sua qualidade de italiano se presava de mestre em latinismos muito superior a um allemão, adoptou o nome de pudeiidagra, enfermidade das partes pudendas. Wendelin Hock preferiu dizer memajra, porque pretendeu descobrir no mal francez a lepra da barba descripta por Pliriio (Hist. uai., lib. xxvii, cap. i). João António Robenel e João Almenar serviram-se da palavra patursa, sem que conhecessem a sua verdadeira significarão, o que nos permitte suppòr que era este o nome genérico da enfermidade na America.

Todas as nações se defendiam da grave responsabilidade de haverem pro- duzido o mal venéreo, e cada qual lhe dava o nome da nação visinha, atlri- buindo a ci^ta o principio ou a origem do mal. Assim, os italianos, os allemães e os inglezes, que aceusavam a França de ler sido o berço do ílagello, deno- mina vam-no maio francese, frantzosen, ou (rantzosichen pochen, e frenchpox. Os francezes despicaram-se immediatamente, chamando-lbe mal napoUtain ; os flamengos e 'js hollandezes, os africanos e os mouros, os portuguezes e os navarros denominavam-no ínoi hespaahol ou castelhano; os orientaes charaa- vam-Ihe mal christão ; os asiáticos, mal português ;. os persas, mal turco; os polacos, mal allemão, e os russos, mal polaco. (Tract. De morbis venerein, de Astruc, lib. I, cap. i.)

Os diversos symptomas da enfermidade derani-lbe lambem ditTerentís nomes^ que recordavam sobre tudo o estado pustuloso, ou canceroso da pellfi dos enfermos. Assim, os hespanboes chamavam-lbe bubas, ou boav; os geno- vezes, maio deVe lovelle; o^ toscanos, maio delle bolle ; os lombardos, maio delle brosulle, por causa das postulas uleerosas e multicores, que se manifes- tavam em todas as partes do corpo nos indivíduos atacados d'esta espécie de peste.

Os francezes chamavam-lhe grosse vérole, para o distinguirem da petite iérole, que desde tfinpos immemoriaes havia sido classificada etitre as enfer-

nA pnosTiTUiç.^o 2^7

rnidades epidemicas, e que menos lemivcl do que a sua irtiià, se parecia com- tudo com ella pela variedade das puslulas e das ulcerações da face. D'aqui o nome genérico de verole, ou variole, formado do latim carius, e o nome anti- quado vau', que significava uma pelie branca e cinzenta, e que se applicava lambem a um dos metacs heráldicos, composto de peças iguaes, tendo a forma de campainhas, dispostas symelricamenle. Prelendia-se que esta disposição das peças do vair tinha certa analogia de aspecto com a pclic pintalgada e fen- dida dos desgraçados enfermos.

Por toda a parte se erguiam clamores aos santos e santas, que se tinham por advogados contra a lepra, e que nos casos afílictivos d'esta doença costu- mavam ser invocados. Estes bemaventurados passaram por consenso unanime a ser os padroeiros das victimas do venéreo, e o que é mais, a darem os seus nomes á tcrrivel enfermidade, que as pobres victimas coilocavam sob a sua ígide tutelar. Deu-se então entre a lepra e o venéreo uma espécie de confra- ternidade, que se manifestou pelos nomes dos santos applicados indistincta- inente ás duas enfermidades, que se chamaram mal de Saint-Main, de S. Job, de S. Roque, e até mesmo de Santa llegina. Bastava que fosse attribuida a qualquer santo uma certa influencia para a cura das chagas e ulceras malignas, e os atacados do mal accudiam aos altares do santo, considerando-se seus en- fermos privilegiados.

-Os médicos e historiadores, que foram os primeiros a escrever acerca da epidemia venérea dos últimos annos do século xv, estão quasi de accordo so- bre este ponto: —que o mal venéreo não se declarou manifestamente senão em seguida á expedição de Nápoles, mas quasi todos referem ao anno de 1494 esta expedição, que se realisou apenas em i49.j. Este equivoco, porém, não é um erro histórico, porque antes de Carlos ix o anno começava na Paschoa, se- gundo o calendário de França.

Alguns escriptores que fizeram uma confrontação de époclias entre a in- vasão de Carlos viu em Itália c a apparição da grosse vérole na Europa, não hesitaram em referir estes dois factos heterogéneos ao mesmo anno de 1494. Segundo esla opinião, a enfermidade venérea dataria do principio do referido anno, mas o rei de França não entrou em Nápoles senão em de fevereiro de 1495, e como a festa da Poschoa se rcalisava em 19 de abril seguinte, é claro que d'essc dia em diante começava a contnr-se o novo anno.

Seria, portanto, mister para justificar a data de 1 494 apontada pelos mé- dicos e historiadores, que quizeram precisar o momento do apparccimento do flagello, que o chamado mal francez se tivesse manifestado cm Nápoles entre 22 de fevereiro e 19 de abril do anno de 149o.

Ha uma certa diíficuldade em admiltir que as auctoridadcs medicas c his- tóricas que dão ao apparccimento do flagello a data de 1494 se enganassem n'um anno. E' bem pouco provável similhante erro, tractando-se de um facto tão notável e recente. Notaremos ainda que os primeiros a estabelrcerem esta data foram os médicos italianos, c o anno em Itália começava no 1.° de ja- neiro, e não na Paschoa, como cm França.

De todas estas contradicçõcs parece averiguada a existência de um accordo

'2'2S liiSTiiklA

intii' os ilaliaiios, tom o fim de accusarein a aveiitiuviía expedição dos fratice- zcs á Itália <le um mal, que cila talvez desenvolvesse e aggi-avasse, mas qiie em verdade não levou comsigo.

'<0s médicos <lo nosso tempo, escrevia em 1497 Nicolau Leonieeno, no seu traetado De. morho gallico, não podcram ainda dar o verdadeiro nome a esla enfermidade; eoratudo chamam-lhe commummente mal francez, ou seja por pretenderem que o contagio se deve á vinda d'aquelles estrangeiros á Itália, ou então porque a Itália foi ao mesmo tempo atacada pelo exercito francez e por esta enfermidade. »

Gaspar Torella, no seu traetado De doíore in pudendragra, é mais ex- plicito ainda :

.. «Esla enfermidade, diz elle, foi descoberta quando os francezes entraram á mão armada em Ilalia, e sobre tudo depois que se apoderaram de Nápoles e ulli permaneceram ; por esta r izão os italianos lhe deram o nome de viaí francez, imaginando que era natural d'aquelle povo.».

Estcvam Caíanco, no seu livro De morbo gaflico, que viu a luz da pu- blicidade em loOo, limita-se a recordar o mesmo facto:

«O anno de 1494 do nascimento do Salvador, diz elle, na occasião em que Carlos viu, rei de França se apoderou do reino de Nápoles, c sob o pon- tificado de Alexandre vi, viu nascer em Itilia uma espantosa enfermidade, que jamais se havia visto nos séculos precedentes, e que era desconhecida em todo o mundo.»

João de Viço faz coincidir lambem a passagem de Carlos viii pela Itá- lia, com a súbita invasão d'esta enfermidade, que nunca fora observada ante- riormente.

A antipathia nacional dos italianos pelos vencedores não deixou de ro- bustecer e propagar esta errónea opinião, que se enraizou no povo com injus- tos rescnlimentos. Os francezes, pela sua parte, não se apressaram tanto a' queixar-se dos vencidos e a diíTundir a verdade que os justificaria imraediata- menfe, aprcsenfando-os como victimas do mal napolitano, porque os primei- ros auclorcs francezes, que fallaram do contagio, nada disseram a respeito da sua origem, nem apontaram como causa d'elle as delicias de Nápoles conquis- tada por (Carlos viu.

Houve no emianio na Itália e na Allemanha muitos médicos e historia- dores mais imparciaes, qne não vacillaram cm proclamara innocencia dos fran- cezes sobre este ponto, approximando-se d'esto modo da verdade, que nem a seiencia nem a historia deviam dejvar empanar de nuvens. Uns confirmaram a data de I 494, alfribuida á invasão da peste venérea {lues venérea); outros foram mais longe em busca da sua origem, ou dos seus primeiros estragos ; ou- tros ainda, ou menos inslruidos, ou fingindo calculadamente igncirancia, trans- feriram para o armo de Ii96 a primeira invasão da enfermidade, que sup- pozeram importada da Hespanha, c por conseguinte da America.

«No anno da no.ssa salvação de 1496, escrevia cm 1307 António Beni- venio, a(ipare<'cu uma nova enfermidade, não em Itália, como em quasi to- dos os paizcs da Europa. Este contagio, que provinha da Hespanha, propa-

0 4 PRdSTITUIÇÃíl ??'J.

gou-se por toda a parle, primoiramente em Itália, em seguida em França, e depois pelos outros paizes da Europa, atacando uma infinidade de pessoas.*

Aqui temos agora o pobre Carlos viii absolvido da aecusação terrivel, que o fazia, por assim dizer, réu de lesa-Europa ! Os historiadores vêem dVste modo em appoio da justificação dos francezes. António Cocaio Snbclico, que sabia por experiência própria o que era a ijrosse vérole {Elogia, de Paulo Jove) diz cathegoricamentc no seu Compendio histórico, publicado em Veneza, cm 1502:

«Ao mesmo tempo (em 1496) um novo género de enfermidade começou a propagar-se por toda a Itália, desde a primeira invasão que os francezes fi- zeram no anno precedente (liOo), e é provável que por esta razão lhe chamas- sem mal francez, pois, segundo presumo, não prtde ter-se por averiguado d'onde procede esta cruel enfermidade, que nenhum século tinha visto até então.»

Se a data de 1405 tivesse podido ser estabelecida e comprovada, a pro- cedência do mal decerto seria allribuida ao descobrimento da America. Em todo o caso a data em questão piíde evidentemente referir-se á propagação rápida e formidável da epidemia venérea.

Para os sábios, porém, que seguiam cegamente a tradicção popular, era fora de duvida que o mal francez e o mal napolitano haviam precedido a trium- phante expedição de Carlos viii.

«Os francezes, diz sensatamente Francisco Guicciardini, na historia do seu tempo, tendo sido accommettidos d'esta enfermidade, durante a sua perma- nência em Nápoles, e regressando em seguida á sua pátria, propagaram-n'a por toda a Itália. Esla enfermidade, absolutamente nova, ou ignorada até nossos dias no continente europeu, fez tantos estragos por espaço de muitos annos, que deve passar á posteridade como uma das calamidades mais funestas.»

Guicciardini tinha razão attribuindo unicamente ao exercito do rei de França a propagação do mal por toda a Itália. E' claro que este mal se havia arreigado em Nápoles, antes da chegada dos francezes.

Ulrich de Hutten, douto escriptor allemão, que tinha uma triste experiên- cia do contagio venéreo, indica o anno de 1493, como o do começo da epidemia, facto que elle não podia apreciar senão de outiva, por isso que redigia em Mo- guncia em 1519 o seu livro intitulado De morbi gallici curatione.

«No anno de 1493, diz este illustre medico, um mal verdadeiramente pernicioso começou a fazer-se sentir não S(S em França, mas primeiramente eni Nápoles. O nome d'esta cruel enfermidade provém de se haver manifestado no exercito francez, que andava em guerra n'aquelle paiz, sob o commando de Car- los VIU.»

Em seguida refere uma interessante particularidade, que nos explica o mo- tivo porque não existe accordo entre as datas históricas attribuidas á invasão do Dagello :

«Não se fallou d'esta enfermidade, durante dois annos inteiros, a contai- do tempo em que havia principiado.»

Ulrich de Hutten seguia a opinião dos médicos allemães, que considera- vam a enfermidade muito anterior á conquista de Nápoles pelos francezes. As-

230 MISTORJA

sim Wendelin Hoek de Bracknaw, que havia terminado os seus estudos médi- cos na universidade de Bolonha, repete o que ouvira dizer na ítalia a respeito da épocha primitiva do mal napolitano.

«Desde o anno de 149i até ao presente de 'Io02, diz elíe, certa enfer- midade contagiosa, que chamam o mal francez, tem feito bastantes estragos.» N'outro logar, porém, declara o que a este respeito sabiam todos os seus collegas da .\llcmanha :

«Este mal, para fallar com exactidão, começou no anno de 1483 de Nosso Senhor Jesus Christo, em consequência da conjuncção de muitos planetas no mez de outubro do mesmo anno, o que annunciava a corrupção do sangue e da bilis, a confusão de todos os humores e a abundância do humor melancó- lico, tanto nos homens como nas mulheres.»

Os mais hábeis médicos allemães, L. Phrjsius, João Benito, etc, segui- ram o mesmo syslema, e atlribuiram a causa da enfermidade ás revoluções planetárias e às desordens atmosphericas do anno de 1483.

Não foi esta ainda assim a única hypothese, nem a mais inverosimil, a que recorreram os historiadores, para explicar o apparecimento do flagello. N'este ponto seguiam elles a opinião do vulgo, e é de saber que o vulgo, especial- mente em Itália c n'aquplla época, está sempre disposto a attribuir origens ma- ravilhosas a tudo aquillo que não comprehende. O mal franrez, de preferencia a qualquer outro acontecimento, excitou a imaginação dos napolitanos, e pres- tou-se naturalmente ás invenções mais extravagantes, entre as quaes, no em- tanto, não seria impossivcl descobrir algum facto verdadeiro, envolvido em fa- bulas ridículas.

Gabriel Fallope, que escreveu em '1560, muito tempo depois do aconte- cimento que refere, affirma que, por occasião da primeira guerra de Nápoles, uma guarnição hespanhola abandonou alta noite as trincheiras confiadas á sua guarda, dejjois de haver envenenado os poços e de ter aconselhado aos padei- ros italianos que misturassem gesso c cal no pão de munição das tropas fran- cezas. Este pão e a agua envenenada produziram a infecção venérea, segundo a relação do referido Gabriel Fallope.

André Cisalpino de .\rezzo, que foi medico de Clemente viii, pretendia que o envenenamento dos francezes fora devido a outros processos, assegu- rando que testemunhas occulares lhe haviam referido o facto:

«Depois da tomada de Nápoles, os francezes tiveram de sitiar Surama, praça guarnecida por hespanhoes. Estes sahiram da fortaleza durante a noite deixando á disprisição dos sitiados muitos tonneis de excellente vinho do Ve- súvio, em que se havia misturado sangue ministrado pelos leprosos do hospi- tal de S. Lazaro. Os francezes entraram na praça sem a minima resistência, e embriagaram-se com aquelle vinho envenenado. Ficaram logo enfermos, e os symptomas da enfermidade assimilhavam-se aos da lepra.»

A verdade cobre-.se aqui de véus demasiadamente transparentes. Ha ainda outras tradicções, que se alTastam da opinião mais geral e me- nos inverosimil. Fioravanli, nos seus Cnprirrl meilirinali que |)iiblicou em 1564, refere uma singular historia, a qual, segundo affirma, lhe fora minis-

DA rRUSTIlLilÇÃO 234

frada por um certo Paschoal GibiloUa, de Nápoles, seu conlemporaoco. Durante aquella faniOvSa expedição de Mapoles, um dos factores da enfermidade, os vi- vandeiros napolitanos ({ue abasteciam os exércitos tiveram falta de rezes, e lem- braram-se que infernal idéa! de empregar a carne dos mortos como se fora de vacca, ou de carneiro. Os desgraçados que comeram carne humana, que a morte e a corrupção haviam envenenado, foram logo atacados por uma enfermidade, que não era senão a syphilis.

Fioravanti não nos diz qual foi o thealro d'aquellas espantosas scenas de anlropophagia, mas como na sua narração apresenta os hespanhoes em presen- ça dos francezes, é de presumir que este facto isolado se desse por occasião do silio de alguma pequena praça da Calábria, occupada pelos hespanhoes. E' sa- bido que toda a carne corrompida pôde produzir efíeitos análogos aos do enve- nenamento, mas o que realmente não pôde admiltir-se é a idéa de Fioravanti de que os animaes por comerem outros da sua espécie fiquem sujeitos a uma enfermidade análoga ao mal napolitano. Era uma crença extremamente arrei- gada que o uso de carne humana causava enfermidades agudas, epidemicas e pestilenciaes.

O illustre philosopho Francisco Bacon, barão de Veruiam, apesar de me- dico distinctissimo, não hesitou em repetir, na sua llisloria iSatural, a horrí- vel narração de Fioravanti :

«Os francezes, diz elle, cujo nome tomou o mal napolilaiw, referem que havia no cerco de Nápoles fornecedores tão malvados, que vendiam carne de homens mortos na Mauritânia, e que se atlrihuia a origem da enfermidade a fào horrível alimento. Parece bastante verosímil este facto, porque os antropo- phagos das costas occidenlaes são muito propensos á varíola.»

Procurar na anlropophagia a origem do mal de i\apoles não era ainda o cumulo do horror attribuído ás causas d'este odioso contagio, que se julgava commummente como um fructo do peccado e da maldição. Dois ílluslres médi- cos do século XVI, que não haviam observado mais do que os effeitos de- crescentes do contagio, atiraram-lhe a ultima pedra, procurando demonstrar, com melhor intenção do que êxito, que o mal venéreo devia a sua origem á sodomia e á bestialidade.

«Um santo leigo, refere João Baptista Helmont, no seu Tumidis peslis, querendo a todo o custo descobrir porque motivo este horrível mal havia ap- parecído somente no século passado e não antes, teve um êxtase milagroso, e durante elle uma visão extraordinária. Appareceu-lhe uma égua cheia de tu- mores, por onde o santo homem concluiu que no cerco de Nápoles, em que esta enfermidade appareceu pela primeira vez, algum soldado tivera copula, abominável e-om um animal d'aquella espécie atacado do mesmo contagio, o qual ímmediatamenle, e por eITeíto da justiça divina, infeccionara desgraçada- mente o género humano.»

Mais tarde, em 1706, um medico inglez, João Linder, procurando des- cobrir as causas secretas da syphilis americana, não receiou alTirmar «que este mal tinha a sua origem na sodomia entre os homens e os grandes maca- cos, que são os satyros dos antigos.»

fiS! HISTORIA

E' conveniente notar que em todas as observações dos médicos que pri- meiro estudaram o mal de Nápoles, tanto em Ilalia, como em França e AUe- manha, não st' faz menção alguma da enfermidade, que Christovam Colombo trouxe das Anlillias, a qual cm caso algum jjudia aiitecipar-se a um mal aná- logo, nascido e acdimado na Europa, antes que o descobrimento da America trouxesse os seus amargos fructos.

Christovam Colombo, voltando da sua primeira viagem á America, onde apenas se demorara um mcz, arribou ao porto de Paios no dia 13 de janeiro de 1493 com oitenta e dois marinheiros, ou soldados, e nove Índios. Pôde ser que o estado sanitário da tripulação não fosse dos melhores, o que é certo, po- rém, é que os historiadores nada dizem a tal respeito, constando apenas que partiu immediatamente para Barcelona com alguns companheiros de viagem afim de dar conta da sua expedição aos reis catholicos.

«A cidade de Barcelona, diz Rodrigo Diaz, no seu tratado Contra las bubas, foi immediatamente infectada de um mal, que fez assustadores pro- gressos.»

A vinte e cinco de setembro do mesmo anno, Christovam Colombo fez-se outra vez de vela com quinze navios, 1.^00 soldados, e grande numero de ma- rinheiros e arlifices. Qualorze d'estes navios voltaram a Hespanlia no anno se- guinte, e no fim d'cste anno Bartholomeu Colombo, irmão de Christovam, par- tia para a metrópole com três navios, trazendo a bordo Pedro Margarite, fidalgo catalão, gravemente enfermo de syphilis. Talvez não fosse elle o único atacado d'esta enfermidade, mas o diário de bordo não cila outro caso.

O anno de 1493 multiplicou as relações marítimas entre as Antilhas e Hespanha. Por isso, quando Christovam Colombu, accusado de crimes imagi- nários, regressava carregado de ferros ao velho mundo, o navio em que vinha prezo transportava também duzentos soldados atacados do mal americano. Es- tes duzentos empestados desembarcaram em Cadix a 10 de junho de 1496. Nove mezes depois, o parlamento de Paris publicava um edito relativo aos en- fermos da grasse vérole.

Sem receio de paradoxo, poderia muito bem suslentar-se que foi a Eu- ropa que empestou a America com uma enfermidade à qual o clima das Anti- lhas convinha melhor que o de Nápoles. Poderiam adduzir-se razões bem po- derosas para demonstrar que os aventureiros hespanhoes ao serviço do exer- cito do rei de Nápoles, regressaram á pátria infeccionados de virus venéreo, embarcando logo em seguida para a Ameiica sem estarem bem curados. De- masiado se conhece a inlluencia que a mudança de clima e de hábitos tiveram sempre sobre esta enfermidade inexplicável, que o calor adormece e o frio des- perta, augmentando-lhe a violência e os estragos. Finalmente ficará como^ cousa provável, senão provada, que o mal venéreo tal como appareceu na Eu- ropa abi por 1494 não era senão um infame producto da lepra e da liberti- nagem .

Todos os médicos reconheceram, ainda que tarde, que o mal não era tal- vez tão novo, como a principio se julgava, e viram que a lepra e sobre tudo a f.lephantiasis Unham mais de um symptoma análogo com esta alTecção virulenta,

DA PROSTITUIÇÃO 233

que se rodeava de symptomas exlranlios, mas que em principio se mantinha sempre invariável.

A opinião do vulgo tanto se manifestou a este respeito, que a medicina não poude deixar de lhe prestar attenção. E' caso notável que os mais audazes fun- dadores da sciencia se tenham limitado a repetir os boatos que a respeito da origem da syphilis corriam, sem assentarem n'um systema que teria sido pos- sível hast-ar em provas o experiências. N.)s primeiros tempos a epidemia era, po- rém, considerada como uma praga enviada pelo eeu e odiosa á natureza, se- gundo as prapriís expressões de José Grundbeck, auctor do mais antigo tra- ctado que se conhece sobre esta matéria, e os médicos recusavam-se a tractar dos enfermos que reclamavam os seus cuidados.

«Os sábios, diz Torella, . evitam tractar esta enfermidade, persuadidos de que não a entendem. Por este motivo, os vendedores de drogas, os herba- narios e os charlatães julgam ser os únicos que a sabem curar.»

UIrich de Hutten mais claramente se exprime ainda, confessando que o mal foi abandonado a si próprio e ás suas forças mysteriosas. antes que a me- dicina e a cirurgia tivessem a coragem de o tractar.

«Os médicos, diz clle, espantados d'esla enfermidade, nSo somente evi- tavam approximar-se dos atacados, mas até mesmo fugiam d'ellcs, como de doentes desesperados. . . Emâm, no meio d'este desalento dos médicos, os cirur- giões arriscaram-sc pouco a pouco a pôr a mão em tão difíicil Iractamento.v*

Claramente explicam esías circumstaneias a razão porque os primórdios da lepra venérea permaneceram tão obscuros e tão mal estudados, em todos os paizes nos quaes este ílagello appareceu quasi simultaneamente.

No emtanfo, possuia-se a chave do enigma, e basfaria consultar as frâ- dicções das Cortes dos Milagres e dos antros da libertinagem, para averiguar de que maneira se produzia c transformava, sob a influencia da prostituição, ò monstro, o Proteu syphilitico. A verdade scientifiea andava provavelmente en- volta n'aquellas anecdotas que ate mesoTO os grandes médicos não desprezaram e foram muitas vezes buscar ás viellas mais suspeitas. João Menardi de Fer- rara, n'uma carta dirigida em loo2a Miguel Sanlanna, cirurgião que se dedi- cara ao traclaniento das moléstias venéreas, diz-lhe que a opinião mais antiga e mais geral é a que fixa a origem d'.cslc mal na épocha em que Carlos viu se preparava para a guerra da Itália, em 1493.

«Esta enfermidade, diz elle, appareceu primeiramente em Valença de Hes- panha, por culpa de uma famosa corlezã, que mediante o preço de cincoenta es- cudos de ouro concedeu os seus favores a um individuo atacado de lepra. In- feccionada desde esse momento, a referida corlezã contaminou todos os man- cebos que a conheciam carnalmente, cujo numero dentro em pouco subiu a quatrocentos e tantos. Alguns d'cslps mancebos que seguiram á Kalia o rei Carlos importaram n'aquelle paiz o terrível contagio.»

Menardi cita também este facto, e o mesmo faz o sábio medico natura- lista Pedro André Matbioli, que apenas muda os personagens e o logar da scena.

Ouçamos este homem de sciencia :

HreTOBU JVA pBoexirniçIo. Tnxo d— FmtTA 30.

134 HIRTORTA

«Ha quem diga que os francczcs contrahiram este mal cm consequência de haverem tido commercio impuro com mulheres leprosas, ao passarem D'uraa das montanhas da Ilalia. (Tracl. De morbo gallico.)')^

A identidade da syphilis e da lepra é claramente indicada n'esfas simples reminiscências de bnm senso popular; no emianto, os homens da scicncia aproveitavam-n'as, fechando os olhos ao grande ensinamento que ellas tào lu- minosamente encerravam.

Outro medico de Ferrara, António Musa Brassavola, adraitlia provavel- mente a preexistência dos males venéreos e do virus que os communica, quando refere o seguinte faclo no seu livro acerca do mal francez :

«No acampamento dos francczcs, diante de Nápoles, diz este illustre me- dico, havia uma cortezfl tão famosa como bella, que tinha uma ulc«ra de qualidade no orifício da madre. Os homens que tinham copula com ella contra- hiam immediatamenlc uma afTecção maligna que lhes ulcerava o membro. Mui- tos homens foram victimas d'esle contagio, e em seguida muitas mulheres que que com elles tiveram copula contrahiram o mesmo mal, que por sua vez com- municaram a outros homens.»

Vé-se, portanto, segundo esta opinião de António Musa Brassavola, que o mal de Nápoles não era senão uma complicação accidental do mal venéreo, que teria existido isoladamente em alguns indivíduos, antes de ser epidemico e de haver adquirido a sua prodigiosa actividade.

Finalmente um dos mais illuslrcs homens de sciencia que fizeram a luz nas trevas da medicina, Paracelso, cxpoz uma Iheoria completamente nova a propósito das cnformidailcs venéreas, quando proclamou a sua afinidade com » lepra, na Grande Cirurgia (lib. i, cap. 8.)

«A sy|)liilis, diz elle com es.sa convicção que o génio pôde dar, teve origem no commercio impuro de um francez leproso com uma corlezã, que ti- nha bubões venéreos, a qual infestou logo quantos tiveram copula com ella. Foi assim, continua este hábil e audaz observador, que a syphilis, procedente da lepra e do bubão venéreo, assim como a raça das mulas sabe do cruzamento do cavallo com a burra, se estendeu por conlngio a todo o mundo.»

Ha n'csla paFsagem da Grande Cirurgia mais lógica e mais sciencia do que em todos os cscriptos dos séculos xv. e xvi a respeito da aíTecção ven-^rea, cuja verdadeira origem nenhum medico tinha adivinhado.

Paracelso considerava, segundo se vé, o mal de 14-94 como uma nova es- pécie da antiga família das enfermidades venéreas.

O grande reformador da medicina chegou a esta conclusão depois de pro- fundos estudos sobre a natureza da enfermidade, considerada geralmenf*' a mais terrível e assoladora do seu tempo.

Paracelso nasceu em Zurich cm 149:í. Philosopho distinclissimo, o sen espirito deuma penetração assombrosa resolvia facilmente os mais complica- dos problemas nos mais oppostos ramos do saber humano.

Como medico, a sua reputação eguala á dos mais notáveis e audazes fun- dadores da medicina. Reformou os conhecimentos médicos do seu tempo, es-

DA rKosiiTuiçAo 233

tabeleceu novas theorias luminosas, e deu o maior impulso á scicncia, appli- cando-lhe todos os recursos do génio de que era amplamente dotado.

A sua Grande Cirurgia foi o novo evangelho da sciencia de curar, e o ponto de partida de uma evolução coroada dos mais brilhantes resultados.

Citamos com admiração as palavras do grande reformador, que soube lér claramente no livro da natureza o que, para tantos outros mestres illustrea, se conservara até então occullo no mais impenetrável myslerio.

Paracelso justifica e auctorisa a nossa obscura opinião, embora ella seja contrariada pelos preconceitos ridículos de muitas outras auctoridades scien- tiflcas.

CAPITULO XXI

SUMMARIO

Syroptoma» da syptillis. segundo f rascator.— TransformaçSo do vinis a paitir do anno de l-WC— TracU- mento Italiano polo mercúrio.— Tractamento fraccez.— Decreto do pailamento de Paris contia o mal de Napt le« em 1497.— Pi-itneiroí hospitaea venéreos eai Paris.— Ordenajões do preboste de Paris e medidas policiaes no tempo de Luiz XII, Francisco i e Henrii[ue ii.— lnvas5o da sypliilis nas provindas desde 1494.— Os médicos recu.sam-se a ai- •iltlr aos enfermo».— Tritímp/io glorioso da muito alta e poderosa.daina D. Sypliilis, livro curioso e raris- ílmo attribuido a RabeUu e publicado sob o pseudonyrao de Martinho Dorciiesino.— Citação de uma pas-ag»m de Pantagruel.— Ot syphiliticoa edmlttidoj no bospital //o/e/-i)í«í, de Paris.— O hospital de Ourcine.—Dssapparlçíe dai gafarias em Fraa;a.

luAEs FORAM OS symptoDQas e o tractamento mt^dico do mal na- politano nos primeiros tempos da sua apparição ? Não deve- mos julgar que este mal horrível, a principio tido como incu- rável, se manifestou nos primeiros tempos da invasão com o mesmo caracter e o mesmo aspecto da sua épocha de decadên- cia e do seu periodo estacionário. Pôde até mesmo aíBrmar-se, sem grandes re- ceios' de paradoxo, que esta enfermidade, com algumas excepções, se tornou actualmente no que era, antes do monstruoso consorcio da lepra e do virus ve- néreo. Desde 1540, segundo o testemunho de Guicciardini, que assignava á ori- gem da epidemia a data de 1494, o mal atenuava-se pouco a pouco, reprodu- dndo-se em muitas espécies differentes da primeira.

Na sua origem, queremos dizer, no espaço de tempo que se seguiu à sú- bita e quasi univer.sal explosão d'este flagello, os sympfomas eram verdadei- ramente dignos do espanto que inspiravam, e comprehende-se que, em todos os paizes invadidos por elle, os regulamentos policiaes cuidadosamente modelados pelos que haviam servido n'outros tempos para a lepra, isolassem da sociedade dos vivos as desgraçadas victimas d'esta pesle vergonhosa. Suppunha-se além d'isto que o contagio era mais immediato, mais prompto, mais inevitável que o de outra qualquer enfermidade. Julgava-se como averiguado que a transmis- são do mal não se operava tão somente pela união carnal, mas que se reali- sava até mesmo pela respiração ou pelo olhar de um syphilitico.

Toiíos os médicos que observaram a enfermidade entre os annos de 1494 c 1514, primeiro periodo geralmente indicado para a sua invasão e desenvol- vimento, parecem assombrados das suas próprias observações. Todos ellet con-

?38 HISTORIA

cordam e se repetem até na descripção dos symptomas syphiliticos, que talvez não se manifestassem cgualmenle em todos os enfermos, mas que todavia for- mavam a conslitiiição primitiva do mal de Nápoles.

Jcronymo Frascalor compendiou admiravelmente os tractados de Leoni- ceno, Torella, Calanco e Almenar, seus contemporâneos, no seu livro De mor- bis contagiosis, onde descreve os symptomas que elle próprio observara na épocha em que estudava medicina e professava philosophia na universidade de Verona. Frascator resume nos termos seguintes a descripção espantosa do mal de Nápoles na sua origem :

«Os enfermos andavam trisles, indolentes, abatidos e pallidos. A maior parte d'elles tinbam cancros nos órgãos genitaes, cancros rebeldes e insidiosos, que não desappareciam nunca de um ponto senão para reappareccrem n'outro ponto. Em seguida appareciam-Jhes pústulas na pelle, que a uns começavam pela cabeça, o que succedia mais vulgarmente, e a outros em diversas parles do corpo, indistinclamente. Eram pequenas a principio, depois engrossando pouco a pouco, tomavam o tamanho e a forma de uma bolota. Havia pacien- tes em que estas pústulas eram pequenas e séccas ; n'outros grossas e húmi- das; umas vezes, li vidas ou esbranquiçadas; outras, duras e avermelhadas.

«Ao cabo de alguns dias abriam, destillando continuamente uma abun- dante porção de humor repugnante e fétido. Desde que rebentavam eram ver- dadeiras ulceras que consumiam não somente as carnes, mas lambem os ossos. Alguns desgraçados tinham (luxões malignas que lhes corroiam o paladar, a tracheia artéria; umas vezes a garganta, outras os gorgomillos.

aCertos pacientes perdiam os lábios, outros o nariz, outros os olhos, ou- tros finalmente as partes vergonhosas.

«Frequentemente desfiguravam-lhc os membros uns tumores gommosos do tamanho de um ovo, e quando rebentavam destillavam um humor branco e mucilaginoso. Os membros quasi sempre atacados eram os braços e as peruas, que se cobriam de ulceras, quasi sempre incuráveis.

«Mas, como se tudo isto não bastasse, manifestavam-sc ainda agudíssi- mas dores ao mesmo tempo que appareciam as pústulas, e ás vezes ainda an- tes d'ellas, dores prolongadas, insupportaveis, que se exacerbavam principal- mente de noite. A sede d'estas horríveis dores não era nas articulações propria- mente ditas, mas sim na massa dos membros e noa nervos. Havia enfermos que tinham pusiulas sem dores, ou dores sem pústulas, mas o mais vulgar era ler-se uma c outra cousa.

«A isto vinha juntar-se o enfraquecimento dos membros, a falta de appe- tite, grandes insomnias, uma grande tristeza, e uma prostração invencível, pa- recendo que o corpo pedia constantemente o leito.

«Em seguida inchavam o rosto e as pernas; algumas vezes ^obrevinha uma pequena febre e uma dôr de cabeça que não cedia .a nenhuma espécie de remédio.»

Sentimos ter de recorrer à traducçâo pesada e incorrecta do simple» e ingénuo Jaull, que nus uma ideia bem pallida do eslylo firme, enérgico, «Jesanlc, poclico mc.mo de Frascalor; em hMlu o caso, queremos deixar a um

B\ PRuSTITUIÇirt 139

homem de sciencia a responsabilidade de nus dar d'csta passagem uma versão medica, em legar de uma reproducção lillcraria das opiniões do auctor.

Depois da leitura d'esla di-seripção tão caraclerisliea, como se eompre- hcndc que o sábio Fraseator lenha negado na mesma obra a profunda analogia da lipra com o mal napolitano? Não sendo este ultimo mais do que uma com- plicação da lepra sob a influencia do virus venéreo, devia ter relações intimas com a peste inguinal do século vi e o mal dos ardentes do século ix, que não foram também senão transformações epidemicas da elephantiasis. O mal de Nápoles, porém, a partir do anno de lol4 tem também as suas metamorpho- ses, causadas sem duvida pelo que denominaremos um cruzamento de raças da enfermidade.

João de Viço falla-nus também de seirros ósseos que sobrevinham aos enfermos, um anno pelo menos depois de atrozes dores infernas por todos os membros. Estes seirros (|ue atormentavam muito o paciente, sobre tudo de noite, terminavam sempre pela carie da espinha dorsal.

Pedro Menardi, que tractava habilmente as afTecções syphiliticas quasi ao mesmo tempo que João de Viço (1514 a 1526) indica muitos outros sympto- mas do virus venéreo :

«O principal signal do mal francez, diz elle no eap. iv do seu tractado De morbo gallico, consiste n'umas pústulas que nascem na extremidade do membro e á entrada da vulva, ou collo da madre, e n'uma grande comichão nas parles que contécm o sémen. O mais frequente é que estas pústulas se ul- ccrem, e digo o mais frequente, porque tenho visto enfermos, cujas pústulas se endurecem como verrugas e callos.»

Parece que, durante este segundo periodo, o mal de Nápoles, apezar de algumas variações symptomaticas, conservou toda a sua intensidade. Mas de 1526 a 1540 entrou n'um periodo decrescente, ainda que o mal venéreo se manifestasse n'essa epocha mais pelo tumor das glândulas inguinarias e pela depilação.

«Ás vezes o virus afllue ás virilhas e entumece as glândulas, diz um medico francez, António Lecocq, publicando em 1540 o seu opúsculo De ligno sanio ; se o tumor suppura, é quasi sempre um bem. Esta enfermidade cbama-sc bubão; outros cluimam-n'a caoallo (poulain,) alkulindo burlescamente ao modo de andar dos pacientes, que abrem as pernas como se cavalgassem.»

Pelo que respeita á depilação, este effcilo deve atlribuir-se mais ao tra- ctamenlo mercurial do que á própria enfermidade.

«Ha seis annos a esla parte, dizia Fraseator em 1546, a enfermidade mudou consideravelmente. Tornaram-se raríssimas as pústulas, desapparece- ram as dores, e o que se nota mais são os tumores. Uma cousa que impres- siona em extremo, é a depilação. E ha ainda pcor: os dentes abalam-se e cos- tumam cahir também.»

Era a consequência fatal do emprego do mercúrio na medicação italiana; em França, porém, o uso dos remédios vegelaes prevalecera, os accidentes da enfermidade ditTeriam de uma maneira essencial, o que nos permitle alBr- mar que o mal de Nápoles, affaslando-se da sua origem, chegara a ser ex-

SiO HISTORIA

clusivamente venéreo, separando-se da lepra e de qualquer outra affccção con- tagiosa, com que primitivamente contraiiira alliança adultera.

Não trataremos de seguir a degeneração do mal de Nápoles. Foi nosso intento unicnmente fazer compreliender que a lepra existia ainda sob a appa- rencia do mal novo, e que os climas, os temperamentos, as circumstancias lo- caes influíam intimamente sobre as causas e effeilos da enfermidade. Era inútil demonsírar de outro modo a funesta acção que devia ter n'ãquella epo- cha a libertinagem publica sobre a saúde dos que a ella se entregavam.

Ninguém pôde negar que o mal era de uma natureza tão communi-ativa, que podia dar-se o contagio em grande numero de casos, sem que o acto ve- néreo lhe servisse de vehiculo. Ainda assim, comprebende-se que se o llagillo penetrava sem se saber como no interior das famílias bonestas, devia ter tido por origem factos de prostituição. Nunca a frequentação de mulheres de vida foi mais perigosa que nos cincoenta annos que se seguiram á primeira apparição do mal, porque muito tarde se poude observar que este mal, nas-, eido de um commercio impuro qualquer, se transmittia mais rápida e segura- mente pelas relações sexuaes do que por qualquer outro contacto.

Os costumes eram mais regulares em França do que na Itália, e os li- bertinos, para cujas necessidades se deixavam abertas as rasas de prostituição, viviam absolutamente fora da vida commum. Foi n'elles, portanto, que o mal napolitano exerceu desde logo os seus assoladores estragos, sem que a medi- cina e a cirurgia se dignassem prestar-lhe cuidados, que eram lidos como inúteis para o enfermo e vergonhosos para o facultativo. Alguns estudantes de fama, boticários e velhas prostitutas eméritas, que faziam pagar bem caras as suas consultas e drogas, furam os únicos que ousaram tractar dos po- bres syphililicos, c não deixaram de lazer algumas curas, graças a certas re- ceitas empíricas, conhecidas de tempo immemorial para o tratamento de enfer- midades pustulosas.

alii por 1327 é que nm respeitável medico, Th. de Bettencourt, ou- sou comprometter-sc a [lonlo de publicar investigações c. conselhos sobre a sypbilis n'um opúsculo intitulado Pioca quaresma de penitencia, ou purgatório do mal venéreo.

Antes de Th. Bettencourt, apenas um medico francez, que se occuItoU sob o veu do anonymo, se arriscou a accrescentar um remédio contra a grosse vérole á sua paraphrase franceza do Regimen sanilatis, de Villeneuve, publi- cado em Lyon em loOI. Ao ver a scicncia tão extranha ao mal de Nápoles, pensar-se-hia talvez que essa horrível enfermidade não tinha entrado ainda em França, quando a verdade era que ella se havia propagado por toda a parte, apesar dos constantes esforços da auctoridade religiosa, politica e municipal. Devemos no emtanto observar que a enfermidade raríssimas vezes accom- mellia as pessoas de costumes honestos, e que se concentrava, por assim di- zer, nas classes espureas da sociedade, nos homens e mulheres de vida desre- grada, nos vagabundos, mendigos e outra gente perdida.

Nos arcbivos do parlamento de Paris e com data de março de 1497, en- confra-se uma ordenação d'onde consta que o bispo de Paris, João Simon, pre-

DA PROSilTUlÇÃO 241

lado alfaiiipuli' digno o venerável, havia (ornado a iniciativa das medidas de salubridade rechiniadas pela propagação da gronne rérole. Esla enlermidadí" eonlagidsa, «que lia dois annos a esta parle tem lido grande curso n'este rei- 1111, pahnras textuaes da ordenação, tanto na cidade de Paris cunio iTiiuIros togares», fazia temer aos homens da sciencia que iidxas forças adquirisse sol) a inlluencia da primavera.

Em consequência d'este receio, o prelado reuniu no seu palácio os ma- gistrados do Chaíelet para lhes submetíer as suas observações sobre ú assum- pto. Decidiu-se alli que se informasse o parlamento, e reunida a asscmbléa para deliberar, foi por ella nomeado um dos seus membros, .Martin Rellefaye, e um escrivão, para secundar os piedosos esforços do bispo e para se enten- der a este respeito com o prebosle de Paris.

O parlamento promulgou uma ordenação, que fui publicada peias ruas, c que continha as medidas policiaes relativas á nova enf(>rmidade. Kstas me- didas haviam sidas discutidas em presença do bispo de Paris por ifíuilos dos grandes e notaceis per.sonageas de lodos os estados.

Eis as principaes disposições adoptadas:

Os forasteiros, tanto homens como mulheres, enfei-iuos da grosse ccrolr, deviam sahir da cidade, vinte e quatro horas depois da publicação da ordenação, sob pena de forca, devendo regressar ao seu paiz natal, ou ao iogar em <|ue havia sido atacados pela enfermidade.

Para facilitar esla partida impreterivel, entrcgar-se-hia a cada um, quando sahissem as portas de Saiat-Denis, ou de Sainl-Jacques a somnia de quatro soldos parisis, tomando-se-lhes n'essa occasião os nomes, e prohibindo-se-lhes voltar á cidade sem estarem curados.

Quanto aos enfermos que residiam em Paris, ao serem atacados da enfer- midade, eram obrigados a recolhcrcm-^e em casa, sem poderem sahii' á rua nem de noite nem de dia, sob pena de forca.

Se estes enfermos encerrados nos domicílios eram polires, recommenda- va-se aos parochos das suas freguezias que lhes ministrassem alimentos.

Os enfermos que não tinham domicilio deviam recolhcr-se ao arrabalde de Saint-Germain-des-Prés, onde se apropriara uma casa para lhes servir de hospital. Haveria também outras casas para as pobres mulheres enfermas, que eram menos numerosas que os homens, mas (|uc por vergonha <K-cullavani quanto podiam o seu estado de saiide.

Previu-se desde logo que o hospicio pnnisorio de Sainl-Gerwnin não seria suííiente para o successivo augmento dos enfermos, e promettia-se aceres - ecntal-o com outros togares circumvizinhos, segundo as necessidades sanitárias.

As despezas d'estas enfermarias ficavam a cargo da cidade, para o (|ue se levantaria um imposto especial em caso de necessidade.

Dois agentes responsáveis seriam postados, um na porta de Sainl-Deuis e outro na de Saint-Jacques, para distribuir os quatro soldos a cada enfermo c para inscrever os nomes dos que recebessem esta indemnisação ao sahir da cidade. Haveria também nas outras portas agentes da policia sanitária para impe- direm que os doentes expulsos voltassem, ijuer ás claras, quer occultamente.

BisToaiA DA Prustituição. Tohu a FeLBA 31.

242 HISTORIA

O artigo mais importanle da ordenação é o oitavo, assim concebido :

«Item. O preboste de Paris ordenará aos examinadores e agentes de vigilância que nos bairros cm que exei-cereni o seu cargo não permittam a ne- nlium dos enfermos transitar, conversar, ou communicar com pessoa alguma, e que onde quer que encontrem algum, o expulsem da cidade, ou o consti- tuam prisioneiro, para que seja castigado corporalmente, em harmonia com as disposições d'csta ordenação.»

Este artigo prova que a sypliilis se considerava como uma espécie de peste, e que desde esta épocha se havia organisado em Paris um serviço de sa- nidade com os taes examinadores e agentes de vigilância, aggregados aos dis- trictos, ou bairros da cidade, e encarregados de fazer observar rigorosamente os regulamentos da hygiene publica. Em todo o caso, não se acreditava na in- fecção do ar durante a epidemia, por isso que se permittia aos enfermos perma- necerem na cidade, com a condição de não sahirem de suas casas.

E' provável que as casas em que viviam enfermos fossem indicadas ao publico por algum signal exterior, como por exemplo, um feixe de palha pen- durado de uma janella, ou uma cruz negra de madeira pregada na porta. Uma designação creste género foi exigida mais tarde aos que habitavam casas infe- ctadas pela peste, por uma ordenação do preboste, de 16 de novembro de 1510.

.\inda que esta ordenação e outras de data posterior relativas ás epide- mias não insiram qualquer medida preventiva contra as casas da prostituição, consta no emtanto que eram mandadas evacuar, c que se punham scllos nas portas até que melhorasse a saúde publica.

O mesmo succedia com os banhos, que se mandavam fechar durante o periodo de contagio.

Na primavera de 1 4-97, o numero de syphiliticos augmcntou de um modo considerável, segundo previra o excellcnte prelado :

«Na sexta-feira, 5 de maio, o tribunal do parlamento levantava tima somma de 60 libras parisis (approxiraadamente Si^íOOO réis) sobre os fundos das multas, e fazia-a entregar a Nicolau Potier e outros encarregados dos doen- tes do mal de Nápoles, para que a dispendessem nas necessidades dos ditos enfermos.»

Os registros do parlamento, em que encontramos consignado este facto, mencionam também com data de 27 de maio do mesmo anno as exhortações que o bispo de Paris dirigiu por diversas vezes aos príncipes, pedindo-lhes uma esmola, «por isso que, se os doentes do hospício Saint-Germain haviam sa- rado cm grande numero, outros soffriam cruéis privações, porque o dinheiro faltava, e n'aquclla occasião não se colhiam muitas esmolas.»

O secretario do tribuna! propoz que se consagrassem a esta obra de ca- ridade uns quinze ou dezeseis escudos (.3o?5íOOO), que estavam depositados em cofre havia pelo menos dez annos, c nunca tinham sido reclamados. O tribu- nal mandou que esta somma fosse enviada ao prelado.

Este documento prova que a caridade publica começara a cansar, prova- velmente porque o assumpto não era dos mais edificantes. Pelo que respeita aos curados, c de crer que não fossem verdadeiros syphiliticos, e que muitos

DA PROSTITUIÇÃO 243

mendigos fingiam ter a enfermidade para participarem dos benefícios da orde- nação. Elíectivamente as esperanças que poderiam inferir-se da carta do bispo ao parlamento não se realisaram, e as numerosas curas que este documento no- ticiava trouxeram um grande augmento de enfermos. A população de Paris assustou-se e pc<iiu energicamente a expulsão d'aquelles extranbos empestados, que causavam borror á vista.

O prebosle de Paris alíendeu a estas reclamações unanimes e mandou apregoar ao som de trombetas a ordenação seguinte: {Registro azul do Chaíe- lel, f. 3).

«Apesar de até agora ter sido ordenado ao som de trombetas, e pela voz de pregoeiro por todas as ruas (festa capital, para que ninguém podcsse alle- gar ignorância, que todos os enfermos de yrosse vérole desoccupassem a cidade e fossem, os extrangeiros para o seu paiz natal e os naturaes para extra-muros, sob pena de forca, succede que os referidos enfermos, desprezando o que fora disposto e publicado, voltaram de todas as partes, communicando pela cidade com as pessoas sãs, o que é uma cousa verdadeiramente perigosa para todos os habitantes de Paris:

«Fica, portanto, expressa e formalmente intimado por el-rei e seu pre- boste a todos os ditos enfermos da referida enfermidade, sejam bomens ou mu- lheres, que inçontinenti desoccupem a dita cidade e seus subúrbios, e vão os extrangeiros para os paizes da sua naturalidade, e os naturaes para longe da cidade e arrabaldes, sob pena de serem deitados ao rio, se forem encontra- dos passado o dia de boje.

«Previnem-se todos os eommissarios e agentes de vigilância de todos os bairros para que prendam ou façam prender os que forem encontrados, afira de n'clles se executar este castigo. Dada na segunda-feira, 2-') de junho do 1498.»

Esta ordenação, que não admittia nem desculpa, nem demora, nem ex- cepção de espécie alguma, fora motivada pela presença em Paris de toda a no- breza, que tinha ido render homenagem ao novo rei Luiz xii, causando es- panto por essa époclia encontrarem-se a cada passo enfermos, que não podiam ser retidos nos domicílios, visto que a enfermidade por mais horrível que fosse, não os impedia de sahir a tomar ar. Fecliavam-se quasí sempre os olhos a es- tas infracções das leis polícíaes, quando os doentes, eram pessoas serias e de bom porte, mas o seu aspecto causava horror á população indemne, quando os via apparecer como corrupções vivas.

«Não eram somente ulceras, diz Sauval, apropriando-se das palavras de Fernel, ulceras, que podiam tomar-se por bolotas, tal era o tamanho e a côr que tinham, e das quaes se dcsíillava um pus asqueroso e fétido, que obrigava os olhos a desviarem-sc com horror; os rostos manifestavam um negro esver- deado, e cobríam-sc de chagas, cicatrizes c pústulas, que nada mais horrível podia existir.» (Anlifj. de Paris, t. iii, pag. 27).

O sábio Fernel, que vivia em fins do século xvi, accrescenla que esta primeira enfermidade venérea se assimílhava tão pouco á do seu tempo, que diíTicílmente se acreditaria que fosse a mesma.

244 HISTORIA

«Esta enfermidade, dizia em 1339 o auctor do Triumpho ijlorioso da inHitu alta e muilo poderosa dama Dona Syphilis, perdeu muito da sua pri- mitiva malignidade, e os povos não são por elia Ião assolados.»

O decreto do parlamento de 6 de março de 1497 (a data é de 1496, se- gundo o calendário pasclial) não deixa a menor duvida de que o mal de Ná- poles reinou por toda a França desde o anno de 1 494 ; no emlanto, não está bem averiguula ainda a época da invasão em cada província e em cada cidade. Os archivos municipaes c consulares suhministrariam documentos preciosos so- bre este assumpto. Astruc, no seu grande tractado monogi^aphico, cita somente dois factos, que fazem constar a apnarição do mal napolitano em Romans, no Delphinado, e em Puy, no anno de 1496:

«A enfermidade das bithas, dizem os registros da universidade de Manos- (|ue, foi importada n'este anno por alguns soldados de Romans do Delpbinado, que estavam ao serviço do rei e do duque de Orleans, na cidade sua pátria, que estava ainda indemne, e não conbecia tal espécie de enfermidade, que também não reinava ainda na província.»

IVuma clironica inédita da cidade de Puy, o aactor, Estevam de .Meges, natural da mesma cidade, refei-e que a grasse rerole appareceu pela primeira vez em Puy no decurso do anno de 1496.

Õ extracto dos registros de Manosque é precioso, por isso que serve para provar que o exercito de Carlns viii, á volta da expedição de Itália, vinha infeccionado da nova enfermidade, e eífeclivamcnte esta enfermidade manifes- tou-se cm I i9.j, em lodo o caminho pei'corrido pelos restos d'aquelle exer- cito, que vinha em debandada depois da batalha de Fernova.

Os soldados que trouxeram o mal a Romans tinham sem duvida feilo parle da rectaguarda sitiada em Novara co'rn o duque de Orleans, que alli sus- tentou um cerco formidável por espaço de cinco mezes.

Desde a épocha em ([ue Asfruc andou recolhendo os makiiacs para a sua encyclopedia das enfermidades venéreas, um estudo mais allenio e minu- cioso dos archivos munieipaes de toda a França permilliu verilicar que o mal napolitano se estendeu de povoação em povoação até ás aldeias mais remotas e obscuras, -pelos annos de 1494 a 1196, o que está em harmonia com o decreto do parlamento de Paris, que observa em 6 de março de 1497 <aiuc a yrosse cérole tivera grande iniTemcnlo ireste reino ha dois annos a esta parle», quer dizer em I i93 e 1496.

nas grandes cidades, a exemplo de Paris, é que se usou de rigor con- tra (js cnfeimos, e\pulsando-os sob pena de castigo. Nos outros pontos, evila- va-se apenas o seu contacto, deixando-os morrer em paz.

Não acreditamos, como aífirmam alguns conlemporaneos, que a vigessima parle da população morresse victima d'aquella epidenifa, lanio em França como no resto da Europa. António Sabelico dizia em Io02:

«Pouca gente morreu, relativamente ao grande numero de enfermos; mas foi pe(]ueno o numero dos que sararam.»

ririch de Ilullen, (|uc chegou a julgar-se curado, c succumbiu aos pro- gressos latentes do mal na edade de trinta t' seis annos, dizia «que de cem

DA PROSTITUIÇÃO 245

enfermos apenas se curava um só, e que esfe recahia com frequência em es- tado muito peior que o primitivo.» (De morbi gallici curalione, eap. í.) Por- que a vida era mais liorrorosa que a morte para aquejles desgraçados, que não tinliam o direito de viver na sociedade dos seus similiiantes, e que não encon- travam nem remédio pliysico nem allivio moral para os seus atrozes soffri- mentos.

Nos primeiros tempos do appareeimento do mal de Nápoles, pôde dizer-se que em neniiuma parle foi traclado, segundo as regras da sciencia ; os médicos abstinham-se geralmente de assistir aos enfermos, declarando, a exemplo de Bartholomeu Mortagnana, professor de medicina da faculdade de Pádua, que este mal fora desconhecido a Hippocrates, a (Taleno, a Avicena e a outros mé- dicos antigos; tinham além d'isso uma repugnância invencível contra a lepra, á qual succedia a syphilis.

De resto, este mal vergonhoso parecia concentrado na classe abjecta que acalentava no seu seio o gérmen de tantas e tão repulsivas enfermidades, e por isso, no fim de contas, nenhum proveito tirarião de traclar males, pro- venientes, segundo diziam, do vicio, da miséria e da crápula.

Envoltos pedantescamente na sua magestade doutoral, diziam «que na cura das enfermidades a indicação do traclamento devia ser extrahida da sua pró- pria essência, e por isso que nenhum indicio podiam tirar de um mal absoluta- mente desconhecido.»

Os médicos francezes moslraram-se mais indifTerentes ou mais ignoran- tes que os ailemães ou italianos, abandonando completamente a toda a espécie de charlatães a cura de um mal que se lhes afigurava um problema insolúvel. Esta deserção geral dos homens da sciencia deu logar á invasão de uma mul- tidão de empíricos no tratamento das afíecções venéreas. Depois dos boticários e dos barbeiros, chegaram até os sapateiros a tractar d'estas doenças. D'aqui a diversidade dos remédios, a diíTerença de methodos, os ensaios infructiferos, os processos ridículos, antes de .se atreverem a empregar o mercúrio, e de se conhecer a efficaeia do tjaiac. As sangrias, as lavagens, os emplastos, as pur- gas, as tisanas, exerciam uma acção mais ou menos neutra, como na maior parte das enfermidades; no emtanto, as fricções, os banhos e os sudorificos tinham maior virtude, pelo menos na apparencia.

«O melhor meio que encontrei para curar as dores e até mesmo as pús- tulas, escrevia Ttaspar Torella, que tinha experimentado em França esta me- dicação anodyna, é fazer suar o enfermo n'um forno quente, ou pelo menos n'uma estufa, por espaço de quinze dias seguidos, era jejum.»

Era também muito usada em França a panaceia, que se suppunha tirar da vibora, quer dizer, vinho em que se deixavam morrer em infusão algumas víboras, caldo de víboras, carne de vibora cosida ou assada, decocto de víbo- ras, etc.

Os cirurgiões foram os primeiros que se serviram do mercúrio para ob- terem um tratamento enérgico contra um mal rebelde a todos os remédios. O exíto correspondeu á ousadia, mas a ignorância ou a imprudência dos opera- dores occasíonou os mais terríveis accídentes, e muitos doentes, que feriara

246 HISTORIA

escapado da enfermidade, morreram então da cura. Gaspar Torella attribue aos effcilos do mercúrio a morte do cardeal de Segorbe e de Aífonso Borgia.

Para evitar estes desastrosos eíTeilos foi necessário procurar um remédio menos perigoso e mais seguro, e julgou-se liaver encontrado a solução do pro- blema, quando o acaso fez descobrir na America as propriedades anti-sypbili- ticas do gaiac. Ulricli de Hultcn, que fora um dos primeiros a experimentar a eíficacia d'este remédio, refere que um fidalgo bespanbol, estando grave- mente enfermo de sypbilis, soubera Je um indígena o remédio mais eíiicaz para combater o mal, e trouxera á Europa a receita a que devia a saúde.

Ulrich de Hutten attribue aos annos de 1315 ou 1317 a importação do gaiac na Europa. O facto refere-se de diíTei'ente modo nas notas das curiosas viagens de Jironymo Benzoni. (Edic. de Francjorl, 1394.):

«Um bespanhol que bavia contrabido o mal por copula com uma prosti- tuta Índia e que soiTria cruéis dores, depois de beber agua de gaiac, que Ibe foi dada por um indio, ficou perfeitamente curado.»

Desde aquella épocba, 1515 a 1517, começou a espalbar-se pela Europa que o mal napolitano podia curar-se com uma droga fornecida pela America, e desde então o povo, que faz sempre enormes confusões nas suas cbronicas oraes, persuadiu-se de que o remédio c o mal deviam ser compatriotas.

As denominações de mal napolitano e mal francez não podiam sobrevi- ver por muito tempo a esta pi'eoccupação que colíocára o berço do mal junto da arvore que o curava, por isso os nomes de vérole e grosse vérole prevale- ceram por excellencia, como que para restituírem á America o que julgavam pertencer-lbe.

As primeira curas devidas ao emprego do gaiac foram maravilbosas. Ni- colau Poli, medico de Carlos v, affirma.que três mil enfermos desesperados sararam quasi ao mesmo tempo á sua vista, graças ao decocto de gaiac, e que a cura d'aquellcs desgraçados parecera quasi uma resurreição.

O grande Erasmo, que fora atacado de uma sypbilis terrível com dores phrencticas, ulceras e caries, depois de ter ensaiado onze vezes o tractamento mercurial, foi radicalmente curado com o gaiac, ao cabo de trinta dias.

Este pau de gaiac foi por toda a parte acolbido como um dom do ceu, mas bem depressa se reconlieccu que o remédio tiniia também os seus incon- venientes, por isso que aos accidenles venéreos succedia com frequência uma consumpção mortal. Não obstante isto, foi conservando numerosos pai-tidarios até que foi destbronado por outro remédio, procedente também da America e cbamado pelos indígenas hoaxacan, ao qual os europeus deram o nome de pau santo (sancturn lignum).

Este ultimo remédio foi mais usado em França do que nas outras nações, durante uma parte do século xvi, justificando o grande consummo, que teve, a sua denominação, por isso ([ue operou curas extraordinárias.

Punba-se de infusão por espaço de vinte c quatro boras uma libra de pau santo cortado em pedaços miúdos. O decocto lomava-se em jejum, quinze ou trinta dias seguidos, produzindo um suor copioso, que diminuiu a intensi- dade do mal, ou muitas vezes o levava comsigo.

DA PROSTITUIÇÃO

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Os médicos francezes escreveram muitos tractados acerca da efricacia do gaiac e do pau santo, dos quacs faliam 'om uma espécie de respeito e de pie- dosa admiração : mas ainda assim não fizeram mais do que repetir os elogios que Ulrich do Hutten, na Allemanlia, e Francisco Delgado, na Itália, tinham antecedentemente feito d'este maravilhoso especifico, em reconhecimento das suas curas.

«Oh santo lenho! clamava nas suas orações um doente, alliviado dos seus padecimentos. Oh santo lenho! Serás tu da arvore bemdita da cruz do bom ladrão

A cura que se obtinha pelo pau santo ou pelo gaiac não era todavia tão radical que os vestígios do mal desapparecessem completamente. Signaes de- raasiadi! evidentes ficavam, pelos quaes se reconheciam os desgraçados que haviam escapado á aguda acção da enfermidade, sem se poderem subtrahir ao seu trabalho surdo e incessante.

Eis o sombrio quadro que faz d'estes suppostos convalescentes o auctor do Triumpho glorioso da muito alta e muito poderosa dama Dona Syphilis:

«Uns granulosos, outros inchados; estes cheioá de fistulas lacrymosas, aqucUes corcovados e gotlosos.»

O mesmo auctor, que desejava aconselhar a continência c a moderação aos seus leitores, pondo-Jhcs diante dos olhos «o exemplo dos infelizes que pela abominável luxuria a que se entregam adquirem estas enfermidades», descre- ve-lhes d'este modo os prodromos não menos espantosos do mal napolitano :

«Outros estão nos hospitaes do venéreo, cobertos de ulceras, de can- cros, de tumores pútridos, de erupções, de carnosidades e de outras cousas do mesmo género, que se adquirem ao serviço de Dona Prostituição.»

Muitos annos antes da publicação d'esta obra singular, a poesia franceza apodcrara-se do assumpto deplorável, que Jeronymo Frascator devia celebrar no seu bello poema virgiliano, intitulado SijphiUs, sive morbus gallicus. João Droyn de Amiens, bacharel em leis e poeta conhecieo por dois poemas moraes e christãos, a Nau dos Tolos e a Vida dus três Marias, compoz uma bailada em honra da grosse vérole, a qual depois de ter dado a volta da França com a nova enfermidade, foi impressa em Lyon, em 1312, em continuação das poesias moraes de frei Guilherme Aiexis, monge de Lira e prior de Bussy.

A bailada de mestre João Droyn é extremamente curiosa, por. isso que accusa a prostituição de haver propagado em França o mal de Nápoles, que o poeta attribue aos lombardos. De tudo isto pode inferir-se que as guerras de Luiz XII na Itália foram ainda mais funestas á saúde dos seus vassallos do que a primeira expedição de Carlos viii.

Eis a paraphrase d'esta famosa bailada, que não reproduzimos n'este lo- gar na lingua em que foi composta, ematlenção ás pessoas pouco lidas no francez inculto d'essa épocha :

«Joviacs amigos, de cabelleira ou gorra, pensae na vida, emendae-a a tempo! Cautella com os buracos, porque são perigosos! Fidalgos, burguezes, homens de lei, que dispendeis escudos, saúde e ducados, em banquetes, jo- gos e orgias, acautellae-vos em questões de amores, c tom^ae nota no vosso

2i8 HISTORIA

protocolo: Foi por frequentardes taulox logares obscuros, que se engendrou a grasse vérole I . . .

«Amao com prudência, coiupassadamenle, nada de excessos, nada de fo- lias! Cançar-vos para que! Evitae loucuras. Nunca o prazer nos deixe ex- haustos! Amae a virtude, sede cautellosos. Fugi, amigos, de gente corrupta! Foi por metlerdes a lança em concavidades damninhas, que se engendrou a grasse vérole I . .

«Escolhei mulheres de boa qualidade, mas nunca enlreis no antro sem candeia. INada de vergonhas! Procurae, apalpae, investigae, e depois d'isto reine o prazer! Fazei como os aventureiros em presença duma bagagem aban- donada; esquadrinhae de alto a baixo. Foi por não serem os Lombardos cau- tellosos, que se engendrou a grosse vérole!. . .

«Estribilho : Príncipe, sabeis que o santo Job foi virtuoso, mas as ulce- ras (|ue teve n'este mundo nos fazem recorrer á sua guarda. Foi para corrigir os luxuriosos que se engendrou a grosse vérole!...»

Segundo as regras poéticas da bailada franceza, as três estrophes syme- fricas deviam terminar por uma volta ou estribiliio (envoi) de cinco versos, dirigidos a um príncipe. Ser-nos-hia dillicil descobrir a que príncipe foi dedi- cada a bailada de Droyn ; em todo o caso, fosse qual fosse, e por mais austero que se mostrasse, nenhum d'ellcs teria protestado n'aquclla épocha contra si- milhante dedicatória, tanto mais que os numerosos tractados então escriptos sobre o mal venéreo eram dedicados aos cardeaes, bispos e outros importantes personagens.

O exame attento (Festa bailada fornecer-nos-hia ainda assumpto para ou- tras observações históricas. Veriannis n'ella, por exemplo, que o mal se reve- lava por alguns signaes externos, como se os doentes soflfressem assim o esty- gma da sua impureza, e que provinha sempre da união carnal e da luxuria.

E' na verdade para admirar um tal rigor de oliscrvayão n'um poeta de uma épocha em que os próprios médicos acreditavam na propagação do virus pelo ar que se respirava, e pelo simples contacto. O vulgo via muito melhor a este respeito do que os homens da sciencia, e o seu bom senso assimilhava a grosse vérole á lepra, a filha á mãe.

Dois scculos depois, o abbade de Saint-Marlin, que fdi a expressão viva de todos os preconceitos populares, repetia ingenuaiue^nlc i> que ouvira contar à sua ama de leite, além de muitas outras coisas de que fazia responsável o seu amigo João de Lorme, primeiro medico do rei :

«E' de notar que o venéreo se pega pelo contacto da pessoa que o padece, dormindo com ella, ou andando-se descalço sobre a sua cama, c de outros mo- dos ainda. »

João Droyn não foi o único poeta francez que cantou o mal napolitano antes de Fraseator. João Lemaire de Relges, o amigo intimo de Clemente Ma- rot e de Francisco Uabelais, historiograpbo e poeta de .Margarida de Áustria, traduziu em verso um conto intitulado 6' ítpído e yl íropo.v, que Seraphi no havia publicado em versos italianos, a respeito dos extranhos e horríveis elTeitos deste contagio nascido do prazer. .\ este conto original accrescentou outros de

DA PROSTITUIÇÃO 249

sua invenção, pgualmente consagradas ás contendas entre o Amor e a Morte. Exlraliimos da obra de Lemaire, que veio a lume em 1320, uma doscripçâo vigorosamente traçada dos estragos da enfermidade nas suas desgraçadas vi- ctimas. E' apenas uma paraphrase do poema, cujo texto não apresentamos na iingua original pelas razões aeima expostas :

«Finalmente, o venéreo chegou à sua maturação e transformou-se em enormes bolbos. Jíuoca se vira na terra uma tal detV)rmidade! Não eram ros- tos humanos, eram [verdadeiros monstros. Os bolbos reproduziam-se por toda a parte, na fronte, no pescoço, na barba, no nariz; nunca se vira tanta gente com tão exhuberante tlorescencia ! O veneno, em seguida, graças ao seu poder occult", ia perfidamente atacar as veias e as artérias, communicando-lhes tão extranhos mysterios, que para a dòr, para a gotta, para o sofíriniento, em summa, havia um remédio, um só, gritos, choros, prantos, imprecações, f' finalmente appellar para a morte, como o termo de tanto soffrimento.»

João Lemaire, que foi como poeta o precursor elegante de Clement Ma- rot, seu discípulo, faz entrar nos seus versos a nomenclatura polyglotta daquella enfermidade, que os jocosos da épocba denominavam sourenir, ou recordação, em memoria da conquista de Mapoles. Os três contos allegoricos de Cupido e Atropos foram reimpressos em 15.39 juntamente com o Triumpho glorioso lio muilo alia e mui(o poderosa dama Dona Syphilis, rainha da fome dos Amores. Este triumpho não é mais do que uma serie de 34 figuras em madeira repre- sentando os accessorios do mal de Nápoles e do seu tractamento. Viam-se en tre as figuras Vénus, Cupido, os médicos, a dieta, etc, etc.

Estas figuras compostas e executadas ao gosto de certa dança são acom- panhadas de decimas e oitavas perfeitamente rimadas, de modo que dão a en- tender que o supposto auclor era o próprio Rabelais. O grande philosopho vi- via por esse tempo em Lyon, onde exercia a medicina, compondo nas horas vagas estas e outras facécias para diversão dos pobres syphiliticos.

Na sua velhice, o illustre e implacável crilico recordava-se ainda da ter- rível doença que observara em 1327, e por isso no livro v do Pantagruel, en- tre varias outras cousas impossíveis, cita o caso de um jovcn extractor da quinta essência, que se gabava de curar a syphilis «ainda a mais fina, como quem diz a de Rouen.» Um século mais tarde, o provérbio sobrevivia ainda á epide- mia, e Sorel, no seu romance de Francion (lib. x,) diz que <- venéreo de Rouen p lama de Paris nunca se vão de todo .senão com a peça.»

.4pesar de personagens eminentes e do mais honesto compiirlamento te- rem sido, não se sabe bem como, vielimas d'esta enfermidade impudica, é dif- fiiMÍ negar-se que a prostituição fosse o principal intermediário do contagio c que os bordeis fossem o foco de tão espanlo><o mal. Em parte alguma a prosti- lituição existia regulanientada sob o ponto de vista sanitário, e em 1684 po- demos encontrar uma medida policial que parece tomar em consideração a sa- lubridade dos estabelecimentos de libertinagem publica.

E' fácil inferir d'este facto os terríveis eíTeitos que esta incúria da aucto- ridade produziria na saúde publica. Abandonando-se aos perigos da incontinên- cia, os libertinos, que iam, por assim dizer beber, o mal á sua própria fonte,

RiíTOMA DA PnoeirruiçÃo. ~ Tomo a Fslba 32.

2o0 HISTORIA

expunham ;i perigos inevitáveis as imilheres legitimas f!'estes imprudentes; as mulheres c os filhos, aos quaes os seus progenitores legavam cresle modo um virus incurável.

.No principio da enfermidade, como vimos, os doentes eram mettidos nas enfermarias, ou expulsos das cidades, onde a sua presença inspirava re- ceios de contagio. Esta expulsão geral dos pobres atacados contribuiu neccs.sa- riamenle para propagar a infecção nos campos.

Quando, porém, a experiência demonstrou que o mal venéreo, podia communicar-se pela copula carnal, ou por outro contacto intimo e immediato, não houve inconveniente em deixar permanecer nas cidades e no convívio das pessoas sãs as victimas d'aquella triste e vergonhosa enfermidade, c|ue neces- sariamente devia aterrar os próprios libertinos.

Não lemos a data exacta d'esla mudança de opinião e de policia sanitá- ria a respeito do mal napolitano e das suas victimas. Nos registros do parla- mento de Paris, lé-se com data de 32 de agosto de 1505 um decreto que au- ctori.sa a levantar do fundo das multas a somma necessária para o aluguer de uma casa destinada ao alojamento dos syphilitieos.

Este decreto é o ultimo que faz menção d'estes hospitaes temporários. l)iz-nos também que o asylo de Saint-Germain não era suíficiente. E' muito provável que alguns annos mais tarde, a medicina, que a esse tempo havia es- tudado já o principio do mal venéreo, admittisse os syphilitieos de raistnra com os outros doentes do Hotel-Dieu, embora esta concessão se estendesse apenas aos que haviam contrahido em Paris a grasse vérole.

Assim se passou de um a outro extremo, cahindo-se d'um excesso irou- tro peor. No Hõli'1-Dieu. os enfermos tinham uma cama para cada quatro, e a syphilis foi infeccionar muitos desgraçados que alli haviam entrado apenas com uma febre ou com uma constipação, e que sabiam contagiados, pejo \irus ou pelo mercúrio.

Multiplicavam-se, portanto, os enfermos, apesar do mal linver diminuído de gravidade, e o Hotel-Vieu em pouco tempo não foi sufficienie para cnntel-ns.

Foi mister pensar então em fundar hospitaes destinados especialmente ao tnicfamcnto venéreo.

O primeiro hospital d'esta natureza foi estabelecido em lo36 por dccrelo do iiarlamento, devido ás informações dos commissarios encarregados da policia dos pobres. Duas salas do grande hosjiitai da Trindade tiveram este dcslitio. O salão do andar nobre, onde se costumava representar farças e autos, fni di-s- tinado a albergue dos syphilitieos, a sala do rez-do-cbão recebeu os atacados do mal que chamavam Sainl-Main c Sainl-Fíacre, e ainda os de outras mo- léstias contagiosas.

Alguns mezes depois da ínstallação d'este hospital, faltava espaço para o grande luimero de enfermos (lue chegavam a toda a hora. O parlamento, por decreto de i\r março de líiiT, ordenou aos mordomos da egrcja de Santo- Eustaquio que destinassem o hospital da freguezia ao alojamento dns |)ol)rcs enfermos sypliiiilicos e da enfermidade chamada de Saint-.)ínin, ou de quai's- quer outras do mesmo modo contagiosas.

DA PKOSTITUIÇÂO 251

Não havia ainda, porém, em Paris, apesar (J'eslas medidas sanitárias, um iiospilal exclusivamente reservado ás enfermidades venéreas, emquanto que a cidade ile Tolosa possuía um desde o aiino do ITi^S, denominado na lingua do paiz Hoiispital des Itowjnounéx de la llouijnu de AajjDles. (V. as l/fíí). de la hisl. du iMnijuedoc, por (1. de Catei, p. 237.)

A' medida que se abriam novos asylos para os pol)res enfermos da sy- pliilis, manifestavam-se os estragos do mal nas ejasses inferiores, sobretudo nos vagabundos. A humanidade aconselhou então que se livrassem as pessoas sãs da vista e do contacto dos enfermos. Por toda a parte .se construíram iKt.s- pifaes, onde como nos cárceres se foram aceumulando todos os pobres em (|uc se suppnnha o contagio.

Pouco tempo bastou, porém, para que a auctoridade não se ai'rependesse de ler supprimldo com demasiada leviandade as medidas policiaes relativas aos leprosos e syphiliticos. Recimheeeu, ainda que tarde, que não era talvex Ião grande a ditrerença entre estas duas classes de enfermos, e leve a idéa de restabelecer o antigo regimen das gafarias, ou lazaretos dos leprosos. Por isso preparou-se para os syphiliticos o grande hospital de S. Nicolau em Paris, perto da Biévre, na freguezia de S. Nicolau de Chardonnet.

No emtanto, os recursos d'este hospital não haviam sido calculados para o augmento diário do numero de enfermos, e este numero eleva va-se em lo20 a 660. Os lençoes e muitos outros artigos vieram a faltar completamente. O pailamento de Paris apiedou-se d'estes enfermos, que se encontravam na maiur necessidade, c intimou os administradores do Hoíel-Dieu a proverem Iodas as faltas do hospital de S. Nicolau. (V. Prouces de ['hist. de Paris, poi- Felibien e Lohineau, t. iv, p. 689 e 697.)

Este hospital tomou o nome de Lourcines, e eram para elle enviados to- dos os syphiliticos que se apresentavam na repartição dos pobres e no Hotel- Dieu, onde até então haviam sido admittidos nos mesmos leitos dos não ala- riidos d'esta enfermidade. Tal foi a origem do iiospital do venéreo, e um de- creto de 24 de setembro de l5o9 diz-nos que Pedro Galandins «costumava administrar antes d'isto o dito Jiospilal de Lourciwes, onde vivia e assi.stia como medico aos syphiliticos.» (Ob. citada, l. iv, p. 778.)

Ao mesmo (empo que se procurava isolar esta classe de enfermos, Ira- etava-se de encerrar nas gafarias os leprosos errantes, que tanlo haviam con- corrido para corromper a saúde publica, vivendo livremente entre a população indemne.

Francisco i, por decreto de 10 de dezembro de loi3, quiz remediar a (jrai-i' desordem das gafarias, e tentou fazer encerrar n'ellas os leprosos, que mendigavam pelas aldeias. Era demasiado tarde para restituir ao domínio do estado os bens pertencentes á caridade publica, mas invadidos ha mais de um século pelos particulares. Além d'is{o, de que serviam as gafarias, se não havia leprosos propriamente ditos?

EITectivamente, os que por este nome se designavam, não eram cm ul- tima analyse mais do ([ue sypbiliiicos de vírus recente ou inveterado. .\ lepra e o venéreo haviam feito causa-commum, a tal pontoque Henrique iv, por um

252 HISTORIA

edito de 1696 destinou as gafarias que ainda restavam para alojamento dos fi- dalgos pobres e dos soldados estropeados.

Naquella épocha nem todos os syphiliticos estavam nos hospitaes e pôde dizer-se que a prostituição, ao passo que povoava as Cortes dos Milagres, as ia despovoando também, propagando ri'ellas sem cessar o antigo virus da lepra e o virus novo do mal venéreo.

CAPITULO XXII

SUMMARIO

Os poetas da prostituii, Jn nu swiilo XIII.— Corrupção obscena da linguagem.— Christina de Pisan declara- guerra ás palavras torpes.— Influfncia do Romance da Rosa nos costumes.— A Arte de amar, de Guilherme de Lor- ris e JoSo de M-iin?.— Vingança das damas.— Antagonistas do Romance da /íosn.— Projecto de refoima das mulho- re.i publicas.— O campeão das damas.— Os poços do amor da Picardia e de Hainant. —Guilherme Coquillard.de Relras. —Os novos direitos e o código da libertinagem.— íVjcío iíí des. —Fraude a respeito da i|ualidade -do jíenero.- Kstel- lionato amoroso.— Litigio entre a simples e a astuta.- Antes de tudo, pague.— Retrato de unia velha proxeneta.- Nomenclatura das coi tez3s de Reims com as suas alcunhas Oliva de GaieFatras.— Mariquitas de Traine-Poétes.— Morte de Cociuillart.— Seu epitaphio.— As coquilles de Coquillart.

|s TRovEiRo.s do scculo xiii, como dissemos, haviam sido os poetas da prostituição. As suas trovas, contos e romances, re- ílexo vivo da licença dos seus costumes e da obscenidade da sua linguagem tiveram funesta influencia na linguagem e.scri- Hpta e nos costumes populares, que longe de se depurarem, se preverteram cada vez mais, a exemplo dos que a alegria gauieza havia elevado ás nuvens nos seus contos licenciosos. Não s6 a linguagem foi sobrecarregada de uma enorme quantidade de palavras torpes e de locuções impudicas, mas aprendeu^" também a aproveitar a cada passo todos os logares communs do amor carnal.

Os editores de Rufebeuf, os senhores Achilles Juvinal e o seu anteces- sor Meon, não se atreveram a publicar, nem mesmo supprimindo as palavras livres ou substifuindo-as com reticencias, muitas composições que provam ■quanto aquelle desbragado troveiro se esquecia do respeito devido á decência publica. Os amadores d'este género de litteratura podem consultar o celebre manuscripto da Bibliotheca imperial, em que se encontra a pag. 213, a compo- posição intitulada Dit du c. . . et de la c ... , que principia assim :

Une c. . . et une v. . . s'esmurent A' un marche aller durent. . .

Uma outra composição, não menos desaforada, é a que se encontra a pa- ginas 24, sob o titulo de Dit des c. . ., e cuja invocação dirigida a um alto per- sonagem começa:

254 HISTORIA

. Signor, qvi les bons c. . . savez, Qui snvpz que le c. . . esl iels.

(^onío estas, outras muitas que não reproduzimos ua sua integra, e das quaes nem mesmo damos a traducção dos primeiros versos, para não indiíínar- iiios o leitor avesso a taes desbragamenlos de expressões.

Ninguém cvlranliava esta obscena linguagem nos contos jocosos, onde era sempre bem recebida como incentivo da gargalbada. A força de liabito fez, porém, com que ella passasse a obras mais serias e ate mesmo ás que se oc- cupavam da moral. citámos diversas passagens de uma antiga traducção da Bí- blia, para provar que os escriplorcs c poetas profanos se rescnliam sempre das más companhias que frequentavam. Esta inconveniência da linguagem não era, ainda assim, sensivel a todos, e mulheres de bons costumes, bem como homens de grande austeridade iiavia, que levavam a sua candura ao CNlremo de não se escandalisarem com as locuções triviaes ou dcsiioneslas, que tinham irrom- pido na lingua escripta e na fallada quasi ao mesmo tempo. Era mister possuir uma delicadeza excepciona! n'aquclla épocha para alguém se envergonhar ou oftcnder com aquella ingénua grosseria, que o uso propagara a todas as clas- ses, fazendo-a passar dos livros á conversação.

\ amos ver como a discreta e jmdica dama Cbristina de Pisan se defen- dia da accusação de haver manchado as suas obras poéticas e moraes com esta prostituição da linguagem. Responde á muilo notável e compeiente pessoa de Gauthier Col, secretario do rei Carlos v :

«Dizes que sem razão vitupero o (|uc se diz no Hnmance da Ito.sa, no Capitulo (la /?a^ão,em que se nomeiam os membros do homem pelos seus no- mes, e a ponto recordas o que disse n'outra parte que Deus creou Iodas as cousas boas, mas que emíim pela abominável mancha do peccado dos nos- nos primeiros pães se tornou o homem uma cousa immunda. Trago, em re- forço, o exemplo de Lúcifer, cujo nome é bello e a pessoa horrível, e concluo por dizer que o nome não faz a deshoneslidade da cousa, mas sim a cousa é (jue torna o nome desbonesto. E por isto dizes que me pareço com o pelicano, que se mata com o próprio bico, e conclues : Se é a cousa que torna o nome desbonesto, que nome se pode dar á cousa, que não seja desbonesto?— A isto respondo desde que nem sou lógica, nem vejo. a necessidade de taes dispu- tas. No emtanto, sempre accrescentarei que não poderia fatiar de modo algum de dcshonestidade, ou de vontade corrompida, mas se cm caso de enfermidade o julgasse conveniente, faltaria d'isso de modo que se entendesse o (|uc (|tieria dizer, sem fallar ainda assim deshoncslamente.»

Cbristina de Pisan não receia, ao que se vè, entrar ii"uma discussão es- pinhosa e árdua a respeito dos casos em que era necessário chamar as cousas pelo seu nome, embora esse nome fosse desbonesto, e conclue por estabele- cer o principio de que a dcshonestidade do coração produz a dcshonestidade das expressões. Tractando, porém, d'estc escabroso assumpto, nem se quer nota que vae cahir no defeito que censura a João de Meung e aos podas da sua cs- chola, por isso que se serve de palavras t(U-pes e iiulccenlcs, i]iie contrastam com a pureza das suas intenções.

DA PROSTITUIÇÃO 255

O Romance da Rosa, qui- Cliristiiia de Pisan ataca d'esto iinxlo nas suas epistolas (J/ò-, da BiblioiluH-ii [inperial,) j.jdia com razão sor accusatlo de haver exercido unia influencia perniciosa no' pudor da linguagem e no estado dos costumes puidicos. l'ódc dizer- se no eintanfo que o Romance da Rosa foi por espaço de mais de d )is séculos o evangelho da galanteria franccza.

O auctor da primeira parle d'este famoso poema, Guilherme de í.orris, que mo) reu nos fins do século xiii, deixando-o incompleto, prMendeu compor, sob uma forma allegorica, uma espécie de Arte de amar, ao gosto do seu tempo : no emtanto, não se illudia a respeito dos perigos de uftia paixão, que é ás ve- zes um mal lerrivel e incurável.

«Não ha remédio nem mezinha ([ue aproveite. Fugir do amor eis Ioda a sua medicina!. .

O poeta sabia talvez por experiência própria que o amor, por elle des- cripto com tanta soduc.ção, era epidemico entre os poetas da épocha.

«.Muitos perdem com elle o juizo, o tempo, os haveres, o corpo, a alma e a salvação».

riuilherme de í.orris lenlou neutralisar o contagio voluptuoso do seu assumpto por meio de reflexões cheias de prudência, e de sentimentos de uma nobre honradez. Não consegue, porém, realisar o seu fira, por isso que a doida mocidade (jue se havia enlhusiasraado com o seu Romance da Rosa, que en- cerra índa a arte do amor, viu n'el!e pasto e exemplos de libertinagem, em vez de preceitos e de licções de moral. O poeta interrompeu o seu trabalho eró- tico, tlepois haver escripto quatro mil versus.

Outro poeta se apresentou para completai' o Romance da Rosa. João de Meung, diz Chopinel, continuou o romance de Lorris, alTastando-se, porém, al- gum tanto do plano primitivo. Não quiz, no emtanto, imitar Ovidio, ou qualquer dos poetas clássicos do amor. Sob o pretexto da moralidade e da satyra dos cos- tumes, desencadeou na segunda parte da sua obra uma torpe enxurrada de in- jurias contra as mulheres, e para alTastar os seus leitores do perigoso escolho da galanteria, tractou de lhes apresentar em toda a sua nudez os amorosos incentivos das sereias, que se dedicam á perdição das almas e dos corjtos.

Parece estar perfeitamente averiguado que João de .Vleung não foi frade dominico, segundo por muito tempo se julgou, pelo facto de haver sido enter- rado no claustro do convento dos jacobinos da rua de Saint-Jacques. Era dou- tor e professor de humanidades na universidade do Paris, por isso que o seu panegyrista, o prior de Salon, nol-o representa sentado no seu jardim da Tour- nelle e vestido com uma capa forrada de arminho, como homem de qualidade, diz o bibliogiapho .\nlonio Duverdicr. Oas escholas tiouxcra o habito de cha- mar as cousas pelo seu nome, e não fazia escrúpulo, alentado pelas suas boas intenções, do usar dos termos mais obscenos e de. pintar o amor com as co- res mais lúbricas, desprezando toda a espécie de veu. Apesar d'isso, jactava-se de ser homem honesto, de corarão ijenlil e animo leal.

Se o Romance da Rosa, porém, era a leitura favorita dos jovens disso- lutos, as damas e as meninas novas, ([ue também o liam em segredo, não per- doavam ao auctor o havel-as ultrajado, especialmente n'uma extensa diatribe

2(S6 HISTORIA

contra o sexo feminino, que termina por estas palavra* : ^ínlhei-es honradas, por S. Diniz ! abundam tanto como a Phenix !

As damas, irritadas por este ultrage, resolveram castigar por suas pró- prias mãos o insultador Veio exacerbar-lhes a fúria outra opinião demasiado cruel, que o poeta ousara formular contra o bello sexo em geral: «Todas fostes, sois ou sereis, por obras ou por vontade, p. .

A vingança das damas vem referida por André Thevet nos Verdadeiros retratos e cidas dos homens illustres (Paris, Kerver, 1584, 2 tomos in-folio;) e a tradicção do facto estava ainda tão presente na memoria de todos, que An- tónio Duverdier, sire de Vauprivas, publicando quasi ao mesmo tempo em Lyon a sua 'Biblioth. franceza, nVlla faz menção da desventura de João de Meung. A narração de Duverdier é muito menos conhecida que a de André Thevet. De mais a mais contém interessantíssimos pormenores, e por isso a transcrevemos textualmente, com o filo de provarmos que no tempo de Filippe, o Formoso, as damas da corte não tinham melhor fama que as cortezãs de pro- fissão :

«Mestre João de Meung, diz o sire de Vauprivas, tendo vindo á corte- em certa occasião, foi apanhado pel.is damas n'uma das camarás do palácio real, e rodeado logo alli mesmo de muitos fidalgos, que por agradarem ás damas ti- veram de prometter auxilial-as no castigo que meditavam. Apenas João de Meung as viu armadas de fortes azorragues, e ouvindo que intimavam os fi- dalgos a despil-o, pediu-lhe a mercê de o deixarem fallar, jurando que não iria pedir-lhes o perdão do castigo que desejassem impor-lhe, bem que não o merecesse, o que lhe foi outorgado, depois de muitos rogos e instancias dos fi- dalgos.

«Então João de Meung tomou a palavra e disse :

«Senhoras minhas, uma vez que é preciso que eu seja castigado, pare- ce-me justo que m'o itifiijaia somente aquellas qut otTcndi. Ora como cu me referi ás damas licenciosas e de maus costumes e de nenhum modo ás que n'este logar vejo reunidas, se alguma de vós, formosas senhoras, se julga victima das minhas allusões, comece immediatamente a zurzir-me a pelle como a mais p. . . de todas quantas accusei.

«Nenhuma houve que se determinasse a começar, receiando carregar com a infâmia do grosseiro apodo, e mestre João escapou incólume, deixando as da- mas envergonhadas e muito satisfeitos os fidalgos circu instantes, que celebra- ram o ca.so com grande risada. Alguns d'elles eram de parecer que havia alli damas que deviam por justo titulo e fama fomeçar o castigo.»

O Romance da Rosa, em que abundam pormenores eróticos e palavras obscenas, foi para os francezes dos séculos xiv e xv o que o poema de Ovidio fora para os romanos. Escripto em magnifico pergaminho, e ornado de minia- turas, encontrava-se em todas as livrarias dos palácios e dos castellos; sabia-se de cór, era a cada instante citado, e d'elle se tiravam, como de uma fonte de refinada galanteria, todas as licçõcs e documentos da arte de amar.

Mas este celebre romance, que tinha, apesar de tudo, um fim moral, não foi menos reprovado pelas mulheres perdidas^^e pelas pessoas de bons costu-

DA PROSTITUIÇÃO 257

mes, e uma multidão de poetas e prosadores, sem duvida por iiispiraçàn das damas, refutaram as accusações parciaes e deshonestas que ii'esse livro contra ellas st^ encontravam.

Os dois mais famosos antagonistas do Romance lia Jtosa foram (".liristina de Pisan e Martin Lefranc, que .«-em deixarem de fazer justii,'a ao talento do au- etor, o censuram igualmente de haver sido injusto para com as mulheres, e de se ter deivado transviar nos torpes atalhos da prosfiluiçào. Eis a opinião que a famosa Chrislina de Pisan fez d'este livm, (jue tinha imnienso desejo de ani- quillar :

«Por isso que a natureza humana é mais inclinada ao mal, julgo que esse livro pôde ser causa do resvalamento aos maus costumes, por isso que contem vida dissoluta, doutrina de decepí,"ão, vida de condeninaçào, diffamação publica, causas de suspeita e de incredulidade, e vergonhas para muitas pes- soas, p sobre tudo mui deshonesta leitura em vários pontos.»

Christina de Pisan vivia em épocha menos despravada do (|ue aquella em que João de Meung apresentava a mulher como um vaso impuro de todos os vícios. Os costumes no reinado de Carlos, o Prudente, eram mais decentes que nos reinados anteriores ; no emtanto, a prostituição civil não deixava de ter os seus foros de cidade, no dizer d'esta virtuosa escriptora, que na sua Cite de.i dames queria mostrar que o seu sexo sobresahia ao outro em toda a espécie de méritos, e que no seu livro das Três Virtudes dava licyões de moral e de de- coro ás mulheres de todas as condições. Não esquecia também as mulheres de vida, e propunha-se convertel-as, restituindo-as à estima da sociedade. Por isso dizia a illustre dama :

«Como seria bom para qualquer mulher, assim victimada á vergonha e ao peccado, voltar ao primitivo estado de virtude! E ser-lhe-hia fácil conse- guil-o, pois, assim como tem corpo forte para fazer o mal e soffrer muitas in- jurias, tel-o-hia também para ganhar a vida; assim ella quizesse, repetimos! que não lhe faltaria quem de boa vontade a ajudasse, lhe desse onde trabalhar, mas em recato e com toda a vigilância, para (|ue nào se expozesse novamente á impureza e ao vicio em que vivera. Fiaria, assistiria aos enfermos, teria uma pequena morada n'alguma rua decente, er)tre gente honesta, onde viveria sim- ples e recatadamente, sem que ninguém a visse jamais ébria, cheia de enfer- midades, ou armando pendências com a outra gente. Teria o máximo cuidado em que da sua bocca jamais sahisse palavra própria de bordel ou prostituição (puterie) ; fallaria sempre corteznienti- ; seria meiga e obsequiosa para toda a gente, e teria o maxmio cuidado em que nenhum homem a enganasse, porqui> n'èsse caso perderia todas as vantagens adquiridas. Por este caminho, poderia servir a Deus e ganhar honradamente a vida, e mais lhe aproveitaria assim um escudo, do que cem recebidos em peccado.»

O projecto de reforma, imaginado por Christina de Pisan para destruir a prostituição, não leve outro resultado senão dar honra a sua aucíora. As mu- lheres publicas não renunciaram á sua deshoiira. nem Ião pouco veio a cari- dade ao seu encontro ofTerccer-lhcs tima pequena moraAa, nalguwa rua de- cente, entre gente honesta, nem trabalho, nem outro quabjuer meio de mudar

BiSTOBiA Dl PBosTrrmçÃo. Tomo ii— Folha 3.').

258 HISTORIA

de vida. Continuaram, porlaiilo, a ser d que eram até ahi; bêbadas, fallado- ras, bulhentas e escandalosa^^.

O mesmo resultado leve o ata(|ue de Christina de Pisan a Joào de Meung. O Romance da Rosa, sempre lido e admirado, continuou a gosar da mesma po- pularidade, sendo uma espécie de breviário para os amantes e libertinos.

Martin Lcfranc, o auctor do Campeão das damas, perdeu egualmentr a sua campanha contra a poesia erótica, tomando o Romance da Rosa para texto das suas declamações uioraes em defeza do sexo feminino.

Lcfranc era, como se suppõe, preboste e cónego da egreja de Leuse cm Hai- naut. Homem dado a galanteios, e dotado de bom humor, tomou a seu cargo a defeza das damas' contra as insolências de João de Meung.

O seu Campeão das damas não é mais de que um extenso panegyrico da vida feminina; no emlanto, serve-se com demasiada frequência do vocabulário do mesmo .íoão de Meung, som receio ile offender os castos ouvidos das pessoas a quem se dirige.

Este facto comprova o que ja dissemos a respeito do desbragamento da linguagem lilferaria e do iiupudoí' dos poetas. Desde que se entrava no plano rcsvaladiço da tjaia scieacia, força era adoptar-se o .seu estylo, creado na eschola da libertinagem e dos bordeis.

Frei Guilherme Alexis, monge de Lira na Normandia, no seu Grande hrazão dos falsos amores, composto em meiados do século .\v, não empregou linguagem mais decente du que o auctor anonymo do livro de Mallieolus, poema francez, composto no século xiv contra o matrimonio e as mulheres, c que se attribue a um bispo de Teronenne.

.Vssim, .Martin Lcfranc, que julgava empregar honradamente os seus ver- sos em beneficio das damas, condemna severamente os poetas profanos e as suas academias, que elles chauiavam Poços do amor (fui/s d'am,oiir), porque todos os seus versos pareciam sahir d'elles.

Vamos dar uma amostra cm paraphrase da cólera de Lcfranc contra os Poços do amor, que tinham o privilegio de attrahir a multidãx», sobre tudo na Picardia c no Hainault :

«E' pelos amores (|ue versejam e compõem bailadas; é para os amores que afinara o seu alto engenho. INeste estudo passam os dias ; no serviço «lo amor se empregam, como se o amor fosse omnipotente. Fazem mal, ponjuc nem se defendem contra elle, que é impotente.

«Nunca leste em vossos livros como os loucos pagãos versejavam em honra de Baccho, deus dos ébrios, e de Vénus, que tanto amavam? Era diante d'estes dois que elles entoavam os .seus versos e improvisos. Peior do que esses lou- cos faziam, se faz hoje na Picardia o no Artois.»

Nos poetas dos séculos xv e xvi pode perfeitamente estudar-se o estado dos costumes e particularidades da vida dissoluta d'essas épochas, e pelo modo de vida de alguns d'clles podemos também avaliar o que seriam os hábitos da maior parte d'esscs versejadores, que, segundo Clemente .Marot, passavam o tempo nos bordeis. Quasi todos elles podem ministrar alguns dados a uma inves- tigação dos i-ostunies públicos d"a(iue||c tempo, mat, como seria irnpossi\ cl es-

n\ PROSTiTinçÃn J59

tildar as obras d'ossa plêiade de vates, linii(amo-n'os a evirahir dos versos de Coquillart e de Villon, os dois melhores poetas do seonio xv, o (|ue pikle in- teressar á historia da prostituição.

(iiiilherme Coquillart, empregado publien em Reims, transportava para lís seus versos a gvria das rameiras da sua provineia. Deixou muitas obras de poesia joeosa, que foram muito estimadas no seu tempo, e que mereeiam real- mente esta grande estima, pelo seu espirito, um pouco licencioso, é certo, mas essencialmente franeez.

Sob o titulo de Direitos aows, reuniu um grande r)umero de |)erguntas, que foram uma espécie de código da libertinagem. Vamos traduzir em para- phrase algumas d'essas perguntas com as suas respostas.

Perguntam a este jurisconsulto de causas amorosas, s<' uma mulher joven deve amamentar seus filhos. Coquillart, poeta e entendido libertino, res- ponde em versos, cujo sentido é o seguinte:

«Ella tem as mais bellas pomas, formas roliças, bem talhadas, seio de- licioso e delicado, n5o ha nada mais bello n'este mundo.

«Transformada em ama, ficará repellente, chupada, cheia de farrapos: as pomas tornar-se-bão pelbancras; as formas roliças desapparecer5o.»

Perguntam-lhe também, se quando .se propõe um negocio de amor a uma (Vessas perigosas- sereias, que nada fazem a não ser por dinheiro, esse nego- cio é venda, aluguer, empréstimo, permuta, ou mutuo, t^.oquillart responde que é um verdadeiro contracto, fundado n'este axioma do direito romano : Facio ut des:

kE' para que dés, que eu faço. Eis a pura intenção do caso; sem dadi- vas ninguém ama n'este mundo.»

Perguntam-lbe se uma mulher publica, tendo sido enganada por uma proxeneta, que a induziu a entregar-se, pôde e\igir indemnisação d'ella. Co- quillart condemna a proxeneta a indemnisar a pobre rapariga que se fiou nas suas promessas fraudulentas, e a proseguir gratuitamente no seu trafico du- rante um tempo determinado.

O poeta falia de outro caso d'esta natureza que se refere igualmente á rubrica De dolo, e que nos demonstra que as proxenetas do século xv não eram mais humanas nem menos avarentas que as dos nossos dias. Faz em seguida o retrato de uma formosa proxeneta, a quem aponta nmi justiça á exe- cração publica, por isso que gente d'esln é n origem de todo o mal que ha no mundo. E, contando um logro pregado por esta infame a uma pobre prostituta, termina por exigir que ella pague uma boa multa.

Um ponto muito mais delicado se encontra no famoso questionário do poeta. Pergunta-lhe alguém se uma joven pôde abusar da credulidade dos ho- mens, a ponto de lhes vender três vezes a mesma cousa.

«Gbega o primeiro, talvez um ricaço. Este paga-lhe a aprendizagem e a preciosa flor que vae colher.

«Depois d'este, vem um estudante, umdoidivanasde boa casa, que julga fazer uma excellente conquista, e é o segundo a beber pelo copo.

«Vem depois ainda algum papalvo, que paga, e passa o estreito. Parece- vos que será justo vender uma cousa a três?»

?6<l HISTÓRIA

Coquillact é milito ami^o «la justiça para pormittir simiihante desaforo, uma fraude de tal onlem a respeito da qualidade do ^teiiero, e ordena que a nympha, eulpada de esfellioiíato amoroso, seja açoitada em castigo do seu crime,

«Semi-núa, para se reconhecer o delictn, sohre uma cama, eom os den- tes cerrados, e o espirito entregue a devaneios amorosos. .

O digno Coquillart, que na sua qualidade de funccionario, tinha que jul- gar frequentemente casos difficeis, desenvolve toda a sua sciencia juridica no famoso Jjligin entre a Simples e a Áslufa.

«O que predomina n'esta peça, diz o abbade Goujet (Ribl. franc, t. x, pag. 160) é a obscenidade. Duas mulheres disputam entre si um amante. Os advogados sustentam o pró e o contra, expondo minuciosamente os direitos de cada parte, c estes direitos trazidos a publico estão longe de se fundar nos bons costumes das partes litigantes. O juiz interrompe os advogados ; estes voltam logo á questão. Segue-se a inquiriç.ão das testemunhas, é um processo em forma.»

Um dos advogados, mestre Simon, sustenta largamente que se os homens, em virtude da sua força, não tivessem mais do que abaixar-se para salisfaze- rcín os seus desejos a respeito das mulheres, esta grande facilidade de praze- res sensuaes traria comsigo sérios inconvenientes, porque se seguiriam scenas de luxuria no meio das ruas, amesquinbar-se-hia o oflicio das prostitutas, to- lias as raparigas seriam i)erdidas, e todos quereriam possuirás mulheres mais bet- las e mais seductoras, .se cilas assim tão facilmente se abandonassem.

Entre os depoimentos das testemunhas ha um muito interessante de uma velha proxeneta, que conta como a Astutu era uma mulher de vida licenciosa, a ponto dl- açular todas as mulheres publicas do bairro contra a Simplex, indo de noite acompanhada de seus adeptos lazer um sabbat infernal á porta da sua inimiga. U retrato d'e,sta proxeneta c uma id)ra prima de apodos burlescos e obscenos. Ella é a prinrezo dos bordeis, a ijravde esmoler da.s rdineiras, etc. etc. As testemunhas são um famoso rancho de prostitutas, cujos nomes e al- cunhas são curiosissimos, e denotam a persistência dos u.sos da prostituição: Mariquitas de Traine-Poelras, Atjoslinha, a Mal-talhada, fíeqnaudint, a Re- dondinha, Demoraut, a Porca, Guillemette, a Coxiraça, Michelor, a Pencuda, Clirisiina, a Descorada, Egypriaca, a Espalhajato, Henriqueta, a Panelleira, Lqurença, a Mal-encarada, Oliva, a (laste-Faíras, etc.', etc.

Estas diver.sas alcunhas, que caracterisavam os defeitos ou as qualida- des das prostitutas, poderiam dar matéria a curiosos commentarios. A.ssim Oliva, Itaste-halras parece-nos ter merecido este nome por costumar perder 'os ho- mens que com ella se meltiam. N'aquclle tempo chamava-se fatras um mo- llio de chaves, c em sentido figurado, as trapaças e enganos.

.Mariquitas de Trai ne-Poe trás devia a alcunha á immundicie da cami.sa, simiihante áquella que um escriplor cómico daeschola de Bruscambille nos re- presenta pintada por diante e dourada por detraz. De resto, é de presumir que o poeta (loquillart não fosse buscaros seus assumptos a Paris, e que recolhia nos seus versos tudo o que tinlia visto pelos próprios olhos na cidade de Reims.

Coquillart toi magistrado excellenle, e João Juvenal dos Ursinos, arce-

DA PROSTITUIÇÃO 261

bispo de Reimí! chegou a no?Tieal-n seu executor testamentario em 1472; mas era poeta demasiado jocose e de costumes muito livres. Ha nas suas poesias muitas liberdades, que apezar de verdadeiramente engenhosas, Lafonlaine não teria imitado. Pelo que .se vè, o bom Coquillart não era muito escrupuloso a respeito da moralidade das pessoas que frequentava. Os seus versos iniciam-nos no seu género de vida, e o seu epitaphio, composto por Clemente .Marot, mos- tra-nos que morreu como tinha vivido.

La morre est jeu pire qu'aux quilles, jVf qu'aux eschecs ne qu'au quillart: . Á ce meschant jeu Coquillart Perdit la cie et ses coquilles.

Este epitaphio não foi comprehendido pelos biographos que o téem ci- tado. Suppuzeram elles que o bom Coquillart, tendo perdido uma grande som- ma ao jogo da morra, viera a morrer de pesar. N5o foi assim, segundo o abbade Goujet. Clemente Marot nos versos citados allude ás três conchas, ou coquillea de ouro, que o velho Coquillart usava no seu escudo.

.4 nossa opinião, porém, diverge bastante da do commentador dos ver- sos de .Marot. Quer-nos parecer que ha no epitaphio em questão um jogo de pa- lavras e nada mais.

A morra é um jogo de origem antiquíssima. Chamavam-lhe os romano.s micatio digitam, e consistia em levantar tantos dedos como o parceiro, decla- rando o numero com uma rapidez maravilhosa. E' fácil comprehender a allu- são indecente que o poeta oITerece ao espirito, comparando a morra com o jogo amor, pela analogia que ha entre ambos.

Resulta d'aqui ter Coquillart perdido a vida e as coquilles, outra allusão indecente, no jogo do amor. Entendia-se em sentido metaphorico por coquãlc o órgão do sexo feminino, e por coquilles os testículos. Havia até um provérbio para as mulheres: La coquille lui démange ; e outro para os homens Les coquilles lui sonnent.

Dada esta explicação philologica, é claro que Coquillart, á força de fre- quentar a c^jmpanhia das mulheres, contrahiu uma enfermidade vergonhosa, tão damninha, que o pobre homem perdeu a vida ás mãos do cirurgião, que teve de lhe cortar os testículos. Coquillart morreu elíectivamente em 1500, épocha em que o mal napolitano assolava a França. A sua morte foi em verdade bem pouca honrosa para um magistrado, mas muito natural para um poeta que nunca tivera outras musas senão as nymphas dos bordéis

CAPITULO XXIII

SUMMARIO

Vida dos libertinos «; das mulheres publicas ao século xv.— A mocidade de Francisco ViUon— Suas p-o-iaf. —Seus processos e seu pequeno testamento. Tabernas famosas.— Seu epitapliio.— O grande testamento de Vlllon. —A bella Heaulmière.— As mulheres alegres.— Saint-Genou e Brisepaille no Poitou.— Enné, exclamaçSo das pros- titutas.— Quadro domestico das ribaldas e dos seus amantes. Bailada dos devassos.— As trutas u os porcos.— Vil- loD encommenda a sua alma.— A diaba de Montfaucon.— Os farsantes.— Os Sem cuidados. - A mocidade de Cle- mente Marot.— A lenda de Pedro Faifen.— Maeeia, devota e mulher publica.

Jas obras lie Francisco Villoii pôde l'azer-se um excellente estudo do que era no século xv a vida dos libertinos e das mulheres de maus costumes. Villon, antes de entrar na prisão do Chatelet, onde foi condemnado a morrer no supplicio da roda, passara a mocidade nos bordeis, sem outras companhias que nào fossem as que por aquelles antros encontrava. Como elle próprio confessa, o jogo, os banquetes e as mulheres arrastaiam-ii'o ao crime, sendo castigado duas ou três vezes com os seus cúmplices.

Villon era filho de uma familia honrada, ainda que pobre, que tinha o appellido de Corbeuil. O poeta adoptou o sobrenome ou alcunha de Villon, como quem diz ladrão, ou ratoneiro, quando as suas proezas na arfe o fizeram co- nhecer como um famoso marau entre os ribaldos da cidade de Paris. Dizia-se estudante, e pôde presuniir-se pelas suas poesias que estudou effectivamentc nas grandes eschólas da rua de Fouare, antes de ser proclamado mestre em ar- tes nas escolas da gyria e da prostituição.

Comevou a sua carreira por alguns roubos de pequena importância, que apenas lhe proporcionavam uma boa comezaina em companhia dos seus ami- gos e amigas. Encarregava-se de obter sem despeza pão, carne, e sobretudo vinho, inventando partidas, e verdadeiros rasgos de engenho para enganar os tendeiros. O seu primeiro processo data de 1456, em que foi encerrado nas prisões do Petit Chatelet. Durante este primeiro captiveiro compoz o seu Pe- queno Testamento (Petit-TestamentJ em que commemora alguns factos da sua vida crapulosa. Accusa das suas faltas uma mulher a quem amava, e que nào nomeia. Era sem duvida alguma mulher publica, que teve de o pôr no meio da rua uma noite de inverno, intimando-o a que não voltasse mais.

264 HISTORIA

Vendo-se sem asylo e sem meios de subsistência, Villon teve de recor- rer ao roubo, para não morrer de fome, e deu-se á vida vagabunda pelas ruas de Paris. Apesar d'isso, recordando com prazer os bons tempos, que havia pas- sado com elia, deixa-lhe em herança o seu coração morto e gelado. «A'quella, diz o poeta-salteador, que duramente me expulsou, que fiquei para sempre privado de alegria, e alheio a todos os prazeres!»

Uma passagem d'este curioso Pequeno Testamento diz-uos que os liber- tinos da Universidade costumavam ir passar o tempo e esquecer maguas á ta- t)erna do Abreutoir Popin, sita á beira do rio, defronte da rua Tbibantodé, e a outra espelunca não menos famosa chamada o baracn da Pomine da Pin, que ainda existia no século xvii.

Francisco \ illon tinha apenas vinte e seis annos quando sahiu do Petit- Chatelet, para novamente se entregar aos seus preversos hábitos. A socie- dade que frequentava foi-lhe o mais funesto possível. Continuou a viver á custa de mulheres publicas, que lhe concediam o privilegio de amante, mas não se contentava com o dinheiro que lhe provinha da indigna profissão das suas companheiras, por isso começou a assaltar os viandantes á mão arn)ada na es- trada real, de combinação com alguns homens depravados, que o ajudavam logo a dissipar a presa no jogo e nas comezainas a que se entregavam.

Em 1461, depois de um d'estes assaltos, que, segundo parece, leve por theatro a aldeia de Ruel, nos arredores de Paris, foi outra vez preso em Me- lun com cinco dos seus cúmplices, julgado pelo tribunal do Chatelet e condem- nado a morrer na forca no patíbulo de Mont-fancon.

Apesar disto, não tomou o caso muito a serio, e até compoz a propósito da suíi sentença um epitapbio em versos burlescos.

. No eratanto, por conselho do seu advogado, não se conformou com a sen- tença do prebostado de Paris, e appellou para o parlamento. Emquanto espe- rava pela resolução do seu recurso, escreveu em verso o seu Grande Testa- mento, no qual introduziu com muito engenho e malícia todos os jogadores li- bertinos, e outro pessoal da prostituição contemporânea. O Grande Testamento não revela da parte do seu auclor cunfricção dos crimes (juc o haviam posto n'aquclle transe. E' apenas um echo fiel dos bordeis de Paris, e um espelho escandaloso da vida dos poetas, dos estudantes e dos vadiíjs.

Villon começa por introduzir no seu testamento a bella Heaulmiére, que chegara a usar nos seus bons tempos cinto dourado, emblema de prostituta de alta voga, mas que no decahir da edade não tinha outro oilicio senão o de di- rigir e governar uma abbadia, ou lupanar.

A bella Heaulmiére, tinha sido realmente formosa, e por isso muito re- questada por gente de qualidade, commerciantes, homens da egrcja, fidalgos, etc, que não regateavam o preço dos seus favores. Mas na epoclia em que es- tes favores se pagavam tão caros amava doidamente um rapaz ([ue não lhe dava senão maus tractos e grossa pancadaria, e que lhe comia tudo quanto ella ga- nhava com o suor do seu corpo. Como se vé, os costumes dos miseráveis pa- rasitas da prostituição não haviam ainda mudado no decurso de quatro sé- culos.

IIA PROSTtTUlÇÃO â(i-')

A vida fresta cortezã, segunda se dcprehende dos versos de Villon, leve Iodas as pliases desgrayadas, que são próprias da libertinagem e da itnpudiei- cia. Bella e requestada, apai\i)nou-se de niii parasita que lhe devitrava (|natilo possuía, e ainda por cima a maltratava rudemente. Alguns eommenladores do poeta obstinam-se em o suppòr amante da eortezíi, c dizem que a seu respeito se devem entender as magoadas queixas da Heaulmière. Ha nos versos de Vil- lon um bello quadro dos encantos da cortezã, nos tempos da sua triumphante juventude, e dos estragos que mçis tarde a edade, os solírimentos e os maus tractos n'ella produziram :

«Q)ue foi feito, diz ella tristemente, cresses belios cabellos d'()uro, (fcs- sas avelludadas sobrancelhas, d'essa fronte polida, d'esse olhar sympalhico e tentador, d'esse nariz tão lindamente proporcionado, d'essas encantadoras ore- lhas, dos lábios vermelhos e frescos, emlim dVsse rosto delicioso'

«Em que se transformaram aquellcs formosos hombros, aquelles braços e mãos tão primorosas e fidalgas, aquelle seio deslumbrante de alvura, mais puro e branco do que as assucenas?

«A fronte enrugou-se, embranqueceu o cabello, despovoaram-se as so- brancelhas, apagou-se a luz do olhar, luz em (jue tantos amantes se queima- ram; o nariz perdeu toda a elegância, a barba cresceu desmedidamente, per- deram a còr os lábios, e emhm o rosto cobriu-se da pallidez dos cadáveres.

«Fugiu a belleza. Encolheram-se os braços, descarnaram-se as mãos, cur- vou-se em abobada a espinha dorsal; pelle e ossos, eis o que resta de tudo (|uanto outr'ora se fez amar com delírio!»

A bella Heaulmière, n'esta ultima phase da sua tormentosa existência, serve apenas para dirigir e aconselhar as raparigas. Vdion compõe uma faiTiosa bailada, i>m que registra os [irudentes conselhos Oados agora pela proxeneta ás suas discípulas. Da mesma bailada se conclue (jue as mulheres publicas per- tenciam na sua maior parte a cor|ioraçues de ollicios ou grémios, segundo temos indicado :

«Pensa bem n'tsto, bella luveira, que costumas ser minha discípula, e tu, Branca, a sapateira, porque é tempo de vos conhecerdes. Tirae o mais que puderdes á direita e á esquerda, não [)erdoeis a nenhum homem, poriiue as ve- lhas deixam de ter curso, como a moeda mandada retirar <la circulação.

«E tu, gentil salcliíclicíra, tão hábil nu arte da dança, e tu, (iuilhermina, a tecelã, não vos ílludaes a respeito dos vossos amantes, porque todos eilcs vos darão com o em*sendo veliias, como moeda mandada tirar da circulação. «Joannica, a chapeilcíra, evita que o tedío te envolva nos braços, (latba- rína,* a correeira, não despeças desdenhosamente os homens. Oueni não é bella tem de ser amável. A feia velhice não inspira amor, é como a moeda mandada retirar da circulação.

«Filhas, quereis saber por(|ue choro e me lamento? Porque ja não sou mais do que uma velha moeda mandada retirar da circulação."

Esta bailada tem o merecimento.de nos mostrar que a pro.stituição se re- crutava no século xv entre as luveiras, as salchicheiras, as tecelãs, as cha- pelleiras e as sapateiras. Descobrimos a(|ui, no emfanto, uma particularidade

UUTORU PROSTITinpÃO. ToUU II— toLHA 34.

266 HISTORIA

que mereço consignar-se. Essas mullieres punliam-se á janella para altraliirem os transeuntes, como se faz ainda na Hollanda e em Amste?-dam, onde em cer- tas ruas suspeitas, em casas ao rez-do-chão se vcem peias janellas atravez de cortinas transparentes muliicres semi-nuas ou voluptuosamente vestidas.

Francisco Villon, que tinha em perspectiva as forcas patibulares do Montfaucon, e que talvez estivesse a esse tempo algum tanto arrependido dos seus erros com a esperança de escapar ao castigo, aconselha os seus leitores a que aprendam o baral, ou a táctica das mulheres publicas, que a um tempo arruinam a bolsa e a honra do próximo, por isso que diz :

«São mulheres perigosas, que amam apenas por dinheiro. S(S as amamos por hora, ellas amam todos aquelies que trazem a algibeira bem provida. >^

O poeta lamenta-se de não haver frequentado as mulheres honradas, que o teriam preservado do vicio, em vez de o fazerem cahir n'elie. >'o cmtanto, não pôde deixar de recordar com uma certa complacência as companheiras da sua louca juventude; eram mulheres infames, mas Ião bellas, tão bem dispos- tas para o amor! Lembra-se lambem das licções que recebeu de duas d'ellas que lhe ensinaram a fallar alguma cousa o poicieein. Julgamos que Villon en- tende por esta expressão, cujo sentido exacto nos seria dillicil estabelecer, a arte de souteneur de raparigas, como quem diz dono de casa ou bordel, vivendo a custa do corpo das prostitutas.

Das suas duas mestras falia por uma metaphora, que é mais intelligi- vel, ou que, pelo menos, tem sido explicada. «São, diz elle, raparigas bellas c galantes, que moram em Saint-Genon, perto de S. Julião, nos degraus da Bretanha de Poitou, mas não digo propriamente aonde é. Pensae n'islo durante três dias. Eu não sou fão doido que assim descobrir os meus amores.»

Para comprehender esta linguagem figurada, c preciso confrontal-a com a passagem do fiartjanlaa. de Rabídais (liv. i, cap. 6) em (]ue se tracta de uma sórdida velha que exercia a profissão de parteira. «.A velha tinha vindo de Hrisepailk, perto de Sainl-íknou.'» O douto Leduchat, no seu commentario, explica que no Helphinado se designava dVste modo uma velha impudica. «Quer isto dizer, accrescenta elle, que de ha muito a velha tem amachucado com os joelhos a palha da cama.»

' Nas obras de Villon encontra-se a seguinte máxima morai para uso dos hons-mrantx do seu tempo :

«Não ha thcsouro como viver cada (|ual ao seu gosto.»

Faz um grande elogio das mulheres de Paris : H nesi hnn Iter (jae (h l'anx, diz cllc. O bico a (jue se refere é a lábia das parisienses, das ((uaes cita ainda ontrras (jualidades, accrescentando, porém, ijue estas mulheres não cos- liimavam fazer fortuna na vida airada. «Testemunhas, diz elle, Jac(|uelina, Perrette e Izabel, que diz Enné !v

('.l<'inenle Marot, em nota á sua edição de Villon, diz que a palavra eíuic' era um juramento ou interjeição muito usada pelas prostitutas. Villon compa- dece-sc da pobreza d'estas três raparigas, a quem não pudera enri(|uecer, dese- jando-lhcs as migalhas da meza dos ("eleslinos e dos C.harlreux: não obstante todas as suas preferencias são |)ara .Vlargot, a quem dedica uma bailada, em

MA PROSTITUIÇÃO

á()

que ollt" próprio é o heroe, c a sua nymplia a lieroina. Esta bailada oílerece-nos o quadro pilloreseo c cynico da vida domeslica ilas rihaldas o dos seus ainanfes.

O poela e a sua nyinplia impudica viviam, segundo a bailada, no mes- mo bordel, en re hminhl. diz elle, níi /íohv ifucins noslre ('lai. Ouando appa- recem freguezes, o poela laz-llies as honras da easa, oITerece-lbes agua, queijo, pão e fruelas. O essencial é que elles paguem bem. A questão é de dinheiro. Quando o ha, a vida corre bem. Mas quando elli' se acaba, Deu.s do ceu, que vida aqueliai O poeta e a nvmpha descompôern-se mutuamente, elialurdando miseravelmente naquelle lodo em que se metterani. dritos, pragas, impreca- ções, pancadaria, lai é o quadro dos dias de fome. O poela o diz n'esta bai- lada : Onlarf acnns et ordure nou!i anil!

E' impossível desciwer com cores mais vivas e reaes aquelle horrível e intamc concubinato, em que o homem vivia da prostitui(,'ão da mulher, a quem amparava e dava protecção. Villon laz-nos entrar n'aquelles all)ergues infectos lia libertinagem e c'a crápula.

Nillon tiidia sido amante de Margot, a (juem espancava quando não lhe trazia dinheiro, l.endo-se, porem, o Grande Teskiwento, cncontram-se muitas rivaes de iVlargot, e do mesmo getirro exactamente. Assim o poeta falia de Ma- riquitas, o hlolo, e da famosa .loaniia de Urelanha, que tinham e.sehola pu- blica, iiiide (I disripnio lirròe.s ao mestre.

I nia outra bailada do poeta diz-nos que os cómicos, os músicos e os jogadores formavam a llòr e a nata da prostituição. Villon distinguira-se sempre entre esta gente pelas suas loucuras e amores, apesar de pobre. Verdade seja que elle costumava tirar dinheiro ás mãos cheias da algibeira das suas amantes, ou melhor, dos frequentadores das suas amigas. Um dia roubou um rico ava- rento, chamado .lacques .lames, que gastava o seu dinheiro em trutas, e que comprava os seus prazeres o mais barato possível.

Depois de ter feito em tom burlesco as suas ultimas disposições, o desgra- çado Villon recommenda a sua alma ás orações de todos os que se podem inte- ressar pela sua sorte I

«As raparigas que costumam mostrar as pomas, para terem maior numero de freguezes.»

E segue uma longa enumeração de todos aquelles que passam a vida nos oordeis, e (|ue foram n'outro tempo seus companheiros de crimes e loucuras.

O recurso que até então havia retardado a execução de Villon teve um resultado que o poeta estava bem longe de esperar. Foi comprehendido no in- dulto (|ue Luiz XI concedeu aos presos por oceasião da sua feliz subida ao throno. O poeta escapou assim ao supplicio da forca, e voltou novamente '/s tabernas e ás mulheres.

Tinha visto, porem, muito de perto as consequências de* um processo criminai para .se expor novamente ao mesmo lance. Mas, como era em dema- sia vicioso para morigerar o seu procedimento, não seguiu a este respeito nova linha de conducla. O que evitou d'alii em diante foi voltar a roubar nas es- tradas, ou cabir por qualquer outra forma nas mãos de justiça.

Eoi por este tempo talvez (jue o poeta tomou parte n'aquelles famosos

2(>S HISTORIA

repiíes franches, comezainas ú cusin da hnrha longa, que foram celebradas em verso por um dos seus auhdilos, e que descendiam em linlia recta das suas an- tigas proezas (riUonerien.) Tractava-se sempre de' hoas comezainas á custa do próximo, e de arranjar, como n"outros tempos, carne, pão e vinho por algum rasgo de astúcia nas tendas dos vendedores de viveres. O poema dos Repues franches, que foi attribuido a Vilion, convoca para estas comezainas toda a turba militante da prostituição, as s-acerdotisax do amor, os cómicos, os liber- iinoí, os vibaldos, as proxenetas, ele, ele.

0 csfylo do poema fal-o suppor muito posterior ao tempo de Vilion. OiuHito ás aventuras que ri'elle se referem, ha uma que pertence evidentemente ao cclclire estudante de Paris.

1 us alegres companheiros foram uma noite fazer uma pastucada ao campo, perlo do patíbulo de Montfaucon. Iam bem providos de vitualhas, levavam pão e vinlio em abundância, e um grande pastel, que continha nada menos de seis frangos, e além de tudo isto, arec eu.r chacun une filie: Cada um levava a sua rapariga.

Dois estudantes, nm dos quaes devia ser o próprio Nillon, iembraiam-.se de comer' a ceia d'aquelles joviaes companlieiros, que foram encontrar sentados á meza, n'uma espeeie de cabana, onde esperando comer como uns abbades, se divertiam a apalpar de alio a baixo as raparigas.»

Os dois estudantes haviam-se disfarçado de diaiws, tinham mascaras horríveis e umas pesadas massas com que assaltaram os commensaes, grilando : *.4' morte estes patifes! Prendam com estas cadeias de ferro os ribaldos e as prostitutas, e levem-nos para o inferno!»

Os convivas, tanto os do sexo forte, como as pobres raparigas, fugiram es- pantados, julgando-se nas unhas do diabo, e deixaram a ceia magnitica, ape- nas encetada, emquantc que os dois diabos, sentando-se muito pachorrenta- mente á meza, comeram e beberam com grande appelite, sem que a festa lhes custasse um real.

Esta engraçada aventura foi alecerto a origem de outras contadas pelo velho Habelais a propósito de Vilion, e dos seus companheiros estudantes, dis- farçados em diabos, representando farças, mysterios e moralidades. Os actores nómadas d'estas composições dramáticas, eram todos consumados libertinos, ainda que ás vezes represeniasseni peças moraes e religiosas. No emtanto, as mais das vezes faziam comedias que não exigiam grandes apparatos de scena- rio, nem de trajos, como os myslerios. Este género de comedia popular era o que. mais convinha aos .seus costumes e modo de vida.

Assim andavam de povoação em povoação, representando as suas farças com applausrt dos seus rudes espectadores, que tractavam de rir, saboreando com delicia o Sal e pimenta da graça e vivacidade franceza.

J-^stcs actores c poetas ambulantes viviam cora mulheres perdidas, ás quaes não apresentavam em scena, por is.so mesmo que elles próprios desem- penhavam os papeis de mulher, pintando a cara, ou cobrindo-a com uma mas- cara. Antes dos lins do século xvi nunca mulher alguma tomou parte (Mii França nas representações tlieatraes. O bom publico francez, que jamais .se escan-

DA pnnsTiTurçÀo ' S69

(lalisava do ouvir os mais obscenos dilos, não os loleraria na liocca de nma nnillier.

No emianto, a verdade é que estas companhias cómicas, na sua maior parle compostas de poetas, estudantes, ajudantes de notários c jovens aventu- i'eiros de todas as ciasses, tiniiam costumes Ião livres e tão impudicos mesmo, que a auctoridade civil e judiciai teve por mais de uma vez de ordenar que se dissolvessem, impedindo-os de percorrer o paiz com o escândalo das suas rcpresenla(,ões. As companiiias de Basorhe, da Mère-Sone, do Prince des Snts, do Império de Orlemos, dos Sem-cuidados, foram ainda muito maisassociayues de libertinagem do que associações de gente de tlieatro. O produclo das f arca n, segundo a e\prcssã<t do tempo, era sempre destinado a fornecer a meza e o leito dos farra mes.

jNos fins do século xv, os poetas profanos iam fazer a sua aprendizagem a estas alegres associações de lii)ertinos, onde cada qual esquecia o seu ver- dadeiro nome para tomar uma divisa, ou alcunha. João Bouchet inlitulava-se o Traressetir des nries periUeiises: Francisco Haber, o Baunij 'df liesse; Pedro Gringoire, o Mère Solte, etc.

Clemente Marot, que foi auctor e actor de farças na companhia dos Sem- cuiiladosr encarregou-se de defender em verso os seus companheiros de ollicio contra os invejosos que os tinham accusado de passarem vida escandalosa, e que provocaram a sua expulsão de Paris no anno de 1512.

Marot, porém, tinha demasiado interesse em occullar a verdade para não cobrir com uma capa de honestidade os escândalos de Sem-cuidados. A dar credito ás suas alfirmativas, os seus companheiros não tinham senão peccados veniaes.

As obras do poeta estão cheias, no emtanto, do que elle chama as remi- niscências da sua verde juventude. Ainda assim, Calvino conseguiu eonvertel-o á reforma.

Tal era a vida ordinária dos estudantes, que seguiam seus cursos até á edade viril, e que encontravam em Paris e nas cidades universitárias tantos pretextos de libertinagem. Por isso, quando Clemente Marot tinha apenas deze- nove annos fazia este juizo hiperbólico das ribaldas da capital: «Quando as (|ueridas filhas do prazer encontram algum amante arrojado que lhes colloque um diamante diante dos olhos risonhos e alegres, ora! cahem logo de barriga para o ar!»

Um contemporâneo de .Marot, Pedro Faifeu, que era estudante de Angers, e cuja lenda em rimas foi colligida por Carlos Bordigné no anno de 15:11, con- quistou uma fama quasi igual á de Villon pelos seus ditos e feitos celebres. No emianto, como o seu historiographo era sacerdote, teve de passar em silencio os factos mais indecentes e os conceitos mais impudicos do estudante de Angers, cuja celebridade rivalisava com a do estudante de Paris. N'esta lenda assim expurgada, não se encontra o quadro da prostituição dos estudantes, mas é licito julgar que Faifeu frequentava assim como Villon as tabernas e as mu- iheiTs, com as quaes gastava todo dinheiro que podia escamoteai- ao pi'oximo.

Kis o modo como elle se vingou um dia de uma velha devota, chamada

?70 " HISTORIA.

Maceia, que elle (jualifica de Lorpidiim. como quem diz feiticeira. Em Raheiais, a palavra encontra-sc d'este modo Lourpidon. A velha malquistara o poeta com sua mãe, contando á boa senliora as partidas que a voz publica attribuia ao endiabrado estudante. Emquanto a beata ia d'este modo desfiando o seu rosá- rio de maledicências em detrimento de Pedro Faifeu, o estróina consegue fur-, tar-lhe & chave da porta, vae procurar uma ribalda alegre e folgazã, com a qual havia combinado a troça, e introdul-a no quarto de Maceia, e faz en- tregar á velhota a chave o mais disfarçadamente possível. A gente honrada do bairro, vendo a prostituta á janella da beata, escandalisa-se, e vae pôr cerco á casa, insultando a vejha com os apodos de alcoviteira e dona de bordeis. Fai- feu, quando as cousas chegaram a este ponto, corre a casa de sua mãe e diz- Ihe, fingindo a maior indignação:

Como! Pois credito a esta maldita velha! AÍIirmo-lhe, sob a minha palavra, é enforcado seja eu, se minto, que n'este mesmo instante ella tem es- condida em casa uma prostituta, que destina para algum frade. Se d.uvida, peço-lhe que vônha ver, minha mãe!

A excellente senhora vae eííectivamente em companhia da velha, que pro- testava contra a calumnia de Faifeu, mas ao chegara casa, julga-se victima tie uma illusão diabídica, e benze-se aterrada, eni presença de uma realidade incomprebensivel para cila. Abre a porta, no meio dos insultos e gritaria da gente (|ue alli estava, e correr ao seu encontro a abraçal-a uma mulher publica atiiunir. diz taifeu, isto é, vestida com todos os atavios e insígnias da |)rostiluição!. . .

CAPITULO XXIV

SUMMARIO

Pbilolugia erótica.— Gyiia. ou dialeelo da proslituicão.— Origens d't'.sla gyiia.— Um autigo conto a les- pcitn de Wc e /loc— Commeniario de Rahi'lai? por I.educliat,— E»'oííVo verba, rto Al)hade d'Auliiaye.— O dicci jnario cómico de Leroux.— Riqueza da liujjiia erótica no século xvi.— Nooies antigos Oas muiliercs pulilicas.— S\non\nios formados do grego, do latim, do italiano, ctc— Synonymos tomados dos noaies danimaes.— Syuonymos relativos á vida errante das prostitutas. Outros ainda relativos ao seu ollicio. Outros i|iie as claísiiieam por categorias.

Periphrases e jogos de palavras licenciosas.— Nomes de santos disfarçados oii corrompidos Novas addie;ões a nomemlatura ilo Abbade de lAuInayc— As mulheres de talão curto. -Provérbios moraos tirados da prostituirão.

Iliminutivo de Catbarina.— Antigos nomes dos bordeis « suas etymologias.— Antigos nomes dos parasitas da pros- tituição e suas etymologias.— Retrato de uma velha proxeneta feito pelo illusire Rabelais.— A sybilla de Panzousl.

Rêgnier.

E A PHiLitiotíiA eiotica devesse entrar n unia liisloria geral da prostiluiç,lo, poderiumos eon.sagrar-lhe muitos eapiliilos lào no- vos como interessantes, por isso que não existe ainda nenhuma obra especial em que se tenham estudado a fundo as oriycns da língua, ou melhor, da gyria dos bordeis. Ksla lingua, que pôde chamar-se tecbnica, existe apenas indicada n'alguns diceionarios france- zes, emquanto (jue a maior parte dos glossários gregos e latinos lhe concedem logar amplo, inislurando-a por assim dizer sem o menor escrúpulo com a lin- gua oratória e lifteraria.

Nada seria mais fácil do que extrahir dos glossários consagrados ás lín- guas antigas e clássicas tudo quanto se relaciona com a prostituição antiga, c o douto l'. Pierhugucs não precisou de fazer grande dispêndio de erudicção para compilai- o seu (llossariuin erotictau lingiue latinai, cujos artigos mais curiosos são obra de um notável philologo, o barão de Schonen, tão conhecido pelos seus interessantes trabalhos sobre os eróticos gregos, que o collocaram na pri- meira plana dos modernos eruditos

Tudo está ainda por fazer para o conhecimento da antiga lingua erótica franceza. São enormes os maleriaes, mas no emtanto não foram ainda recolhi- dos para este fim. Se, como diz Boileau,

Le latin duns Us mots brave l'honneteté.

O francez é mais modesto, ou pelo menos mais timido. Esta lingua erótica tão rica e ás vezes tão engenhosa, não costuma espandir-se a não ser nos

Zn HISTORIA

chistes, nos romances lilierliiios, nas poesias livres, nos cantos alegres e nas trovas deslionestas. Por outro lado está cuidadosamente cerceada da linguagem |iropi'ianiente dita, e desterrada dos vocabulários, onde sii penetra graças a um disfarce convenienie e honesto ; mas nem por isso perdeu a sua existiíncia e a sua originalidade, perpetuando-se de hocca em bocea, pela tradicção, conser- vando os seus arcliaismos, as suas metaplioras, as suas imagens, os seus provérbios, e até as suas onomatopeias. Tem alguns pontos de contacto com a outra gyria não menos interessante e pittoresca dos ladrões e assassinos e com o calão do populacho. Tem a sua razão de ser, e apezar de não se elevar jamais á linguagem da gente honesta, apezar de estar f(ira da lei da grainma- tica, apezar de não fazer parte do curso de humanidades, conserva-se ainda cheia de vida, e não eiivelhecerá jamais, por isso que assenta sempre sobre as mesmas l)azes e não precisa de se estender a novos objectos.

Seria fácil provar n'um estudo philologico a respeito da gyria da prosti- tuição (|ue esta gyria é contemporânea da linguagem vulgar, e que se tormou de uma mistura confusa de todos os idiomas e dialectos, como se houvesse tido a pretenção de ser uma lingua universal.

Ha enecíivamente nesta extranha gyria, nascida do capricho e da oppor- luiiidade, do acaso e da occasião, uma multidão de palavras que nem seiíuei- perderam o seu caracter nacional e que se fizeram francezas permanecendo gre- gas, latinas, italianas, allemãs, ou hespanholas. Parece que a prostituição, sempre de sua natureza errante e vagabunda, teve de estabelecer entre os seus filiados de ambos os sexos uma linguagem de convenção, que se fallava e en- tendia igualmente nas dilTerentes províncias da França, n'uma éjjocha em que duas cidades vizinhas eram ás vezes exiranhas nma á outra por causa dos seus dialectos.

l'm auclor francez parodiou livriMuente o conto de Heródoto, o qual atlri- hue a Psametico, rei do Kgypto, um singular invento para descobrir qual fosse a lingua primiliva. mãe de todas as outras. Segundo esse auctor, tratava-se de saber i|ual liniia sido a primeira palavra da lingua franceza, e as academias declai'aram-se incompetentes peraiite esta espinhosa e dillicil (|uestão.

I) sábio, que se occupava da solução desta enorme dilliculdade, lembiou-se um dia de consultar uma mulher demente, por isso que os loucos costumam ter a sciencia infusa, na opinião de alguns aucfores. A louca havia sido cor- iezã.

Tiveste alguma vez na lua vida copula com uni mudo:' Perguntou-llie o sábio, assumindo o seu tom mais doutoral.

Muitas vezes, respondeu a mulher.

Muito bem. Dize-me, e nunca podesle arrancar-lhe ucua palavra qual- (|uer n'essa occasião?

Decerto. C.ostumam dizer Kiv e hov.

Mas isso são palavras latinas, mulher!

Nada, fillio, são francezas: cm et cela (isto e aquillo.l

Kste conto merece ser invocado em appoio da venerável antiguidade; do dialecto erótico.

PA fKOSTITUIÇÃn 2" 3

A obra iiuo Iracta mais circunislanciadamenle iFesta mysleriosa linguagem ó por certo o commentario de Gargantua e Panlaurnel, por J. Leducliat. Esle lionesto pliilologo, apesar dos seus protestos, não tiniw escrúpulo em chamar as cousas pelo seu nome, c em questões de erudicy;\o nada lhe parecia inde- cente. Remettemos o leitor para este celebre commentario, (|ue outro philoiogo, E. .íohanneau, completou depois no mesmo gosto,- excedendo ainda as obsceni- dades requintadas de Rabelais. .

Ha um terceiro commentador do auctor do Ganjantna; que se consagrou particularmente a estudar a lingua erótica no seu auctor favorito. E' o douto e paiiKigruelico abbadc dAuInaye, ijue na'edade de oiteirta annos publicou uma edi<,'ão de Kabelais (Paris, Desoer, 1820, 'i volumes.) Sob o titulo de Erótica verba, inseriu no terceiro volume da sua edição um pequeno glossário, (|ue não lhe foi apenas ministrado pelo auctor commenlado, e que necessita de desenvolvimento na explicaçào das palavras. O audacioso abbade hesitou sem duvida ante os perigos da matéria, apesar de haver collocado o seu ensaii pornologico sob a égide (Peste dislico de Tabourot :

l'iili(liiluni xcriplori, opus iif deapice, nainquc Si lascira leijis, iiuieiiiosa leges.

Esle glossário tem o defeito de i'egislrar simplesmente por ordem alplia- betica locuções na sua maior parte antigas, sem accrescentar a nenhuma d'ellas os commentarios etvmologicos e históricos de que tanto precisavam.

O diccionario cómico de Leroux, ([ue foi reimpresso três ou ([uatro vezes no século passado, offerece uma nomenclatura muito mais completa ijuc a da Erolica Verba de Estanislau de Tlulnave, e aeerescenta a cada palavra alguma citação ([uc lixa o seu sentido e propriedade. Este diccionario cómico carece infelizmente de erudição critica, e o compilador, que estava longe de conhecer as melhores fontes da antiga linguagem, não teve escrúpulo cm tornar mais escabroso ainda o assumpto, juntando-lbe definições que excedem frequente- mente a indeccncia das próprias palavras.

Não entraremos, nem mesmo com reservas c cautcllas, nas escabrosidades de similhanlc assumpto, e limitar-nos-hemos a fazer noia.r (juc a lingua eró- tica franceza, i[ue se apresenta aberta e francamente do século xiii em diante, procede habitualmente pelo pleonasmo, traduz para seu u.so palavras das lín- guas estrangeiras, ou apropria-se d'ellas com a própria consonância indígena: procura imagens de .sentido figurado, tem eciuivocosc trocadilhos, e obsta sem cessar á monotonia do discurso pela;; mais singulares combinações philologicas. Dir-se-hia que todas as palavras e Iodas as plirases da lingua geral podem em caso de necessidade applicar-se a esta lingua particular, que assim se enri- quece continuamente à custa de toda a tecbnologia

\ lingua erótica, segundo nota o abbade de I Aulnayc, é sem contradicçái) uma das mais ricas de todas as linguas tecbnicas. Assim é ([ue no século wi, por exemplo, não havia menos de trezentas palavras para exprimir o acto ve- néreo. (V. esta palavra na Erótica Vfrha.) Oiianto ás partes genitaes dn ho-

HiSTORix DA PsosmoiçÃo. Tomo ii Folb* 3ò.

274 HISTORIA

mem r da nuillxT havia tanilictii ([uatriiccDlos nomes ilifTiTontrs. para as desi- gnar, distinclos pela sua piHoresra variedade e singulares attribuieões.

Um capitulo da linguagem erótica pertence essencialmente á historia da prostituição. F' o que contém as denominações populares, sob as quacs as mulheres de vida eram designadas em certas épochas e eircumslancias, os synonymos mais ou menos decenles, inventados para caracterisar as casas de prostituição sob os seus diversos aspectos.

em outro logar explicámus etymoiogicamente os nomes usuaes das mulheres publicas, das suas pi-o\ene(as, dos seus amantes e das suas moradas no século xiii. Nu emlanlo, esla M')menclalura especial nào permaneceu estacio- naria, astes foi augmentandii rum os contingentes fornecidos a cada passo pela imaginação dos poetas e narradores. Eis o motivo porque no século xvi a lin- gua franceza foi sobrecarregada com essas excrecencias eróticas, similhanles a \errugas produzidas peln mal napolitann.

Bastar-nos-ha citar aqui a extensa iMuimeraí-ào que o abbade de iMuinaye apresenta nosen 'í/o.v.yíT.r/oem seguiila a palavra miiJlfrrs publicas. Depois d'isto. mencionaremos alguns do estranhos nomes que não se eni-<mtram nos livros. intprpref,indii-ii'^ e iiivcstioando d si'U \i'rdadeiro sentidii.

I'»I WKAS l\TRoniT7II'AS NA MXGUAC.ÍíM EUOTlí.A FIlANflEZIi fAM\ OESir.NAK AS PROSTITl'rAS

Accrochfiise.a. i\e- nrrrorher, agarrar, pendurar.

Alicnires : Amhuhaijei< ; Hn.ijns^es: fíaJiince.s de boncher, qm pksent toules Kijrtes df rixuuks : Balanças de carniceiro (|ue pesam toda a espécie de carnes: Baraihres : Hnssnra: fíezzoches; Hlanchisseuses de tuyait.r df pipe, lavadeiras de tubiis dl' cacbimbits; [ionsolrs: HourheUuses ; fírnjidonnes ; raignardières ; CaiUes, palavra derivada di' ca/V/c. codorniz: Camhi-oase.s: Canioiúères : Cham- pi-sses. eram as que viviam no campo; Cloislrières, as que não sahem do an- tro; Cocquat,ri.t, devoradoras de homens; Coignée.i; Courieu.ies ; Courtisanes: Dewoieslles de marais; J)rnu'n)es; Drues: Emoignanles ; Esquoceresse.i ; Fetv- mes de cotirt talou; Fennves folies de son corp ; lllUs d' amour ; Filies de joie: mies de jiibilation; Filleíes de jiis : Folies [em mes; Folieuses; Gatloises ; Jan- nefons; Gast; Gimthieres ; (iaupes; Gonilines; Gouges; Goiunes; Gourgan.di- nes; Grues; Hnrrebanes ; Uollières- Hores; Hourieuses; Hourrieres; Lesbiaes ; i.esbias ou saphicas; Lescheresses ; Levriers d'àmour; Linottes eoijfées ; Londié- res ; Lo^ires, Lobas, prostitutas nocturnas; fjjnces; M and fies ; Maranes ; Mo- randos : MnrtínqaUs ; Mn rimes; Mochees ; Musequines ; Panv n nesses ; Panton- >'irres; fe.lrrines de Vénus; 1'ellires ; Persnnnières; Poiísiiquenses ; Prêtes.ies de Vénus: riedresiieuses ; Rénéleuses ; Itibaudes e liibauldes. liigobeles ; Hous- .■i"cv'in's: S'i,es de- iiuit ; S:i.ffrele.s ; Snnrdites; Snaldrines ; Tendriers de houcbr <■' de reins; Tireuse.i de rJnnigre ; Tuupies; Tottses ; Trot/ieres : Vingères; 17/- Int.ikrcs : Vogageres ; Waunes ; Fsagères. ele. etc;

Kiilre estes n.nnes, que nem IuiIds iuiviam passadn da lingna escripta á

LlAjHKOSillLIlfÀU ■ila

tall;ul;i, ou nce-crrxa, ("iicontraiii-si- imiitos liiados da anliguiilade grc^a f la- tina, e por (■(jiisftiuinte purameiílp liltcraiios, romo estes:

Alicaiirs de Alicariív.

Ámbiibuyes, de Ambubaiíe.

Lesbines, de Lesbue. ,

Uaximes, de Ma.rimif.

Mocltcex, de Moichiv.

Haralhres, de linrailira.

Um pequeno numero d'elies são imila(,'ôes do italiano, <l() hespanlioi, do baivo bretão, do provençal e do laiifiurdoc, laes eomo :

Bagasse-t, de Baijasse.

Scaldrines, de Sgaaldrini'.

liicnldes', de Iticalde.

Ha outnis, que por despic/n oii sairasmo nHNirdani as analogias inora< « ou piíysicas, ijue podia haver entre as prostitutas i- diversos aiiiniaes:

Cocqualri.r, de crocodilo.

Lecriers d'ainoar, leíjres do .'loior.

l.inolles, pinlasilgos.

louves, lobos.

l.yces, cães de ca(;a.

Iloussecaignes, cadellas, cm languedor.

Wauces, lobos famintos. Outros alludiam á vida errante e vagaliunda d'estas desgraçadas:

Bourbeleuses, que andam no iodo.

Champisseis, campestres, do campo.

Canlonières, as das esquinas.

Gaullières, as dos bosques.

Uollières, andarilhas.

Posliqueuses, as da posta ou L+uifio.

Uaraudes, as vagabundas.

Tattpies, as que andam por toda a parte.

Trulíières, as que trottam noite e dia.

\'iayère.<s, as dos caminhos.

Muitos referem-se a particularidades imlçcentes da prolissào de uieretri/, taes são.

Bezoches, Drues, Uourrièrcs. etc.

A vida alegre d'estas mulheres com os seus amantes acha-se imlicada pítr alguns nomes:

Filies de joie, mulheres alegres, ou de alegria.

Galloise.t, de tjalle, alegria.

Goudiíieíi, ou (jaudlnes. de (jaudere, folgar.

Goiíines de iioija, gosar.

Iligobetes, de riijober,- passar hem a vida.

As dillerentcs classes de mulheres estão designadas nCstas deinminav;óes : IctToc/icíf.sr.s'. as ipte se agarram aos transeuntes.

?70 HISTORIA

Hiiiisnir. a'- (|iie flianinni a atlciiçào saudando. .

Caiyn.ardJrrfs, as (jue Ircquenfam a companhia dos tnisoravcis.

fourtisanes, as que vivem nas cortes do amor.

Demoiselle.s du maraia, as que têem o no lodo. Drouiius, as que trazem comsigo todos os utensílios.

Ilrms, as que esperam ás esquinas das ruas.

I.escheresneít. as que tinlisni a al)ominavel industria das fel o i rires romã nas.

I.oudiiire.s, as (]uc possuem apenas uma larimiia. Maranes, as morenas, as ciganas.

Sourdileft, as que caliiram na vicio por seduc^;ão.

Salfreies, as que usam- bordados de ouro.

As peripl)rases, que procedem pela maior parle de alguma locução pro- verbial, não pr(>cisain de commentaiios.

Algumas das denominações foram tiradas da tcclinologia do direito con- suetudinário, como personnières, que participam da acção ou cúmplices: nsa- jlèrex, terrenos baldios, pertencentes a toda a gente.

Outros nomes haviam-se tornado genéricos, por causa da qualidade or- dinária (ias mullieres que os tinham ou recebiam, bem que tacs nomes fossem de santos, disfarçados ou' corrompidos, tacs .como .lanneloii, diminutivo de .leaiine, Joanna ; Mnnjni,. diminutivo de Marriarile, Margarida.

Finalmenlc outros ainda, tacs como Camhrnuses, Arrehanes, ctc, que nunca foram explicados, exigiriam uma larga dissertação etymologica, que não estamos muito dispostos a emprehender.

O Abbide de r-AuInaye, na sua nomenclaturra dos synonymos emprega- dos no século xvi para qualificar as prostitutas, fez numerosas omissões, entre os quaes apontaremos apenas as seguintes :

Ancelks, serventes ou escravas (de Ancillae).

Baçjues, anneis em sentido figurado.

ítas-cnlz.

fíringues, onomalopeia, irrequietas, buliçosas.

Hrimbdeuses, que tocam campainhas.

Capres, de cabras, pela sua lubricidade.

Clwueltef:;' áVes líocturnas!

Chérre.-i, o mesmo de Capres, cabras.

Ildlière.i, amigas alegria e do prazer.

■(■'dnscpurs, irnixãs da alliánça.

('riipierielles, galantes.

Haures, sentido muito (li)scuro aclualmcnle.

Ilorres, trutas.

íinaíjes, imagens, quer dizer pintadas, cheias di; arrcl)i(|ues.

PeauUes, prostitutas de marinheiros.

Poupines, bonecas.

PaiUasses, Palllardes, (|uc dormem sobre a palha.

Seraiiies, ou Siráie.s, traiiloras, asiuias, sereias.

IIA PROSTITUIÇÃO Zí,

O (liccionario coiiiíl-o de l.croux uoòresccntaria ainda uns vinlc nomes talvez, todos elles baixos e grosseiros, coliiidos pelos andores do século xvi no lodo da prostiluiyão, e registrados por Bcroaldc de Aervilleno seu Moijendt parvenir.

Quanto ás periphrases inventadas para exprimir o mesmo assumpto soh todas as suas phases, são innumeraveis e estão na Índole do bom bumor france/. Por isso julgamos desnecessário accrescentar mais alguma ás que o abbade de TAulnaye teve o cuidado de apontar, como (|ue para dnr um* ideia das que ainda poderiam ser aproveitadas depois d'elle.

Lniad'estas peripbrases, famines au court, talon, não seria comprebensivel pelo simples confronto d'este provérbio : l.a heaiué de la caurl r'fiii d'aroir It lalon court.

Uma passagem do livro v de Rabelais faz-nos comprebender o que (|uer dizer ter u talão curlo. Paliando da rejuvcnesccncia que a rainba de (Juinl;i operava nas suas mulberes vellias, observa Rabelais, que depois de voltarem a novas, Kacaienl les lalons plxs courtz que o natural, e por isso ao em-oti- trarem-se com os lioniens eram sujeitas ou propensas ;> cabir de costas.»

Apesar d'esta multidão de apodos ou designações applicadas ás mulberes de vLda, o sou nome por e\cellencia e caracteristitto Ibi sempre Putain, palavra que não foi completamente desterrada da linguagem e do*eslylo até fins do reinado de Luiz xiv, visto que se encontra ainda nas comedias de Mo- lière. No século xv e século xvi, esta palavra apparecia ainda em toda a parte, no foro, no púlpito, nos livros de moral e de jurisprudência, nos de bistoria, nas obras de poesia e de litteratura. Até mesmo se encontra em livros escrip- tos por mulberes.

O Abbade de TAuInave cita quatro provérbios, em que a sabedoria das nações se dirige á putain com esta ingénua grosseria:

Amour de putain, feu d'éloiippes. Amor de prostituta é fogo de estopa.

Putain fait com me corneille: flus se lave, pliis noire est elle. A prostituta é como a gralha : (Juanlo mais se lava, mais suja.

Quand maisti-e coud et putain jili', Peiile pratique est en ville.

Em porlugucz lia um provérbio equivalente a este ultimo e muito mais pittoresco ainda: Quando a prostituta fia, o soldado reza e o e.tcriruo pergunta a ijuautos estamos do me:, mal vae a todos três.

O quarto provérbio, citado pelo Abbade de TAuInavc, é o seguinte:

Jamais putain n'aima preudliom, Ni graxse galine au chopoií.

A Iraduccão d'este ultimo ditado popular é a seguinte: !\aiir(t mulher perdida amou linmem honrado, nem (/allinhu ijurda rapãu.

?73 HlSTORiA

Outros [iroverbids relalivos a cslas imillitTos, com a detioininavào de /ò/- /cA [emines, provatn-nos que i> bom senso popular dava um sentido moral às palavras (|ue recordavam um pensamento deslionesto, a fim de collocar por as- sim dizer o remédio ao lado do mal :

Folies feiíimes n'ainient que pour pasture. As (íortt^zãs amam sii por interftsse. «

Se nesta vasta nomenclatura não figura o nomií Calin, é porque nào foi introduzido na língua ei'Otioa senão em épocha muito próxima dos nossos dias. Uisse-se durante muilo tempo Calin, nnno diminutivo de Caíhénne, Latiiarina, nome muito usual entre as filhas do povo. .4. palavra veio a ser pouco depois synonymo de poupe, por isso que as crianças chamam assim ás suas bonecas, e <l'aqui passou naturalmente para as mulheres licenciosas, que ficam toda a vida solteiras, o que se chama proverbialmente coiffer sainie Calhcrinc, pentear Santa Catliarina, como quem diz veslir santos. De Calin lez-se logo Calauí, sem que a mudança de terminação conseguisse rehabililar o diminutivo.

O infame logar em que a prostituição assentou os seus arraiaes, o bordel, cujo nome conseguiu insinuar-se nas satyras de Boileau e nos contos di' Vol- taire, parece (|ue nunca inspirou o estro dos inventores de synonymos. O ab- bade de lAulnaye apresenta apenas cinco ou seis, que nem sequer ainda li- liliam curso na linguagem usual, rescrvando-se apenas para a lingua escripta :

Clnpaire, derivado de clapier, coelheira.

Curatrie, que revela a ideia de curato ou prebenda.

Eschecinaíje, que parece conter um torpe jogo de palavras.

Paillhre, que a entender que similhanlcs antros não tinham outros leitos senão uma pouca de palha.

Peaullre, uma barcaça de rio.

Ptitefji, como quem diz feudo de prostitutas.

No emtanto, a palavra bordel teve sempre preferencia, ainda que a si- tuação ou o regimen dos antros da prostituição mudassem completamente em consequência das disposições e regulamentos a respeito da prostituição legal. Os bordeis, que tinham sido os primeiros albergues da libertinagem publica, não e\.isliam em parte aíguma, s^ccepto n'algumas cidades da província, na èpocha em que as muliien^s de vida dissoluta tinham o direito de manter boi- Jeis em certas ruas de fama, onde viviam dos productos do olficio sob a tu- tela da policia munici|)al, e mediante » pagamento da respectiva licença.

Os amantes, os companheiros, ou os protectores d'eslas mulheres poixii- das, toilos es.ses parasitas infames ila prostituição, tinham o nome genérico de inaqueraux. Outros nomes havia, porém, ainda para designar estes miseráveis, e nomes que soavam muito melhor a seus próprios ouvidos. Denominavam-se ás vezes :

Calinières, porque attrahiam com alfagos.

Calnis, pelo mesmo motivo.

I'axse-inane,iiii.r. valentões.

PA PBOSTlxriçS" 579

roíirrntiers. piir;|uo favurecinin o trafiro das Mias amand-s.

Courtriers, a mesma iJoia

Chnlands, frcguczes da casa.

Coliafres, que devoravam n [iroducto do impura commpioin das sua* desgraçadas companheiras.

Gniilliarda. a mesma ideia.

Hollierií, que viajavam com suas amantes pelo paiz.

Francs-gonlierx, bons amigos. '

Eialons, cavallos de cobrição.

í.escheurs, que engordavam eom a substancia da casa.

Lapins, coelhos.

Lesbins, sodomitas.

Mignons, queridos, prediletos.

Maquignons, protectores, auxiliares do impnio trafico.

Paillards, que dormiam sobre palha.

Os homens desprcziveis, que assim se consagravam ao mais vil concu- binato, do qual tiravam o seu único rendimento, eram os depositários, senJio op inventores da giria da prostituição, e nas tabernas, onde passavam o dia. bebendo, comendo, jogando, blasphemando e dormindo, nã'i dei\a\ani de v- Nelar a depravação dos sons jostumes na linguagem de que usavam.

Ouantii ás mulheres infames que intervinham nos tráficos secretos da prostituição, eram apontadas ao desprezo e reprovação das pessoas honestas com o nome genérico de maqunrilfs. Este (jualificativo correspondia a l^das a»' condições do seu abominável oflit-in, c era indilTerentemente admittido. lantn no pstyjo elevado, como na linguagem mais vulgar, ou mais rasteira. Os poetas da corte no scimhi xvi empregavam -no a cada passo, bem ci>mo os jurisi-on- snltos e legisladores.

Este nome, que não Coi excluido da linguagem culta até ao século xvu, bastava, segundo parece, para todas as necessidades. .4s pessoas, a quem re|in- gnava servir-se d"elle, costumavam dizer courrih'e. ou courreiiere, corretora ; as palavras enirfinftteuse c appareilltasi', mediadora, ou agenciadora, vieram mais tarde, e resentem-se do estylo académico.

Também se recorria a periphrases, que revelam a intenção de atlagar a susceptibilidade d'estas damas: ambassntrires d'amonr, embaixatrizes do amor .■ coHri7í'7'r?'r.ç (/»> lolontes. conciliadoras de .vontades; iDun-handrs d" chair frairhf, eommerciantes de carne fresca ; .s«n./TO(?íífi.s d'amoHr, sentinellas do amor. etc.

\s que exerciam este odioso (_■ lucrativo trafico so recebiam de toda a parte injurias e maldições. O próprio libertino, que as empregava em serviço dos seus próprios prazeres, comprehendia bem a infâmia e toda a indignidade destas mediadoras. Felizmente não eram mulheres as negociadoras dVstes in fames contractos: eram velhas.

O retrato de uma d'estas infames velhas, devido a um poeta do século xvt. c iiN)a passagem notabilisima que se attribuin a Francisco Rabelais na primeii'a edição completa das suas obras, e que havia appareciílo em \ort\

?8fl HISTORIA

n uma collccvão de poesias de Francisco Habert. Este Habcrt era um amigo ijr Rabelais, e pôde suppòr-se cora algumas probabilidades que quizesse salvar do olvido as Epistolas a duas velhas de costumes dilferentes, que Rabelais, a esse tempo cura de Mendon, não podia nem queria publicar com o seu nome.

De reslo, o retrato da veliia mediadora encontra-se feição por feição na Syhilla de Panzoust, que figura entre os personagens allf^oricos do Pantagruel.

«Aelba desdentada, infame e miserável, velba sem graça, de hypocritas virtudes, velba traidora, iniqua mediadora, velha que trazes a deshonra c o crime a solteiras e casadas! Tu nunca soubeste o que é a caridade, mulber infame, que sabes ter rancores e azedume! A tua asquerosa e feia pelle ex- cede em fétido tudo quanto ha de mais immundo! Velha! Tu nunca fallaste bem de pessoa alguma: tu fazes do teu leito um bordel. O teu ubre pode muito bera araraaraentar o próprio diabo do inferno. Velha! Tu exerces o infer- nal poder de Medeia v. Circe ! Velha maligna, execravel e infecta, que envene- nas com a voz os elementos, não receias ser castigada um dia por teus cri- mes sórdidos e impudicos, ante Deus e ante os homens? Pensas que has de ficar impune, velha maldita, tendo perdido tantas donzellas, tendo vcndiílo contra íod.i a lei e justiça mulheres honradas e de boa familia '!...)*

\s cores enérgicas d'estc quadro serviram depois de modelo a Réguier par-a o retrato da sua Macette, que é o prototypo ijas corruptoras tia prostitui- ção no tempo de Henrique iv.

CAPITULO XXV

SUMMARIO

A prostituiç5o lefral considerada por ura moralista coiim as |iartes secretas do corpo social.— Ultimos ves- tígios e transformai;(jes (la prostituição rtrliL^iosa li iQanif|Ucisino e a feiticeria Mctamorphose diabi-lica da prostituirão hospitalar. Os iucuhos e surcubns siilisliluem os deuses lai es e os .semideuses aprestes. Os dni sios dos saulezes. S. .^Kostinlio alliriiia e .'■'. Cliiysostomo nega. SoiiUos dos ]'abtiinos judeus adoptados pelos doutores da E^Teja. Adão e os diabos. Multiplicação siibiciiatural dos primeiros homens. Variedades úe pesadellos. Opinião de Guiberto de Nogunt. Opinião do padru (lostadau. JJtymolojjia das palavras incubo p succubo O prefeito Mumnolo. Os succubos do bispo Eparchio. O incubo da mãe de Guiberto Noffent. O báculo e o exorcismo de S. H-Tnardo. Decisão do papa Innoceiício viii. A vida a.«citica, predispondj para os attentailos dos incubos e succubos. —Doutrina dos casuistas acerca dos sonhos impudicos. Armella Nicolau. Angela de Fohgno. Correspoiíiieucia de Soror Gertrudes com Satanaz. O demónio e as virgens. Joanna Harbiller. Os incubos quentes u os incubos frios. Cuufissões das suas victiraas. -- O mau cheiro do diabo Filhos gerados pelo diabo. DistincçSo entre n incubismo e a feiticeiia. Os incubos c succubos discutidos pui plena academia no secii n \vn. Seus feitos explicjidos pela sciencia e pela razão.

piuisTiTUiçÃo LEGAI, chcgáfíi, ao qiK' parecia, a possuir todo n desenvolviíiuTilo rcgitlar e n(H-cssai'io. Tinha o st-u código, os seus usos, os seus cotumes, es .seus privilégios, muitos outros accessorios e até mesmo a sua lingua privativa. Vivia, por as- sim dizer, em perfeito aceordo com a aucloridade ecclesiastica e civil. Estabelecera o seu império em certas ruas, a certas horas, mediante cer- tas condições de policia urbana. Fazia parte iHtegrante da organisa(,'ão do corpo social, do ([uaI era, segundo a c\tranha expressão de um antigo escriptor, «as palies secretas, que o pud )r manda occuilar, mas (|ue não se ani(|uillariain sem destruii" os bons costumes, (jue são como ipie a cabeça e o coração de um paiz morigcrado».

Apesar d'isto, porém, ao lado da prostituição legal, reconhecida ou tole- rada pelos poderes públicos, encontravam-se ainda os mal apagados vestígios, muito degenerados, de certo, da prostituição hospitalar e da prostituição reli- giosa, aquellas duas companheiras do paganismo entre os povos primitivos.

X prostituição religiosa, propriamente dita, persistia ainda obscuramente no culto tradiccional de alguns santos, aos quaes a superstição popular conser- vara as attribuiçõcs obscenas de Pan, de Priapo e dos deuses lares. Estes des- varios constituíam, porém, e felizmente, raras excepções, annexas a certas pe- regrinações mysteriosas, a certas capellas ou sanctuarios extravagantes, que se conservavam pagãos apezar ilas suas invocações christãs.

HiBTORU TIA PbostituiçIo. Tomo II— KoiBA 36

282 HISTORIA

Estas impudicas reminiscências da idolatria estavam como que escondi- das no fundo dos campos, até (jue alguma das monstruosas heresias, que não cessavam de se reproduzir no próprio seio da religião de Jesus, vieram dar largo desenvolvimento á prostitui(,-ão religiosa.

O maniqueismo pioduzira a heresia dos \'aa<le.s, e a Vauãeric, apesar do fogo e do ferro a lerem sem cessar procurado extirpar da sociedade, bro- tava aqui e alli vários rebentões, que davam fructos impuros, e desappareciam dahi a pouco em cinzas nas fogueiras. Não será destituido de interesse pro- curar, nas frias cinzas destas heresias maniqueiasc dos Vaudes, o principio vi- tal da prostituição religiosa.

Outra espécie de heivsia \eio tamhein contribuir para o desenvolvimento dVsta prostituição. Tendo (ido a mesma origem, a uova heresia separnu-se bera depressa do mani((ueismo. e pareceu dirigir-se para um lim inteiramente opposto. A feiticeria, instituindo o culto dos demónios, apoderou-se logo da prostituição como de um poderosd meio de acção sobre os seus hori-i\eis ade- ptos. A prostituição infernal nãi> iardou a arrastar comsigo uma depravação inaudita, qui' servia de laçn invizivel entre as feiticeii'as de todas as idades e pai/.es, e era a almH das suas assembleias infames.

Pelo que respeita á prostituição hospitalar, essa crédula e ingénua lilha da prostituição religiosa apparecia ainda de vez em quando no sanctuario da vida domestica, sendo ordinariamente a sua causa ordinária os desvarios e ex- citações (Ím imaginação. Esta espécie de prostituição era ainda rellexo das cren- ças e mysterios do paganismo. O commercio carnal dos espíritos com os ho- mens e as mulheres passava então por um fado inconleslavel, e este maldito commercio, que a egreja considerou por muito tempo c(jnit> uni dos s\mptomas ria preversão diabólica, ha\ ia abertit a poria ;'i libertinagem secreta.

A impudica supersti(;ão dos incubos e succubos tinha origem nos hábi- tos da prostituição lios^iitalar, e os chrislãos de ambos os sexos persuadiam-so de lerem relações lúbricas com os demónios e os anjos, que participavam egualmenie de um e outro sexo, assim como os pagãos cohabilavam com os .seus deuses lares, ou entravam ás vezes em communicação directa com os faunos, satvros, na.yades e semi-deuses agrestes.

Temos, pois, de examinar o que era a prostituição na Kdade-Media, sob as suas Ires phazes distinctas, a lieresia, a feiticeria, c a superstição dos incu- bos e succubos.

Estes demónios chamados pelos gaulezes drusios (dnissi) exerciam as suas violências e seducçoes nocturnas na époclia em (|ue Santo Agostinho re- conhecia a sua existência e aKenlados, declaiando que seria imprudência ne- gar um facto tão bem estabelecido: li hoc M(jare imprudenlia oidealur. Mui- tos Padres da Egreja, c entre elles S. .loão ("hrvsosthomo negavam este fado, pronunciando-sc contra os ados de luxuria attribuidos aos demónios incubos e succubos.

A religião hebraica, porém, dava a estes demónios uma origem contem- porânea da dos primeiros homens, e a Egreja christà adoptou a opinião dos rab- binos lia interpretação do famoso capitulo do (ieiiesis, em i)ue se vêem os li-

DA PROSTITUIÇÃO SSâ

llios de Deus tomar por imilliercs as lillias ilos liumens, e procrearetii uma raça de gigantes.

Os doutores e coneilios, apesar d'isto, não foram tão longe como os in- terpretes judeus, que referiam a lenda dos demónios, como se o facto se tivesse dado á sua vista. Assim, .segundo estes veneráveis personagens, «durante cento c trinta annos, em que .idão se absteve de cohahilar com sua mulher, vieram ter com ellc diabn.s, (|uc conceberam por obra do venerando pae da raça bu- mana, e pariram diabos, espíritos, espectros noi turnos e phantasmas. i^O numdu e.ncantatlo, por Baltliazar Becker, .4msterdam, 1694, 4 voí. i, ICíí.)

Os rabbinos e os demonologos, uma vez a contas com a genealogia dos demónios da noite, proseguirani ousadamente n'este caminbo, e descobriram que se o pae Adão tivera copula com succubos, a nossa mãe Eva, pela sua parte, não deixara de entrar em communicação carnal com os inculios, contri- bumdo assim pcilldamente para a multiplicacrii do r;fneni liumaud.

Qualquer que fosse o valor destas lendas dci mundo antidiluviano, a existência dos incubns e succubos não estava provada por iiini;uefn, e attribuia- se-lhe o èíTcito do pesadelo. Estes linspedcs incomniodos, que visitavam du- rante a noití- os jovens de ambos os sexos, nem sempre atti-iitavam contra a sua castidade. Umas vezes sentavam-se a .seu lado, murniurando-llíes ao ou- vido insen.satas illusucs, outras pesavam sobre o peito das iiHiocentes vicfimas, que julgavam afogar-.sc, e despertavam nur liiu, cbeias de espanto e innunda- das d.e sutu frio.

Mais vulgarmente, porém, este demónio, macho ou fêmea, e ás vezes dotado simultaneamente dos dois sexos, cevava os seus furores luxuriosos na victima que havia escolhido, e que um somno pesado como o chumbo lhe en- tregava indefesa. iJonzella ou mancebo, o cúmplice involuntário dos prazeres do espirito maligno, perdia a sua virgindade ou innoceneia, sem conhecer jamais o ser invisível a quem merecia tão horrorosas caricias. Ao despertar, não po- dia duvidar da impura oppressào que havia sotVrido, quando via com assom- bro as provas irrecusáveis que lhe mancbavam o leito.

Tal era a opinião geral, não s/i do |)o\o, senão também dos homens mai.s illustrados e eminentes.

«Citam-se por toda a parte, diz o piedijso (luiberto de Nogent, nas me- morias da sua vida (De riía suo, lib. i, cap. l:{| exemplos de demónios que se fazem amar das mulheres e se lhes introduzem nos leitos. Se a decência nol-o permitlisse, havíamos de referir muitos destes amores diabólicos, entre os quaes sabemos de alguns bem terríveis por causa dos atrozes solTrimentos que fazem ter a estas pobres creafuras. emquanto (|uc outros contentau)-se apenas de saciar a sua lubricidade.»

Tacs demónios eram, cllectivamente, mui diílerentcs em génios e i-apri- chos. Uns amavam coukj \ erdadeiros galans, aos quaes procuravam imitar em tudo; menos néscios talvez, ou niais preversos, davam-se a inciiveis excessos de libertinagem. A maior parte dellcs não se distinguiam dos homens nos re- sultados da paixão: mas alguns juslilicavam a sua natur'eza superior idin ver- dadeiros prodígios de incontinência e luxuria.

^4 HISTORIA

A fondiicta das vicfinias paru com os seus diabólicos oppressores era lambem dilTerenfo. Umas acosfumavam-se logo á opprcssão do diabo, e viviam com elle no melhor acecrdo; outras sentiam' n'cste indecente commercio tanta aversão c repugnância ao tyranno como a si próprias. Quasi todas guardavam silencio sobre o que se passava n'estes casos de união infernai, f|ue a Egreja anathemalisava, desviando os f)lhos com horror.

«Não restaria mais que demonstrar, dizia o reverendo Costadau em pleno século XVII, como os demónios podem ter commercio carnal com os homens e as mulheres, mas a matéria r demasiado obscena, para a expressarmos na nossa língua.»

Osescriplos dos theologos, dos pbilosophos, dos médicos e dos demonologos da Edade-Media estão cheios de observações eircumstanciadas a respeito dos ineu- bos e succubos, que encontravam poucos incrédulos, antes que a sciencia hou- vesse explicado naturalmente todas as suas proezas. O christianismo acceitára á conta do diabo e dos seus súbditos, os detestáveis actos de violência e sedn- cção que o paganismo desde a mais remota edade attribaia aos deuses subal- ternos e aos demónios occullos e nocturnos. Uns e outros exerciam os mesmos actos de prostituição phantastica, mas os espíritos íntísíveis, que d'clla se tor- navam culpados, não eram detestados pelos pagãos, como o foram pelos ehris- tãos, a quem a Egreja recommendava (jue se defendessem sem. tréguas nem des- canço contra as insidias do diabo.

Não obstante, se a opinião vulgar não podia pôr em duvida os horríveis atlentados que estes malignos espíritos faziam contra á espécie humana durante o .somno, a^)hilõsophia negou em alta voz estes attenlados, quando se -entregou ao exame dos factos, averiguando os phenomenos do pesadèllo.

Chamava-se incubo (incubns) o demónio que tomava a figura de homem para cohabitarcom uma mulher adormecida ou acordada. Esta palavra deríva-se do verbo latino incubare, que significa estar deitado sobre outro. Os gregos cha- mavam ao incubo demónio sallmlnr ou invasor, que acommelte ou se atira a alguém. N'uni antigo glossário manuscrípto, citado por Ducange, a palavra in- cubo tem esta definição : «Incubi rei incuhones, uma espécie de diabos que costumam brincar com as mulheres.» Ducange çxtrahe também das Glosas ma- nuseriplas, para intelligencia das obras medicas de .\lexan(lre de Tralles, uma passagem (|uc prova que os sábios confundiam antigamente, sob a denominação de incubo, o demónio do pesarlcllo e o solírimcnto tiuc elle causava ao dor- mente :

«lucubim esi jnissio in qn<t dortirienies siijjorori el a dceiíionibuK opprinii lidenlnr.»

A etimologia de suecubo (tmccubus) não dilTere da de incubo, senão pela mclamorphose do demónio, transfoi-mado agora em mulher, succubare, axib-cu- bare, rubare -w.b, isto ^, estar deitado debaixo de outro. Não obstante, Ducange não admittiu esta ()alavra nem o seu derivado no seu (ilossario.

Verdaile seja que os succubos são mais rar^s (|ue os incubos nas narra- ções da Edade-Mcdia, |)on|iie cslcs iillimus, apesar dos exorcismos c das penas ecciesiaslicas, não deixavam ,is mulheres em descanço por aquelle tempo. De-

!>A PKOSTITUIÇÃU 9*6

pois de haverem lejto milagres nas lendas dos saiilos, vinham agora ostentar novas proezas à luz da historia. Gregório de Tours referc-nos a morte do pre- feito Mummulo (I.ib. vi), enviando demónios obscenos ás damas gaulezas, que desejava condemnar. O mesmo ciironista a entender que o próprio Sa- tanaz não desdenhava muitas vezes entregar-se a esse passatempo.

Um santo bispo do Auvergnc, chamado Euparchio, acordou uma noite com a ideia de ir orar á sua egreja. Levantou-se com etteito e dirigiu-se á episcopal, que foi encontrar toda ilhiminada por uma luz extranha e cheia de demónios, que praticavam as maiores abominações diante do altar. Entre elles estava o próprio Satanaz, vestido de mulher, que sentado na cadeira prehilicia presidia áquelles mysterios de impudica iniquidade.

Infame cortezã! bradou o bispo indignado, não te contentas de man- char tudo com as tuas profanações, e vens ainda sujar com o teu corpo repu- gnante a cadeira consagrada a Deus!

Uma vez que me chamas cortezã, disse-lhc o principe das trevas, deixa estar que te heide inflammar a carne com o fogo da luxuria!

Satanaz desfez-se eomo o fumo e junto com elle a sua cõrle diabólica, mas d'ahi a pouco cumpria a sua palavra, fazendo sotTrer ao sanio bispo todas as torturas da concupiscência carnal.

Um historiador tão grave como (Ircgorio de Tours, (luiberfo de .\ogent, referia com a mesma boa cinco séculos mais tarde os insultos que sua mãe tivera que sofircr da parte dos- incubos, que a belleza d'aquclla mulher attra- hia sem cessar para junto d'ella. «Uma noite, conta elle, durante uma dolorosa insomnia, que lhe fazia innundar de lagrimas o leito em (jue jazia, o demó- nio, segundo o seu costume de tentar os corações aillictos, apresentou-se subitamente a seus olhos, que o somno não conseguia cerrar, e opprimiu-a cruelmente com um peso asphyxiante.» A pobre senhora nem podia mover-se, nem queixar-se, nem mesmo respirar, mas no intimo d'alma implorou o auxi- lio divino, e viu immediatamente o seu anjo da guarda junto da cabeceira.

«Santa Maria, ajuda-nos! exclamou o anjo custodio em voz doce e sup- plicante; e dizendo isto lançou-se sobre o demónio, para o obrigar a largar a sua presa. O espirito infernal ergueu-se logo para resistir a tão inesperado ata- que, mas o anjo deitou-o por terra com um estrépito que fez tremer a casa toda. .4s creadas levanlaram-se assustadas e inquietas e correram ao quarto de sua ama, que pallida, desvairada e semi-morta de terror, lhes contou o perigo de que havia escapado e de que manifestava ainda signaes bem evidentes. iGui- berto: De vita sua, lib. I, cap. 13.1

Os anjos da guarda, porém, nem sempre estavam no seu poslíj para pres- tarem auxilio n'esles lances ás débeis creaturas, e o demónio tinha então todo o partido. Não obstante, a Egreja podia ainda arrebatar-lhes a presa, como se prova pelo memorável exorcismo de que se tracta na vida de S. Bernardo, es- cripta pouco tempo depois da sua morte.

Uma mulher de Nantes tinha relações impudicas com um demónio que a visitava todas as noites, quando estava deitada com seu marido, sem que o pid)rc homem acordasse. Xo cabo de seis annos d'c!>li' adultiMÍo diabólico, a

?8(Í HISTORIA

peccadoiii qiu' nunca /'aliara em sirnilhantr cousa, resolveu contar tudo ao seu confessor, e em seguida a seu marido, que liorrorisado d'ella a abandonou.

O incubo ficou assim senhor absoluto da sua victima. Uma noite conlou- Ihe o seu infernal amante que o illusire São Bernardo devia ir áqu^lla cidade. A victima esperou com impaciência a chefiada do santo, e foi proslrar-se a seus pés, pedindo-lhe que a livrasse d'aquella obsessão diabólica.

São Bernardo aconselhou-llie que fizesse o signa! da cruz ao deitar-se, e que pozesse a .seu lado no leito um báculo que lhe deu. Se o demónio vier, disse o santo varão, não o temas. Desafia-o a que se approxime de li. l)ei\a estar que não lhe hade faltar que fazer!

Etrectivamente o incumbo apresenlou-se como de costume para usurpar os direitos do marido, mas encontrou o báculo de S. Bernardo, e não poude lazer .senão andar em volta delle colérico e ameaçador. Uma barreira insuperável se erguia entre os dois.

No domingo seguinte, dirigiu-se S. tiernardo á cathedral acompanhado dos bispos de .Nantes c de Chartres. Uma multidão immensa aecudira ao templo para receber a benção do santo, que ordenou que a lodos os assistentes se distri- buíssem velas a(-ce.sas, coutando-lbes cm seguida a historia daquella miilbei- dailH ao> prazeres do demónio. IJepois dislo, e\orcis(nou o espirito, pi'ohibiudo- Ihe peia aucforidade de Jx*sus-(^',bristo que atormentasse aquella mulher ou ou- tra ijuaUiuer. Conelui<lo o exorcismo, ordenou que todas as luzes se apagassem ao mesmo lempo, e a potencia no demónio incubo extinguiu-se i-ompleta- mente.

Se S. Bernardo não duvidava da realidade da copula dos incubos com as mulheres, não é de exlranhar também que S. Thomaz de Aquino se occupasse extensamente d'estes audazes demónios libertinos, na sua Sumtna Theologicv (Questio LI, art. 3). A auctoridade d'estes dois grandes santos era sufliciente para desculpai' as desgraçadas, que julgavam soíTrer bem apesar seu esta ex- tranha prostituição, e que não possuíam o talisman preservativo do báculo de S. Rernardo. Nada mais vulgar que as revelações d'este género no tribunal da penitencia, e o confessor tirava d'eslas confidencias a convicção do facto, (|ue combatia sempre inutilmente com exorcismos e orações.

O papa Innocencio viii não se mostrava menos supersticioso (juc os seus contemporâneos, quando reconhecia n estes termos de uni breve apostólico a existência dos incubos e succubos:

n,\on sine ingenli inolfslia ad iiosiruiii yerceiíu audiíuin cuinijluras utriusque sexus personos proprice .lalutia inunemores-, fi a fuh calholica de- ciantes, doemonibus incuhis et auecubis abuli.»

Não foi S(í a confissão sacramental que revelou os mvslerios do Incubii- inu e suvcítbistnu; revelaram nos especialmente as declarações voluntárias ou forçadas que a inquisição aiiaucou aos accusados, nas innumeraveis causas de ft.-iticeria, que encheram as fogueiras e patíbulos de lodosos paizes ihi Europa.

Foi sempre a imaginação a culpada única de Iodas as cdiras nocturnas que se imputavam ao diabo, mas, segundo a crença dos antigos, as trevas per- tenciaiii ;ios rspiíilns iiiIVriíaes, e o somno dos homens achava-se exposto as-

DA PROSTITUIÇÃO t87

sim á nialclaclc íJ'cstes audores do peccadu. Eram laiubeui accusados de em- progarem o sonho como um dos meios de tenta^'ão dos peccadores adormecidos.

"O diabo, diz o sábio António de Tor(|uemada, procura principalmente fazer cahir no peccado da luxuria os que dormem, fazendo-os s(mhar com pra- zeres carnaes, até que os obriga a polluções, de maneira que comprazendo-se n'ellas logo que despertam, são a causa de que pequem mortalmente. (Ilexa- meron) .

I5ay1c, na sua Hc-iposía ás penjaiilas de um Promncial, cita a este res- peito a doutrina dos casuistas sobre os sonhos, que por muito tempo se attri- buiram aos incubos e succubos.

«Os mais remissos concordam que somos obrigados a rogar a Deus que nos preserve de sfmhos impuros. Dizem elles que se pecca sempre nos seguin- tes casos: quando se tizeram cousas próprias para excitar as impurezas du- ríliite <t sonho: quando ao acordar não se deplora o ter-se sentido prazer com os sonhos; quando finalmente se emprega quali|uer artificio para os reprodu- zir.» fOeuvres ih lki\jk, I. iii, p. o63.)

l'(i(le dizer-se até certo ponto que os incubos e succubos nasceram nos conventos de ambos os sevos, porque a vida ascética predispõe niaravilhosa- inentc o espirito e o cor|Mi para esta prostituição involuiil;iria, que se realiza em sonhos c que o mysticismo considera como obra dos demónios nocturnos.

«As religiosas, diz Bayle, altribneni á nialicia de Satanaz <«k maus pen- samentos que téem, e se notam certa tenacidade ou insistência nas suas sen- savões, imaginam que o infernal tentador' as persegue mais de |iorfii, (|ue lhes faz cerco, que se apodera linalmenle dos seus corpos.»

A biographia de muitas d'estas santas martyres dos seus próprios senti- dos faz-nos conhecer as provas que tinham de sotfrer para guardarem a sw\ pureza e para escaparem ás violências ou as seducvões dos anjos maus. Uma religiosa de Santa Úrsula da communidade de Vannes, chamada Armclia .Nico- lau, «pobre rapariga idiota, villã de íiasciruenlo e servente de condição», como a qualifica o seu hi.storiador, olíerece-nos um dos últimos exemplos do impé- rio que o diabo podia exercer pbysica e moi'alnicnle ao mesmo Icmpo, sobre aquellas reclusas ignorantes, crédulas e apaixonadas.

Esta pobre rapariga, que viveu nos lins do século wiii, coineç.-ara por s»' exaltar nos ardores do amor divino, antes de ser viclima dos incubos.

A seu respeito diz o auetor anonymo da Eschola do paro amor de Deux. iilieria nas siihius e aos ujnoraiUes, p. :{'i- da nova edigão de Colónia :

«Parecia-lhe estar sempre em companhia dos demónios, (|ue .sem cessar a provocavam a enlregar-se-lhes. J'or espaço de cinco ou seis mezcs que du- rou o mais forte d'aquella grande batalha, era-lhe impossível dormir de noite, por causa dos espectros espantosos com (|ue ns demónios a alnrmentavam, to- mando horriveis c monstruosas figuras.»

E' o (|ue se chama pòr o remédio ao lado do mal, e a pobre freira cada vez se sentia mais forte para resistir áquelles terríveis tentadores, que em vez de lon)arem formas agradáveis e sympatbicas para facilitarem a seducvão, se indi- gnavam de seus desdéns e a maltratavam cruelmente.

>88 msTORU

Outra mystica, Angela de Foligno, cujas tentações diabólicas descreve Martin dei Rio, nas suas Disquisitiones magiccB, tinha de haver-se também com grosseiros demónios, que a golpeavam sem piedade, depois do lhe have- rem inspirado desejos, que não chegavam a ver realisados. Não tinha no corpo sitio algum que não fosse ferido por aquelles cruéis incubos, de modo que não podia mover-se, nem ao menos levantar-se do leito, e elja própria diz : «^on est in me inembrum, quod non sit percussum tortura, et panalum a dcemoni- hiís et semper sum infirma, et semper estupefacta et plena doloribus in om,ni- hux meinbris méis.»

iVão obstante isto, os incubos não conseguiam os seus desejos, apesar de não cessarem de a atormentar.

Segundo os demonoiogos mais'bem informados, um demónio incubo tomava ,a figura de um homiinculo negro e cabelludo, mas tinha sempre o cuidado de conservar certa cuusa da natureza dos gigantes, como um gl<irioso attributo da sua origem paterna. Nos interrogatórios de um grande numero de processos de teiliceria encontra-se a prova d'estas enormidades, que não existiam por certn a nào ser na depravada imaginação dos pacientes.

Kste coramercio absnrdf) tornava-se ás vezes duradouro, e a. desgraçada qu<' o solTria sem vontade, ou que se habituava a elle como uma questão de libertinagem, permanecia assim em poder do demónio annos inteiros. Cilam-sc numerosas possessas que amavam eOectivamente o diabo e lhe correspondiam, •loão Wier conta que no seu tempo umajoven religiosa, chamada dertrudes, de qualorze annos de edade, dormia todas as noites com" Satanaz, e que o prín- cipe das trevas tanto se fizera amar d'aquella menina, que ella lhe escrevia nos termos mais ternos e apaixonados. N'uma syndicancia que se verificou um dia na abbadia de iNazareth, perto de Colónia, onde esta religiosa havia introdu- zido o seu infernal ainante, descobriu-se na sua cella, a io de março de 156o, uma carta de amor dirigida a Satanaz e cheia de pormenores horríveis acerca das suas noites libidinosas.

De resto, os auctores nào estão de accordo a respeito das predilecções li- cenciosas que se atlribuiam aos incubos, e a controvérsia demonologa sobre este ponto tomou por vezes grande vulto. O celebre Lancre assegura que os de- mónios não se niettem com as donzellas; Martin dei Rio allirma o contrario : Bodin sustenta que os demónios tèem horror á sodomia e á bestialidade : Prie- rías considera-os como inventores d'estas infames aberrações.

Esta divergência de opinião a respeito do grau de preversidade, que se atlribuia ao espirito maligno, prova unicamente mais ou menos depravação vn- enlre os casuislas que se occupavam de questões tão delicadas.

Não procuraremos explicar a espécie de impossibilidade (|ue se oppunha ao commercio de um demónio com uma donzella.

Lancre, no seu Tableau de Vinconstance des mantais anges et démons, refere que uma donzelloua de edade avançada lhe contara «que o diabo não faz ajuntamento com as donzellas, porque não pôde commeller com ellas adultério, por isso espera que se cazcm.»

Eis uni i'\tranbo riM|nihl(' de malícia da parte do diabo, pois julgava que

DA PROSTITUIÇÃO 289

não era ainda suHiciLMile peccado violar uma dunzclla c esperava a opporluni- dade do adultério. Ainda assim, n'outras passagens do seu livro, Lanerc da- nos a entender que o demónio tinha mais compaixão da fraqueza das donzellas do que da sua iiinocencia.

«Se não receiasse oflender a vossa imaginarão, diz o abbade Bordelon, na curiosa Histoire des imaginations, de M. Oullle, reterir-vos-hia aqui o que os demonograplios contam a respeito das dores que solTriam as mulheres, ([uando tinham commcrcio com os demónios, e o motivo porque sollriam estas dores.»

No emianto, parece demonstrado pelas revela(,'ões de um grande nUmero de feiticeiras e possessas, que diziam ter copula carnal com o tentador desde a edade de dez annos, que elle nem sempre esperava que as suas escolhidas es- tivessem aptas para o matrimonio para as possuir. Os demonogra( hos sem entra- rem em pormenores especiaes a respeito da deslloração das donzellas por obra dos incubos, citam muitos casos em que as virgens conheceram o diabo antes da puberdade.

Deve notar-se todavia que a maior parte d'estas desgra(,'adas eram filhas de feiticeiras consagradas ao demónio e ás suas obras, desde o seu nascimento, .íoanna Herviller, que foi condemnada á fogueira, como o tinha sido sua mãe, por seotenç,'a do parlamento de Paris, confessou que a auctora dos seus dias a tinha apresentado ao diabo «na figura de um homem alto e negro, vestido também de negro, ealvado de botas e esporas, que trazia espada e linha um cavallo porta.» .loanna tinha então doze annos, e desde o dia d'a(|uella apre- sentavão, o diabo «tinha cohabitado com ella do mesmo modo que os homens com as mulheres, exceptuando que o sémen era frio. Isto continuou por muito tempo, cada oito ou quinze dias, ainda mesmo quando estava deitada com seu marido, que não percebia cousa alguma.»

Dois ou três factos do mesmo género, citados também por Bodin, indi- cam que certos incubos, mais espertos e depravados que os outros, mostravam grande empenho em colher as primícias da virgindade. Em lolo, a abbadessa de um mosteiro de Hespanha, Magdalena de la (^ruz, foi deitar-se aos pés do papa Paulo iii, pedindo-lbe a absolvição pelo facto de se ter sacrificado desde a edade de doze annos a ura espirito maligno, em figura de um woii.ro prelo, continuando n'este execravel commercio por espaço de trinta annos.

«Sou de opinião, accrescenta Bodin, que Magdalena de la Cruz fora con- sagrada a Satanaz pelos seus próprios pães desde o ventre de sua mãe, por isso que confessou que aos seis annos, que é a edade do conheciuíento nas meni- nas, Satanaz lhe apparecera, e que a seduzira aos doze, que é a edade da pu- berdade nas mulheres.»

Outra Jovcn hespanhola, que fora desflorada pelo demónio na edade de dezoito annos, não quiz arrepender-se do que havia feito, e foi queimada n'um auto de fé.

Havia duas espécies de incubos, implicitamente reconhecidos como laes, os frios e os quentes.

António de Torquemada explica de uma maneira bem singular a_inva- são de certos diabos frios no corpo do homem:

BiSTOBiA DA Prostituição. Tomo ii— Folha 37.

290 HISTORIA

«Ainda <|U(' os diabos st\jani inimigos dos liomens, diz cllc no seu llexa- iiicron, cnlruin nos seus eorpos, não laiit(j pela vontade de lhes fazerem damno, como peio desejo de um eaior vivificante; porque estes diabos são os que ha^ bitam em logares profundissimos, seeeos e frios, e porisso desejam os sítios húmidos e quentes.»

Seja como fòr, quando um diaho entrava no corpo humano, e alli an- dava às voltas, revelava a sua presença pelo excessivo calor que causava em todas as partes que estavam em contacto com elle. Assim Santa Angela de Fo- ligno, que tinha de precaver-se sem cessar contra as sollicitações do diabo, sentia á sua approximação um tal togo no órgão sexual, que se via forçada a applicar-lbe um ferro candente para extinguir assim o incêndio que n'clle se desenvolvia sob a influeticia da lubricidade infernal.

Apesar do fogo interno ou externo, que os incubos quentes traziam com- sigo na cohabitação nocturna, o seu principio algido fazia-se sempre sentir de algum modo durante o próprio acto da obsessão. Depois de ter fallado do sen- timento de frio e de honor (jue os possessos do demónio sotTriam no meio dos seus espantosos transportes, Bodin diz que «taes copulas não são illusões nem enfermidndes}^, e atlirma que não dilTcrem das relações sexuaes ordinárias senão pela frialdade do sémen.

A este respeito um extracto dos interrogatórios feitos, perante Adriano de Fer, magistrado de Laon, ás feiticeiras de Longny, que foram condemnadas á fogueira por terem tido copula com os incubos.

Margarida Bremon, mulher de Noel de Lavaret, confessou ter sido con- duzida por sua mãe certa noite a um campo, em que se reuniam as feiticeiras:

«Havia n'aquelle sitio, diz ella textualmente, seis diabos em forma hu- mana, mas verdadeiramente horríveis. . . . Acabada a dança, os diabos atira- ram-se ás feiticeiras e tiveram copula com ellas. Um d'elles, com (|uem ella dançara, agarrou-a e beijou-a duas vezes. Em seguida cohabitou com ella por espaço de meia hora, mas o seu sémen era frio.»

.loanna Guillemin «reporta-se ás palavras de Margarida, e accrescenta que estiveram juntos, ella e um demónio, mais de meia hora, e que o sémen diabólico era como o gelo». (Drmunonianie des .sorcière.s. lih. ii, cap. 7).

.loão Bodin nota uma circumslancia completan)ente análoga no processo da feiticeira de Biévie, que foi instaurado e julgado pela justiça do senhor de Boue, bailio de Vermandois. Esta feiticeira confessou que Satanaz, a quem chamava seu companheiro, cohabitava com ella ordinariamente, c (jue o seu sémen era muito frio.

Os historiadores da feiticeria e os jurisconsultos não .se limitavam a re- gistrar estas extranhas |)arlicularidades. O seu íim principal era procurar a causa delias, e julgaram tel-a eiicontra<l(j, cslribando-sc na aucloridade de S. Thomaz de A(|uino.

«l'ns, diz o ingénuo Bodin, opinam (|ue os demónios /ii//í/n'(7//(>,s-, ou suc- cubos recebeni o sémen dos homens c se servem d'elle com as mulheres, como demónios eiihnaltux, ou incubos, como diz S Thomaz de Aquino, cousa que parece incrivel.»

DA PROSTITUIÇÃO 291

O mesmo aucfor, (|ue de eoiisa alfjimia se admira, nos mais sinistros arcanos da demonomania, adia a explicação dVste plicnomeno n'um versículo da Bíblia, em presença de qual os commentadores ficaram mudos e confundidos. Diz elle:

«Talvez a passagem da lei de Deus, que diz: Maldito xejn o que der o seu seineii a Molnrli, se possa entender a respeito d'esles.»

Não era este, porém, o único caracter distinctivo da possessão diabólica: o cheiro pestilencial que o demónio e\bala\a de todos os seus membros com- municava-se quasi immediatamente aos bomens e ás mulheres que visitava. I)'aqui a origem de locuções proverbiacs, que ainda hoje se usam: Cheirar como o diabo; apestar coí/ío o demónio, etc. Os possessos, que tinham tido copula com o tentador, apestavam tudo em torno de si, e reconheciam-se especial- mente pelo hálito insupportavel.

Diz o ingénuo Bodin, rcferindo-sc a Cardan :

«Os cspiritos malignos são íVtidos c" d(i mesmo niodd se consideram os logares por elles frequentados. (>reio que vem d'ai|ui o lerem i>s antigos cha- mado ás feiticeiras (atenies, e os gascões felilleros, pelo seu fétido repugnan- tíssimo, que procede, segundo creio, da copula com o diabo.»

Todos os demonographos concordatn na allirmação d'esle horrível fétido, que ordinariamente annunciava a passagem do diabo, c sabia da bocca dos pos- .sessos.

«Pódc allirmar-se, accrescenta, que as mulheres, que de si próprias tèem o hálito muito mais doce c agradável que os bomens, em consequência d'esta copula diabólica se tornam tristes, feias, horrorosas e fétidas.»

Não é tudo ainda: o abominável commercio dos incubos produzia ás ve- zes fructos monstruosos, e o demónio tinha um prazer maligno em introduzir assim a sua progénie na raça humana. n'este modo se explicavam todas as aberrações da natureza nas obras dar geração. Os monstros tinham então a sua razão de ser.

Spranger escreve «que os allemães, tendo mais experiência em feitícerias, por isso que as tiveram desde tempos immemoriaes, e em maior numero que nos outros paizes, são de opinião que d'essas copulas sabem ás vezes filhos, que elles chamam Wechsel-Kind. Estas crianças são muito mais pesadas que as outras, estão sempre doentes, e seriam capazes da csgolarem três amas de leite- sem saciarem a sua fome diabólica.» ( Démonologie des sorciéres, lih. ii, ca|i. 7.)

Martinho Lutbero, nos seus Colloquios. reconhecia a verdade dVste fa- do, tanto mais insuspeitamente, que elle próprio era arguido de ser um d'estes filhos do diabo, a quem as camadas populares da liba de França chamavam rhampis, como quem diz, achados, ou gerados no campo.

No século XIII, um bispo de Troves, chamado (íuichart, foi accusado tam- bém de ser filho de uni incubo, chamado 1'enim. o qual. segundo diziam, pn- zcra lodos os sciis d<'ni()nicos as serviço do prelado, seu amado lillio. \ . .\iiiir. Mnnoires de I' .[nidriiiie des hif<rrlplioiis. I. vi, p. (iOIÍ.)

(ts inctibds linbani, portanto, a aptidão de crear filhos bastante fortes e

292 KISTORIA

hábeis para alcaiii^^arem no mundo unia elevada posição. Ordinariamente, po- rém, estas vergonteas infernaes eram apenas umas espantosas parodias da humanidade. Rodin falia de um nionstro desta espécie, nascido em 1365 na aldeia de Selicmir, |)crlo de IJresiau, e que livera por pães uma feiticeira e Satanaz :

«Era um monstro horrível, diz elle, sem cabeça nem pés, com a bocca no hombro esquerdo, ciir de figado, que gritava com clamor espantoso quando o lavavam.»

De resto, Bodin apresenta varias opiniões acerca dos resultados da pros- tituição diabólica.

«Outras feiticeiras, diz elle, parem diabos á maneira de crianças, que para logo cohabilani com as suas amas, cgualmente feiticeiras, sem que (Fahi a pouco se saiba o que foi feilo d'clles. A respeito d'esta copula de diabos, Santo Agostinho, S. João Chysoslhomo e S. (Iregorio ÍNazianzeno sustentam, contra Laclancio e Josephus, que é infecunda: e que, se o não c, mais facil- mente produz um demónio que um homem.»

O vulgo, porém, não duvidava que o demónio tivesse a faculdade de se reproduzir sob a forma humana, e considerava succubos todos estes filhos do inferno. i\o emtanto, pôde concluir-se (|ue a maior parle das obras do incu- bismo eram estéreis.

"O homem feiticeiro que tem copula com o diabo, como com uma mulher, diz líodin, não é incubo ou ephiidlln, é hijphialto uu succubo.»

A este respeito conta muilas historias de succubos sob a responsabili- dade de Spranger, de Cardan e de Pico de Mirandola. Spranger refere que um feiticeiro allemão cohabitava assim diante de sua mulher c de seus filhos, que o viam no leito sem verem a mulher succuba.

fico de Mirandola conheceu uni sacerdote feiticeiro, chamado Benito Berna, que na cdadc de oitenta annos declarou ter cobabilado por mais de qua- renta vezes com um succubo disfarçado de mullier, que o acompanhava sem que ninguém desse por elle, e que se chamava Hermiona.

Cardan cila o caso de um outro sacerdote de noventa annos, que tinha cobabilado por espaço de mais de cincoenta com- um demónio em forma de malltfr. É para noiar-se um facto curioso: os inciibos diiigiam-se de ordinário ás mulheres mais bellas e jovens, assim como os succubos aos homens mais bonitos e bem proporcionados.

Ouanto aos feiticeiros e feiticeiras, que iam procurar nos seus conciliá- bulos iioclurnos os detestáveis prazeres que o diabo jamais lhes recusava, iraquella monslruosa prmniscuidade de sexos e de edades, eram quasi sempre feios, velhos e repugnantes. I'ódc, poi'lanlo, considerar-se o incubismo como uma espécie de iniciação na feiticeria, que desprezava complclamente o pudor e levava a libertinagem ale aos ullimos limilcs do possível. i'or via de regra, o incubo não cnconlrava complacência alguma na pessoa que desejava e pre- tendia: era apenas o preludio do pcccado. O feiticeiro, pelo conlrario, pre- verlido c dado de li;i nuiilo ao diabo, dci\ava-se arrastar á perdição e vivia cxclusivamenlc ua pr;itica das obias das Irevas.

DA PROSTITUIÇÃO 293

E' conveniente, portanto, estabelecer utna distinc(,'ão muito significativa entre o incuijismo e a feificeria, dizendo que esta era a |)rostitui(,'ão das iiui- llieres veliias, e aquelle a da juventude.

Apesar de tantos factos, de tantas revelações e de tantos exemplos me- moráveis, certos demonograplios negaram a existência dos incubos e succubos. O sábio astrólogo Aggripa e o celebre medico Wicr, attribuem á imaginação os principaes malefícios d'aquelles demónios nocturnos. «As mulheres são dotadas de grande imaginação, e julgam fazer o que não fazem», diz Wier. Os médi- cos mais illustrados do século xvii eram d'este parecer, e não obstante, n'este mesmo século, em que ainda se queimavam feiticeiras, que confessavam ter tido copula com o diabo, discutia-se nas escliolas e academias a tbeoria dos incubos e succubos.

A ultima vez que esta singular theoria se debateu em França, sob o du- plo ponto de vista religioso e scientifico, foi nas conferencias do celebre /?i//'?aií il'Ádresse, que o medico Tbeoplirasto Renaudot havia estabelecido em Paris, exclusivamente para zombar ao mesmo tempo da Faculdade de medicina e da Academia franceza. Estas conferencias que se celebravam uma ou duas vezes por semana no salão do Ihireau, sito na rua da Calanãrf, na cifi', attrahiam ura numeroso auditório, curioso de ouvir os oradores que tomavam parte na dis- cussão.

Tractavam-se alli as questões mais espinhosas, e Theophrasto Renaudot dirigia os debates com uma seriedade imperturbável. A discussão sabia frequen- temente dos limites do que n'esse tempo se chamava honestidade, e agora cha- mamos decoro, ou decência, mas como todos estavam ávidos de saber, ninguém via nas opiniões dos oradores nem um átomo de malicia ou zombaria.

>'a conferencia 128, que se realisou na segunda-leira, 9 de fevereiro de 1637, um curioso da natureza, como ao tempo appellidavam os aíTeiçoados da physica e das sciencias naturaes, apresentou a seguinte these á discussão :

Dos incubos e succubos: poderão os demónios procrear?

O assumpto não era novo; era, coratudo singular e de sensação.

Inscreveram-se immediatamente quatro oradores.

O primeiro a tomar a palavra foi um medico pouco favorável ao sys- tema dos demónios incubos e succubos. (Considerou este facto como effeito de uma enfermidade chamada pelos gregos ephijallos, e pelo vulgo pesndHlo, e de- tiniu-a uma diíficuldade invencível de respiração, voz e movimento, com oppressão do corpo, sentindo-se por sonhos um peso sobre o estômago. Se- gundo elle, a causa d'esta enfermidade é um vapor grosseiro, que occupa prin- cipalmente a parte posterior do cérebro e impede a sabida dos espíritos ani- niaes, destinados ao movimento das partes.

Accrescenta que o vulgo attribue estes edVilos e perturbações ao espirito maligno, de muito melhor vontade do que á malignidade de um vapor ou de qualquer humor grosseiro, ou mucoso, que faz oppressão n'aquelle ventrículo, cuja frialdade e debilidade, produzidas pela falta de espíritos, são as causas mais manifestas. Conclue em consequência d isto por dizer, ([ue este estado mórbido, nu qual nenhuma iniluencia tem o diabo, não podia produzir a con-

394 HISTORIA

cep^-ão, «que sendo um eíTeito de faculdade nalural, e estado da alma vegetativa, não podia convir ao demónio, que é um puro espirito.»

Esta tlieoria da geração devia produzir uma viva curiosidade na assem- biéa, que nem sequer suspeitava as faculdades da alma vegetativa; o segundo orador, porém, que era um sábio empanturrado na leitura dos clássicos gregos e latinos, tomou a defeza dos demónios, c quiz provar a realidade das suas co- pulas com creaturas humanas, factos que não podiam negar-se sem desmentir uma infinidade de pessoas de todas as edadcs, sexos e condições a quem ha- viam succedido.

Em seguida, cita muitos outros personagens illustres da antiguidade e da Edade-Média, que foram procreados pelos deuses falsos ou pelos demónios. «São verdadeiros incubos, diz elle, os faunos, os satyros, e o principal d'elies, faii, chefe dos incubos, chamado pelos hebreus Haza, assim como ao chefe dos succuhos chamavam Ijíith. Ha ainda os Nephesolienses, que os turcos tèein por lilhos do demónio: e pode succeder que sejam por dois motivos, ou por- que os demónios se apoderem das mulheres e transportem para ellas sémen extranlio, ou porque, e é o mais provável, possam fazer sémen próprio, porque tudo quanto é natural pode ser feito pelos demónios. E mesmo que não podes- sem fazer seiíifii jiroprio, nem por isso deve concluir-sc que não esteja nos seus recursos produzir uma creatura perfeita.»

Havia na assembléa grande numero de damas, que não perdiam uma pa- lavra d 'esta discussão.

O terceiro orador reconheceu como facto incontestável o commercio dos incubos e succubós com as creaturas humanas, mas era de opinião que estes espiritos malignos não podiam procrear, e explicava assim a sua idéa:

«Pelo que respeita ao succubo, direi que é bem claro não poder de forma alguma procrear, por isso que não tem logar conveniente para receber o .sé- men, e falta-lhe o sangue para alimentar o feto durante os nove mezes da ges- tação.»

A respeito do incubo, não cortava tão peremptoriamente a questão. Recor- dava as três condições principaes que requer a geração, a saber: «a diversi- dade do sexo, o ajuntamento do macho e da fêmea e a eílusão de alguma ma- téria, que contenha em si a virtude procreadOra.» T.oncorda que o diabo pode em caso de necessidade dispor das duas primeiras condições, mas nunca da ultima, do tal .senien |)ropno e conveniente, dotado de espíritos e de calor vi- tal, sem o que, é iíifecundo e estéril; porque o diabo não tem scnwn, que se produz n'um corpo actuainícnte vivo, como não é o do tentador. Quanto a tra- zer doutra parte o sémen, isso não deve admittir-se por falta de espiritos, que não podem conservar-.se, a não sci' |ior uma irradiação que se faz das parles nos vasos cspcrniaticos.

O (|uarlo orador, hniiiein douto c prudente, veio muito a pi'oposito acal- mar a anciedade do auditório, declarando «(|uo não ha nada de .sobrenatural no incubismo. (|ue não c mais do (|uc um s\mptoma da faculdade animal, acompanhado de três ciiHiumstancias, a saber: a respiração impedida, parai v- sação do movimento e uma imaginação volupluo.sa.» Reiíabililou o pesadcllo,

DA PROSTITUIÇÃO

295

cujas causas e elkilos explicou, e terminou a discussão por dar um conselho aos circumslanles, que era absterem-se de dormir de barriga para o ar c dos perigos de uma imagiiia(,-ào voluptuosa, «elleito da abundância ou qualidade do sémen, o ([ual enviando a sua espécie á pbanlasia forma um objecto agradá- vel e remove a potencia motriz, e esta a faculdade expellifiva dos vasos es- permaticos.»

Todos se retiraram satisfeitos d'estas doutas investigações no mundo en- cantado, ás quaes o douto Becker não havia ainda levado á luz da duvida e da razão.

Depois de Theopbrasto Renaudot e até aos nossos dias, a theologia e a sciencia tem-se occupado ainda da questão de incubos c succubos, tão arraiga- dos na credulidade popular, que era impossível destruil-os completamente. As proezas d'estes demónios subalternos são ainda hoje pontos de entre os ha- bitantes do campo. Voltaire zombou d'esta crença com o seu inllexivcl bom senso, mas pouco faltou para que não o accusassem de desacatar o diabo, dis- putando-lhe as suas antigas prerogativas.

Antes de Voltaire, um medico ordinário do rei de França, de Sainf-André, descobriu a verdadeira causa d'esta superstição, de que tracfou nas suas Cartai sobre a magia, malefícios e feiticeiros.

«O incubo, diz elle, é ordinariamente uma quimera, que não lem outro fun- damento senão um sonho, uma imaginação enferma, e na maior parle dos casos a imaginação das mulheres.. . . O artificio não lem parte menos importante na historia dos incubos. Uma mulher, uma rapariga, uma beata libertina, que apparenta virtudes para occultar vicios, faz passar o seu amante por um incubo que a tornou possessa. Ha espíritos succubos, e incubos que não teem mais ra- zão de ser que o sonho ou os delírios da imaginação. Um homem ouve fallar cm succubos, e d'aqui imagina ver e gozar em sonhos as mulheres mais bellas e voluptuosas.. .

De Saint-André resume d'este modo e mui sensatamente as circumstan- cias em que se podia produzir a superstição dos incubos e dos succubos, e não podemos deixar de louvar a sua sensatez, n'uma épocha cm que os casuis- tas e os doutores da Sorbonna não vacillavam em reconhecer a potencia geradora do demónio. Assim, por exemplo, o P.'' (^ostadau, que era um jcsuita muito douto, escrevia n'aquella mesma épocha, no seu celehve Traité des signes, o seguinte:

«O caso é muito singular e importante para poder ser traclado á ligeira. . . Não menos dillicilmenteo acreditarianios, se não estivéssemos convencidos por uma parte do poder do demónio, e por outra não encontrássemos uma infini- dade de cscriptores de primeira ordem, papas, theologos e philosophos, (|uc sustentaram e provaram a existência d'esta espécie de demónios succubos c incubos. HaefTectivamente pessoas tão desgraçadas, que tiveram com elles com- mercio vergonhoso e cxecravel.»

A Egreja e-o parlamento livcram de fazer leis contra estes desgraçados, que consideravam como cúmplices, bem que fossem involuntários, da prosti- liluição diabólica, c a fogueira era sulTiciente para os purificar d'esta man-

296 HISTORIA

cha horrível, quando a penitencia não se encarregava de os trazer ao caminho do perdão. As victimas do siiccubismo e do incubismo tinham motivos de in- dulgência que invocar, apresentando-se como taes. A jurisprudência ecclesiastica e civil mostrava-sc implacável com outra espécie de prostituição infernal, a dos feiticeiros e feiticeiras, que se consagravam de boa vontade a Satanaz, pres- tando-se a toda a espécie de abominações nos seus sabhats, ou reuniões no- cturnas.

Taes eram em França e em toda a Europa, durante o século xvi e mesmo no século xvii, os derradeiros vestígios da prostituição hospitalar e da prosti- tuição religiosa.

CAPITULO XXVI

SUMMARIO

A |irostituir,ãi> na li'iticei'r:i. Oiisens do snlihat. Via.apns nocturnas ric Diana o i]i' HiTodiadns. Capi- tular cíiutra os feiticeiros.— Leis ecciosíasticas.— A mais anti;;a drscripção do sahhat —As ohras do dialio, segundo os interrogatórios dos processos da ft-itícei-ia. Cliepada dos feiticciíos ao mhlKit. Adoi"ação do-bode. —Horrorosos sacríficios ao diabo. O pec.rado supcr-contra-vaturnm. A ronda do xnhhat. Diversos testemunlios era seu appoio. Pliysiologia ol)scena de Satanaz. —O sdhhat da Vnuderie d'Arras. O sahhat de Gaulridi. -Impurezas dos feiticeiíos e leiticeiras.— r.astrarão magica. —As vellias leiticeiras. Signaes dialiolicos.-Os feiticeiros de So- doHia Snpplicio dos sodomitas no inferno. Incestos do snlihat.— Accusação de bestialidade. As serpentes da caverna de Norcia. O cão das religiosas do r.olonia e de Tolosa. —Consequências da demononjauía. A verdade sobre os actos ila prostituiçiio da feiticeria.— .lustificaçrio ria jurispni lencia ila Edade-Media.

iMuisiiTUiç.lo na Iciliceria não era, como o iiicultismo, iitiia conseqiicrii-ia acciticnlal da ob.sessão diabólica, senão o resnl- (ado ordinário da possessão: era o estado haiiifuai dos iioinens c das nuillieres consagrados voluntariamente ao demónio, e de yi certo modo o sello do pacto abominável que os lifjava com o poder internai, com aqiielle que se denominava o aiietor do peecado.

E' claro, pois, que a feitic(M'ia tinha dois caracteres principaes, um dos (|uacs poilia ser o etTeito e o outro a causa: aqui dava satisfação aos mais in- fames caprichos da preversão humana; alli empregava a intervenção dos maus espíritos nas obras sobrenaturaes c malditas.

IVeste modo, o principio da feiticeria cm todas as (!'pochas consistia no mutuo accordo entre o homem e o diabo: o primeiro, subincllcndo-sc corpo e alma á dominação do segundo: este comparlilbamlo de certo modo com o seu escravo o poder occullo, que o Ser Supremo deixara a Satanaz, ao prccipital-o da morada celestial nas profundezas dos abysmos. Tal era a recompensa d"a- iiuella \i)luntaria escravidão; tal era o mysterio da feiticeria, que podia deliiiir-se uma vergonhosa prostituição do homem, (|uc se vendia e entregava ao diabo. Coniprchendc-se agora o que seria na sua origem a feiticeria, (jiie evi- dentemente servia de pretexto a extianhas aberrações de uma vergonhosa promiscuidade, por isso os antigos olhavam com profundo desprezo os feiti- ceiros, cujas reuniões secretas não eram mais do que execráveis conciliábulos de libertinagem.

Os legisladores e philosophos da antiguidade foram sempre unanimes em comlcmnar e impor castigos rigorosos aos magos e ás suas odiosas com|)anhei-

Bl8T0BI\ DA PBnSTITDIçiio. ToMO H— FoLBA 38.

298 HISTORIA

ras. Apesar d'isso, puJoinos apenas lazer conjectutas a respeito do que se pas- sava tias suas reuniucs iioL-tiirnas, visto tião se encoutrareiu nos poetas gregos c romanos senão liinilailissiiuas desL^ripções. S(3 em Pelronio e Apuleyo se en- eiiiitram duas ou Ires passagens que deixam suspeitar o que não dizem. As narraeões, que ao tempo se faziam d"estas spintrias magieas e danças volu- ptuosas, achavam então muitos incrédulos, que não ll»es ligavam importância, ou não viam n'ellas malieia alguma.

Horácio diz expressamente em muitas passagens das suas odes e episto- las que as velhas IViliceiras eoinmeltiain gi'aiides indeceneias á luz da lua, e que duranlc a noite nos campos e nos bosques os jovens iam rcunir-se aos choros úr sat\ros c nymphas i nintiihnrionqiir leris cum ■■iíili/ris choril.

,\ão era aimla o suíiliní (|a Edade-Mcdia com os seus monstruosos liorro- i'cs, (|uc parecem lei- sido rcalmcnlc um inveiiío do demónio, e (|ue tinham lodos os i'equisilos para lazer crer no poder e intluencia do príncipe das trevas.,

O verdadeiro salibui existia nosjjovos do Norte, onde a feiticei'ia ar- r.ista\a a todos os c\ti'avios e aherracóes da imaginação mais depravada. Aquel- les povos esla\am ainda muilo próximos do estado primitivo da natureza para não se di'i\arem arrastai' a eslcs excessos pelas suas paixoi's hrutaes, e a su- perstição que instigava a(|uclla grosseii-a sensualidade enconlrava-os dóceis ás suas crenças c aberrações.

Os imperadores romanos, para manterem a sua anctoridade nos paizes conquistados, procuraram destruir n'elles a magia, os seus adeptos e as suas praticas. A fiallia, sobretudo, estava infestada de feiticeiros, e Tibério não eon- .seguiu expurgar esta província romana, senão fazendo uma guerra implacável aos druidas e á sua religião.

Talvez não venha fora de proposiio notar aqui que os demónios incuhos a que se refere Santo Agostinho e que elle chama Drusil (quos Galli Dntsios imncnpanl) foram confundidos com os druidas pelos antigos escriptores; e Ho- din, citando esta mesma |)assagein. reproduzida nas Elijinoliniias de Izidoro de Sevilha, accrescenta :

«Todos se tem enganado com a palavra Danios, que deve lèr-se Dnixios. como quem diz diabos dos bo.siines, aos (juaes os latinos chamaram Sfilranos. K' verosímil o (|ue iliz Sanio Agostinho, a respeito de nossos pacs haverem chamado antigamente a eslcs diabos Dntsios, para os distinguirem dos druidas, que viviam também nos bosques.

A analogia de nome provinha mais laUcz da similhança do ipie da dif- ferença entre Drusitis e nruidas.

O cbrislianismo teve de augmentar ainda os rigores da perseguição con- Ira os cúmplices da demonomania. iNo tempo do imperador Valente (3t3l-:$7S) começaram a ser iiueimados os feiticeiros; mas a feiticeria e o druidismo ti- nham Ião profundas raízes nos costumes d<)s gaulezes, ijue nem depois de mui- tos stículos de sanguinoleiilos esforços se logrou exiinguil-os a fogo e a ferro. Iv claro (pie o {Iruidismo e a feiticeria encerravam desde esse lempo nos seus usos, ou pelo menos nas suas cereinonias, uma multidão de escandalosos por- menores da pi'o>liluição hospilalar e religiosa.

IIA IMIOSTITUH.IÀII Í99

Afiezar (Pisso, nos aiictoirs clirislãos não se (rata das assembleias mi- ctiirnas de feiticeria antes do século sexlo, ou do sétimo. Todos os códigos dos povos l)arbaros, a l.i'i nipiinria. a Lfi Snlica, a Lei dos liurqQndfís e a Lei dos Mlemães, comminavam tão somente uma penalidade terrive! contra os fei- ticeiros, sem todavia (ts accusarem do prostituição diabólica.

O monumento mais antiiijo que faz menção do snhhnl, ou de uma junta tenebrosa de mullierí>s (|ue linlia por lim obras de magia, é uma capitular, cuja data não foi fixada de uma forma bem autbentica, e que talvez não seja anterior a (larlos Magno. ( Vcja-se a «ollecção de líaluze, Cfipiltdnria rctiuni, fragm. cap, 13.)

Esta capitular não subministra iionnenores muito explícitos a respeito das viagens aéreas que os feiticeiros julgavam fazer em companbia de Diana e de Herodiades, montados em animaes phantasticos, que os conduziam prova- velmente'a uma assembléa geral da feiticeria.

Eis a curiosa passagem, (|ue pai-ece pertencer aos cânones de um conci- lio, e (|ue frequentes vezes foi truni'ada e adulterada:

«lllnd Piiiim ni))i, csi omillcndiim quod quifdain sci-lfraitc nnilicrr.s. re- ifti. iiDsi Sitiiiiiiiin i-on>'crKa', difiiitiniim liliisioinhus fi iilifníiasmaiilnis .sedii- cliv, ciriliiiii ft iirofilfiiiuin .v^ miciiiniis horis nim flinna, dea fini/oiinnuti, iv/ (•///(( Hffoiliiidc ei inHiimera muJíiladine mulifrinti. i'iiiiiinri' super ijuns- ihnn lii'slliis, e: mui ta rum lerroriim spuiiii uilemiiestif nociis sileulio jicriruit- sire, ejiisíiiie jussilius. reluí dixiihuv nhedire el rerlis Doclihiis iid ejiis serri- liiim ecncari.»

Ilécon beee-.se claramente a partida das feiticeiras para o sahbdl ; mas não assistimos á cbegada d'esta infernal comitiva, nem sabfemos o que iam fa- zer á reunião. E' licito suppòr (|ue os animaes pbanfasticos em que immtavam durante estas viagens aéreas não eram senão os demónios, (|ue mais tarde ve- remos servir |)ara este mesmo uso ás feiticeiras.

Não podemos duvidar de que fosse o snhhnt esta reunião tíi ysteriosa : (|uer dizer, uma reunião illicita, clandestina em que se prestava culto ao diabo e este culto devia ser erriçado de indeeeneias, infâmias e monstruosidades, (|ue foram sempre estas as praticas da feiticeria. Mas se o facto existia já, fal- tava ainda n'esse tempo a palavra saMmi. para o significar, .lulgamos ('om boas razões (|ue esta palavra não é anterior ao século xii, o que não impediu os sábios de a dei'ivarem do nome de Haccbo, porque as bacchanaes tinbam al- guma relação com as orgias nocturnas celebradas em bonra do demónio, com danças lúbricas, festins opíparos e monstruosas libertinagens.

E' evidente que esta douta etymologia, apesar das relações que jKkle ba- ver entre stihhal e Baccbo, cabe jtor terra perante uma impossibilidade de data, e poi' isso (levemos attendcr síímenle á etymologia mais natural.

"O povo, (|ue deu o nome dií suhhai i\> juntas ou conciliábulos dos fei- ticeiros, diz Calmei, mo seu Traclado das apparições dos espíritos, (luiz appa- rentemente com|)arar piu' uma extiMiiba irrisão estas assembléas ás dos judeus e ait {|ue estes praticavam nas suas suiagogas, no dia de salijiiido."

Todos os (lemoiiologos, (|ue não querem pas.sar por ignorantes, occiípa-

:íOO historia

rain-se em procurar nas antigas lestas de Baccho a origem do sabhat dos de- mónios. Assim, segundo Lcloyer, no seu livro dos Especlros (Lib. iv, c. 3) os iniciados cantavam Saboé nas bacclianaes, c os feiticeiros nas suas reuniões bradavam, voz em grita: liar! Sabhat! Sabhat!

Mais provável é, porém, que os cbristãos, não tendo menus liorror aos judeus (|ue aos feiticeiros, fingissem confundil-os na mesma reprovação, attri- l)UÍndo-ihes o mesmo culto, os mesmos costumes, as mesmas profanações.

A mais antiga descripção do sabhat diabólico temol-a n'uina carta do papa (iregorio ix, dirigida collectivamenle ao arcebispo de Moguncia, ao bispo de Hildcsbeim e ao doutor (_!onrado, em 1234, para Ibes denunciar as iniciações dos bereges.

<vQuando recebem um neopbyto, diz o pontífice, e quando elle entra peia primeira vez nas suas assembleias, um sapo enorme, do tamanbo de um pato, ou maior ainda. Uns beijam-no na bocca, outros por dctraz. Em seguida, o neopbylo encontra um bomem pailido, de olbos muito pretos, c tão débil c cmfermiço que não tem senão os ossos e a pelle. Beija-o, e encontra-o frio como neve, e logo depois d'este beijo esquece facilmente a lei catbolica. Em seguida fazem um festim, depois do qual desce um gato preto, que vae col- locar-se dctraz de uma estatua, collocada ordinariamente no logar da assembleia. O neopbyto beija primeiramente esse galo por dctraz, depois o que preside á reunião e os oulrus (]uc são dignos d'isso. Os imperfeitos recebem somente o beijo dl) clicfc a ([uem juram obediência: cm seguida, apagam as luzes e eom- mettem toda a espécie de impureza. (Historia ecclesiuslica úe Fleurv, t. xvii, p. o3.)

Aqui temos, |)ois, o subíxu, (jue o século xvi nos descreveu multas vezes com tão minuciosos pormenores; mas esta assembleia de bcrejes-, ainda (|uc si- milbante á dos feiticeiros, inoslra-aos mais a prostituição na bercsia do i|ue na fciliccria.

O .sabhat propriamente dito, remonte ou não á mais alta antiguidade, não foi bem conbecido até ao .século xvi, quando a inquisição se occupou d'elle a serio n'uma multidão de processos, em que os pobres feiticeiros referiam com certo orgulbo as monstruosas inaravilluis de que baviam sido testemunlias, actores ou cúmplices. Os interrogatórios d'estes processos permittein-nos nive- lar com a máxima exactidão as principaes obras da prostituição, (|ue tinliam por ibeatro o sabhat dos feiticeiros.

A maior parte dos liistoriadores, que referem eátes pormenurcs deplorá- veis da |)i'osliluição bumana, eram dotados de uma inquebrantável, e attri- buiam de boa mente ao diabo lodos os crimes (|ue os seus crédulos vassallos llic imputavam. Depois de liaver reunido um ()equeno numero d'estes iiorri- veis testemunlios, ticamos convencidos que, se a imaginação tinba uma inven- cível influencia nas sensações dos dcmonomaniacos, a fraude e a astúcia abu- .savam com frequência da sua fraqueza moral, em proveito da lubricidade de uns c cm prejuízo do pudor dos outros.

As feiticeiras ([uc queriam ir ao sablial começavam a prcparar-se com invocações. Em seguiila punbam-se completamente nuas, e esfregavam o corpo

DA PROSTITUIÇÃO liOl

com um i-ei'lo unguento, c á Imra mairadn, fcilo o signal convencionado, mon- lavani n'uma vassoura c saliiam pelas cliainincs das suas casas, clevando-se nos ares a uma aliara considerável.

Ordinariamente encontravam nos orifícios das chaminés uns diabinhos, que linliain recebido a missão de as conduzir atravez do espaço. JN'este caso as fei- ticeiras, ou bruxas, cavalgavam n'elles, ou enl.ão agarravam-sc-ihe ao rabo ou aos cornos.

Chegavam ao sahbal com])I(>lamente nuas e reluzindo coin a uniura magica (|ue as tornava invisiveis c impalpáveis, excepto aos demónios e feiticeiros. A receita para compor o unguento destinado aos familiares do sabbat, encòntra-sc ainda formulada nos livros de magia. Provavelmente perdeu toda a sua virtude, visto que ninguém faz uso d'ella hoje em dia; n'outros tempos, porém, não era inútil para augmenlar as forças, que cada ([ual tinha de gastar n'essas in- fernaes orgias.

Untados com a gordura magica, feiticeiros e feiticeiras chegavam comple- tamente nús ao sabhal, e nús voltavam. Esta nudez absoluta prova que o sahbat era uma entrevista de abominável prostituição. Bodin refere muitas his- torias, cuja responsabilidade deixamos á conta d'ellc, em que nos descreve como os homens e as mulheres iam a estas entrevistas nocturnas.

l'm pobre iiomem, que vivia perto de Loches na Turenna, notou que sua mulher se ausentava de noite, sob o pretexto de ir fazer a barrella a casa de uma visinha. Chegou a desconfiar d'ella, e cheio de ciúmes ameacou-a de morte, se não lhe dissesse a verdade. A mulher confessou que ia ao sahbnt e oITereceu-se em prova do que dizia a levar alli o marido.

Elfeciivamente foram os dois, e viram-se logo em companhia de feiticei- i'os e demónios; mas o pobre homem teve medo, e pcrsignou-se invocando i? nome de Deus. No mesmo instante, tudo desappareccu, até a própria mullier d(» aprendiz de feiticeiro, ([ue andou núa e erranie (tclos campos até ao dia seguinte.

Outra anccdota idêntica:

Uma jovcn estava em Lyão deitada com o seu amante, que não podia dormir. A rapariga levanta-se sem fazer ruido, accende uma luz, pega n'uma caixa de unguento e esfrega com ella todo o corpo, depois do que é transpor- tada. O galan levantase, serve-se tam!)em da mesma untura, conforme vira fazer á sua rihalda, pronuncia as mesmas palavras magicas que lhe ouvira e... chega ao sabbat quasi ao mesmo tempo que a Joven. A' vista dos demónios, porém, e das suas horríveis altitudes, é tão grande o seu (error, que encom- menda a alma a Deus.

«Toda a companhia desappareccu instantaneamente, diz Bodin, e o pobre rapaz íicou e nú, voltando logo a Uyão, onde accusou a sua ribalila de fei- ticeira. A rapariga confessou e foi condemnada a morrer queimada.»

O emprego do unguento magico para os feiticeiros se transportarem, não era sempre indispensável, sobretudo para os da profissão, ijue não precisavam mais do (|ue metlcr entre as pernas nma vassoura ou um pau quahiucr par.i voarem como uma Mecha pelos ares ate ao logar da reunião diai)olica. Bodin as- segura que este pau ou vassuui^a bastava ás feiticeiras IVancczas, que ncllc ca-

303 HISTORIA

valgavam (It-strainciilt', sem [)n'iMsart'ri) de uniiiionlos, tMiit|iiaiilo iiui- os tVili- ceiras italianas liiihain que unlar-.so <!(is pés á cal»('ç;a antes do montarem iki bode que as i-onduzia ao fiahbat.

Esta (lillcrenva de meios de transporte aéreos, usados peios feifieeiros, explica a diversidade dos trajos nas antigas gravuras que representam os mys- terios do stibhai. Umas feiticeiras estão níias, e são as que se untam: outras estão vestidas, e são as que, como diz Lancre, «vão ao sahbai sem se untarem de gordura, nem lêem de passar pelos tui)OS das chaminés.»

A mesma distineção se nota entre os leiticeiros, dos quaes os mais no- vos não levam fato algum, em(|uanto que os mais velhos levam largas túnicas e capuzes.

Os demonologos não estão de acccordo acerca do que se passava no sab- bat. pelo que se pode inferir que se passavam alli muitas cousas, na sua maior parte ridículas, mas havendo algumas infames tamlwm. Depois de se ter lido e comparado todas as descripçôes que nos restam do tahbní. reconhece-se que esta horrível promiscuidade de sexos e de edades não devia ter mais que um fim, e (jue esta liherlinagcm se realisava de quatro modos: pela adoração do hoile, por festins sacrílegos, por danças ohscenas e pelo commercio impudico dos demónios.

Estas (juatro priricipaes funcçòes do sn.bbal em Iodas as épocas e paízes estavam ilcvidamente estabelecidas nos interrogatórios e provas dos processos sobre feiliceria.

IVãí) se pôde dizei' com certeza em que consistia a adoração do bode; mas deve crér-se que as praticas sempre detestáveis d'esie crime variavam segundo os legares e os lerapos. Vinha a ser ordinariamente uma espécie de homena- gem, seguida de investidura diabólica, e acompanhada de tiábuto, imitando cm tudo os usos do feudalismo. O novo fcudatario do diabo acccitava-o por amo c senhor, preslava-lhe juramento de fidelidade e vassallagem, olTerecia-lhe um sacrifício e recebia em troca os eslygmas ou sellos do inferno. Era este, pois, o fundo da ceremonia, que se praclicava de muitas maneiras com um prodi- gio.so alarde de espantosa libertinagem.

O diabo, que presidia em toda a parle ao snlibnl, ou pelo menos se fazia representar por algum dos seus escolhidos, tomava ordinariamente a figura de um bode gigantesco, branco, ou preto, d'esse animal impuro, que foi sempre o svnibrdo da lubricidade. O bode diabólico linha, porém, algumas particularida- des características. Segundo uns, tinha dois cornos na frente, e outros dois no occiput, ou então sómcnle Ires cornos na cabeça com uma espécie de luz no corno do meio. Segundo oulros, tinha em cima do pescoço uma cara de hn- mem negro. (Trailif de Vinconalance de.-: démons. por De í.ancrc, pag. Tíí e 128.) O demónio tomava lambem a forma de alguns oulros animaes não me- nos lúbricos do que o bode.

•<\i, (juando estive na Touiiicllc, refere o bom lie l.aiicrc, alguns pro- cessos em que se dizia apparecer o diabo no sulibai, na ligura de um grande lebrcii negro. .N'oulros ainda, presidia cm ligura de iim grande boi de bion/c' deitado por leria, on como um boi vivo i|ue repousa.»

DA PROSTITUIÇÃO

303

o

Outras vezes S;ilaita/. ou Belzehutli vinlui rcceluT a adoraràn dos seus siihililos e súbditas, soba f(>rni;i de um pássaro iie^ro, do taiiiaiibo de um ganso.

Em varias cireuinslaiieias, assumia a forma iiuinana, aceieseenlando-lhe vários aliributos do seu poder infernal. Umas vezes era vermelho, outras ne- !;ro: ora tinha uma eara no sitio em que os lombos terminam, ora tinba-a so- bre a nuea, Jazendo symetria a do outro lado, como o deus .lano da niytbo- logia.

Casos bavia ainda em que tomava uma conliguraçào extravagante, eomo veremos de uma passagem de Prierias, que n'outro logar citaremos.

vHa quem diga, refere De Lanere, que no sabbat o diabo é eomo um rande tronco de arvore, escuro, sem braços e sem pés, eom uma espécie de rosto humano, grande e espantoso.»

Finalmente, depois de haver recolhido todas as opiniões relativas ao diabo, De Lanere traça o retrato seguinte :

«O diabo no sabhal está si-ntado n'uma cadeira negra, eom uma eoròa de cornos negros, sendo o mais alto do meio da lesta como que uma espécie de facho que illiimiiia a assembleia. Tem os cabellos erricados, rosto pallido e som- brio: olhos redondos, grandes, muito abertfis, inllammados e borrendíis; barba de bode: o resto do corpo mal feito, em forma de honieui e de bode: mãos e pés como os de uma creatura humana, com excepção que os dedos são todos eguaes e agudos, armados de largas unhas : o rabo comprido como o de um burro, e co- bre eom eile as partes vergonhosas. Tem a voz espantosa e a|)resenla-se com HUM espécie de gravidade solieriia, e com a expressão de uma pessoa nielan- ehídica e triste.»

Tal era o terrivel senhor, a quem os feiticeiros e teiliceiras prestavam ju- ramento de e homenagem nas assembleias do sabbat. «Ha muita gente d'esfa (|tie adora o bode e o beija no trazeiro.» Nestes próprios termos o declarou ■M> rei *'.arios ix o famoso feiticeiro Trois-Ecliciles. (Démovnmanif, lib. ii, eap. IV. I ile l.ancie falia em muitos logares deste osculo indecente, que se costu- mava dar lambem nas partes vergonhosas do diabo :

^<0 irazeiro d'aquelle poderoso senhor, diz elle, na obi'a cilada, a paginas 7<J» linha a forma de uma cara, e era esta eara que se beijava, e não outra parte mais indecente.» No emtanto, segundo as declarações de uma joven. cha- mada .íoanna Hostilapits, residente em Sare, a qual não tinha ainda quatorze ânuos, quando foi consagrada á prostituição do sabbat, «os grandes beijavam o diabo por detraz, e elle beijava o trazeiro aus pequenos.»

Em seguida, o diabo urinava n'uma espécie de tubo ou agulheiro, e as Nelhas feiticeiras corriam a molhar no liquido infecto e ardenie peiínas de gálio, com que aspergiam a assembleia, (^omo se vè, era uma exeeravel parodia tbi'- eeremonias da missa.

hA's vezes, refere ainda De Lanere, adora va-se o diabo uo sabbui. com as costas voltadas para elle; outras vezes com os pés para o ar, depois de ac- eender uma vela de pez negro no corno do meio, e também o beijavam por dianie c por deti'az.»

.\d processo de muitas feiticeiras, ijue foram julgadas e condemnailas ao

304' HISTORIA

to;,'') em Veniun, cm 15i-i, eslas desgraçadas confessaram 71'c eram sercns de lodos os inimiijos do inferno, e que tiiiliam eommeltido muitos pecrados enor- mes. Cada uma (Fellas tinha o seu nome dialjolieo; umas preslavam liomena- gein ao seu senlior, heijando-lhe o liombro. outras o trazeiro, outras a boeea.

Além do lieijo, havia a otliírcnda, e os es('riptorcs omiltem de propósito a declaração do que fosse essa olf(;renda. Era simplesmente uma moeda de en- xofre, representando uma imagem phanlastica, como as que se encontraram nas exeavaçõps da AIsacia ? Era um emblema mysicrioso, como um ovo de serpente, um ramo de verbena, um dente de lobo, ou qualquer outro objecto dedicado á magia negra?

Não recusamos considerar esta olFerenda como uma iniciação impudica, pela qual o neopiíyto se entregava corporalmente a Satanaz, enfcudando-se ao inimigo por um acto carnaL Também se pretende que o diabo dava algumas moedas aos que lhe beijavam o trazeiro.

Havia também os estygmas diabólicos. O chefe do sahhat, Satanaz ou f!cl/.eijulli, marcava os seus adoradores, como se costumam marcai' as rezes de utn iet)anho. Esta marca fazia-se com a extremidade ardente do sceptro, que o principe das trevas tinha na mão, ou com uin dos seus cornos, e iinprimia-se nos lábios, ou nas pálpebras, no hombro direito ou nas nádegas dos homens. As mulheres eram marcadas nas pernas, nos sobaeos, no olbo esquerdo, ou n.is |)artes secretas. Esta marca indelével representava umas vezes uma lebre, outras uma pata de sapo, um gato ou um cão. Era por estes signaes especiacs que se reconheciam as prostituías do diabo.

Terminada a adoração com uma multidão de praticas tão extranhas como repugnantes, celebrava-se a festa com banquetes, cantos e danças, como pre- paração para as scenas libidino.sas. No dizer de algumas feiticeiras, mais ingé- nuas qu(! as outras, os banquetes servidos sobre um panno dourado oHercciam ao appetite dos convivas «toda a classe de viveres com pão, sal e vinho.» Mas, segundo a maioria das testemunhas oculares, não eram senão sapos, carne de enforcados, cadáveres exluimados dos cemitérios, corpos de crianças por bapti- sar, animaes mortos, e tudo sem sal nem vinho.

Procedia-se em seguida á benção da meza, fazendo-se em torno (Fella uma procissão com velas accesas, e entoando-se canções impuras em honra do demónio, o rei do festim.

E' provável que eslas orgias da meza tivessem por fim exaltar os senti- dos d"aque!lcs desgraçados e preparal-os para os monstruosos actos de prosti- tuição, que completavam a ronda do snhhal .

Não pdilcmos dizer ao cerio o (|ue fosse esta ronda, visto (jue cada (|ual a de.sçi'evia com particularidades novas. Se era uma dança, é licito crèi' (|ue o seu fim principal era a provocação á liberlinagem, porque dava occasião ás altitudes as mais indecentes, a contorsões e movimentos ob.scenos. A maior parti' do corpo choreographico aprcsentava-se em completa nudez; alguns an- davam em camisa com um grande galo alado ás costas ; quasi todos elles tra- ziam sapos nos hombros.

A CNiilação á dança era o grilo Unr! liar! Us espectadores, os velhos

DA PROSTITUIÇÃO 305

nigromantes, os feiticeiros centenários e os demónios veneráveis, repetiam em choro: Sabhat! Sabbat !

Havia na assembléa coriplicus de ambos os sexos, que davam saltos e voltas prodigiosas, c faziam supremos esfor(,'os para excitarem a luxuria dos assistentes e para satisfazerem a impura malicia do principe das trevas.

A ronda continuava (Keste modo até aos primeiros alvores da madru- gada, até ao cantar do gallo, c emquanto durava o ruido das vozes e dos ins- trumentos infernaes, cada par se entregava por seu turno, com ardor plirene- tico á mais espantosa prostituição. Era então que se commettia o decimo-quinto crime capital, de que os feiticeiros podiam tornar-se réus contra a lei divina e humana: a copula carnal com o diabo, (fírmonomanie, lib. iv, cap. o.)

Os jurisconsultos da demonomania procuraram caracterisar este crime, pelo testemunho dos próprios que o haviam commettido. Eis o que Nicolau Rémy conia, a propósito das immundas caricias que os concorrentes ao sahhal deda- )'avam haver recebido dos diabos:

«Hic igitur, sive pir inciihi'1. site saccithef fcemina, liherum iu utroque natura; debel esse o/ficium, nihilque nmnino intercedere qiiod id vel minimum moretur atque im.pediat, si pudor, metus, horror, sensusque aliqiiis acrior in- ijruil ; illicet ad irritum redeunt omnia e lumbis e/foeaqtie prorsus sit natura.» ( Dwmonol., lib. iii, Lugd., 1o9o.)

Resulta daqui não estarem menos expostos os Aiiticeiros que as feiticei- ras ás torpezas do diabo. No emtanto, mais de um theoiogo e muilos crimina- listas ousaram tomar a defeza do diabo c provar que elle tinha horror ao pec- cado contra naluram ; mas, ao que parece, não conseguiram rehabilitar n'esfe ponto o espirito maligno, pois que Sylvestre Prierias, que escrevia o seu fa- moso tractado De slrigimaqaruni doemonumque mirandam, em presença da in- (|UÍsi(,'ào romana, sustenta doutoralmente que a sodomia era uma das preroga- livas do diabo. E falia na monstruosidade diabólica do luembrus (/enilalis bifor- catus, de maneira que entrava ao mesmo tempo nos dois vasos.

Bayle, para dar nome ás espantosas enormidades, que se produziam na imaginação desenfreada dos demonomaniacos, inventoa uma plira,se, que não logrou ter curso entre os theologos e os criminalistas. Chama peccado super- contra-naturam ao coito alternado ou simultâneo, que o diabo hermaphrodita fazia ordinariamente no sabbat com um c outro sexo.

Um inquisidor loreno, Nicolau, Rémv, dedicou-se com toda a sua curio- sidade e paciência de frade a reconhecer os caracteres da copula carnal com os demónios. Para esse fim foi interrogando com todo o cuidado as desgraçadas victimas da prostituição diabólica, e concluiu por descobrir que nada era mais doloroso do que soífrer as caricias do espirito immundo : A'í7í,/7 esl friíjidius, ingratiusque, diz elle.

Todos estavam de accordo a respeito da impressão de horror glacial que haviam soffrido nos braços do diabo : era um coito frio, aílirmavam elles, e além de frio, desagradabilissimo e infeclo. Muitas das feiticeiras ficavam enfer- ntas para toda a vida, em consequeucia d'esfa copula diabólica. Hémy, que não linha o menor escrúpulo a respeito do deshragamcnto das suas perguntas, obteve BuTORiA DA Phobtiiuição. Tomo n— Folha 39.

306 HISTORIA

importantes roveliicõcs da parlo das rihalílas ilo diabo. Estas dcsgraí.'adas, a quem o salihal consagrava desde a mais tenra edade a uma prostituição mysteriosa, não se envergonhavam de descobrir todos os pormenores do horrivel commer- cio que tinliam com os demónios. Podia fazer-se a pii\sioiogia erótica de Sata- naz em presença das declarações formacs, que Nicolau Rémy recebeu da bocca das próprias feiticeiras eméritas do seu tempo, especialmente de Aleixa, Clau- dia, Nicolina e Didacia, que tinham frequentado os sahhats das montanhas dos Vorges. Todas ellas narravam circumstanciadamente as agudas dores que tinham sollrido por occasião da copula com o tentador, e até mesmo os irreparáveis estragas, que Ihestinha feito nas entranhas o penis do demónio, umas vezes pesado e de grandeza desmarcada: outras agudo c penetrante como um fuso.

Hémv, historiando Ião pacientemente estas minuciosidades, parece ate certo ponto compadecido d'aquellas desgraçadas, que eram apenas victimas de uma invencível obsessão, e nem sequer peccavam por deleite, mas eram pas- sivamente e a seu pesar instrumentos dos execráveis prazeres do demónio, sem se poderem subtrahir a esta escravidão oppressora e maldita. Com todas estas aftenuantes, as feiticeiras convictas de se terem enrai-allndo com o detnonio eram (|ueimadas sem piedade.

O que está perfeitamente averiguado é (juc, soh o pretexto de feiliceria ou magia, o sahhai abria um vago e sombrio campo á mais abominável |)rosti- tuição. iNão eram os demónios (|ue lucravam na saturnal desbragaila ; os espíritos das trevas figuravam apenas em effigie n'estas reuniões, embora fossem a alma da tenebrosa orgia. O snhhal, despojado do seu apparato diabólico e phantas- lico, reduzia-se a um congresso de libertinagem, em que o incesto, a sodomia e a bestialidade eram os peccados mais saborosos. f)e Lancre, sem queriT al- tenuar as culpas, que elle propi'io altribuia á Inconstância dos demónios, vè-se obrigado a confessar ([ue o diabo linha menos parle do <]ue se dizia nas abominações do sabbat.

«A mulher, diz elle, prostituo- se diante de seu marido, sem (|ue ello te- nha por isso zelos ou desgosto ; até ás vezes lhe serve de alcoviteiro; o pae des- flora sua filha sem repugnância, nem vergonha : a mãe colhe sem escrúpulo as primícias de seu filho; o ii'mão as do sua irmã.»

Por isso, todo o feiticeiro era considerado peia lei como incestuoso, pelo facto de haver concorrido ao salibat, ainda (|ue não tivessse nem pães, nem filhas, nem irmãs.

O nono crime comnuim aos feiticeiros, sígundo os cânones da Rgreja, foi .sempre o incesto, «que, segundo Hodin, é o crime de (|ue foram sempre convictos os feiticeiros, por(iuc Satanaz lhes faz comprohendor (|ue nunca houve perfeito feiliceiro ou oiícantadur, (|uc luVi fosso gorado por um pae cm sua fi- lha, ou por um hlho em sua mãe.»

Temos uma doscripção circumslanciada dos crimes do siibbal, na sentença proferida pelo tribunal dWrras em 1 ItiO contra cinco mulheres o muitos ho- mens, accusados de rauderie, ou feiticeria. Entre os condemnados, havia um pintor, um poeta e um sacerdote do setenta annos do edade, que, segundo to-

o

DA PROSTITUIÇÃO 307

(las as probabilidades, fora o auc-lor (Keslas libertinagens misturadas com um pou- cochinho de heresia.

"Oiiando queriam ir á rnwierie, ou ao sahhai, serviam-se de um un- guento fornecido pelo próprio diabo, c montados num pau de vassoura, voa- vam até ao sitio da reunião, por cima das cidades, dos bosques c das aguas. Era o diabo que assim os transportava. Chegados aiíi, encontravam as raezas postas e cobertas de iguarias, e presididas por um demónio em figura de bode, de cão, de macaco, e até algumas vezes em figura humana. Faziam-se-lhe obla- ções, prcstava-se-lhe homenagem, adoravam-no, e a maior parte dos concor- rentes davam-ihe logo alli a alma e o corpo.

«Beijavam-no no trazeiro, tendo velas accesas na mão. . . E apenas co- miam e bebiam, tinham coliabilação carnal lodos juntos c(Mn o próprio diabo, o qual tomava alternadamente ligura de homem e de mulher, e tinham coba- bilação com elle os homens e as mulheres. K commeltiam também o peccado de sodomia e outros peccados repugnantes e enormes, tanto contra Deus, como contra a natuueza, chegando ale o inquisidor a dizer que não se atrevia a no- mear estes peccados, com receio de (|uc os ouvidos innocentes fossem sabedo- res de tão grandes, terríveis c cruéis monstruosidades. {}lem. <le Jacqufs Dii- elerq., lib. iv, c. i).

Bodin acreditava cegamente na copula carnal com os diabos, mas nunca se referiu ás desordens aiiti-physicas do sabbai, e isto provavelmente por jul- gar, como tantos outros demonologos, que o peccado contra a natureza não causava menos horror aos diabos do que aos homens.

No emtanto, a "renva vulgar não fazia tanta justiça aos demónios, e jul- gava-os entregues no sabbat a todas as abominações da lubricidade. Um monge inglez, Evesham, que em I 196 desceu aos infernos, guiado por S. Nicolau, re- fere nos termos seguintes o (|ue viu de mais extraordinário:

«Ha um supplicio mais abominável, vergonhoso e horrível, ao qual es- tão condemnados os que, durante a sua vida mortal, se tornaram réus d'esse crime que um cbristão não pôde nomear e que inspirava horror até mesmo aos próprios pagãos. Estes miseráveis eram acommettidos por monstros enormes, que pareciam de fogo, e cujas formas espantosas excedem tudo quanto a imagi- nação pôde conceber. Apesar dos seus esforços e de toda a sua resistência, viam-se obrigados a soflrer as suas execráveis copulas, que lhes arrancavam gritos penetrantes e horríveis. Em seguida, cabiain sem sentidos e como mor- tos, mas tinham que voltar á vida, renascendo para o mesmo supplicio. Oh! A multidão d'cstes desgraçados era Ião numerosa como os castigos que sollriami N'aquelie logar horrível, não reconheci nem procurei reconhecer ninguém, tanto 1'oi o horror que me inspiraram a enormidade <lo crime, a obscenidade do sup- plicio e o fétido insupportavcl que alli se cxhalava.» {Ilrande Chronique, de -Matth. Paris, trad. de A. Huillar-Lirchoilcs, t. ii, pag. 20.'j.)

Os feiticeiros não tinham, pois, o menor escrúpulo em imitar os costu- mes do diabo, que assim lhes dava o exemplo dos vicios mais detestáveis, não no inferno, como também na terra. O sabhat foi em todos os tempos e pai- zes uma eschola de sacrilégio e prostituição. N'elle se reuniam todos os feiti-

.'{08 HISTORIA

ceiros e feiticeiras, diz Anlonio de Toniueinada, no seu Hfxameron, «e muitos demónios eoni elles, em figura de esbeltos mancebos e formosíssimas mulheres, e se unem aili aifernadaiiiente, consummando d'est'arte os seus desordenados e sórdidos appetites.»

O mesmo succedia,. ainda fora do sabbat, quando Satanaz andava atraz dos homens. No tempo de Guiberto de Nogent, que refere esta tentação diabó- lica, certo monge perigosamente enfermo teve de receber os cuidados de um medico judeu, muito hábil em malefícios, e sentiu o fatal desejo de vér o diabo. Este, evocado pelo judeu, appareceu ix cabeceira do enfermo, e promelteu-lhe a saúde, a riqueza e a scieneia, em troca de um sacrifício.

Seja, disse o frade. Mas em que consiste o sacrifício ?

O sacrifício do que ha de mais delicioso no homem, respondeu o ten- tador.

Falia.

O diabo exj)licou-se immediatamente.

«Oh crime! Oh vergonha I exclama indignado Guiberto de Nogent (í>p vila sua, lib. i, cap. 2(5.) E u sollicitado era sacerdote!. . . E o miserável fez o que se lhe exigiu ! E por esta horrível castração veio a renegar da christã.»

Os feiticeiros, como o seu infernal padroeiro, tinham extranhos caprichos, e costumavam arrancar os órgãos sexuaes ás victimas da sua maldade, para as consagrarem ás abominações do sablml.

«Elles não tèem, diz Bodin, o puder de tirar um único membro ao ho- mem, á excepção das partes viris, o que fazem na .4llemanha, (jbrigando essas partes a recolher-se no ventre. E a este respeito refere Spranger (lue um ho- mem de Spira, julgando-se privado das suas partes viris, se fez examinar por médicos (! cirurgiões, que nada lhe encontraram, iicni ferida neni cousa alguma. O homem foi depois d'isto fallar com uma feiliccira, que lhe restituiu a sua faculdade viril.»

Este attentado da feiticeria contra a virilidade renovava-se a cada passo, sol) o nome de da ayulhela, e quando o feiticeiro não praticava no paciente a castração magica, tirava-lhe e apropriava-se, por assim dizer, da alma e da potencia do seu sexo. Os demonologos iiilerpretam este facto, dizendo (jue o diabo aceeitava em sacrifício os allributos e tropheus da luxuria, emquanto que os feiticeiros se reservavam o seu uso poi' conta própria, afim de podeieiu oc- correr aos monstruosos excessos do sabhai.

Entre estes excessos devemos incluir o crime de bestialidade, que foi ao (|ue parece vulgarissimo nas assembléas nocturnas (hjs feiliceiros. Esle crime execra\el, tão fre(|uenle nos povos antigos, s('i rar^issiiiias vezes apparccia nos trihunaes dos povos modernos, onde era sempre castigado com a pena capital. O culpado era queimado com o seu cúmplice, fosse qual fosse a catiiegoria que este ultimo tivesse na escala zoológica. E, como este crime era inberente á fei- ticeria, a jurisprudência da Edade-Média linha como suspeito de bestialidade (|ual(|iier individuo de um ou outro sexo, que tivfsse figui-ado nas orgias do sabbal. Bodin expressa-sc a este respeito com uma reserva (juc prova bem lodo o horror que esta immundicie lhe inspirava:

DA PROSTITUIÇÃO 309

«A lei de Deus, no capitulo xxii do E.vodo. manda que não se deixe vi- ver (I feiticeiro, quando ordena (|ue (jucin conimetter acto carnal com uma bosta seja castigado de morte. Este preceito da lei divina refere-se especialmente ás preversidades monstruosas, quando diz: «Não offerec rás a Deus nem o prcç,'» da fornicação nem o preço do cão.» Isto diz respeito á bestialidade carnal dos homens com os cães.»

O mesmo Hodin fallára n'outro logar destas infâmias, que .elle hesi- tava cm considerar como um acto carnal do demónio :

«A's vezes, diz elle, o appetite bestial de algumas mulheres faz crer que seja lenlação do demónio, como succedeu no anno de 1566 na diocese de Co- lónia. Havia n'um convento um cão, que todos julgavam o próprio demónio. Este lúbrico animal levantava as saias das religiosas para abusar d'ellas. Em Tolosa, havia uma mulher que se servia de um cão para o mesmo fim bestial, e o n ferido animal queria fornical-a diante de toda a gente. A mulher leve de confessar a verdade e foi queimada.»

Não obstante, bastaria que Hodin se recordasse da descripção do sahhal, para ser de mui diversa opinião. O espirito das trevas tomava habitualmente a forma do cão, do touro, do asno, ou do bode para receber o sacrificio dos seus adoradores. Bodin, pouco depois, arrepende-se de ter justificado Satanaz á cusia da raça humana :

«Pôde succeder, diz elle, rectificando a opinião anterior, que Satanaz seja ( nviado por Deus, pois é certo que d'Elle vem todo o castigo por meios or- dinários ou extraordinários, para vingar similhantes torpezas, como succedeu no mosteiro de Mont-de-Hesse, na AUemanha, onde as religiosas eram demo- níacas, e foram encontrados nos seus leitos cães, que as esperavam impudica- mente para commetler o peccado que se chama peccado mudo.i>

Bayle, nas suas Ik.spostds ás questões de um Provincial, quiz, ao (|ue pa- rece, explicar todas as obras lúbricas altribuidas ás feiticeiras, provando (|ue quasi todas ellas eram velhas libertinas, que não podiam encontrar a satis- fação dos sentidos, senão nos desvarios immundos de um commercio sobrena- tural (í diabólico.

«Antes do diluvio, diz elle, no capitulo o7, o gosto dos demónios era mais delicado, pois não queriam senão mulheres jovens e bellas ; com o tempo foram-se tornando menos exquisitos, e chegaram por lim ao extremo opposto de não quererem senão velhas e feias. Cazam somente com as velhas, se é licito servirmo-nos d'esta palavra para explicarmos o commercio carnal que tèera com as feiticeiras, e (|uc começa regularmente depois da primeira home- nagem que ellas tributam, címtiiiuando isto de cada vez (jue voltam ao saJihiU.» (V. Bydin, cap. iv e vii do livro ii da sua Déinoiwinanie.)

Todos os escriptores que se occuparam critica e philosophicainent<! do exame dos arcanos da feiticeria, faliam da espécie de furor uterino que o diabo excitava de preferencia nas velhas. O sábio e grave professor Thomaz Erasto confessou que havia feiticeiras de todas as edades, mas demonstra doutoral- mente que todas ellas eram velhas, porque a velliic(; em certas naturezas fe- mininas exalta as paixões physicas, em vez de as extinguir.

310 HISTORIA

«Antes <le serem feiticeiras, diz elle, estas iniiliíeres eram libidinosas, e cada vez se tornam mais, nas suas relaçõ<'s com os demónios.»

(>ompai'a-as com as caljras velhas, que nunca estão satisfeitas c(mi o maclio. Hinc procerhio apnd noslro.s jaclus e.s-l locas, relutas cajiras libeniiiis liyere salis jamnrulis. E acerescenta : «Não é de evtranhar que mulheres d'esta classe, tendo perdido todo o temor de Deus, e iodo o pudor sexual, se entreguem a excessos de que a edade não preserva as outras mulheres, mais dignas de com- paixão do que de odio.»

Os demónios, esses mestres de impurezas, como lhes chama um mystico, eram muito dados a extravagantes e sórdidas desordens, e não se podia fre- quentar a sua companhia sem contrahir os mais deploráveis hábitos. A IVilice- ria era uma eschola de perdição, em (|ue o homem e o diabo competiam em questões de lubricidade e incontinência. 4 iniciação consistia sempre em qual- quer peccado horrivel, em que Satanaz tomava parte. Basta citar um facto, en- tre milhares d'e[les : a Svbilla de Norcia, tão celebre na Edade-Média, como director;! de uma e.schola de magia, onde iam iniciar-se muitos amadores do género, com giaves riscos e perigos. Era uma espécie de rainha de um povo de encantadores, que recebia de um mo. lo singular os curiosos que se iipre- sentavam na sua caverna :

«A sybilla e os magos que habitavam no seu reino, diz Bayle, tomavam todas as noites a figura de uma .serpente, e era mister que todos os que entra- vam na caverna tivessem primeiramente deleitação venérea com alguma d'es- las serpentes. Era esta a iniciação, e assim se pagava o direito de entrada.»

Leandi'o Àlberti diz isto mesmo na sua ])escrilt. di Iníln Itália, p. '27S. Citamos o texto original:

«/.a noite., tanto i mascoti quanto le femine doventano spaventose serpi, insieme con la sihilla, e che tutti cjudli clie desiderano entrarei gli besofina primieramente pigliare lascivi piaceri con le detie stomacose serpi. >>

Havia continuamente uma grande allluencia de peregrinos, que ousavam emp.rehender a aventura. A sybilla dava audiência a todo o mundo, e ás vezes liunava o logar das serpentes |)ara fazer h mra aos seus hospedes. Durante este (empo, as bellas fadas que foi-mavam a sua corte transformavam-se em serpen- les, em lagartos, escorpiões, crocodillos, etc, para tomarem parle n'um sabbat medonho, em (|ue, segundo Braz de Vigenère, nas suas notas aos Tnldeaur de plalle peinture de IMiilostrato, se viam fazer o mais sórdido e horroroso ser- viço. Desgraçado d'aquelie qiuí não obedecia ás ordens da sybilla ou as execu- tava mal! Yiniia a ser dentro em pouco victima da lubricidade dos reptis, até (|ue era libertado pela feliz chegada de um monge ou eremita.

Fica, portanto, bem averiguado por estes e outros factos análogos que a íeiliecria teve sempre por objecto a prostituição. Exceptuando um pequeno nu- mero de magos crédulos e de feiticeiros convictos, lodo a(|uelle (jue se tinha iniciado servia ou fazia servir os outros no mais abominável commercio de li- bertinagem. O sablial era um campo aberto jiara Iodas as torpezas. Alii se reu- nia uma mnllidão de liijcrtinos de ambos os sexos de parceria com alguns cré- dulos e fascinados. 1'ode inferir-sc pelas revelações dos accusados ih)S diversos

DA PROSTITUIÇÃO 311

processos de leiticcria ([iic lodo o proveito do sabhai rccahia de ordinário ii'uin individuo apenas, que prosliluia donzellas de tenra edade, e experimentava nas suas iniciadas as odiosas invenções da sua preversidade.

Km muitas eircumstancias o papel do dialio pertencia a um malvado qual- ([uer, (|ue al)usava d'elie para satisfazer os seus liorriveis capricitos, recebendo um trilnito olisceiío das miseráveis mulheres que atlraliia ás suas reuniões no- cturnas.

N'um dos últimos processos de leiticeria, em \{S'.M, o cura de (".ordet, julgado e condemnado em Epinal, foi accusado de haver introduzido no sabbal a ribalda Catliarina, apresentando-a a Persin, homem grande e negro, frio como o gelo, até mfsmo iio coilo, diz o processo, o (jual Persin, vestido de encar- nado, estava sentado n'uma cadeira coberta de velludo preto, e picava na testa os seus neophvtos para os fazer renegar de Deus e da Virgem. (Irc/ifpe.v rf'J?pt- nal, citados por E. Regin.)

N'um processo do mesmo género, que teve, poucos annos antes, uma enorme publicidade, soube-se que outro padre de Marselha, chamado Luiz Gau- fridi, entregou a alma ao diabo, com a condição de que elle lhe daria virtude para inspirar amor ás mulheres síimcnte soprando sobre ellas. Elfectivamente o padre soprou sobre VIagdalena, filha de um fidalgo provençal chamado Ma- dolo de la Paiud, quanilo cila tinha apenas nove annos. Soprou lambem sobre outrHs mulheres, qne não lhe recusaram cousa alguma, e a referida Magdalciia continuou, bem a pesar seu, a ter relações com o padre, (|ue a final a fez en- ti'ar na ordem das religiosas UrsuLinas.

Finalmente, este .seductor da innocencia, perseguido pela inquisição, con- fessou os seus crimes, declarando que tivera muitas liberdades com IVÍagdalena, tanto em casa como na egreja, de noite c de dia; que a conhecera carnal- mente, e lhe lizei-a até no corpo diversos signaes e caracteies diabólicos: que a levara ao xabhal, onde fizera em sua presença grande numero de acções es- candalosas, Ímpias e abomináveis em honra de Lúcifer. Luiz Ciaufridi foi (|uei- mado vivo em Ai\, na praça dos Jacobinos, depois de haver feito retractação .publica, levando uma corda ao pescoço, uma vela na mão e os. pés descalços.

Poderia citar-se uma grande multidão de processos de feiticeria, nos quacs se a depravação moral cobrir-se com a capa da possessão do diabo e attribuir todas as suas prcversidades á tyrannia infernal, e reconhecer-se até sem grande custo que muitos dos que pretendiam ter cedido a um poder oc- culto de irresistível prestigio, nem sempre acreditavam na intervenção dos de- mónios. Os libertinos envergonhados, obrigados pela sua posição ou estado a mostrarem-se continentes, ou a occullarem, pelo menos, sob apparencias res- peitáveis a eITervescencia das suas paixões sensuaes, os sacenloles e os frades, eram os que ordinariamente se entregavam á tentação do demónio, assistindo a estes horríveis conciliábulos.

O sabbal era o pont() de reunião de tudo (juanto havia de mais preverso, e por isso celebrava-se em sitios remotos, no meio dos bosques, nas monta- nhas, entre os rochedos, e o theatro d'estas assembléas nocturnas leve sempre desde tempos immemoriaes o mesmo destino.

312 HISTORIA

Part'L'P-nos, pois, demonsfradn (\no os feiticeii'os, senão lodos, pelo me- nos a grande maioria d'ciles, não se serviam da magia senão para obras de prostitui^'ão, 6 que, se as feiticeiras iam ás vezes de iioa fé, quer dizer, cegas e fascinadas pela própria imaginação, os diabos que tinham copula com ellas, pertenciam em ultima analvse á peior espécie de libertinos.

D'es(e modo se ex|)lica bem a razão porque a justiça ecclesiastica e se- cular tractava com lanto rigor os feiticeiros e feiticeiras. E' porque conipre- bendia na feiliceria os actos mais execráveis da depravação bumana, e quando condemnava um feiticeiro, impunlia-liie a penalidade do incesto, da sodomia e da bestialidade, como se fora culpado de todos estes crimes.

•lulgiimos baver provado que a feiticeria, ou melbor a libertinagem, se propagara de tal modo na Europa, no século xvi, que o famoso Trois-Écbclles, condemnado ao fogo em 1571, o perdoado com a condição de denunciar todos os seus cúmplices, disse a el-rei que podia calcular-se n'uns trezentos mil o numero de feiticeiros de toda a França.

«Foi tão grande o numero de feiticeiros ricos e polires, diz Rodin, que uns lizeram escapar os outros, de maneira que esta praga se multiplicou sem- pre como um leslemunbo perpetuo da impiedade dos accusados e da repugnân- cia dos juizes, que tinham o dever de instaurar os processos.»

No reinado de Francisco i, não havia mais de cem mil feiticeiros, se- gundo o calculo do padre Crespei, no seu traclado De la linine. de Satan. Trois- Écbelles, que era por certo auctoridade na matéria, revelou que este numero havia triplicado em menos de meio século.

Filesac, doutor da Sorbonna, e também muito competente em estatística demoníaca, escrevia ein KiOO fiue os feiticeiros eram mais numerosos (|ue as proslilotas, e cila em appoio do seu dito dois versos de Planto, onde o escri- ptor lalino diz (|ue as prostituías eram mais numerosas que as moscas no estio :

Nam nuvc lenormm et scnrtnrum plus est. ferr Quiuii olim miiscariiin est, cum caletur maxiniò. Trucul. : Act. i, scen. i.

Era caso para fazer julgar pela inquisição metade da população de França. e os jurisconsullos viam-se obrigados a applicar Ioda a severidade das leis para reprimirem a comipçáo dos costumes públicos, corrupção (|ue ameaçava destruir a soi'iedade nos seus fundamenlos. Attribuiam-se por prudência ao diabo mui- tos actos detestáveis, que s(í [jrovavam a preversão dos homens, pai"a conser- var II horror salutar que a crueldade do vulgo linha pelo siMini . Se as cou- sas se aprcsenlassem evaclamente como eram, esla reunião de libcrlinos seria inuilo mais fre(|ucnlada. A curiosidade auxiliaria enlão admiravelmeníe a de- pravação moral e physica.

Os Iribunaes moslravam-se implacáveis com os feiliceiros, mas sabiam perfcitamenle (|ue o diabo era cxtranbo aos crimes que a libertinagem lhe im- putava. I'óde, jjortanto, juslificar-se até certo ponio a Icrrivel legislação da Edade-Média a respeilo dos feiticeiros, c provar-se ([ue a sociedade se via obri-

DA PROSTITUIÇÃO 313

c;ada a defender-sc a ferro c fogo confra a assustadora ganf^rena da prostituição publica.

Foi longa e terrível a lucta contra esta superstição libidinosa, e durante muitos séculos o clarão sinistro das fogueiras illuminou a velba Europa, pro- curando extirpar da sociedade um cancro tão profundamente radicado.

A civilisação, pnrém, foi maiseflicaz do que as fogueiras inquisitoriaes, e á luz brilhante por cila irradiada se apagaram nos lobregos recessos das montanhas os últimos vestígios dn prostifui(;ão diabólica. Satanaz, isto c, o vicio e a ignorância, a superstição e o crime não puderam resistir por muito tempo a essa luz trium|)bante, e os horri^(•is sahhnis nocturnos desappareceram com- pletamente.

HwTORU DA PnoíTTrmçÃo Tomo ii— Rolha 40

CAPITULO XXVII

SUMMARIO

A prostitulfSo por meio da linresia na Edade-Média O inauir|ueismii reapparecc em todas as lieretías.— Keuuiues secretas.— Fim d'estas reuniões e meios de 'pi» se serviam. -Os hnlqaros, ou bougérex » a sua doutriua —Sua destrui^'So em I^Yança K liougerie.— Pnlants e Cittliavux.- liltymologia d 'estes dillei entes nomes. Sta- dÍDííS, Fraticeile.í e Beg<fbards.— Us diseiplinantes.— Suas reuniões impudicas.— \'aDtaiíens raoraes da flageUa>,'.lo, segundo os casuislas.— Abusos rpie a liljertinagem lazia cia llagellarão.— Retralíj de um disviplinanle, por Pico de Mirandola Flageilações publicas em Krançíi —Procissão dos açoitados, no rein.idn ile HMirii]Ue iii.— Os novos adamltas. Picard, seu propheta. Ceremonial matrimonio entre estes seetarios. Os Tiirlupins. Origem d'este nome. Seus trajos indecentes. Irmandade dos pobres. .loanna Dabeotoune, queimada viva no Marche- aux Pourceau.!.- A cauderie d'Arras.— Os anabaptistas. Seus dogmas de prostituirão.— Hayle zomba dVlles e corabatc-os pelo ridículo. - Os bons e maus berejes. Os reformados, ealumniados por causa das suas assembléas. —A corte de Koma, denominada a Grande Prostituía.— A lioresia declara guerra á prostituição.

iMii.s nos primeiros séculos da era eliristã como a prostituição sagrada seguiu o paganismo, e como se foi reproduzindo e con- tinuando na heresia ; vimos também esta ultima, fundada na sa- tisfação dos sentidos, e multiplicada até ao infinito no seio da I Egreja de ('liristo, d'onde apenas sahia para se entregar desen- freadamente a todos os excessos das paixões physicas. Comprehende-se perfei- tamente que o christianismo, no sou principio, invocando apenas as nobres e generosas expansões do espirito, devia empregar meios rigorosos para reprimir e suffocar as seitas que corrompiam os costumes e ameaçavam o futuro da nova sociedade, dando plenos poderes ás forças cegas e brutaes da matéria.

No emtanio, as perseguições emanadas da auctoridade dos concílios, e di- rigidas pelo braço secular das egrejas grega c latina, não lograram aniquilar a heresia, embora fizesssem desapparecer da lace da lerra os hercsiarchas e herejes. Depois de guerras sangrentas, e depois de innumeraveis supplicios, o principio da heresia permaneceu vivo e perseverante, porque este principio não era outra cousa senão a prostituição sagrada.

Eis o motivo porque a heresia, variando de fiírma e mudando de nome, reappareceu sem ces.sar na Edade-Média; eis o motivo porque a prostituição procurou quasi sempre refugiar-se na heresia, como n"um baluarte, dVinde po- dia arrostai' com audácia a moral do Evangelho e a austeridade do dogma chri.stão.

Havia, não ha duvida, nas differentes seitas da heresia doutores e philo- sophos, que de boa se consagravam ás discussões metaphysicas e não pro-

31 G

HISTORIA

curavam mais que a verdade com paixão, senão com discernimento; o vulgo, porém, os espirilos falsos c preversos, as imaginações fracas e depravadas, as naturezas ardentes e vicijisas, eram arrastadas pelo desejo de gosos materiaes, c não viam na religião sendo um pretexto de vergonhoso sensualismo. Não se poderia explicar melhor o motivo da longa pei'sistencia da heresia, que recor- ria sempre ás mesmas seducções, e que obtinha em toda a parte o mesmo re- sultado.

Desde o século xii até nossos dias, a heresia fez em França numerosas invasões, nas quaes se reconhece ordinariamente o gérmen do maniqucismo e o fruclo da prostituição. Bayle, no seu Dictionnaire, oceupou-se do maniqucis- mo, para demonstrar (|ue esta forma de heresia nascera naturalmente do c(m- traste das paixões que travam lucta na vida do homem.

«Como pôde ser, diz elle, no artigo Guarin, que o género humano seja attrahido para o mal por um incentivo insuperável, e se desvie d'elle pelo re- ceio dos remorsos, da infâmia, ou de muitas outras penas?. . . O maniqueismo sahiu apparentemente de uma grande meditação sobre este deplorável estado do homem.»

Bayle racionava como um philosopho, mas a maioria dos maniqueos não eram capazes de raciocinar sobre islo, nem mesmo de comprehender o racioci- nio. .\ceeitavam a olhos fechados um dogma e um culto, <iue lhes favoreciam a sensualidade e as desordens, e d'esle modo a religião não era para elles mais do que uma continua excitação á libertinagem.

Iremos demonstrar agora, a largos Iraços que seja, a existência da pros- tituição na heresia quasi em todas as épochas, em França pelo menos. Devemos antes mais nada observar que em toda a heresia, a partir do século vii, os sectários tinham reuniões secretas e nocturnas em togares desertos ou fecha- dos. Estas reuniões tinham por lim, ou pelo menos por pretexto, a pratica do culto. Os dois sexos umas vezes achavam-se reunidos n'estas assembléas reli- giosas, outras separados, e conciliábulos mysleriosos havia nos quaes apenas os homens tinham direito a ser admittidos.

Em grande numero de casos, Iractava-se apenas de orar em commum, e por isso tudo se passava na melhor ordem e na mais liei observância de todas as conveniências. NVjutros, porém, havia grandes desordens e abusos, por causa da impureza de alguns falsos apóstolos e neophylos, e a opinião pu- blica apoderava-se da fama d'estes escândalos das reuniões heréticas. Accusa- vam os berejes de apagarem as luzes a um signal combinado, e de se entre- garem nas trevas a todas as impurezas (la sensualidade. Uuiros atlribuiam-lbes os mais vergonhosos excessos de pronuscuidade, e havia ainda quenj os cen- surasse de ultrajarem a natureza com abomináveis hábitos de sodomia.

Os Hulíjara.s, que não se muiliplicai-am cm França até lins do século xii, tinham começado a es|)albar-se pela Europa desde o século x, estabelecendo-se na Bulgária, onde tiveram uma espécie de papa, ou chefe espiritual. Da pala- vra Huljiaroii, destinada a designar os habitantes da nação veiu a fazer-se o nome da seita, propagando-se por todos os paizes com a heresia, que não era senão o antigo maniqueismo.

1)A PROSTITUIÇÃO 317

Ksti! nome foi logo coitou) piílo na língua IVaiiceza, que ao tempo se lal- lava, e em vez de Hulgaros, eomeyou a dizer-se fiuatjare.s e Bowjiãres; de Hoiujutreu fez-se depois llouijres, eompreliendendo-se, sob esta qualilicavào genérica todos os homens depravados que se eonformavam em seus costumes com a doutrina e exemplo dos verdadeiros Bultjaros.

listes herejes consideravam como ura sacrilégio o acto das relavõcs sc- xuaes, ainda mesmo no estado do matrimonio, por isso que não permittiam a copula conjugal, senão com a mira de procrear filhos, e ás vezes esqueciam este destino providencial da humanidade para prohibirem absolutamente ao ho- mem lodo o commercio carnal com a mulher. Tão monstruosa heresia contra a lei natural expòz os búlgaros ás mais graves accusações, que elles mesmos talvez conlirmassem cora o seu género de vida.

Ainda assim, esta heresia tinha feito espantosos progressos, sobre tudo no Laiiguedoc, quando Filippe Augusto, segundo uma chronica nianuscri|)ta, citada por Ducange, mandou seu lillio destruir a heresia dos Uomjrea do paiz.

A mesma chronica accrescenta, cora a mesma data de 1225: «]N'este aimo juram queimados os liouijres irmãos João, que eram da ordem dos frades pregadores.»

Quanto á heresia, que accendeu fogueiras por toda a Europa, não se sabe verdadeiramente se era culpada das horríveis impurezas que a voz do povo lhe attribuia. Sabe-se apenas que a heresia que os chronistas contemporâneos (|ua- liticam de execravel omiiiunt errorum fas exirema, diz o monge (fAuxerre linha por synonymo a palavra Houguerie, e isto justificaria por si os ri- gores da legislação a respeito dos liuUjaros.

S. Luiz, apesar da sua caridade e clemência, não hesitou era comminar a pena de morte contra estes herejes :

«Se alguém fòr suspeito de bougrerie, a justiça deve prendel-o e envial-o ao bispo, e se se provar o peccado, deve ser queimado o hereje.»

Para se subtrahirem á reprovação geral que os perseguia em França, os Imlgams não encontraram melhor meio que mudar de nome. Etlectivaraenle procuraram confundir-se com os albigenses, que os repeilirara com horror e raisturar-se com os i'alares e Calhares, que não quizeram lambem ser conla- rainados por este nome infame. Chamaram-se, pois, successivamenle 1'ateri- aos, Falares, Calhares, Jovinianos, ele. Mas, sob estes nomes lodos, eram ainda suspeitos de bouguerie, e não escapavam á fogueira, quando cahiain nas mãos dos inquisidores. A historia pode accusal-os de haverem lambem provo- cado 110 reinado de Luiz xiii, pelo horror que geralmente inspiravam, a cru- zada contra os albigenses, com os (juaes havia empenho em confundil-os.

A etymologia pôde até certo ponto descobrir nos nomes d'esles herejes a prova das torpezas que caracterisavam a sua impura seita. O nome de bul- yari deriva-se de bulga, que significava ao mesmo tempo alforjes de couro, bolsa e as bragas do homem. Menaje e Leduchat não se detiveram n'esta ob- servação etyraoiogica, que é todavia bastante para dar a entender tudo quanto por causa do decoro deixamos de explicar.

O nome de Paíermi "parece ter sido formado por conlracçào de Palerni e

318 HISTORIA

Paleniiadi, liorojes igualmente maiii(|iiei)s, qiie no lempo de Santo Agostinho pretendiam que as partes inferiores do corpo humano haviam sido creadas, não por Deus, mas sim pelo diabo, e (jue por conseguinte não tiniiam o menor es- crúpulo em se servirem d'ellas para Ioda a classe de usos vergonhosos.

(hnnium cr illis parlibufí flafiiloram licentiam tribuentes, impurissimè viinmí, diz Santo Agostinho. Tempos depois, o nome d'estes herejes conver- tia-se em l'(ilelin, ou PakiUn, palavras que ficaram na lingua, e significavam que estes lierejes usavam de toques obscenos nos proselytos, que queriam ar- rastar para a sua seita.

O nome de Cnthari, segumio o doulor dodofrcdo Henschenius, citado por Ducange, provinha da palavra allemã calers, que significa demónio incubo, e "ato, e este epitheto applicado aos Búlgaros alludia ás suas reuniões ou juntas de libertinagem (])ropter nocturnas coitiones.)

Vm requinte de libertinagem levava estes sectários a impõr-se lodo o •'cnero de priva(;ucs e a alleclar um com|deto desprendimento das cousas mate- riaes. Todavia era. isto apenas uma mascara hypocrita de continência e abnega- ção, sob a (|ual maior facilidade encontravam para se entregarem ás suas pai- xões e a todos os extravios da sensualidsde. As suas austeras praclicas .le de- voção davam uma e.specie de attractivo ás suas desordens occultas, sendo sempre a proslituição o iman do proselytisrao e o laço occulto da heresia.

.Nem de outro modo pôde e\plicar-se o favor que encontrava cada nova metamorphose do maniqueismo, apesar da perseguição catholica.

.Muitas seilas nascidas fora de França, a dos Siadings em \2'.i2, a dos Fralricelks em 1296, a dos fíeiígliayds nu l>p(j}iim em 1312, e muitas outras não menos extranhas, não tiveram uma existência tão longa e tão persistente como a dos linUjaros, porque não eram tão favoráveis aos maus instinclos do homem. Quando em 1259 appareceu a S(;ifa dos disciplinanles, ninguém sus- peitou sequer que as penitencias voluntárias d'estes peccadores, que se açoita- vam em publico, fossem um invento de luxuria.

Os proselvtos d'esta séila iam <le dois em dois em procissão, precedidos de cruzes e bandeiras, nús até á cintura i solis pudendis honeste relaiis) mesmo no meio do inverno, e açoitavam-se muluamenle com correias de couro, sol- tando gemidos e derramando abundantes lagrimas. Ensanguentavam as carnes, e era então que mais fervorosamente se flagellavam.

Não é tudo ainda: altas horas da noite iam ao campo, ao meio dos bos- ques sombrios, ou togares isolados e de reputação, e alli no meio das tre- vas, ou á In/ de archotes redobravam as suas ílagellações, os seus grilos e as suas loucuras impudicas, l<'acil mente 'se calculam as consequências dVstas reu- niões de homens e de mulheres semi-núas, (|ue se exaltavam com o espectá- culo d'esta indecente pantomima, em que lodos eram adores e chegavam gra- dualmente ao ultimo paroxysmo do êxtase libidinoso.

Os casuistas confessavam que esta llagellação individual ou reciproca li- nha como resultado ordinário a .sobreexcitação dos sentidos, mas pretendiam que o pacicnie era mais meritório, se n'esses momentos domava os Ímpetos da natureza, guaniandu a sua castidade sob o império ilo tnais vivo desejo de

UA PKosrrruigAo 319

pcccar. Outros cdsuistas, pelo contrario, sustentavam que o oflVito iininediato da flagcllaí,'ão era re|)riinir os mo\iinenlos desordenados da carne, caslifíando as- sini o demónio que se aloja nas parles vergonhosas.

Seja eomo fòr, não pôde duvidar-se que os disciplinantes, lendo tomado do paganismo o indecente cerenionial <las Luperrae.s, não encontrassem n'estas penitencias publicas um aguillião de libertinagem e uma extranha deleita^,'ão sen- sual. O uso da llagella^;ão na anliguidade era bem conhecido de todos os liber- tinos, que a empregavam como uma espécie de predisposição para os prazeres do amor. Na Edade-Média, porém, a flagellação erótica raras vezes se empre- gava, a não ser no mais profundo raysterio e tinha tomado um caracter de fe- rocidade sanguinária, que se reproduzia nos actos dos disciplinantes.

Pico de Mirandola, no seu Traclado contra os asirolojios, (\Áb. iii, cap. i7.) indica-nos o que devia ser a llagellação dos herejcs, descrevendo o refi- nado prazer que tinha um libertino, quando .se fazia açoitar até lhe rebentar o sangue de todas as partes do corpo.

Este infame chegava pela dor á voluptuosidade, e á vista do pro|)rio .sangue é que attingia o supremo deleite sensual, num phrenesi libidinoso indes- criptivel.

A seita dos disciplinantes, que vinha da llalia, e se propagou rapida- mente por toda a Europa, não teve f*rande curso em França no anuo de I :'■')'.», porque a auctoridade ecciesiastica apressou-se a condemnar e perseguir esta he- resia, que não era senão um odioso espectáculo da prostituição. Uiu século mais tarde, porém, os disciplinantes reappareceram em França, especialmente nas províncias do Norte e do Levante, continuando as suas penifi-ncias publicas com disciplinas armadas de pontas de ferro, entoando cânticos e incitando-s<' mutuamente a ter grande firmeza na mão.

Havia penitencia commuin, na qual homens e mulheres com a cabeça c o rost(> cobertos e de espáduas nuas trocavam entre si grande numero de açoi- tes: e penitencia individual, em que cada um recebia da mão do ijeral da de- coçuo um numero de açoites proporcionado á culpa que queria expiar. Os penitentes proslravam-se por terra em posições análogas ás ditlerenles classes de peccado. O perjuro levantava três dedos da mão, o adultero deitava-se de barriga para bai\o, o ébrio fingia beber, o avaro representava enterrar um thf- souro, c todos elles punham a descoberto a parte do corpo em (jue deviam re- ceber a llagellação. O ciíefe da confraria distribuía com vigor os açoites, se- gundo os peccados que lhe indicava a muda pantomima do penitente.

O povo acendia em tropel a estes escandalosos especiaculos e admirava com enthusiasmo a constância dos marlyres, que não se cançavam nem de dar nem de receber açoites. Em 1343, durante a peste negra, havia em França mais de S00:000 disciplinantes, e entre elles damas e cavalheiros, ávidos da llagellação publica, que abandonavam os seus castellos, as suas famílias, e es- queciam o brilho dos brazões heráldicos, para se inscreverem nestas irmanda- des de fanáticos e libertinos.

Ignora-se como a seita desappareceu em tão pouco tempo, mas a llagel- lação religiosa sobreviveu aos seus seclai'ios, e para não ultrajar o pudor pu-

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HISTORIA

blico, coiicenlrou-se no retiro do claustro. Apesar d'isto, sahiu novamente das eellas monásticas, ousando passear pelas ruas de Paris, quando o rei Henrique III estabeleceu a ordem dos penitentes, e figurou elle próprio nas procissões dos açoitados. Este derradeiro ensaio de flagellação publica prova sufficiente- mente quanta parte tinha a libertinagem em similhantes actos de devoção, si- mulada ouincoberente.

Na maior parte das heresias provenientes do maniqueismo, os sectários não se envergonhavam da nudez do corpo, considerando-a até como uma con- dição essencial das jiraticas do culto, mais ou menos abominável, que pi-estavam a f)eus. Os Adamilas, que nunca deixaram de existir no seio da egreja christã, onde evitavam, todavia, causar escândalo, não exigiam esta nudez senão nas ceremonias secretas, mas um dos seus adeptos, chamado Picard, nome que tal- vez designe o seu paiz natal, não se contentou com uma nudez temporária ou accidental e aconselhou aos seus discípulos. que andassem sempre nús. Pica?-d dizia-se filho de Deus, e pretendia que o Pae celestial o tinha enviado ao mundo como um novo Adão, para restabelecer a lei natural, e o que elle chamava lei natural consistia n'estas duas cousas: nudez completa e communidade de mulheres.

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(Ihamaram-se Picarás, ou Pkardo,^ os que ouvii'am as prédicas d'estp propheta impudico c quizeram viver segundo a sua lei. No emtanto, as rela- ções entre os dois sexos não se verificavam, sem que o chefe da seita o orde- nasse. Assim, quando_ um sectário sentia desejos sensuaes para com alguma das suas correligionárias, conduzia-a á presença do Mestre e formulava assim o seu requerimento :

O meu espirito inílammou-se por esta mulher. O Mestre respondia com estas palavras da Riblia:

Crescile et muíliplicamini. E o negocio concluia-se.

Os Picardos, que julgariam perder a sua liberdade original renunciando á sua querida nudez, viram-se obrigados a procurar fora de França um retiro onde podessem subtrahir-se ás perseguições da inquisição. Reí'ugiaram-se, por- . tanto, na Bobemia, junto dos Hussilan, que apesar de herejes, se indignaram das infâmias d"aquelles miseráveis, e os exterminaram até ao ultimo, sem pie- dade nem mesmo para mm as mulheres, que estavam todas gravidas, e recu- saram obstinadamente vestir-se na prisão, onde deram á luz, no meio de gar- galhadas e cantando canções horríveis. (V. Hayle, Diclion.)

Parecia que a prostituição não poderia chegar a novos excessos, quando cm \'M'.\ os Pirardos resuscitarani em França sob o nome de Turlupins. Este nome, cuja etymologia não foi bem determinada, parece fazer allusão á vida errante c brutal, que tinham estes novos adamitas, escondiílos como os lobos no fundo das íloresias. Não andavam completamente nús como os Picardos, senão que, á imitação dos cynicos gregos, «faziam a obra da carne á luz do dia, em presença de todo o mundo.» São palavras de Bayle, ao tractar d'estes he- rejes.

A sua doutrina era pouco mais ou menos a dos liegardos, que foram con-

DA PROSTITUIÇÃO 321

clemnados pelo concilio de Ravena cm 1312. Ensinavam que o homem ('■ livre para obedecer a lodos os instinclos da natureza, e que a |)erfeição consiste n'uma liberdade sem limites, .\ccrescentavam ainda que a creatura deve orpulhar-se de tudo quanto recebeu do Oeador. Eis o motivo porque tinham em tanta es- tima o seu estado de nudez.

INo emtanto, íoram obrigados a vestir-se, por causa do frio sem duvida, mas ainda assim, deixavam a descoberto os attributos do seu sexo, ostcntamlo sem pudor o que julgavam divino. O douto (lenebrad diz expressamente na sua Chronica, que esta seita detestável se fazia reconhecer pela nudez parcial com que descaradamente se apresentava em toda a parte.

Estes infames multiplicaram-se na Saboya e no Delphinado, mas a sua principal associação era em Paris, presidida por uma mulher chamada Joanna Dabentonne, que foi queimada viva no Mairhc-iiu.v-Pmirceaux, perlo da praça de Sainl-Honoré. Foram ao mesmo tempo queimados os livros da confraria e muitos dos pregadores d'esta superstição religiosa, que havia tomado o nome de Irmandade dos Pobres.

Carlos V encarregou Jacques de More, da ordem de S. Domingos, de ir ás províncias meridionaes da França extirpar tão execravel heresia. Jacques de Mure, (|ue tinha o titulo de inquisidor dos Bougres, não teve compaixão com o.s sectários de ambos os sexos, surprehendidos em flagrante delicto. Desde en- tão não ficou d'essa irmandade impudica mais do que o nome proverbial de lurlupin. que se usa no sentido de chocarreiro ou truão sem graça, provavel- mente em recordação das prédicas excêntricas e dos vestidos ridículos da seita de Joanna Dabentonne.

Houve ainda outras heresias em que a mais criminosa prostituição se cobria com o manto religioso. .4ssim, a famosa rauderie d'Arras no século xv não era mais do que um simulacro da doutrina dos mudes, misturada com a feiticeria, e que servia de pretexto ás assembléas nocturnas, cheias de abomi- náveis mysterios.

iNo capitulo precedente, referimos parte dos mysterios que os feiticeiros praticavam no ceremonial ordinário do sabbat; outras reuniões havia ainda, que nada tinham que ver com o diabo, e que não tinham mais decência. Eram feitas por uma associação de libertinagem, organisida por sacerdotes apostóli- cos, que pregavam o mais sórdido epicurismo e pregavam com o exemplo e com a palavra. O inquisidor da diocese dWrras, auxiliado pelo conde d'Étampes, governador do Artois, dirigiu ao principio as perseguições contra as mulheres publicas, que eram os apóstolos mais perigosos da vaiiderie; pouco depois fo- ram comprehendidos n'estas perseguições judiciaes homens do povo, fidalgos, e personagens de representação, prevertidos pela nova heresia.

Submettidos á tortura, osjaccusados fizeram espantosas revelações c mui- tos d"elles foram condemnados á fogueira. Durou mais de trinta annos esta horrível perseguição contra os vauderes dWrras, e accendeu milhares de fo- gueiras no Artois.

Vauderes, Anabaptistas, Adamitas e Maniijueos, apezar da violência das- perseguições, rena.sciam sempre das próprias cuizas, tão certo é que a liberti-

UuToRiA DA Prostituição. Tomo ii— Folua 41.

322 HISTORIA

nagem (em alfractivns irrcsisfivcis para certas nalurczas prevcrsas, débeis ou depravadas! Ainda assim, varias heresias invertidas pela prostituição percor- reram a Europa sem entrar em h'ança, ou pelo menos sem alli fazerem gran- des progressos. Assim, os Anabaptistas, que chegaram a ter exércitos na Hol- landa e na Allemanha, appareceram apenas isoladamente em alguns estados do rei christianissimo. E comtudo estes herejes abriam largo campo á prosti- tuição, quando ensinaram que toda a- mulher é obrigada a prestar-se á sensua- lidade de todos os homens, e que todo o homem é igualmente obrigado a sa- tisfazer todas as mulheses.

Bayle, mettendo a ridículo a impossibilidade material de similhante dou- trina, pensa com razão que era uma fabula inventada pelos adversários dos anabaptistas, afim de os tornar ao mesmo tempo odiosos e ridículos. A dou- trina do coraniunismo das mulheres, não é tão depravada com esta abominação, porque não tira ao sexo fraco a liberdade de recusar, nem compromette a cons- ciência de ninguém. E' demasiado absurdo estabelecer como principio que o matrimonio é contrario á lei de Deus, e (|ue a mulher, para se conformar com esta lei, deve pertencer successiva ou simultaneamente a todos quantos a sol- licitarem. O sexo mais fraco estava entregue, segundo esta detestável heresia, ás paixões brutaes e "depravadas do sexo mais forte. A prostituição introdu- zira-se d'este modo no código religioso d'aquelles fanáticos, que deram ao mundo o odioso espectáculo dos seus estranhos desvarios no meio das mais horríveis scenas de assassínios, incêndios e roubos, tanto é verdade que a i)ros- tituição pôde comparar-se a un) caminho coberto de llores, conduzindo a ut» horrível ab ysmo !

Os anabaptistas não eram senão maniqueos disfarçados, assim como a maior parte dos lierejes, que procuraram fundar seitas depois do século xn, e que tinham todo o cuidado em não confessarem a sua origem commum. De resto, em cada heresia, havia bons e maus, puros e impuros, de maneira que cada qual seguia os impulsos da,sua natureza, segundo obedecia mais ou riienos ao espirito (ui á matéria. P('ide, portanto dizer-se com o sábio Beausobre, histo- riador do maniqueismo, que os maniíiueos foram sempre calumniados. Deve crér-se*tudo quanto geralmente se dizia das suas assembléas nocturnas e dos horrores que se praticavam alli no meio das trevas? Similhantes accusaçòes reproduziram-se em todos as épochas, e é de notar que os pagãos attribuiam aos primitivos christãos os costumes dissolutos e as praticas sacrílegas, que os christãos attribuiram depois aos herejes.

E' muito de suppor (|ue o christianismo e o paganismo se servissem das mesmas armas contra os seus adversários, a (|uem combatiam, calumniando-os do mesmo modo. Tanto na heresia como no christianismo (trimitivo houve sem duvida naturezas ardentes, exaltadas e [)reversas, que se aproveitaram do culto para a satisfacção dos seus sentidos, e que d'esle modo auetorisaram a crença geralmente estabelecida no vulgo acerca das aboniinaçõ(>s praticadas nas reu- niões secretas, em que se apagavam as luzes.

Os próprios protestantes não estiveram na sua origem ao abrigo das injuriosas suspeitas a (|iic tiavam margem as reuniões nocturnas de ambos os

r>A PROSTITUIÇÃO 32ÍÍ

sexos. Como estas reuniões se ruileavam de um profundo mysterio, para se subtrahirem á curiosidade e á perseguição dos catlioiieos, como preferiam as noites mais escuras e os logares mais sombrios e retirados, suppoz-se que a nova seita tiniia motivos para occultar as suas cermonias e as suas doutrinas. O povo foi sempre muito propenso a diffundir estas indignas falsidades e a dar-lhes inteiro credito.

«Ouvi contar, diz Brantòme, nas suas Dnmes galanles, ouvi contar que quando os luiguenotteá fundaram, a sua religião, tinham as suas predicas de noite e em silios occultos, temendo ser surprehendidos e castigados, como fo- ram um dia na rua de Saint-Jacques, cm Paris, no tempo de Henrique ii, on^e algumas illustres damas estiveram a ponto de ser surprehendidas. Logo que o ministro concluía a sua prédica, recommendando-lhes a caridade, apa- gavam-se as luzes, c cada um e cada uma a exercia com o seu irmão e a sua irmã, segundo a sua vontade e poder. O que eu não ouso crer, embora me as- segurem que é verdade; mas é possível também que seja mentira e calumnia.»

No emtanto, e apesar da asserção do catholíco abbade Brantòme, que refere as aventuras da bella Grotlerelle, pôde dizer-se com visos de verdade que nunca os innovadores do século \vt em França deram iogar aos escândalos com que os anabaptistas e os adamílas dos Paizes-Baivos oITendiam o pudor pu- blico. Nunca em toda a historia das innovações religiosas de França poderia enconlrar-se facto algum simílhante áquclla indecente reunião que teve Iogar em Amsterdam, a 13 de fevereiro de I53'j, na qual sete homens e cinco mu- lheres, cedendo ás excitações e exemplo de um proplicta anabaptista, se des- pojaram das suas vestes, as arremessaram ao fogo e sahiram para a rua em es- tado de complcla nudez. (Hclal. des lamuítes des Anabapt, por L. Hortênsia.) entre os convulsionarios do século xviii c ([ue se encontra em França algu- ma analogia com aquella cegueira da prostituição religiosa.

Esta persistência da prostituição na heresia em todos os tempos e paizes prova superabundanlemente a excellencia da moral evangélica, a única que tinha poder para combater os grosseiros appetites da sensualidade. .4 heresia começa desde que o christão, assaltado pelo demónio da carne, quebra os la- ços da continência e se entrega aos funestos instinetos que o impellem ao vi- cio. Se os discípulos de Luthero e de Calvino chamaram á corte de Rdina a Cirande Prosiiluki, foi porque a Egreja romana, na épocha cm que apparece- ram estes reformadores, havia esquecido completamente os preceitos deJesus- Christo.

Foi então que a heresia, purificada no Evangelho, ao passo que a Santa Catbedr^a se transformara, por assim dizer, no sanctuario da prostituição, fez cíirar de vergonha o catholicísmo, apontando a depravação dos .seus ministros e a corrupção dos seus sectários. A heresia teve a gloria de i^estabelecer a cas- tidade de costumes na Egreja de Jesus.

CAPITULO XXVIII

SUMMARIO

Os antigos seraionarios fazem a historia ila priistituifão ilo seu tempo, a prostituiçãn, segundo Dulsure. —Opinião de Henrique Estienne. A prédica de Olivier Maillard.— Os vendiltiões do templo.— Numero de raullieres publicas era Paria no seeuln xv.— Admiração do poeta António Astezani.-Os namorados ua E^reja.— Préaava-se em francez ou em latim?— Olivier Maillard em Saint-.Iean-en- Greve. —Extracto dos seus sermões e dos de Miguel Menot relativos a prostituição. Desenvolvimento da prostituição no tempo de Luiz xi. Carlos viu e Luiz xii.— Mães que vendem as filhas.- Filhas que recorrem á prostiluição para ganharem o dote.— Estylo macarronico de Menot.— O corretor do amor e as cinco mulheres. Corrupção dos ecciesiasticos. As concubinas ap ão e agua. Mvsteiios dos convi ntos, segundo Theodorico de Niem. Os jogos de palavras no púlpito do italianíj Barletta. Causas do progresscida prostituição.

EMos extrallido as provas d'esta historia das obras ílos poetas que na sua maior parte passavam vida errante e iii)ertina, e provámos que estas obras eram o espelho liei dos costumes da époeha em que foram eseriptas. Não é somente nos poetas onde iremos agora procurar os vestígios da corrupção publica desde o fim do século xv até aos primeiros annos do século xvi.

E' aos sermonarios dos' pregadores contemporâneos que iremos l)uscar agora cores novas, mais fidedignas e mais audaciosas para completarmos o e\- tranho quadro de uma corrupção geral, que demonstra bem a impolencia das leis divinas e humanas contra o demónio da sensualidade.

Dulaure, que na sua Historia de l'aris se serviu egualmente dos anti- gos sermonarios para pintar o estado moral da sociedade n'aquella mesma époeha, não exaggera quando apresenta a prostituição como a rainha Irium- pbante do século xv, e accrescenta que era um dos efteitos dos vicios do go- verno.

«A prostituição auclorisada pelos reis, diz o implacável Dulaure, era também favorecida por um grande numero de celibatários, sacerdotes e frades e peja libertinagem dos magistrados, homens de guerra, etc. Dulaure não sus- tenta a Ihese da Apologia de, fleraclio, em que Henrique Estevam se esforça por demonstrar que tudo vac de mal a peior n'este mundo «porque, por grande que fosse n'esse tempo a corrupção, diz elle, pequena era ainda assim, em comparação da que se lhe seguiu, visto que foi sempre gradualmente cres- cendo.»

Os sermonarios, sobretudo os que eram escriptos em estylo simples ou trivial, ao alcance do povo, ollerecem-nos testeiiitinhos incontestáveis da prc-

320 _ HISTORIA

versiihulc lio seu feculo, e podcmos-acceilar como verdadeiros a maior parte dos factos referidos ii'esses discursos oratórios. Olivier Maillaid, Miguel Menot, João Cleréo, (iuillierme Pepin e .muitos outros pregadores celebres, que não se importavam de cultivar no púlpito llores oratórias, tinham maior acção e auctoridade sobre o seu auditório, composto de gente simples, quando fallavam com a eloquência do coração, do lioni senso c da honradez, quando entiavam francamente na pintara dos vicios e torpezas que pretendiam verberar e cor- rigir.

Eram ás vezes grosseiros e livres nas suas expressões e nos exemplos de que se serviam para se tornarem mais inlelligiveis ao seu auditório, mas por isso mesmo impressionavam muito mais, obtendo resultados extremamente louváveis, embora á custa de meios, que estavam longe de o ser.

Podemos aitirmar que esícs sermões, apezar de nos parecerem hoje ri- dículos c escandalosos, operavam então grande numero de conversões verda- deiras, c o pregador ao descer da cadeira da verdade via o confessionário cheio de arrependidos. Actualmente muitos são os que se riem á custa d'estes anti- gos sermonarios, que tinham 'tão extravagantes movimentos oratórios, e que empregavam tão excêntricos recursos, acompanhados de gestos ridículos, mas não SC faz uma ideia perfeita da espécie de publico que accudia a ouvir as pa- lavras, bem pouco edilicantes pr.ra nós, d'aquelles frades pregadores.

') publico d'esses ms iL^mpos, no qual o sexo feminino estava por certo em maioria, iião se reçommcndava nem pela decência dos costumes nem pela pureza das intenções. Aquellas mulheres apre,senlavam-se na egreja impudica- mente vestidas, para, segundo a phrase da época, fazerem caçada aos olharea, provocando os homens, marcando-lhes entrevistas mesmo na casa do Senhor, procurando aventuras e lazèn'^ contractos de galanteria ou vendas de amor.

«Se quabjuer homem levasse o sou cavallo á egreja para o vender, diz o andor de um poema latino manuscripfo, intitulado Mntheolus bigamus, pra- ticaria uma coisa em extremo incoavenicnie. (^>ue direjnos então das mulheres que, sob pretexto <lc religião, vão á egreja para se venderem a si próprias? Não serão mais culpadas ainda ' Não convertem a casa do Senhor n'um mer- cado de prostituição?»

O mesmo poeta enumera Iodas as egrejas c capellas de Paris em que se realisava esta feira de prostituição.

Paris contava no século xv cinco ou seis mil mulheres dedicadas á pros- tituição legal, segundo o calculo de um escriplor contemporâneo. IJm poeta italiano, António Astczani, qu(> viajava em França por esse tempo, escrevia n'uma das suas cartas datadas de Paris:

«Vi aqui com grande admiração uma multidão innumeravcl ne mulheres em extremo bcllas, de maneiras tão graciosas e lascivas, que seriam capazes de iiillammar o prudente Neslor e o velho Priamo. (v. Jennne d'.\rr, por Her- ryat Saiiit-Prix, ]). lill.)

lloniáinos iroutro logar, cxtrabindo o fado do .lonrnal dn hourijeois de Paris, que António de Loré, preboste da cidade, deixou augmentar desmedi- damcnli' o niimcio das ribahias, a|)czar das disposições policiaes em contrario.

DA PROSTirUigAO

327

a poiílii lie lazer iiuliniiar n pniprio redactor do ./o/thííL .Nenhuiua duvida te- mos de (|ue estas ribaldas, que costumavam inostrar-se à porta das egrejas com os seus rozarios e livnts de devoção adornados de ouro e prata, formavam a parte mais assídua do auditório n'estas prédicas a que assistiam para arranja- rem fi'e^ue/es.

t:iemente de Marol, que se pòz em evidencia no seu IHalofio ihs íia;,o- rados, declara lia ver encontrado a sua bel la na cgreja. Era provavelmente a mesma costureira de quem tanto se enamorou, antes que a peccadora lhe dei- xasse bem dolorosas recorda(.'ões.

O seu amigo pergunta-llie onde se apaixonou tão subitamente. " N'uma egreja, responde o poeta dando um suspiro. Foi alli que co- meçaram os meus amores.

O amigo ri ás gargalbadas, c observa-lhe:

Ahi téem as nossas devoções.

l)iscreteou-se muito alim de averiguar se o pregador, que se dirigia a este galante auditório, fallava francez ou latim. Uns sustentaram que os ser- mões, pregados em lingua vulgar, se escreviam logo em latim para a impres- são: outros, pelo contrario, pensaram que visto fallarem os advogados no foro em latim, não deviam os p.i-égadores scrvir-se da lingua vulgar. A disputa, apcíar de toda a copia de erudieção com que foi tractada por uma e outra paiMe, está ainda pendente, e é agora occasijo de a resolver. Notaremos desde ([ue Olivier Maillard, tendo pregado em Bruges eni francez (V. este sermão em i de agosto, f.) não havia de pregar em latim era Paris, em Tours, i- cm Poitiers. E' provável que os seus sermões, reproduzidos peia stenographia, na occasião em que eram pregados, fossem traduzidos em latim macarronicd, exactamente como os do italiano riuilherme Barletla, que pregava na sua lin- gua em \eneza sermões, que não eram publicados senão em latim. O latim ma- carronico era até muitíssimo próprio para reproduzir a linguagem burlesca e livre d'aquelles pregadores populares.

Olivier Maillard, cuja reputação estava solidamente estabelecida, no tempo de Luiz XI, pregava ordinariamente em Saint-Jean-en-Grève, e é de crer que a pí.pulação immunda das ruas visinbas accudisse em tropel aos seus sermões, que tinham sempre por objecto a luxuria e a libertinagem do seu tempo (hiijus lempuns), diz o pregador a cada momento. Chama a todas as cousas pelos seus riomes, sem empregar periphrases, a não ser para accrescenlar mais alguns traços ás suas grosseiras pinturas. Xão se preoccupa com a santidade do logar em que pronuncia as suas invectivas contra os agentes e os actos da prostitui- ção, e parece mesmo com|)razer-se em tomar as suas expressões do vocabulá- rio do vicio ((ue llagella: mas, apesar d'esla licença de termos e de imagens, não o podemos accusar de uma immoralidade, qae não existe no seu pensa- mento.

Devemos recordar a(|ui uma circumstancia bastante attendivel : n'a- quelle tempo a obscenidade da linguagem não era consequência immediata de uma vida ob.scena e desbragada, e nos assumptos mais graves, mais sérios i' mais dignos, o emprego de uma palavra li\re ou de uma tigura indecente não

328 HISTORIA

ei'a considerado como um ultraje aos ouvidos castos, ou às consciências ho- nestas. Para se apreciar bem o que era a prostituição parisiense em fins do sé- culo XV, jjasta extraliir dos sermões de Olivier Maiiíard e de Miguei Menot o que alli se diz a respeito dos iierdeis, das prostitutas, dos libertinos, e de to- das as impurezas e infâmias que elles censuram aos seus contemporâneos.

^'as citações que vamos fazer, servir-nos-liemos do estylo elegante de Henrique Estienne, quetraduziu um grande numero d'estas passagens na sua Introdacção ao traclado das maravilhas antigas e modernas, ele.

Estienne, como bom protestante que era, attribuia malignamente ao ca- (iinjirismo as liberdades e indecencias dos seus pregadores, sem se lembi'ar que l.utbero e Caivino, tanto nos seus sermões como nos seus escriptos, não guardaram maiores reservas ao descreverem os excessos da Grande Prostituta Romana.

Comecemos pelos logares de libertinagem:

«Ha prostitutas em todas as ruas de Paris». Maillard. (Jnadrat/. serni. 23.

N'outro logar (|ueixa-se dos proprietários, dizendo :

«Alugam as suas casas ás prostitutas e aos alcoviteiros dos dois sexos. Em tempos, o rei S. Luiz mandou construir fora da cidade uma casa para as mulheiTs publicas. Actualmente ha Ixji-deis por todas as esiiuioas das ruas.»

l)irigindo-se aos magistrados, para os exbortar a rumprir a antiga dis- posição do santo rei, diz:

«O que é feito das ordenações de S. Luiz? O santo rei [wescreveu que nunca os bordeis estivessem perto dos collegios e casas de educação, e agora a primeira cousa que os estudantes encontram ao sahir das aulas, é o bordel.»

ataca oulra vez ainda os proprietários, (|ue apenas cuidam de obter bom alugueres: mas, ao mesmo tempo confessa que se as riltaldas fossem ex- pulsas das grandes cidades, a libertinagem seria muito mais escandalosa.

Menot accrescenta que não havia apenas bordeis estacionários e regula- mentados, masque a libertinagem estava em toda parle, e não havia casa alguma izenta de impureza. Tanto nas cidades como nos subúrbios, não se via outra mercadoria senão mulheres publicas! Esta mercadoria era de todas as edades e de todas as condições. Velhas e novas, casadas e solteiras, criadas e amas, todas faziam o (|iie o pregador chama lurruni rorporis, tra(i<;o do seu corpo.

As tabernas e as estalagens eram n'es(e tempo, como sempre, albergues de prostituição. Miguel Menot põe najsoca dos rapazes casados.de fresco estas pa- lavras:

«Sabeis qne não podemos trazer sempre as nossas mulheres atadas á cin- tura, nem mettidas na manga, e todavia a nossa juventude não pode passar sem mulheres. Entramos nas tabernas, nas hospedarias, nos banhos e n'outros togares onde encontramos raparigas liabeis no seu oHicio e (|ue se dão por pouco dinheiro. Será por ventura um mal servimo-nos -.i'ellas como de nossas mu- lheres?»

Os banhos pubiicíjs s(M'viam também |)ara estes encontros amorosos. Mail- lard falia d'elles muitas vezes, e no sermão De peceati stipendio diz ao seu auditório :

DA PROSTITUIÇÃO 329

«Senhoras, não vão aos banhos, e não façam n'elles o que sahem.»

As egrejas, que a prostituição não respeitava melhor do que as tabernas ou os banhos, eram ás vezes eomo que uma succursal dos bordeis.

«Se as columnas das egrejas tivessem olhos, exclama Maiiiard, o vissem o que se passa em redor d'ellas, se tivessem ouvidos para ouvir, e ptdessem fallar, o que diriam ? De mim confesso que o não sei, mas, reverendos sacerdo- tes, o que me dizeis a isto?» (Quadrag. Serm. II.)

Encontra-se etTectivamentc em todos os penitenciaes antigos a designa- ção especial do peccado de luxuria commettido n'unia egreja, ou durante os officios, ou depois das ceremonias de culto, o que estabelecia muitos graus n'este peccado e na sua penitencia. Maiiiard admirava-se até de que os santos sepultados nas egrejas, onde taes abominações se conimettiam, não se erguessem dos seus túmulos para arrancar os olhos aos libertinos e ás suas infames ri- baldas. Nem Maiiiard, nem os outros pregadores do seu tempo, nos dão circums- tanciados pormenores a respeito das ribaldas de profissão. Apesar de as deno- minar vis meretrizes, não dei\a de se compadecer d'ellas:

<\0h pobres peccadorasl exclama eile. Oh mulheres mundanas, que vi- veis como os cães (socim canum), não sejaes duras de coração; convertei-vos, convertei-vos!. .

N'outro logar, exhorta-as a voltar para Deus com os seus cúmplices de libertinagem, para não perderem as suas almas nas delicias do mundo:

«Oh peccadoresi Oh companheiros d'essas desgraçadas! Rogo-vos, em nome de Jesus-Christo, que não deixeis perder a alma nos deleites munda- nos ! . . . »

N'()utro sermão intima-as a converterem-se, chamando-lhes filhas do diabo. Dirige-se também ás cortezãs, que occultam a sua vergonhosa profissão, exerccndo-a secretamente (vos secretce meretrices quce facitis pejora publica), Vê-se que mostra um sentimento de caritativa compaixão para com estas des- graçadas victimas da sensualidade.

(Juanto aos agentes da prostituição, mostra-se implacável, denunciando-os ao ódio e desprezo das pessoas honradas e invocando contra elles todo o rigor das leis :

«Estarão aqui os encarregados de fazer justiça? Pergunto-vos, magistra- dos, que castigos infligis aos corretores da prostituição n'esta cidade?»

De outra vez dirige-se também aos magistrados, convidando-os a casti- gar a excitação á libertinagem :

«Appello para vós, senhores da justiça, que não castigaes similhantes preversas», diz elle referindo-se ás mulheres perdidas que, depois de haverem traficado comsigo mesmo nos bordeis, traficam também com as outras, corrom- pcndo-as e vendendo-as, por assim dizer em hasta publica. O pregador eleva- se ás regiões da eloquência, quando exclama: «Se houvesse n'esta cidade, um homem que roubasse dez soldos, seria açoitado pela primeira vez. Se reinci- disse, cortar-lbe-iam as orelhas, ou qualquer outra parte do corpo. Se tornasse ainda a roubar, iria á forca. Dizei-me agora, homens da lei, qual é peior: Rou- bar cem escudos ou uma mulher?»

BUTOBIA DA PROSTTTtnçÃO. ToMO n FoLHA 42

330 HISTORIA

Esta passagem do sermonario confirma o que aqui dissemos a respeilo do [irimeiro ollicio das maqiierelles.

Ollvier Maillard é' implacável no seu zelo contra todos os seres infames que auxiliam a prostikiitjão e vivem á custa d'ella. Enche-os de vitupérios, aponta-os á aversão de todos, procura-os com os olhos c designa-os até mesmo com o gesto, no meio de um auditório eommovido pelas suas palavras ardentes. «Dizei-me agora, mães, incitaste vossas filhas ao peceado? E vós, mu- lheres, com os vossos contractos impudicos impelliste outras mulheres á abo- minação? E vós também, oh maquerelles ! o que tendes a dizer a este res- peito?» {Sermon., 37.)

As mulheres a quem o zeloso franciscano se dirigia, baixavam a cabeça de envergonhadas, e procuravam fugir d"esta penitencia publica, que tanto as fazia soffrer, arrancando-lhes a mascara.

Chega a pedir que as esfollem vivas, a essas impudicas proxenetas! í)es- crcve-as como inspiradas pelo demónio e não occulta que são quasi tão nume- rosas em Paris como as desgraçadas a quem procuram incessantemente cor- romper.

Mas, no meio d'esta multidão de vis creaturas, quem elle mais detesta e abomina são as mães que [irocuram a prostituição de suas filhas, sob o pretexto de lhes arranjarem um dote. A essas entrega-as o pregador sem remissão ás chammas do inferno.

Lança os olhos em torno de si por todo o auditório, como que para des- cobrir algumas d'essas mães desnaturadas, c o auditório commove-se e espera anciosaraente o anathema:

«Ha, diz elle, entre vós muitas mães que vendem suas próprias filhas: c essas infames prestam-se a ser as alcoviteiras das innocentes, obrigatido-as a ganharem o dote com o suor dos seus corpos!»

Era mister que essa pnislituição infame fos.se muito fre(|uente por essa épocha, por isso que os pregadores não se cançam de a analhematisar. Mcnot denuncia-a quasi nos mesmos termos de Maillard :

«.As mães, diz elle, condemnam suas filhas com os exemplos que lhes dão, com a inclinação ao luxo o ás vaidades que lhes fazem crear, e com a dema- siada liberdade que lhes c(mcedem. E o que c peor ainda, o que declaro com as lagrimas nos olhos, meus irmãos, c que chegam a vender as suas filhas aos corretores da prostituição!»

Todos os pregadores estão de accordo sobre esta horrível exploração das filhas por seus pães. Maillard diz expressamente a estas mães de familia:

«Mães que daes a vo.ssas (ilhas roupas e vestidos abertos e decotados, para que ellas possam ganhar indecentemente o seu dote!» E aos pães de familia :

«E vós também para que daes a vossas filhas, senão para as prostituir- des, vestidos indecentes, e para que as pintaes como ididos ?>>

Tudo quanto de perlo ou de longe se referia ao trafico da prostituição merecia as censuras, ás vezes pessoaes, do pregador, que fulminava n vicio do alto da cáthedra evangélica. Assim, dejiois de haver marcado com um ferro

n\ PROSTITUIÇÃO nni

om braza as mães proxenetas, Maillanl volta-se para as damas que n'aquelle momento estavam cocliichando umas com as outras, e diz-lhes:

«Senhoras, não sois também do numero d'aquellas que fazem ganliar o dote a suas filhas com o suor do seu corpo?»

As mulheres publicas rofíavam-lhc que não se occupasse d'ellas c que tomasse antes á sua conia os barbeiros c os boticários, por exemplo.

«Já vos disse, f^ritava o ind imavel Maillard que certa dama que parece recatada c uma mediadora de lihertinafícm, c muitas outras ha não conhecidas e que eu igualmente vos denunciarei!»

Os sermões d'este terrível franciscano produziam tal clíeito no mundo da libertinagem, que as prostitutas costumavam dizer aos seus frequentadores:

ouviste o pregador? Receio que vocês todos se mettam a fiades e preguem também contra as mulheres!

Estes sermões dão-nos a entender que n'aquella époeba os alcoviteiros não eram menos perigosos do (|ue as suas vis competidoras no degradante otficio. O pregador ataca sem cessar os alcagoles que os ricos, os membros do parlamento, os clérigos e os cónegos empregavam no serviço dos seus amores illicitos. Em muitas passagens vè-se que as prostitutas tinham lonieredores, que anilavam pela cidade em procura de frcguezia.

«Meretrizes, diz elle no seu sermão 43, os vossos acarretadores de fre- guezes procuram-vos por toda a parle os mais ricos, ou aquelles por quem vos sentis mais inclinadas.»

N'oulros logares chama-os procuradores. .4inda assim, não lhes attribue toda a responsabilidade do peccado, pois reprehende o penitente que quer des- culpar a sua falta, lançando-a á conta ({'esses miseráveis traficantes de carne humana:

«Não lance á conta da consciência do intermediário o peccado de luxu- ria aquelle que por obra d'elle possuir uma rapariga.»

Aconselha os intermediários a arrependerem-se dos seus peccados para evitarem a condemnação eterna.

«Ouvi, oh pobres peccadores, hlasphemadores, usurários e alcoviteiros, e vós também, oh vis meretrizes! não temeis ser condemnados?» (Serm. I.)

Miguel Menot refere-se muitas vezes também nos seus sermões a estas intermediarias da libertinagem, e nem sequer as exborta á emenda dos seus crimes, como se estivera convencido da sua impenitencia, e condemna-as sem remissão a todas as penas do inferno. Eis como as trácia :

«A alcoviteira que pòz muitas raparigas no olíicio irá fatalmente a ga- lope para as profundas do inferno. E será tudo? Não, peccadora endurecida, não será isto só! Em punição dos teus crimes, todas as que excitas"te ao mal te servirão de carrascos e hão de queimar-te o corpo maldito!» (Serm. qua- ilnuj. 2)

Olivier Maillard, no seu sermão pregado em Saint-Jean-en-Grève, no pri- meint domingo do advento, faz-nos uma curiosíssima descripção do papel que desempenhavam os alcoviteiros nos negócios em que tomavam parte. Diz (|ue um dVstes agentes da prostituição (aliqui.i maquerellus) foi encarregado de

332 HISTORIA

levar da parte de um magistrado um formoso annel a qualquer filie de joie, que quizesse acccitara prenda j relril)uil-a com o seu corpo. São cinco as que o agente infame vae procurar, por llie parecer que estão no caso. A primeira é picarda, a segunda, poitevina, a terceira, da Touraine, a quarta, lyoneza e a quinta, parisiense. O alcoviteiro vae a casa da primeira e bate á porta :

Traz! Trazl Traz!

Quem é? pergunta a criada, vindo á janella.

Abre, responde o mensageiro, e diz a tua ama que sou criado do res- peitável senlior Fulano, e que preciso fallar-lbe.

A criada vae dar parte á ama, e volta no mesmo instante, dizendo ao alcoviteiro :

Minlia ama não recebe recados de ninguém. Pôde retirar-se.

«Esla mulber é virtuosa!» exclama o pregador.

O mensageiro da luxuria do magistrado vae bater á porta da poitevina.

A criada abre a porta e apresenta-o a sua ama, que lhe responde :

Diga a seu amo que eu não sou quem elle pensa. (Uiciíe mayi^tru vesiro quod non sum de illis.)

«Esta segunda mulber é também virtuosa, diz o pregador, mas muito menos que a primeira.»

O mensageiro vae a casa da terceira, entra e mostra-lhe o annel :

Que bonito! exclama a rapariga. Gosto muito d'elle I

Pois se o quer, será seu, diz-lbe o enviado.

Não, que receio que meu marido o saiba.

«Esta mulber é má, exclama o pregador, porque o mal consiste na in- tenção, e é o receio do escândalo que a impede de passar a vias de facto.»

O alcoviteiro é ainda mais amavelmente recebido pela terceira, que Ibe diz :

O annel é bonito, não ba duvida, mas meu marido é muito ciumento, e se soubesse o que me pedem far-me-bia os ossos n'um feixe; porisso, não posso fazer a vontade ao senhor Fulano.

«Esla mulher, diz o pregador, não acceita, mas é o receio do castigo que a impede e não o temor de Deus.»

O mediador vae por fim a casa da ultima que nasceu em Paris e em Paris tem vivido. Esta acceita logo, guarda o annel e diz ao alcoviteiro :

Diga a seu amo que meu marido vae para fora na quarta-feira, e nesse dia irei visitar o senhor Fulano.

«Esta mulher, diz Olivier IVlaillard, é a peior de Iodas quatro.»

A etoíjuencia dos pregadores, troveja indignada contra a incontinência dos sacerdotes e religiosos, e comprehende-se que, ao apontarem as impurezas e es- cândalos do clero regular e secular, se submettiam á opinião commum. Tão vergonhosa e depravada era n'aquella épocha a conducla de uma grande parte dos eccicsiasticos, que fechar os olhos a esle respeito, seria o mesmo que approvul-a. Olivier iVIaillard é inílcxivelcom a gente da lígreja, (|ue tem concubinas de porias a dentro ou que l're(iuenla as mulheres publicas, e chega a dizer que os i)is-

DA PROSTITUIÇÃO 333

pos e sacerdotes que entram em casas de pessoas honestas deslionram todas as mulheres que as habitam. A cada instante talla em sacerdotes cunciibinarii e fornicara e verbera asperamente as mulheres que se abandonam a clérigos e frades, (lo*, mulieres, quiv Jalis corpus vestriiin curialibus, monachis, pres- byteris. Serm. 36.)

.\nathematisa os que passam a noite com mulheres, e vão em seguida dizer missa; os que dão presentes ás prostitutas; os que dão objectos de ouro ás penitentes, obrigando-as a ganhar estes presentes com o suor do corpo; os que fyzem dos seus inferiores agentes de prostituição : os que nos banquetes faliam obscenamente; os que .se encarregam do dote das raparigas casadouras, e finalmente todos os que commettem abominações.

Miguel Menot não é menos explicito a respeito dos excessos dos eccle- siasticos. Prohibe que a eucharistia seja ministrada ás amas dos padres, que não são senão suas concubinas. Falia de muitas raparigas seduzidas pelos pa- dres, (|ue as encerram ás vezes um anno inteiro nas suas residências.

U mesmo pregador diz ainda n'outro logar que quando os homens de armas entravam nas povoações, a primeira coisa que procuravam era a amiga do parocho. E a respeito dos prelados accrescenta que devia fazer-se um pre- gão, aconselhando a todas as mulheres que se acautellassem d'elles, porque além das que tinham em casa, era grande a freguezia d'ellas por toda a cidade, e tinham um prazer especial em enganar maridos. Não havia casa rica (lúe não tivesse o prelado por compadre, e succedia quasi sempre que o marido tomava por compadre o que era pae, sem o pobre homem desconfiar.

Os pregadores são muito mais reservados, quando faliam dos costumes dissolutos de certos conventos de mulheres, mas em todo o caso dizem o bas- tante para se adivinhar a prostituição que n'elles havia.

«Theodorico de Niem, diz Duiaure na sua Historia de Paris, conta que os conventos de freiras eram uma espécie de serralhos para uso dos bis- pos e dos frades; d'esta libertinagem resultavam filhos que se faziam também frades. Algumas religiosas tomavam remédios para abortar e outras matavam os filhos.»

Olivier Maillard dizia com toda a razão:

«.\nles não tivéssemos ouvidos para ouvir os lamentos das criancinhas arremessadas ás latrinas ou aos rios

Grande devia ser por certo a desmoralisação, visto que o próprio Mail- lard nem sequer ousava fallar dos incestos e outros peccados de luxuria, que censurava aos seus contemporâneos:

«Callo-me, diz elle, callo-me a respeito dos adultérios, dos estupros, dos incestos e dos peccados contra a natureza.»

Gabriel Barletta, que não foi mais do que um echo de Maillard e .Menot na Itália, é menos reservado n'este ponto quando diz aos seus compatriotas:

«Oh ! Quantos sodomitas e ribaldos vemos por ahi ! Que o exorcismo im- peça a lingua do sodomita, que faz torpezas com as crianças. . . Destruidores da natureza, malditos sejaes vós ! Maldito seja também o que não cohabita com sua mulher pela via natural ! Maldito seja o que faz torpezas com os animaes!»

33 i HISTORIA

Barlclla satyrisava do púlpito os vicios de seu tempo, e fazia trocadilhos espirituosos, tars como este : em vez da palavra carnalitate.i, significando im- puresas rarnnes, empregava carãinaUtales, rcferindo-se aos cardcaes, a quem accusava principalmente d'esto género de acções lihidiíiosas.

Maillard esforç-a-se também por verberar as impurezas carnaes, mas não ataca ninguém em particular. Limita-se a accusar os ribaldos de viverem como os porcos. «l''o,s qui vkntis sicut. porei.» {Serm. 57.)

O íamoso pregador envergonba-se do seu século, e exclama indignado :

«Deus meu, Deus meu ! Eu creio que desde que o Verbo se fez homem e desceu a este mundo de iniquidade, nunca houve tanta corrupção de costu- mes, como a que n'este momento reina em l'aris í»

Os progressos da prostituição conslituem uma consequência inevitável dos progressos do luxo. A causa do mal foram a garridice e a vaidade. As mulheres entregavam-se escandalosamente a estas duas paixões perigosíssimas, e ])ai'a occorrerem ás despesas dos atavios frívolos e ás phantasias e extravagâncias da moda, deram-se a todos os vicios, mercadejando ignohilmenie com ns seus encant' s.

" Direis lalvez, senhoras, exclama Maillard justamente indignado, que vos- sos maridos não vos dão o suíiicienie para as dcsjjczas com as modas, e por isso tendes necessidade de o adquirir com o trabalho dos víjssos corpos. Pois em verdade vos digo que leve o diabo tal trabalho, senhoras!»

A historia fios costumes prova-nos que sem[)re o lu\o c a prostituição estiveram na rasão directa.

Lu.ro e luxuria são irmãos, dizia o padre André, num dos seus celebres sermões jocosos.

CAPITULO XXIX

SUMMARIO

A ríiiti', pschola dos ciistunirs do povo. Propensão dos iie(|ueiios para imitaiein os grandes. Malícia do vulso. Branca, mãe- de S. Luiz e Tliiliaut, et Dcto de Clianipapne. - Canção dos esludanU-s de Paris a respeito do Núncio. A côi le de França no leinpo dos suecessores de Luiz i.\. Canção da Torre de Nesle.— Corte -virtuosa de Carlos V —Depravação da corte de Carlos vi —A luxuria no torneio de Saiut-Deuis.— Galeria dos retratos no palácio Harbetle.— As inascaias e os vestidos injpuilicos.— (I baile rios A!dente,'-..-Os dois Agostinhos do palácio de Tour- nelles.- Os sermões de Jaci|ues Legrand.- Cólera de Izabel du Baviera e da sua corte.— Castigo dos seus favoi itos e de seus cúmplices. Odette.—ds amores rio riu-^pie d'Orleans O senhor de Canny e sua mulher.— A corte de Carlos vil e as suas diversões.— A menna de Fromerileau.— Ignt-z Rorel salva o rei de Fi-an>;a com ura bom conselho.— Uma ([uadra de Kiancisco i.— Os parisienses iusullam a citncubiua do lei As mascaradas da côite. A lesta dos Loucos e as ta)'ia(0)-ín,'.-.— Decretos contra as mascaras. —A lesla de Conaidie. O dia dos Innocentes.— Costume oiigiual —Um epigramma de iMarot. Libeitinagem esfuiiluosa. Ariivinliaçnes amorosas.— Costume indecente da noite nu- pcial.—O casamento de Hercules de Kste com lienata de Krança- // horior delia ciladella.~0 pelourinho do ma triíiionio.

'oitTKds tempos a fòrt(> de França era, segundu uma expressão eonsa^írada, a eselioln dos coslumes do povo. Era o incentivo e o modelio, tanto do mal como do bem, corrom|)endo com o seu exemplo, ou depurando também a moral publica. Todos os que ncão participavam das prerogativas da nobreza tinbam continua- mente os oibos filos na eonducta dos grandes, procurando imital-os cm tudo, para se assimiihareni o mais possível á casta privilegiada. Se a prostiluiyão en- trava na corte, espalhava-se logo em seguida pela cidade, o mais descarada- mente possível. Eis o motivo por que as épochas mais dissolutas Ibram sem- pre aquellas em que a licença e a depravação da eòrte tiveram uma íunesta in- fluencia nos costumes do paíz.

A' vista d'isto, comprebende-se bem todo o rigor com que o soberano devia velar pela manutenção da decência e da lionestídade no interior de sua casa, porque era até certo ponto responsável pelos escândalos que tão funes- tos resultadss costumavam produzir. Os povos eram sempre propensos a imi- tar os vícios de (|ue eram testemunbas.

Verdade seja que a calumnia, prompta a espalliar o seu veneno sobre tudo quanto é brilbante, feria ás vezes injustamente algumas reputações irre- prcbensiveis. (".omtudo, se isto era suiricíente para entreter a malícia do vulgo, não bastava ainda assim para a auclorisar a entregar-sc a excessos que o pró- prio vulgo condemnava como vergonhosas excepções.

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HISTORIA

Assim, na corte de Luiz ix, cujos costumes eram tjío exemplares como o exigia a rigidez de caracter do santo rei, a calumnia não deixou de enlamear a boa reputação de sua mãe, e não obstante, não foi Thibaut, conde de Cham- pagne, quem assim desacreditou a rainha Branca de Castella.

Toda a gente sabia que a paixão do conde galanteador não oftendia de modo algum o leito conjugal de Luiz viii, porque esse amor não passava de uma phantasia innocente do poeta, que escolhera para dama dos seus pensa- mentos a rainha. Em honra do elevado objecto dos seus amores platónicos, o moço conde compunha canções apaixonadas, que fazia escrever nas paredes dos seus castellos de Troyes e de Provins, e elle próprio as cantava, acompa- nhando-se do seu alaúde. Tudo se limitava apenas a isto, e o povo sabia-o perfeitamente.

No emtanto, a rainha Branca, apesar de toda a sua piedade, tinha na opinião de muita gente relações menos platónicas com o cardeal legado de Roma na corte de França, e os estudantes da universidade de Paris, que tinham al- guma razão de queixa da intervenção da cúria nas suas (luestôes com a auclo- ridade ecclesiastica, vingaram-se do cardeal legado, dedicando-lhc este dístico, que Mathieu Paris nos conservou na sua chronica :

Heu ! nuirinnir strati, cindi, mersi, spoliuli ! Mentula Legati noa facit islã pati! . .

Os suppostos amores do legado com Branca de Castella não produziram elleitos mcraes funestos sobre o povo, que tinha diante dos olhos, como um imponente contraste, a circumspecção e honestidade do joven monarcha, a se- veridade das suas ordenações e o virtuoso exemplo da sua corte.

No reinado dos successorcs de Luiz i\ a corte de França conservou as tradicções de honestidade, que devia especialmente ao reinado d'este piedoso monarcha. Os differentes reis que se succederam desde Fiiippe, o Atrevido, até Carlos V, tiveram como ponto de honra, segundo uma antiga expressão, não empanar a esplendida pureza dos Lizes, e foram, senão austeros nos seus cos- tumes, pelo menos extremamente rigidos a respeito dos costumes da corte. As- sim, vimos Fiiippe, o Famoso, implacável para com as suas três noras, as heroinas da Torre de Nesle, e a prisão d'estas princezas, seguida de um pro- cesso á porta fechada, demonstrou ao povo que o manto das tlores de liz não se havia feito para capa da prostituição.

Fiiippe, o Formoso, dava assim, á custa da sua própria familia, satis- fação aos sentimentos moraes dos seus vassallos, que perpetuaram a recordação das horríveis desordens de Margarida de Borgonha n'uma canção, que ainda em nossos dias anda na bocca das amas de meninos. Conta-se que os estu- dantes, ao passarem defronte da Torre de Nesle, quando iam ao Prr-aux- Clercs, sitio habitual dos seus passeios e diversões, cantavam em voz baixa este estribilho :

Iji tour, prends garde de te Iniaser nbnttre! O qUe quer dizer: Torre, cuidado, não te deixes derribar! Não obstante,

DA PROSTITUIÇÃO 337

aquella famosa loriL', tlioafrn das or^'ias de três priíicezas, ou do nina so, (|iie a historia não averiguou ainda heni este ponto, não foi derriliada aló niciados do século xvii.

A corte de (".arios v não foi menos lionesfa que a de S. Luiz, e deve crèr-se que exerceu salutar intluencia sobre os costumes públicos. O prudente nionarciia não teve cuidado em manter n'ella as virtudes que emanam da nobreza do coração, mas quiz até que as damas de Paris tivessem frequentes relações com as damas da corte, atim de que se tornassem mais perfeitas, (>s- forçando-se mutuamente em progredir no caminho do bem.

Chrislina de Pisan diz que as mulheres de estado de Paris eram convi- dadas para o palácio de Saint-Pol, quando o rei ou a rainha alli se apresen- tavam em plena corte. A soberana, que era bella, boa c allavei, rccebia-as attenciosamente. Dançava-se, cantava-se, e em seguida havia um alegre ban- quete, passando-se tudo na melhor ordem e decência, em conformidade ccmi os costumes severos e honestos do monarcha.

O historiographo dos feitos e costumes de tlarlos v faz-nns observai- ([ue da nobreza do coração mascem os bins costumes e as acções virtuosas, a abs- tenção de todos os hábitos e acções vis, a abundância das graças, o louvor, a honra, a cortezia, o amor, a caridade, a paz e a tranquillidade.

Por morte d'este rei, porém, o aspecto da corte mudou subitamente, como se o pudor e a castidade houvessem descido com Carlos v ao sepulchro. O jo- ven rei Carlos vi, sobretudo seu irmão Luiz, duque d'Orleans, estavam sedentos de prazeres e eram favorecidos nas suas prcversas disposições por seus tios, os duques d'Anjou, de Bourbon, de Borgonha e do Berry, que haviam supportado com violência a t\ rannia moral de seu virtuoso irmão. Opinam todos os histo- riadores que a prostituição pareceu haver-se desencadeado na corte de França desde o casamento de Carlos vi com Isabel de Baviera. falíamos das espan- tosas loucuras que assignalaram o famoso torneio de S. Diniz em 1380.

«Estas justas, segundo a pittoresca expressão de um contemporâneo, fo- ram scenas da mais espantosa libertinagem.»

.\a ultima noite da festa todos se mascararam, e esta mascarada deu lo- gar a scenas incríveis. Começou-se por posições indecentíssimas, e afinal pas- sou-se á realisação de verdadeiras loucuras. Segundo um chronista, não houve ninguém, tanto homens como mulheres, que não tivesse a sua aventura obs- cena.

«E' fama, diz .loão Juvenal dos 1'rsinos, na sua Historia de Carlos vi, (jue estas justas foram o pretexto de cousas desbonestas em matéria de galan- teios, e causa de muitos males que ao diante se seguiram.»

Na vertigem d'aquella noite, o duque d'Orleans encontrou mascarada Isa- bel de Baviera, mulher do rei seu irmão, e Margarida de Baviera, mulher de seu primo João de Borgonha.

O duque d'Orleans era um libertino, que não se cançava de seduzir mu- lheres, e não se limitava a damas de posição, por isso que até fazia raptar ra- parigas de condição humilde, triumphando d"ellas ou por vontade ou á força. De Haillau refere que este príncipe tinha no seu palácio Barbette uma galeria de

HuToxiA PRosTmncÃo. Tomo ii— Folha tS.

338 HISTORIA

rclratos, (jiic representavam todas as suas amantes, c o ilc Isabel de liaviera aehava-se alli também ao lado de sua parenta Margarida de Baviera, nnilIuT do duque de IJorgonba, João Sem Medo. Este príncipe entrou alli em certa oc- casião, e viu o retrato de sua mulher, .lurou vingar-se, e pouco depois assas- sinou o duque d'Orleans a dois passos do seu palácio, quando ia passando pela rua Barbette.

Luiz d'Orleans, apesar de ler uma esposa tão digna de amor e respeito, a bel la e graciosa Valcntina de Milão, cuja reputação nunca foi empanada pela menor mancha, foi sempre a alma dos divertimentos e loucuras da corte, tanto antes como depois da demência de seu irmão. Era auxiliado pela rainha a quem prevertera, como ella por sua vez preverteu as outras.

As mascaradas constituiam por essa époclia a principal diversão da corte, e os que a elias concorriam e n'ellas tomavam parte, com trajos c mascaras deshonestas, adoptavam somente o disfarce «para gosarem facilmente os seus amores.» Uma mascarada d'esla espécie no carnaval de 1393 acabou de uma maneira tão desastrosa, que os companheiros de libertinagem do rei viram n'ella um aviso do ceu, e convei'tcram-sc durante alguns dias.

O lu)i'rivel baile dos Anknli^s derramou um clarão sinistro por hido o rei- nado de Carlos vi, (|U( cntioidcceu em consc(|uencia d'este deplorável aconle- cimento. í)ava-se um baile no palácio de Saint-1'ol, por occasião do casamento de uma dama de honor da i'ainlia. A noiva havia tiJo três maridos, e segundo um antigo costume, muito vulgar em França, devia fazcr-se uma grande alga- zarra, acompiMihada de chocalhadas e caqueiradas, á viuva que entrava em quartas núpcias. «E' um costume ridículo, diz o clironisla anonymo de Saint- Deiiis, e contrario a todas as leis da decência e honeslidade.» Todavia era um costume inveterado, e os (|uc tomavam parte n'estes a|)upos iam disfarçados com trajos deshonestos, e perseguiam com palavras obscenas os pobres cônju- ges, que não tinham remédio senão soIVrer esta prova.

O rei e cinco senhores da corte deviam ser d'esta vez os adores da ex- travagante algazarra, e para isso se vestiram dos pés á cabeça com uns fatos de muito unidos á pclle, aos (|uaes haviam accre.sconlado uma capa de es- topa pegachi com pez. Assim disfarçados, entraram no salão dando gritos hor- ríveis e correndo cm todas as direcções com maneiras indecentes. Em seguida, puzei'ani-se a dançar um bailado lubiíco tão desordenado, (|uc parecia uma dança de demónios.

O du(|ue d'Orleans teve a infernal idéa de atirar com urna tocha ao meio dos bailarinos, em cujos fatos o pez c a estopa se inllammaram rapidamente. Como estavam ligados uns aos outros por uma cadeia, arderam juntos, á exce- pção do rei, que conseguiu desprendci-se e foi metler-se debaixo do am|)lo vestido de cauda da duqueza de IJerry.

O clironisla faz um (|uadro terrível da morle d'aqu(dics desgraçados:

«U logo, diz cllc, consummíu lambem as partes inferiores dos corpos dos desditosos e até mesmo os seus membros xiris, (|ue cahírauí aos pedaços e ín- nundaram de sangue o pavimento di) salão.»

Carlos \i salvou-se milagrnsamciilc e deu graças a Ueus niima procissão

IIA PROSTITUIÇÃO XW

solemnp, em que os príncipes foram descalros, desde a poria Monlniarlre alé .\otre-[)ame.

A doença do rei interrompeu as lestas, mas não as desordens da eòrte. A rainha c o seu amante, o duque d'Orleans, profegiam-nas, assegurando-llies a impunidade. Não obstante, para se apparentar um certo respeito pela indi- gnação da opinião publica, e\ereeu-se um castigo exemplar em dois frades agos- tiniios, que se otTercceram para curar cl-rei, e que não lograram cumprir a sua promessa. Estes frades manchavam o palácio de Tournelics, omle viviam, pra- ticando verdadeiras abominações, dcshonrando as famílias e commettendo con- tinues adultérios que pagavam com o dinheiro do monarcha. Os hvpocritas fo- ram cxhautorados da dignidade ecclesiastica, e depois de haverem conrcssailo as suas torpezas, solTreram a decapitação na praça da Cirève.

Três annos depois outro frade da mesma ordem, Jacques Legrand (Jaeo- inis .Magnos") foi o viiigadur dos pobres suppliciadns, pregando nos seguintes teiínos cm presença da soberana e tia sua curte :

«Desejaria muito, nobre rainha, nada ter a dizei'-vos de desagrada\('l, mas a vossa salvação intcressa-mc muilo mais qui> a vossa helleza, e hei de di- zer a verdade. \ deusa Vénus é a suprema dominadora do vosso coração, servindo-lhe de cortejo a embriaguez e a concupiscência; e v(is, senhoras, fa- zeis da noite dia entregues ás danças mais deshonestas. Essas malditas mulhe- res, (iliias do inferno, que compõem a vossa corte, senhora, corrompem os cos- tumes c (ioervam os corações.»

Passando ao luxo dos vestidos, que a rainha contribuirá especialmente para introduzir, censura-o energicamente:

«Por toda a parte, nobre rainha, se murmura d'cstas desordens e de muitas outras que deshonram o vosso coração. Se não quereis acreditar-me, percorrei a 1'idade disfarçada em mulher ordinária, e ouvireis o que por alii se diz.»

Isabel de Baviera, cmboi^a tivesse de fazer grande violência, logrou dis- simular a sua cólera, mas as damas da corte appro\imaram-se do pregador c disseram-lhe que estavam admiradas da sua audácia.

Mais admirado devo eu estar, senhoras, respondcu-ihes severamente o pregador, das acções por vós praticadas, e a respeito das quaes informarei a rainha quando ella se dignar ouvir-me.

Tm dos palacianos julgou lisongear as damas e fazer calar a boeca ao audacioso frade, dizendo :

Sc quizesscm scguii' o meu conselho, o í|ue deviam era deitar ao rio esse miserável!

Isso é verdade, respundcu tranquillamente o pregador, mas para or- denar esse crime, seria mister um rei tão bárbaro como tu.

El-rei mostrou-se muito satisfeito com as duras rcprchensões que o fa- moso pregador havia dirigido a Isabel, mas apesar disso apenas uma vez se resolveu a intervir nos escandalosos galanlci<is da rainha. Foi isto em lilH, pouco antes da sua morte, (|uando fez julgar e executar o cavalheiro Luiz de Hourdon, (|ue passava por amante c favorito de Madatiif fsahel. como o povo a denominava.

340 HISTORIA

«A rainha, rclerc o clironisla, nomeara para o seu serviço pessoal um grande numero de homens de armas, que collocou sob o commando de Graville, Giac e Bourdon. Estes fidalgos, especialmente encarregados de velarem noite e dia pela segurança da rainha e das damas da corte, tinham uma conducta, indigna da sua nobreza. Enriquecidos com os beneficios da rainha, não tinham escrúpulo algum em mancharem a honra da cavallaria, e com o auxilio dos corretores impudicos haviam conseguido seduzir algumas damas de elevada condição. Os adultérios a que so entregavam continuamente, mesmo na se- mana santa, causaram grande indignação nos grandes da corte, que aconse- lharam el-rci a fazer um acto de exemplar justiça. Por isso Luiz de Bourdon foi encerrado na torre de Montlhery, d'onde foi trazido a Paris e afogado secre- tamente no Sena, para que o povo não fallas.se mais do seu crime.»

Garlos VI, nos primeiros annos do seu reinado, liavia lido uma grande multidão de amantes, (|nt' disputavam reniiidamente a sua preferencia. O ma- rechal de houcicaul diz a propósito disto «que a vista de tão nojjres e heilas damas augnienia a vontade de se ser namorado.» Mas, desde (|ue a loucura aeommefteu o monarcha, os médicos procuraram evitar o dispêndio que fazia de suas forças physicas, allastando d'elle as occasiões de gastar o seu prodi- gioso ardor erótico.

A rainha, n'estas criticas circumstancias, recusava-se ao cumprimento dos deveres coiijugaes, fugindo do leito, ou resistindo ás caricias de seu es- poso, que louco e ultrajado, chegava a pòr mãos na esquiva esposa.

l'ara se col locar ao abrigo d'estas exigências, madame Izabel tratou de es- colher uma victima que se prestasse sem resistência aos prazeres d'el-rei. Esta viclima foi Odette de Champdivers, filha de boa casa. O povo, compadecido d'ella, nem sequer a censurava pelo vergonhoso papel de que se havia encarregado, e dava-lhe o titulo de pelite reine.

Odetie dormia ao do leito real, e quando sentia (|ue começava a lucta entre o rei e a rainha, introduzia-.sc habilmente no leito, emquanto a rainha sabia d'elle com egual pericia. O pobre rei não dava pela 'troca de pessoas, e cessava logo os seus maus tractos, encontrando ás vezes a razão nos braços da pe- lile reine. (|ue se .strvia da sua influencia n"aquelle desgraçado para o obrigar a mudar de roupa e a fazer as abluções indispensáveis á hygiene.

Allirmou-se por aquelle tempo com alguns visos de verdade que a de- mência d'el-rei era a consequência natural dos excessos a que se entregara na sua juventude. Apesar d'isso, seu irmão, o duque de Orleans, que tinlia lido tantas amantes como de dias lem o anno, para nos servirmos da pittoresca expressão do povo n'a(juelia épocba, nunca deu signaes de loucura. Não era todavia um modello de prudência e de bom senso, e permittia-sc ás vezes ex- cessos que provam a força da sua imaginação em questões de libertinagem.

Sauval, nos seus Amonris des róis de France, refere a aventura da dama de ("anny, como prova da dissolução de costumes da còrle de (larlos vi. Igno- ramos a fonte original onde o auctor das Anliqiiilés de Paris foi buscar a noticia. l>cmos que a tradição liie ministou os pormenores, senão o facto prin- cipal.

o duque de Orléans e Mr. de Cany. (Século XIV)

DA PROSTITUIÇÃO 341

O (lii(|iie dl- Orleans amava apaixonadainenfe a (iaina ãc Caniiv, sem que o marido d'csfa dama suspeitasse sequer d'estes amores, que davam assumpto ás uiurmurações de toda a gente, não sii na eòrte, como também entre o povo.

Uma manhã o du(|uc e a sua amante, que haviam passado juntos á noite, ouviram a voz do senhor de Canny, que podia permissão para faliar ao príncipe.

Entre, disse este, tapando a cabeç;a da infiel esposa com um lençol.

O pobre marido enganado entrou.

O duque disse-lhe, apenas o viu, (jue ia mostrar-lhe o mais delicioso corpo de mullier, que elle jamais vira, com a condição que não procuraria conhecer a dama (juc se occultava no leito.

Combinado, responde Canny.

O duque descobre aos olhos admirados do mando o corpo esplendido de sua mulher cm plena nudez, permitlindo-lhe que o examinasse á sua vontade, admirando-lhe as beliezas mais occultas, e que as tocas.se mesmo para melhor as apicciar. Cann\ está encantado do (jue e do que apalpa, c expressa a sua admiração em termos que fazem rir o duque até ás lagrimas, emquanio qu»í debaixo do lençol a dama ri lambem como uma perdida.

Na seguinte noite, o senhor de Canny, deitado com sua mulher, couta- llie minuciosamente a aventura, e ella ri a bandeiras despregadas. Ao ama- nhecer, a dama vae ter com o duque e conta-lhe o que se passara, e ambos se riem até mais não poderem da imbecilidade d'aquelle modcllo de maridos.

Toda a corte celebra com inextinguiveis gargalhadas a chistosa aventura, que não foi segredo para ninguém, senão para o marido ludibriado.

A corte de Carlos vii, pelos menos nos primeiros tempos do reinado d'este monarcha, não differia da de seu pae. O novo rei era ainda mais ar- dente nos prazeres do que o fora o seu real progenitor; mas estes prazeres, como elles os entendia, consistiam menos em vergonhosos excessos do que em ga- lantes devaneios. Era ainda a cavallaria andante, mais refinada que a do sé- culo precedente. O príncipe não dava aos seus vassalios exemplos de liberti- nagem, porque comprehendia o amor das damas á maneira dos antigos caval- leiros e rodeava este perfeito amor de justas, torneios e emprezas cavalhei- rescas.

Os inglezes haviam-se assenhoreado do seu reino, e o soberano da In- glaterra reinava em Paris, emquanto que Carlos vii, na sua pequena corte de Bourges, não pensava senão em quebrar lanças em honra das damas, em lèr ro- mances, em danças e caçadas.

Tinha uma amante e nunca mais teve outra, desde o momento em que d'ella se enamorou. X belia Ignez Sorel era dama de honor da rai- nha Maria d'Anjou, e durante os cinco primeiros annos, que a menina de Fromenteau, como lhe chamavam na corte, passou junto da rainha, ignorou-se completamente que ella houvesse captivado o coração d'el-rei. O segredo reve- lou-o apenas o favor que a familia Sorel ou Soreau alcançou repentinamente, e os enfeites de ouro e pedras preciosas, (jue Ignez Sorel ousava ostentai' nas ceremonias, eclipsando com o seu luxo as mais nobres damas da cMe.

;142 IIISTOJUA

«Foi então, diz Monsfralef na sua (liironica, que começou a correr o boato de que el-rei a tomara por amiga.»

Parece que Ignez Sorel era mais engraçada do que jjeila, mais seductora do que vistosa. Era de caracter jovial e de conversação divertida (lépida e fa- ceta, diz o clironista Gaguin).

A paixão de Carlos vii pela bella ígnez não foi indigna de um rei de França, se pensarmos que esta paixão decidiu o pequeno rei de Bourges a re- conquistar a sua coroa, expulsando de França os inglezes.

Um dia em que CarlDs consultava um astrólogo a respeito do destino de Ignez, o astrólogo respondeu que a bella dama havia de ser durante muito tempo amada por um grande e poderoso monarclia.

Ignez, ouvindo isto, levaiitou-se e disse ao rei, saudando-o com a má- xima gravidade:

Sire, rogo-vos encarecidamente que me permiltaes partir para a corte do rei Henrique, para que se cumpra o meu dcslinn. O lioroscopo manda-me servir o rei de Inglaterra, que c o verdadeiro rei tle França, emquanto que V()S, sire, sois apenas o rei de Bourges ! . . .

A justiça da censura impressionou muito o rei, que se envergonhou do seu abatimento, e para merecer a estima de Ignez, não descançou até libertar a França da oppressão dos inglezes e até ser coroado em Reims.

O serviço prestado por Ignez á coroa de França e á propia França era digno de apagar o que havia de illcgitimo nas suas relações com Carlos vii, e Francisco i (juiz reliabililar a sua memoria, dedicando-lhc esta quadra, ([ue é um docnmenlii hisloi-ico cm a|q)oio da tradicção :

Centillr Áijnp^. pUix dlionnenr tu nierile, Lii rdiise f.tlMil la France recourrer, Que c.e ijue. peul dédans nn doisire oiierer Close nonnain, ou bien devnt hermilp.

A opinião, porém, dos contemporâneos não era tão favorável a Ignez, e a bella dama, por mais esforços que empregou, nunca poude erguer-se da ab- jecção das eorlczãs, em que a lançara a inflexivel sentença da opinião publica. Ouando ousava apresenlar-sc em publico, a multidão agrupava-se em torno (rdla, e não faltavam olhares de desprezo, ditos sarcásticos e injurias amea- çadoras.

Foi uma única vez a Paris em abril de 1 ii8, e poucos dias depois teve de sabir da cidade, dizendo (|uc os parisienses «eram uns viilõcs, e que se soubesse que a haviam de rece!)er tão friamente, nunca teria posto os pés n'a(|iiclla cidad(\»

O Journal dii Hnunjeuis de Paria refci'e a entrada de Ignez na cidade do Sena, i\ aecrescenia (|ue se dizia publicamenti! «(|ue ella era a amante do rei de Fr:\nça, uma descarada sem nem lei, (pie ludibriava a boa rainha sua ama. Ignez linha um grande estado como condessa ou (lu(|ueza, acompanhando sempre a boa raiiiiia, sem veigonha do seu p(>ccado, e sem commiseração jia- ra com a pobre senhora, que solliia i'om isto um grande desgosto.»

DA PROSTITUIÇÃO 343

flarlos vil rcspeilava baslanto a opiíiiãd publica |)aia confessar escaiida- losainente as relações adulleras, que havia dezoito ou de/.enove ariiios existiam entre elle e Ignez. Tivera d'ella quatro ILlIios, trcs dos quacs viviam, e tinham o titulo de l.a France, como os lilhos legitimos d'el-rci. Desde o nascimento (ia primeira lilha, que morreu poucos dias depois, diz Moiistrelet, «Ignez de- clarou ([ue essa filha era d'el-rei, mas o monareha deseulpou-se sempre, e nunca mais se lallou em tal.»

Carlos Yii, porém, reconheceu as outras três bastardas, que ('oram esplen- didamente dotadas e casaram no reinado de Luiz xi. E de crer, todavia, que durante a vida de seu pae nunca se apresentassem na corte, e o seu nasci- mento chegou mesmo a ser ignorado de muita gente. Historiailores houve, taes como João Ciiastier e Enguerrand, que allirmam o completo platonismo das relações d'el-rei com Ignez Sorel.

O mysterio de que o rei Carlos cercava os seus amores prova exuberan- temente como elle entendia o seu dever de dar exemplos de moralidade aos seus vassallos e á corte, que elle não queria ver transformada em logar de prosti- tuição, rodemos d"aqui infei'ir a grande reforma de costumes que na corte se operou, principalmente nos últimos annos da vida d"el-rci, (|uc ao envelhecer se tornou triste, sombrio e myanthropo.

O povo de Paris não esquecera nunca a iiorrivci recordação do baile dos Anleiíles e as obscenas mascaradas que iiaviam tido por theatro os palácios do rei, da rainha e dos príncipes. E' possível até (jue se exaggerasse bastante a preversão d'esses passatempos da t'órte, por isso que a elles se attribuiain os desgraçados acontecimentos do reinado de Carlos vi, considerados geraliucnie como um castigo das im|)iedades e infâmias que este malaventurado rei auc- torisára com o seu exemplo. E' muito provável, porém, que as mascaradas d'aquella épocha não fossem apenas innotlensivos disfarces inventados para re- crear os ânimos, mas que tive.ssem, pelo contrario, o seu tanto ou quanto de impudicas. Conta-se que umas vezes as mascaras representavam certas partes do corpo que o pudor manda occultar, especialmente attributos do sexo mas- culino, outras, os mascarados traziam a descoberto os seus órgãos sexuaes, ou vestiam ouropéis recamados de imagens e dixisas indecentes.

Não é tudo ainda. Estes disfarces dissolutos facilitavam a quem os adop- tava o meio de satisfazer as suas paixões sem ser recimhecido. Daqui o grande numero de estupros e insultos que a historia d'essa épocha registra a cada passo. Os namorados serviam-se igualmente do disfarce para poderem fallar com as suas deusas, e chegarem mesmo com ellas ás ultimas liberdades, diante do pae da mãe, do esposo, ou d'um parente qualquer, e isto em presença de toda a còrle.

Este delírio de mascaradas não Ibí um invento da corte de Carlos \ i. Era apenas uma imitação da fesla dos loncots, tão vulgar na Edade-.Media na maior parte das egrejas e conventos da cbristandade, e que descendia em linha recta das Saturnaes do paganismo. .4 /'esta dos louros não havia desapparecido ainda no século xv, apezar dos esforços do episcopado, (|ue debalde |)rocurára destruil-a desde o estabelecimento do christianisino nas Callias. (Ireaorio de

34Í - HISTORIA

Tours, na sua Hisloria dus trancos, menciona uni dccrelo episcopal conlra as religiosas de Poitiers, que iiaviam celebrado as harbalurias. Cliamava-se assim tamliem a f-esla dos loucos, por causa das mascaras barbudas com que os adores d'eslas liccnciosidades publicas cobriam o rosto.

No priuieiro de janeiro, dia da (lircumcisão, a cathedral de l'aris era in- \adida por uma multidão de gente mascarada, que a profanava com danças lú- bricas, jogos prohibidos, descantes obscenos, burlas sacrílegas e mil outros excessos que cbegavam até mesmo á elTusão de sangue. Os sacerdotes e cléri- gos eram os instigadores, e cúmplices de tão escandalosas mascaradas, que se espalhavam pelas ruas da cidade, levando o escândalo a toda a parte. (Moyen age et la íienaissance. por P. Lacroix, cap. da Fête des Fous.)

O bispo Eudes de Sully comminou excommunbão maior a todo o sacer- dote ou leigo que tomasse parte n'estas vergonhosas orgias, que se renovavam annualmentc sob o titulo de liberdade de dezenihro. Apesar d'isto a Festa dos loucos continuou a celebrar-se e cada vez com maior escândalo na sua egreja.

Foi mister que a auctoridade civil viesse em auxilio da ecciesiastica, para extirpar, ou melhor para reprimir excessos, que não se limitavam á eleição de um papa ou bispo dos loucos pelos seus súbditos, que se submettiam ás suas ordens burlescas durante todo o tempo da festa.

No eintanto, esta festa dos loucos, tão variada nos seus nomes, nos seus costumes e na sua lilhurgia burlesca, foi definitivamente supprimida em França no meiado do século xvii.

O povo gostava muitíssimo d'aquelles grotescos espectáculos e abando- nava de bom grado o trabalho e os negócios para vèr pas.sar uma cavalgada de mascarados, vestidos de um modo verdadeiramente extravagante. Se a policia não interviesse no próprio interesse da ordem publica, as mascaras e os disfar- ces ter-se-iam multiplicado com os crimes e desordens que tanto favoreciam.

Basta citar a seguinte passagem de Sauval, para se fazer ideia das inde- cencias que se commetliam sob pretexto d'estas mascaradas :

«Actualmente, no fim do anno (dezembro de lo02) os mascarados não percorrem as ruas com os seus disfarces de doidos, -irazendo nas mãos uns paus ocos por dentro e cheios de palha, e feitos em forma de priapos, com que batiam em quanios encontravam no seu caminho, (intiquilrs de l'aris, lib. \ii, p. (i.il.)

lina das mais licenciosas variantes da festa dos loucos foi a que se ado- ptou no século xiv na Normandia, especialmente em Evreux c em Houen. As fienle.s de,Conardie, confrades de São Barnabé, elegiam um chefe intitulado o abbade dos Conards, que visitava os seus estados montado n'um burro, levando na cabeça uma carapuça verde, adornada de um famoso penacho, empunhando um sceptro e acompanhado dos seus conards. Este ai)bade dos conards cha- mava ao seu tribunal todas as causas licenciosas, pronunciava sentenças em matéria ronardante e tirava os seus argumenios do Evangelho dos Conixiilles, antigo re|iertorio de torpes trocadilhos e de aphorismos licenciosos.

O obsceno abbade conservou a sua jurisdicção na cidade de Rouen ale lins (lo século XVI, em (|ue ainda visitava os seus vassallos, (|ue se chamavam ro-

DA PROSTITUIÇÃO 343

nards, e não mrnards, confdrme alguém |)ri'l('n(lrii bapfisal-os por iloconcia He etymologia, e que as pessoas honestas denominavam innorevics, para não ferem de proferir um termo tão grosseiro. Conanl {('onnrdus) era synonymo de fátuo ou tolo (stultus-, fátuas), mas esta ohseena palavra, que bem mostra o séllo da sua origem plebeia, e\plica-se naturalmente por um provérbio, que o auctor do Wof/eíi de parcenir teve o cuidado de recolher do antigo arsenal das cousas burlescas. Dizia-se então, c talvez ninda hoje se diga na torpe lin- guagem das vicllas loln como tim c. . .

.4 festa extravagante dos Innoceiílex, on dos l^niards deu .sem duvida origem a um costume demasiado imperfineiilc, (|iic foi muito conimum em França, tanto na alta nobreza como entre a gente mais humilde das cla.sses po- pulares, durante os séculos xv e xvi. os poetas e narradores de contos al- ludem a este costume e pode crèr-se que ninguém tinha razão de (|ueixa d'elle. Ris como o abbade Leuglet-Dufresnoy, nas suas notas sobre as obras de ('de- mente Marot, evplica este costume:

«A gente nova que era surprehendida rta cama cm dia dos liinocenles (28 de dezembro) recebia uns tantus açoites e ás vezes alguma cousa mais, quando o caso o exigia. Isto, porém, hoje passou de moda. i\os somos mais prudentes e reservados que os nossos maiores.»

Leuglef-Dufresnoy escrevia isto em 17.10 ou 1731, e cincoenta annos an- tes a palavra, senão o facto, estava ainda em voga, pois que se no Diclion. de la langue franraise, de Richclet :

(iDar 0.1 innocentes a alíjuem (aliqnem rirr/is e.rcipere), quer dizer dar- Ihe um par de açoites nas nádegas, em dia dos Innocentes, por brincadeira.»

CJement Marot, n'um epigramma, que serve de pretexto a uma nota bem erótica do seu editor, faz-nos suppòr que n dia dos Innocentes não era muitas vezes senão um pretexto innocente para obter um resultado, (]ue bem longe es- tava de o ser:

«Querida irmã, se eu soubesse onde esse corpo adorável dorme no dia (los Innocentes, logo de madrugada dirigir-me-hia ao vosso leito, para o ver, para o adorar, a esse corpo gentil, que prefiro entre milhares dVlles. O êxtase do meu amor não consentiria que esta mão deixasse de o tocar, scguindo-lhc apaixonadamente todos os contornos delicados, e se por acaso viesse alguém, fingiria dar-vos os innocetites. Oue vos parece o ardil, oh querida irmã?!. .

A querida irmã, a quem Marot se dirigia com tanta familiaridade, não era outra, se dermos credito aos commentadf)res e á tradicção, senão a sediictora rainha de Navarra, irmã de Francisco i.

D'aqui podemos naturalmente inferir que o jogo dos innocentes, como u'essa époclia se jogava na corte, encurtava as distancias sem se prender com bagatellas, nem com etiquetas palacianas. Este jogo salvava as apparencias e occultava muitos mysterios, sob a honnèle courerlure, segundo a própria ex- pressão de Marot.

Brantòrae, nas suas Damas galantes, cita a este respeito «uma grande fi- dalga, que por espaço de quarenta annos foi considerada como a mais honesta mulher do paiz e da corte, e que ficando viuva leve a fraqueza de se apaixo-

HlSTOBIA D* PaOSTUDIçio. TOMO H— KOLBA U

340 HISTORIA

nar por iiin fidalgo. C.onio não podesse lograr o sou desejo sensual, dia de In- noL-rntes foi ao quario do mancebo, para iiros dai', mas elle foi quem lii'os deu a ella, e decerto que não foi com as mãos.»

Pôde calcular-se facilmente a que estado de depravação moral havia che- gado a córfe de Franya, quando adoptava similhantcs costumes, nascidos nas classes populares. Veremos ainda como esta depravação subiu de ponto no tempo dos Valois, em que os costumes italianos entraram na corte antes mesmo de (^atharina de Medíeis.

De resto, devemos dizer desde que o jogo dos innocentes não era o mais escabroso de (pianlos se jogavam com as damas de honor da rainha. Estas da- mas entravam desde a mais tenra juveiituih' numa cschola de perigosa galan- teria que as conduzia naluialmente á prostituição. As palavras obscenas c os espectáculos indecentes eram as suas lições quotidianas.

Havia uma multidão de brincadeiras licenciosas e grosseiras, que se col- locavam sem cessar diante dos olhos das jovens : trocadilhos arrojados, obsce- nidades, contos immoraes, tudo isto constituía a conversação habitual das pes- soas da corte.

Não ousaremos apresentar aqui uma amostra scijuer das {ilinnharõex amorosas, audaciosos enigmas pi-oposlos sem a menor eciámonia ás damas da còrtc de Borgonha. E' preciso ler as Ceiíl niiu.rclles aouceíles da bon roi Loiíis XI, para se fazer uma ideia perfeita do que era a desmoralisação da corte de França no século xv ; comtudo um dos usos d'esta côile, uso admittido e auctorisado em toda a parte, tanto entre os príncipes como entre os pobres, fará conhecer melhor do que temos dito o grau de relaxação a que havia descido a mor.il publica. lodosos casamentos, ainda mesmo os dos príncipes, davam logar a uma escandalosa comedia, que so poderia tolcrar-se n'uni paiz de selvagens, ou n'uma Cnrie dos Mikujres.

Logo que os esposos entravam na camará nupcial, todos os (|ue haviam assistido ás bodas, novos ou velhos, doídos ou sensatos, tomavam posição para verem e ouvirem o que se ia passar entre os noivos. Não era como entre os antigos um grupo de crianças que agitavam nozes, cantando o llimen tradic- cional, era uma conspiração de todos os convivas, (|ue tinha por hm surpre- liender os mysterios do thalamo nupcial.

Para este fim, uns trepavam á.> b;indeiras das portas, outros subiam ás janellas, outros esburacavam as paredes, outros finalmente o tecto. .Muitas ve- zes o fim d'este uso desavergonhado era impedir <is dois esposos de consutnma- reni a copula conjugal.

Tudo (|uanto estes obscenos .-\rgus surprehcndiam era em seguida com- menlado e apimentad(j de facécias por todos os convivas.

Comprebende-se que este uso indiscreto se estabelecesse no campo entre gente pouco delicada, mas é caso para admiração vermol-o assim vulgarisado ainda mais na corte do que em ouli-a parle (|ual(|uer. Era como i]ue um tri- buto (|ue os reccm-casados pagavam á libertinagem dos seus amigos. Cada grito, cada (|uci\ume da noiva, provocava nos circunislanles uma salva de applansos em honra do noivo.

bA PROSTITUIÇÃO -347

(llcim-iite Marot, que assistiu ao (.-asatiuMilo de Renata de Krani^-a, lillia. de Luiz XII com o duque de Ferrara, Hcreules d'Este, em Julho de |.')28, al- lude a este eostume, de que nem a própria prineeza foi exceptuada. Do seu canil) epitlialamieo vè-se que as damas não eram mimos curiosas do que os liomens a respeito dos episódios da noite de núpcias :

«Vós que. ceiaes, deixae as mezas sueculentas. E' j)reciso comer p.iuco para l)em dançar. Sus, reverendos, recitae depressa as graças, porque o ma- rido diz qu(> é preciso apressarmo-nos. O dia incommoda-o. como podeis cal- cular. Dançae, dançael E tracte cada qual de escutar á porta, se elle dér o assalto á meia noite. O ardor do desejo tiMusporta-nos a estes togares. E a bemaventurada noite é uma noite perigosa!»^

Era provavelmente tão perigosa para as damas (|ue aeeudiam a receber unia instiiicção espeeial, comn p;!ra a pobre esposa, (|ue desempenhava um pa- pel tanto mais dillicil, quanto era certo que cada uma das suas palavras era repetida por milhares de echos. Não deve e\tranhar-se, em vista ifisto, o ex- traordinário numero de contos immoraes e desopilantes, que a venturosa noiíf ministrava aos nossos maiores. Todas eslas historias ingénuas ou grosseiras eram aprendidas com especial cndailn e constituíam a conversação ordinária do dia seguinte, lirantòme nãn esqueceu i^sfe capitulo nas suas Ihininn iiníanies, onde diz «inu' na noite de bodas todos estavam á escuta, segundo era cosluine.'» Esta noite, em que tudo .se passava, porque assim o digamos, entre tes- temunhas, como o contracto nupcial, era caso para assustar deveras os noivos. Era preciso deixar bem demonstrada a honra conjugal, no dizer de um auctor i|iie havia experiínenlado os azares e perigos da situação. O noivo linha de pro- var de certo modo a virgindade de sua mulher, e quantas vezes ell;i fazia ho- roicos esforços para lingii' o que não existia! Era preciso ás vezes entrar em explicações muito penosas, mas, segundo Branlòme, *<os senhores médicos e os babeis e espertos boticários sabem inventar, a propósito, remédios para eslas fraípiezas das noivas.»

Eis um d'esses remédios, que Hrantòme diz ler ouvido a um empirico : «Appliquem-se na região própria quatro sanguesugas, de maneira que pe- guem e tirem algum sangue. Ao largarem, fazem umas empollas e fistulas cheias de sangue. Apenas o esposo roça o membro por estas empollas, reben- la-as, e os dois ficam ensanguentados com grande satisfação reciproca, e d'este modo il honor delln cilaãella e salvo !

Hrantòme, no capitulo dos maridos enfeitados, entra em pormenores ainda mais tcchnicos, que não são mal cabidos nas suas Damas Galantes, mas que o poderiam ser acjui, ainda que perti'nçam essencialmente, como bem se com- prehende, á Historia da Prosiiiiiinln.

De resto, temos dito o bastante sobre este escabroso assumpto, para se poder formar uma ideia dos costumes de uma sociedade, na ipial nem a pró- pria instituição do matrimonio, sua base mais solida e mais santa, era respei- tada na occasião em que o sacerdote acabava de abençoar o leito nupcial.

Chega a pensar-se com horror na desmoralisação precoce das meninas, que antes da puberdade eram iniciadas em segredos, que o matrimonio não

348 HISTORIA

tinha de revelar-llies, por isso que haviam sido expostos n'aquella espécie de pelourinho obsceno, que tantas vezes cobria de deshonra o marido e seus filhos.

O escândalo tornava-se ainda mais grave, quando a noiva era viuva. Fe- lizmente que n'esle caso, no meio de todas as inconveniências, insultos e al- gazarras dos convivas, não era a pureza de uma donzclla que assim era entre- gue sem defeza á impudência e á iinmoralidade dos libertinos!

CAPITULO XXX

SUMMARIO

Os cuu.os do rei Luiz xi.— Vida privada das miillíeres ao século xv. Margarida de Escócia c Jatuet do Tillay. As comadres de Luiz si. Chronica escandalosa. A mula du cardeal Balue. O servente de Olivier Le Oain.— O duque rrOrleans e a senhora de Beaujeu. Carlos viu ua Itália. —A sua castidade. Process i de Luiz xu e de Joanua de França, sua mulher.— Trechos do inlerrojíatorio das duas partes.— Anna de Bretanha e a côite das damas.— Luiz su na Itália. Thomasiiia Spínola As milanezas.— O doclrmal das damas, de J. Marot Pa- rallelo entre as lombardas e as parisienses.

Dei.phi.m Lliz, priíiiogenilu de Carlos vii, foi na sua juvt-iilude II tão libertino como seu avò Carlos vi. Teve um grande numero de amantes, (jue llie deram muitos bastardos, aos quacs sem a menor diíliculdade reconheceu, dotou e casou, apenas subiu ao tlirono. Segundo a tradic(,-ão, o monarclia espalhou também al- gumas vergonteas pelas ciasses populares, onde tinha comadres, que continuou a favorecer e a visitar mesmo depois de ser acciamado rei. Os seus favoritus e servidores não tratavam de ter uma conducla mais regular, e a pequena còrtc do delphinado e de Geneppe de Hrabante, onde foi refugiar-se para evitai os elleitos da cólera paterna, distinguiu-se das cortes de trança e da Borgonha naquella épocha pela relaxação dos costumes e sobretudo pela completa depra- vação de todos os que a compunham.

Basta folhear-se a coliccçào das Cem novas noiellas do bom rei Luiz xi, para fazermos uma perfeita ideia a respeito da libertinagem que animava aquella alegre còrtc, em que cada qual se orgulhava pelas suas proezas galantes, e fa- zia, por assim dizer, o registro d'ellas, divulgando-as sob o transparente veu dos nomes suppostos.

O dclphim animava com o seu exemplo a libertinagem dos narradores de contos, António de la Sale, João de la Roche, Dampmartin, e outros emprega- dos da sua casa, que nos serões do paço, sentados diante do brazeiro, porfia- vaiu em audácia nas suas impudicas narrativas, que se reproduziam em todos os lares.

Verdade seja que as mulheres não assistiam a estes serões. N'esse tempo viviam cilas muito retiradas nos dillerentes misteres da vida domestica, sem lerem relações algumas com os homens em publico, a não ser em certas cere- monias. Passavam a vida nos trabalhos manuaes de suas casas, c tinham, por isso mesmo, raríssimas occasiões para peccarem. Era isto o que lhes fal-

350

HISTORIA

tava, porque estavam bem dispostas paca o amor pela licyão dos livros da ca- vallaria. A etiqueta, porém, alTastando-as da intimidade com os extranhos, de- fendia-lhes cflicazmente a virtude.

Margarida de Escócia, primeira mulher de Luiz xi, viu-se gravemente compromettida por ter sido emtontrada ás escuras nos seus aposentos com as suas damas e dois ou Ires fidalgos da corte. Um (relles, por nome Jamct de Tillay, jactou-sc de haver obtido da delphina alguns favores, que se limitavam a simples apertos de mãos. A calumnia envenenou, porém, a indiscrição de Tillay, c duas ou três testemunhas attribuiram-lhe palavras muito injuriosas contra esta princeza, que depois de o ter acolhido com extrema benevolência, o despediu de si, em castigo da sua leviandade. Segundo as referidas testemu- nhas, Tillay havia dito, indicando a delphina, «que umas vezes se apertava muito, e outras andava desapertada e á vontade e que passava as noites a lèr e a faziM- versos»:

- Vedes (sia dama? Tem maneiras de ribalda, e parece mais isto do que uma princeza!. . .

Tillay, porém, procurando justificar-se d'esta accusação, deixou cahir sobre a delphina uma suspeita muito mais grave do que as duras palavras que llic eram imputadas. Tillay referiu na syndicancia que leve logar a este res- peito, depois da morlc de Margarida de Escócia, que a princeza estava uma noite deitada no seu leito, tendo em volta de si muitas das suas damas, antes de SC haverem accendido as luzes. O senhor Régnant, moivlomo da dcl|ibina, c outro fidalgo estavam encostados á cama de Margarida, e fallava-se cm voz bai\a no aposcnío, havendo ate por vezes grandes intervallos de silencio.

.lainet Tillay, que entrou n'um d'esses intervallos, disse vivamente ao senhor Régnant «que era uma grande patifaria tanto d'elie como dos outros ser- vidores da delphina o não haverem ainda accendido as luzes.» Apressaram-se logo a accendel-as, mas a pi^incza alHigiu-se muito com aqiiillo, cahiu n'uma grande melancholia, e (i'ahi a pouco tempo morreu de consumpção.

Uma das damas de honor, .loanna de Trasse, encontrando-se cara a cara com Tillay, quando a pobre princeza ia evhalar o ultimo suspiro, não poude deixar de lhe dizer :

.Maldito ribaldo! A jiobicsinha morre poi' eausa das tuas falsidades!

Espalhou-se pela còile o boato de que Tillay havia sido amante de Mar- garida e de (jue os seus ciúmes '""ntra um rival lhe tinham inspirado as duras palavras que allligiram mortalmente a delphina.

A historia vingou a honra da piinceza, (|ue era sem duvida romântica, mas ainda assim |)ouco disposta á gaianicria. Foi ella que passando um dia n'um pomar, em que eslava a dormir o poeta .\lain (Iharticr, se approximou d'el!e c o beijou na bocca.

As pessoas do séquito da romântica princeza exlranharam o facto, e tanto mais (|ue Alain era talvez o homem mais feio de toda a Franç,'a.

Eu não beijei o homem, mas sim a bocca que tem sabido dizer Ião bellas cousas.

Margarida era mullur de belieza extraordinária, mas o delphim seu es-

DA PROSTITUIÇÃO

3ol

poso, do(ostava-a por ter um hálito pestilento. Comines diz «(|ue o principe eazára contra vontade c que viveu sempre desgostoso cm quanto ella viveu.»

Quando em \ííí a perdeu, não pensou em cazar sejíunda vez, ainda que a primeira mulher não lhe tivesse dado suceessão. Em liol, porém, mu- dou de parecer e cazou eom Carlota de Sahoya. Esta prinecza tinha seis annos no dia dos seus dcspozorios e o matrimonio poude eonsummar-sc quando Carlota entrou na puberdade. Tinha apenas doze annos quando compartilhou o leito do rei.

Emquanio esperou pela puberdade da esposa, não se descuidava nos seus amores. Enamorou-se de duas mulheres nobres, Felícia líenard e Margarida de Sassenage, das quaes teve alguns filhos. Preferia, porém, as mulheres do povo c as esposas dos commerciantcs ás damas de alta jcrarchia. Eis o mo- tivo porque em Dijon teve amores com Huguette Jacquelin, em Lyon com a (ligonne e em Paris com a Passefilon, ás (juacs amava ao mesmo tempo, fa- zendo-se acompanhar por elhis nas suas viagens, e dormindo com qualquer d'ellas, depois de ceias alegres, apimentadas eom nairalivas de contos licen- ciosos.

El-rei não se envergonhava de appareeer em publico com a (ligonne c a Passefilon, que eram muito cimhecidas do povo. Chamavain-lhcs as comadres d'el-rei, mas a sua honeslidaile, palavra de que se scr\(' o chronista João de Troyes, tornava-as bem acceites em toda a parle, apesar do ofíicio pouco iion- niso, que ambas ellas desempenhavam na camará real.

.\s pessoas de condiç^ão humilde não levavam a mal que o rei Luiz hou- vesse preferido mulheres d'esta classe ás damas principaes, e as suas duas co- madres, a Gigonne e a l'asserilon, que não se jactavam da sua prostituição como Ignez Sorel, não tiveram como a illustre cortezã motivo de queixa do [)o\() de Paris.

Julgamos que os nomes de Giyonne e Passefilon eram alcunhas das duas amigas d'el-rei. O que nunca pudemos descobrir foi a elymologia dVstas pa- lavras.

Muito tempo depois do seu reinado de cortezãs, dançava-sc ainda um bailado chamado Gigonne, e usava-se um penteado á Passe filou, luas havia sido esquecida a origem do penteado e da dança.

Apesar do papel que estas duas mulheres desempenharam simultanea- mente junto do rei e que parece haver duradolWé ao seu casamento cm 1 47(i, o historiador de Luiz \i, Filippe de Comines, aílirma que este principe, lendo perdido em 1 ioi) um filho chamado Joaquim, «fez xoto a Deus, na minha pr(>- sença de nunca t(jcar cm nenhuma outra mulher, a não ser em sua esposa.» Demasiado sabemos que Luiz xi pequena importância dava aos seus juramen- tos; não obstante. Comines parece inclinado a crer que o rei havia perseverado no seu temerário juramento, «ainda que a rainha, acerescenta o chronista, não fosse d'aquellas com quem se pudesse ter grande prazer, sendo de resto muito boa senhora.»^

Etlectivamenle, Carlota de Sahoya, que havia estado em poder de .seu marido desde os seis annos, vi\eu (|uasi sempre á parte no castello d'.4mboisc.

S5S HISTORIA

«com unia grande simplicidade, diz Brantòme, mal vestida até, como se fora uma mulher de classe ordinária. El-rei dei\ava-a alli com um pequeno nu- mero de criados entregue ás suas praticas de devoção, emquanto clle ia pas- sear e diverlir-se.»

Não é para admirar que esta princeza, a quem Iaiíz xi não amava, pas- sasse uma vida casta e virtuosa no retiro e no abandono. Os servidores que a rodeavam eram por certo menos castos do que ella. .Mas Luiz xi, que mudava muitas vezes de residência, e que tinha ao lado de si, como diz r.umines (Lib. VI, c. 13) tantas mulheres ás suas ordens, não fez honra ao seu volo de fide- lidade conjugal senão quando se viu velho, enfermo e moribundo.

Pôde dizer-se que a còrle de França neste reinado não deu exemplos de moralidade, nem de decência nos costumes. Reinava por esse tempo em todas as classes um desmando escandaloso nas ideias, nas palavras e nas acções. O amor metaphysico e novellesco, cujo código havia sido elaborado pela cavalla- ria, cedia o passo ao amor material e |»osilivo, (|uc tão frequentemente levava á libertinagem e ao escândalo. Não havia senão maridos enganados, viuvas aventureiras, mulheres libertinas, jovens seduzidas. Os contos de Boccacio en- earnaram-se de certo modo na sociedade franceza. Depois de tantas calamidades publicas, depois da guerra, da peste, da fome e da miséria, não se pensava senão em ganhar o tempo perdido: o prazer era a ideia dominante.

Cirandes eram n'essa épocha os progressos da prostituição, cm consequên- cia da difficuldade (|ue havia para se viver com o producto de um trabalho hon- rado. Uma passagem que vamos citar do Journal da fíourijenis de Paris, em- bora seja bastante obscura, uma ideia dos soíTrimentos e das difliculdades em que se viam as mulheres publicas.

«i\"aquelle tempo em que cada (|ual havia aprendido a ganhar, os ganhos estavam tão maus, que as mulheres que costumavam tirar cinco ou seis fran- cos diários se davam de boa víuitade por dois francos, e assim viviam. w

E' possível que estas mulheres não fossem prostitutas, como houve quem pretendesse demonstrar, mas em todo o caso uma desgraçada (|uc não ganhava senão dois francos diários, eslava muito arriscada a vender o seu corpo por alguns soldos.

O reinado de Luiz xi, a avaliar por dilTerentes fados consignados na chronica escandalosa de João de Troves, foi mais favorável (|ue os precedentes á prostituição propriamente dita.

Por certo que a moral publica era bem pom'o respeitada n'utna épocha i'm (|ue SC e\punham á vista dos transeuntes nas festas da entrada do rei em Paris (liOl) «três raparigas formosíssimas inteiramente nuas, mostrando as pomas redondas c duras, cousa deveras ap|)etitosa;» n'uma épocha em (|ue as aves palreiras não repetiam senão palavras obscenas, taes como pntnin, cntin «e outras bellas palavras», diz João de Troyes em 14-68; n'uma épocha em que um certo normando vivia carnalmente com sua (ilha. tendo ruuitos filhos d'este repugnantíssimo incesto, filhos que ambos estrangulavam logo ao nascer (] 506); n'uma épocha cm (|uc um frade hcrmaplirodila, de tal modo soube usar dos du- plos órgãos f|ue concebeu e pariu (Ii78); n'uma épocha, finalincrilc, cm que

i>A pitdSTiTuiçÃo :('j:{

iim moço da cjimafailVI-rei, clianinilo Hr'<,'Maiill ia Pie, fazia piililicamonfc afòrtc á esposa de Nieoiaii Halailie, o mais sahio legista da Franea, <\n<' mf)n'('U de pesar (IÍ82), depois de ter vislo Ioda a sua roriuna í^aeiilicada nas leviandades d'aqup|la impii<lica e dos seus ribaldos (V. fhroiiicd escandalosa, eseripla por um cartorário do fíotcl de vUle, de Paris, nas datas indicadas.")

Luiz XI sahia d'eslas aventuras, e riu ás gargalhadas quando sonhe (|ue o sen ministro, o cardeal í.a Baine, (|ue niaiitiniia relações adulteras com a mu- lher de um fahellião de Paris, chamada .loanna huhois, «famosa pelos seus amores», diz Sauval, cahira numa emhoscada que o seu rival, o senhor de Villière-Ie-Bocage, lhe havia preparado no regresso ile uma das suas visitas amorosas.

No momento em que o prelado, montado na sua mula, e acompanhado dos seus criados, qne aliumiavam com archotes, passava na rua de Barre-du- Bec, uma turha de homens arniailos alacou-o l\^' inifiroviso, e o pobre do car- deal ver-se-hia em papos de aranha, se a mula desbocada não partisse á rédea solta, indo parar síímente no claustro de ^atir-Dame, onde o cardeal vivia.

Este caso não teve consequências funestas pra os auctores da aggressão, porque o prelado temendo comprometter-se e comprometter a sua ribalda, teve de intervir com a sua influencia para (jue não prosegiiissem as diligencias ju- diciaes.

Outro processo de Índole ditTerenle, mas não menos escandaloso, inten- tado em 14-77, esteve a ponto de compromettci' muito seriamente um favorito do rei, Olivier l.e Dain, seu l>arheiro e camarista. Este personagem não figu- rou na causa, mas o seu criado e amigo Daniel de Bar teve de defender-se de uma accusação, qu(^ houvera por certo recahido cm Olivier, se Bar fosse con- demnado.

Duas mulheres de vida, uma (relias cisada com um tal Colin Pan- nier, e a outra concubina de um certo .lanviei', accusaram Daniel de Bar de «as ter violentado, e feito com ellas o sórdido e 1'epugnante peccado de sodo- mia.» Em consequência disto, Daniel de Bar foi feito prisioneiro por mandado do preboste de Paris. Feitas, porém, as informações judiciaes, reconheceu-se que o accusado era innocente do crime que se lhe imputava, e as suas aceu- sadoras chegaram mesmo a confessar a calumnia. Em virtude d'esta confissão, foram condemnadas a ser açoitadas nuas, e desterradas do reino e os seus bens confiscados para o rei, o (]ue foi executado pelas ruas de Paris, na ([uarta feira, 1 1 de março de 1 i77.

(Iraças a este resultado, Olivier i.e Dain c o seu criado Daniel de Bar escaparam ás vergonhosas suspeitas que os poderiam ter feito ir á fogueira, porque n'a(]uelle tempo o peccado contra a natureza não era menos punido (|ue a bestialidade.

Este vicio abominável foi raríssimo em França até ás expedições da Itá- lia, i|ue familiarizaram com elle os exércitos de C.arlos viii e Luiz xii. Apesar d'isto a corte d'estes reis foi de certo modo preservada pelo bom exemplo de ambos elles, que, segundo Brantòme, nnn (jusin^^im do amor á ilaliann. f.ar- los VIII e Luiz XII tinham no mais alto grau a paixão das mulheres. O duque

BiSTORIA DA PRO8TITmÇÃ0. Tomo II— FflLHA 45.

334 HISTORIA

(l'Orlcans, que foi ao depois o prudente rei Luiz xii, era Ião libertino na sua juventude, que não altendia nem á eda<ie, nem á eara, nem á cundição das mulheres. Poi isso, í'aliando-se d'esla paixão erótica do du(|ue, resuseitara-se o antigo provérbio, posto em cireulação no tempo de seu avô Luiz d'Orleans, irmão de Carlos vi : Toda a mulher dece resigyiar-se a faze-r uma inagem a Orleans.

No emtanto, este príncipe de costumes tão dissolutos recusou sempre ae- ceder aos desejos impuros da regente de França, Anna de Beaujeu, que estava perdidamente namorada delle, e que não lhe oeeuitava este senlimenlo.

«Se este príncipe, diz Bianiòme, liouvesse correspondido ao amor da regente, poderia ter lido uma boa parte no governo.»

Longe d'isso, porém, o duque mostrou-se sempre frio e desdenlioso pai'a com esta princeza, que lhe desagradava em extremo. iN'uma partida de jogo da bola, em que o duque jogava em presença do rei Carlos vm e de sua irmã, casada com o senhor de Beaujeu, esta princeza julgou em alta voz uma bola duvidosa, |)ronunciando-se contra n duque. Orleans fingiu não a ter ouvido e disse:

Quem condemnou o nwn jogo, se é homem mentiu, se é mulher é uma grande P. . .

Esta injuria dirigida á regente, transformou logo aqueile aniigo amor da princeza n'um ódio tidagal, e o duque dOrlcans teve d'ahi a pouco de sahir da corte e de se declarar em rebeldia contra a sua implacável inimiga, que o mandou prender e encerrar no castello de Loches.

O rei Carlos vm, que morreu muito novo, e subitamente, no dizer di> Branlôme, por haver amado as mulheres mais do que lhe permiltia a sua com- pleição, era de natureza apaixonada e ardente. Não obstante, quando casou com a virtuosa Anna de Bretanha, apenas se entregava a galanteios inuilo recatada- mente, e a corte de França, que o exemplo da joven rainha havia feito entrar na senda dos bons costumes, veio a ser uma escliola de virtude e austeridade. E apesar d'isso, Anna de Bretanha teve em volla de si mais damas do que era costume nos reinados precedentes. Foi ella quem começou, diz Brantòme, a for- mar a grande corte de damas, |)ois linha um grande numero d'ellas, e nunca recusou nenhuma, e Iodas, a exemplo da rainha, eram sensatas e virtuosas.»

Todavia entre estas damas foi Carlos vm encontrar uma (|ue leve bas- tante dominio sobre elle, para o impedir de fazer uma segunda expedição á Itá- lia. Na primeira, que o rei de França conseguiu realisar com tanta felicidade, não perdeu a occasião de ser iniiel ao mesmo tempo a rainha é a sua amante.

Todas as cidades que visitava com o seu exercito Iriumphante lhe oITe- reciain prazeres amorosos sem a menor dilliculdade. Ouando entrou em Milão, «as bellas damas da cidade e do paiz, refere i'iranlòme, traduzindo a Chronica de liajiain, aprcsenlavam-se nas ruas c nas praças Ião bellamenle vestidas, ijue os francczes não se ('ançavam di; as ver, confessando (|ue nunca tinham encon- trado nas mulheres do seu paiz nem tanta belleza, nem lanta graça e elegância.»

Estas tentadoras sci^eias appro\imavam-se a |)orlia do monarcha, sob pretexto di' lhe aprescniaicm seus lilhos, e «u rei luiiia Ioda a occasião para

Continência de Carlos Vlll Século xv

I)A PROSTITUIÇÃO 355

contemplar a lormosuia o os encantos (l'estus beldades e o aprimorado gosto dos seus vestidos e adornos.»

Carlos VIII deixou assignalada a sua passafjem pela Itália com aljíiins fi- lhos, que mais tarde se honraram do seu nascimento, e parece haver escapado ao funesto contagio do mal napolitano, que atacou grande numero dos seus of- ficiaes e soldados.

E' verdade que este mal não se havia ainda estendido por toda a Itália, mas el-rei, que dava largas aos seus caprichos sensuaes, não se haveria con- tido com esse receio. um sentimento mais elevado e monos egoisla o pode- ria deter nos extravios da incontinência. «As delicias de Vénus e os Iranspor- tes da volupluosidade, diz Simão .\anquier, n"uma écloga lalina a respeito da morte d'esle príncipe, não o lariam Jamais sahir do caminho da justiça.»

Quando esteve na cidade de Ast, uma noite, ao recolher-se ao seu quarto, encontrou uma joven de extraordinária formosura. Dois dos seus criados de quarto haviam escolhido aquella menina para o leito real. A pobre don/.elia, ajoelhaila ante uma imagem da Virgem, orava fervorosamente quando el-rei entrou. Car- los convidoii-a meigamente a approximar-se d'elle, e ella obedeceu toda tremula de receio.

Como derramasse sentidas lagrimas e gemidos dolorosos, n'uma grande e despedaçadora angustia, el-rei quiz saber a causa de tamanha dor.

Sire, disse-lhe a debi! menina, slmh interromper os seus magoados prantos, rogo-vos que vos digneis salvar a minha honra: é uma graça que vos supplico de joelhos, em n.ime da Virgem immaculada!

El-rei quiz saber a sua historia, e a desditosa contou-lbe que seus pães a haviam vendido aos dois camaristas para o prazer de sua magestade.

Carlos, embora se sentisse encantado com a belleza da joven, respeitou a sua honra, tranquillizando a p )bre victima collocada á mercê irelle. Soube ainda que a joven amava um esbelto moço, com quem desejava cazar, e man- dou logo chamar o noivo e os pães da menina, fazendo com que os dois aman- tes se cazassem na sua presença, e dotando a noiva com cinco mil escudos de oiro.

A' volta da conquista de Nápoles, Carlos viii, que se havia divertido bas- tante, não tardou em renunciar ás mulheres. Não se sentia com forças para viver como até alli, e nem scíjuer conservou a amante, que escolhera entre as damas de honor, iornando-sc des ie aquella data tão regular nos seus costumes como um monge enclausurado. Fora conselho dos médicos, por isso que as forças d'el-rei não estavam em harmonia co'm os seus ardores libidinosos. Ainda assim, esta moderação tardia não lhe poude prolongar muito a existência.

Seu primo, o duíiue d'()rli'ans, que lhe succedeu como o mais próximo herdeiro da coroa, havia mudado de vida e d minado as suas paixões, quando subiu ao throno. Estava enamorado da raiiilia Anua de Bretanha, e para con- seguir cazar com ella em segundas núpcias^ procurou annullar o seu matrimo- nio com Joanna de França, ainda que este matrimonio estivesse eon.sagrado por vinte e cinco ou vinte e seis annos d ^ cohabitação.

Kl-rei pretend-ni provar n'este escandaloso processo que o seu ca.sa-

336 HISTORIA

mento nunca lòia consiunmado, [lor isso que sua esposa não podia sofirer a copula.

A piedosa .loanna respondeu (|ue, apesar de reconhecer que «não era tão bem formada nem Ião hella como as oulras mulheres», havia sempre cumprido lodos os actos e deveres do matrimonio.

O propiio rei soflVeu um interrogatório no tribunal de Tours e declarou alli que sempre lhe parecera não haver realisado complelamenle os seus deve- res eonjugaes: Mfijup, realilir licei inliis jafrii, escreveu o tabellião, ([ue dis- iar(;ava o mais possivcl no seu latim lorense as incongruências das perguntas e respostas. .4ssim, tendo o juiz declarado a .loanna de França, que, segundo as aflirmações de seu marido, ella não tinha a devida conformação para pro- crear filhos, o tabellião escreveu no processo:

vUiiiid non potuisset aut posse parere, sed nfc smnen virile secundum iialitrw roírt/riifiiUaiH reripere, inih neque a riro intra clausira piidoris nalu- raUler roíjiiiisci. (Ilist. dii xvi.""' sit-rle, par le hihlinpli. .lanili.. tit. i, |). I I c seg.).

O tiibunal ordenou que .loanna fosse examin.ida por parteiras, que decla- rassem qual o seu estado physico, mas a pobre princeza, que ao diante foi canonisada, não quiz stibraetter-se a uma humilhação tão penosa para o seu pudor, e preferiu consentir no divorcio.

Em virtude desta resolução, eiilríju num convento, e Luiz xii, ajienas se viu livre (]'ella, api'i!ssou-se logo a casar com a sua (juerida Anua de l!re- tanha.

JN'este reinadii, a corte de França foi mais virtuosa do que nunca. X iii- lluencia moral da rainha Anna de Bretanha fazia-se sentir n'ella, ((jmo a da rainha Branca na corte de S. Luiz. .V prostituição, que no dizer dos poetas e dos pregadores não respeitava classe alguma da sociedade franceza, detinha-se nos hiimbraes da cóite, onde apenas peneirava ás escondidas, fugindo sempre da vigilância da rainha.

Luiz XII não impedia esta vigilância, que sua excellente esposa exercia nos Costumes da corte, ainda que se ria ás escondidas, recoidando as suas proe- zas dos antigos tempos, e quando os estudantes da Basoche e os Sein-Cuida- dos ousaram zombar nas suas farças da hypoerisia cjue reinava na corte da rai- nha Anna, Luiz xii disse:

Representem com loila a liberdade, .^ão me parece mal (|ue os i-apa- zes deniuirieiu os abusos da minha iMirte, que os confessores e outros sá- bios de egual (juilate não querem fallar n'islo. O (|ue não quero é (|ue fallem (la rainha, porque desejo (|ue a honra das damas se mantenha illesa de lodo e qualquer ataque.

Si) uma grande rigidez de costumes, como a de ,\nna de Bretanha era ca- paz tle pór um dique á prostituição, porque as expedições da Itália c a per- manência do exercito francez no paiz coiuiuistado haviam produzido a importa- ção em França dos costumes italianos, o desejn immoderado dos |)razeres sen- suaes e todos os refinamentos da volupluosidade.

O mal de Mapoies, como lemos dito, foi a consequência iminediata da

BA PROSTITUIÇÃO ',Vá~

conquista d'aquellc rL-ino, mas nas f^ucrr^as sufcessivas (juc occuparam loilo d reinado de l.uiz xii, o novo mal, que se ia buscar constantemeiíle á sua ori- gem, naluralisou-se de tal moilo entro os homens de armas, que Coi levado de tienova a Nápoles, e de Milão a Veneza, e por conseguinte foi perdendo pouco a pouco o seu pscudonymo de mal. francez.

Ijiíz XII teve de rejirimir os seus desejos e a sua sensualidade para po- der i'esistir ás seducções d'aquellas encantadoras italianas, que pareciam apos- tadas a lizel-o ser iníií-i a sua esjjosa ausente. Oe uma vez, porém, esteve a ponto de succumbir, e poude prcservar-se dos perigos que ameaç^-avam a sua continência, eutregando-se ao mvsticismo de um amor platónico com a bella geiioveza Tomasina Spinola, de (jucm era o intendio, quer dizer, o ainií/o do coraçãi), emquaiito que em torno (i'elle a sua nobreza se submergia nas de- licias e se embriagava de amor com phrenesi.

iNão piide imaginar-se bem todo o prestigio das mulheres italianas sobre os coii(|uislatlores da Itália, (|ue foram por sua vez dominados e vencidos. Os historialorcs contemporâneos não deixaram de fazei- o retrato d'aquellas en- cantadoras, (|uc tão repugnante iníluencia deviam ter nos costumes e na saiide dos seus imprudentes adoradores. Eis coqio João Marot, poeta e moço da ca- mará de Anna de Bretanha, nos representa no seu poema Viagem de Genora o bello espectáculo que esperava os vencedores na sua entrada em Milão cm 1507. E' claro que, como de outras vezes temos feito, substituímos os rudes versos iId poeta por uma pcri(ilirase, que nos dará o sentido dVlles, e mais eomprebensivcl será para o leitor do (|ue a linguagem aichaica de Marot:

«Os balcúes estavam atiilbados de muitas damas de grande formosura. Tens visto as feiras de Lyon e Anvers, de (jibray e doutros muitos togares, mas nunca viste uma mercadoria assim, tão bella, tão encantadora. Cada uma d'clias sentava-se n'uma cadeira, de geito (|ue podia patentear nielbor a ele- gância do corpo. Havia invejosos (raquelles encantos, que desdenhavam das formosas. Mas, por Deus, digam o que disserem, não havia especlacub) mais divino

O mesmo espectáculo, que a tal ponto impressionou a imaginação do poeta, produziu n"elle ós mesmos efíeilos, quando dois annos mais tarde, Luiz XII fez a sua entrada em Milão, para punir uma insurreição que alli tinha ha- vido. O bello sexo milanez teve por certo muita parte no perdão que o rei de França outorgou aos habitantes da cidade rebelde. João Marot estava tam- bém, e foi captivado como suecedeu aos mais c\|)eiiiiientados capitães, á vista daquelle triumplio feminino, que eclipsou todos os triumpbos e victorias dd rei.

«Balcões e lojas, diz ainda Marot, estavam povoadíw de belias damas. Alli iam saciar-se muitos olhos, famintos de tantos encantos. Ricos vestidos, jóias preciosas, cobriam aquelles corpos divinos. Mas, cauteila, que as sereias teem dardos venéreos, com que trespassam os seus ingénuos amantes

E' para extranliar como a rainha Anna de Bretanha teve suíTiciente poder e força de vimiade para evitar tão completamente que o contagio de desmorali- .sação, que ia em breve corromper a França, não se llzesse sentir na sua corte

358 HISTORIA

de Blois, durante a sua vida. Se os costumes se não reformaram, a culpa não foi da exccllente rainlia, que tamanhos esforços fez para rehabilitar o seu sexo. .!oão Marot, que compoz, por sua ordem, o dnnlrinal das damas, limita-se a paraphrasear os bons preceitos que ella ensinava, sobre tudo com o exemplo.

Um (resses preceitos era ser casta, sendo bella. A paraphrase começa do seguinte modo :

«Quem tem estes dois dotes castidade e bellcza pôde jactar-se de ex- ceder em tudo quabiuer outra dama d'este mundo, visto que a beileza nunca se cançou de fazer guerra á castidade: mas quando ellas se alliam, n'um doce convívio, oh! então tornam uma dama completa, e piide dizer-se um conjuiiefo de graças aquella que tem estes dois dotes.»

Anna de Bretanha recommenda também n'este doutrinal, que João Ma- rot divide em vinte e quatro eslropbes, a honestidade, «que é a pérola e a gem- ma engastada pelos deuses na nobreza.» Em seguida vem o elogio da prudên- cia, «que é o verdadeiro guia que conduz ao templo da virtude.»

Convida as damas a serem o exemplar de todas as mulheres, a fugirem da ociosidade, a serem zelosas do amor, finalmente, a amarem a um Deus e a um homem só.

Reconhece-se n'estas edificantes rimas a casta inspiração que Anna de Bretanha havia communicado ao seu poeta favorito, e vê-se que a rainha de- terminara pòr ao serviço do ensino moral da corte a poesia, que até alli não tivera outra altribuição que não fosse corromper os corações e effeminar os tem- peramentos.

Atina de Bretanha ligava diminuta consideração aos logares communs do amor profano com (|ue_os poetas a cada passo enchem as suas obras lieencio- sas. Censurava-os também por empregareni n'ellas expressões demasiado livres, que ollendiam os ouvidos castos. Não liderava nos livros o (|ue decentemente não podesse ouvir da bocca do auctor, julgando que a castidade das palavras deve acompanhar sempre a castidade das acções. Foi por isso que a mnito custo perdoou ao senhor de Grignaux, genlilhomem da sua casa, que em vez das palavras de um cumprimento ao embaixador de Hespanha lhe ensinara cer- tas phrases licenciosas cm lingua bcspanhola, que a rainha não coniprehendia. Anna prcparava-se para pronunciar as referidas phrases n'uma audiência so- lemne, (]uando el-rei a advertiu da par/iV/a, que elle próprio auclorisára, «para se rir e passar o tempo», diz Branlòíne.

A morte desta virtuosa rainha fechou este parenthese de moralidade c compostura dos poetas palacianos. João Marot, que acabava de compor .1 rer- dadfira advogada das damas, obedecendo á sua boa ama c senhora, voltou no- vamente aos iscriptos licenciosos e galantes. Bastou um momento para a corte de França sodVer um;i metamorphose completa, c para a prostituição tirar a mascara.

O próprio Marol vem declarar, nesta nova phase dos seus versos, que os costumes estavam mais escandalosos (|iic antigamcnlc:

«A ivspeito de amores, phrases de mel são inúteis, porque se não tendes dinheiro, é como se fallasseis em hebreu; e ainda que fosseis o mais guapo

DA PROSTITUIÇÃO 359

fiilaljíD rio mundo, a mim me degollem, se sem o auxilio do ouro, conseguir- des alguma cousa!. .

Tal foi o resultado das guerras de Itália. Os hábitos de lil)er(inag»>m que os homens de armas haviam adijuirido, além dos Alpes, foram implantados em França, e as mulheres franeezas, mesmo sem darem por isso, modelaram-se exactamente pelos hábitos das italianas, que tantas recordações, boas c más, haviam deixado aos conquistadores do seu pai/..

Os (idalgos, que haviam feito parte das expedições de (larlos viii e Luiz XII, não deixavam iio seu regrcí^so de exaltar os encantos e as gi'aças incom- paráveis das italianas, por peiores e por rnais luneslos, que pura clles tivessem sido os resultados dos seus amoi^es. As franeezas, a (juem seus maridos e aman- tes pareciam desprezar por aquellas perigosas sereias, conceberam contra ellas um ódio implacável, comprazendo-se em fazer contrastar com os defeitos das estrangeiras os seus propi'ios méritos e superioridade. Eis o que Marot escrevia, provavehDenIe sob a inspii'ação de alguma b( lia, que se desesperava ao vér-se despresada por uma lombarda :

«Em seguida a uma longa conversa acerca de amores, fiz um d'estesdias a um amigo esta pergunla: Qual vale mais, a franceza, ou a lombarda' Elle respondeu: A lombarda é vistosa, mas fria o molle, sob o peso do ho- mem. Tem boas palavras, e é geralmente .^obria, mas os seus encantos são postiços. O rosto é uma pintura; e muitas vezes as formas são de contrabando.

«A franceza é nalural e deciWida, doce como o mel e inlre|tida no assalto. E' o prazer que a decide, e despreza qualquer interesse. Em conclusão: Di- gam o que disserem as más línguas, as franeezas são a obra prima da natu- reza ! . . . »

Por mais que dissessem e lizesscm as franeezas, os seus compatriotas nem por isso deixavam de se inclinar para as italianas, que eram um dos maio- res attractivos das campanhas de Itália. Os fidalgos da corte davam-se tão bel- lamenle para além dos Alpes, que nunca tinham pressa de voltar a França. i'elo contrario. Estabeleciaiu-se nas principaes cidades do principiujo de Milão com as suas amantes italianas, como se não tivessem cm França mulheres e filhos.

Durante todo o reinado de Luiz xii, e nos primeiros aiinos do de Fran- cisco I, a paixão dominante dos francezes era viver em Ilalia. As pobres fran- eezas não sabiam como vencer rivaes tão sedueloras, que continuamente lhes roubavam esposos e amantes, deixando-os sómenie partir dos braços quando estavam arjuinados de dinheiro e de saúde.

Ao tempo da acciamação de Francisco i, a lior da nobreza de França ha- via atravessado os Alpes, dispersando-se por toda a Lombardia. Na corte viam- se apenas barbas grisalhas e cabellos brancos. As damas casadas podiam con- siderar-se viuvas, è as solteiras tinham de resignar-se a ficar solteiras. N'esld eonjunctura, formou-se em França uma conspiração feminina contra o bcllo sexo do Miianado, e as damas encari'egaram o poeta .íoão Marot de escrever aos fidalgos francezes, a esse tempo residentes em Itália, uma epistola satyrica, em que as lombardas eram apresentadas cm paralleloc(Mu as franeezas, pondo-se em

360

niSToniA

evidencia as virtudes o méritos de umas c os vicios e Imperfeições das oulras.

Razão havia para se confiar a Marol o delicado encargo de secretario das damas de Paris. O poeta havia residido muito tempo em Ttalia e estava bem instruído dos costumes do paiz, conhecendo o forte e o fraco das alegres es- trangeiras, que tanto mal faziam ás damas suas compatriotas. N'enhuma difll- culdade teve, pois, em fallar claramente cm nome (i'ellas.

(>omeya a sua epistola por accusar as italianas de amarem apenas por in- teresse, «porque a lombarda pinta-se e afavia-se somente para ganhar dinheiro. a eobiya a excita e a leva á libertinagem. Os deuses téem misericórdia para com os peccados de amor, quando o amor os inspira, mas esses peccados são infames, quando a avareza lhes discute o preço.

«O coração da franceza ao amor se rende, e o amor consegue facil- mente o que nenhum thesouro poderia obter. Em Itália, velhas e novas trafi- cam escandalosamente com os seus favores, e vc-se muitas vezes uma velha ler mais requebros e blandícias que uma joven.

«Em França, quando uma dama declina, ou envelhece, deixa o campo do amor completamente livre ás novas. E' bom recolher a casa quando anoitece.

« 4s lombardas usam opulentos vestidos tecidos a ouro, quando se apre- sentam em publico, e parecem verdadeiras fadas, mas debaixo d'a(|iielles ou- ropéis estão mais gastas que as calças d'um postilhão. Se as p d)res não comem todos os dias, apesar de todos os dias ti-ahaliiarem sem repouso! .\s francezas pelo contrario, alimentam-se bem, são robustas e podem dizer com orgulho : Somos valentes para o combate, as nossas pomas são duras, emquanto que vós, desgraçadas, não tendes senão pelhancras pendentes sobre essas pernas de gaivotas.

«Não tèem senão bellas apparencias essas triumphantes lombardas : de resto nada valem. Por isso nut)ca os amantes encontram sob essas apparencias o que a sua illusão lhes fazia esperar. Não é tudo ainda. São mais frias que o gelo, mais frouxas que uma tripa e mais sujas que os andrajos, apesar de lo- dos os seus enfeites e atavios. Como contraste a essas vis libertinas, as damas de Paris não traficam com os seus amores, e não querem senão mostrar o que valem aos ingratos que as olvidam.»

(! poeta pinta em seguida a traços rudes os predicados naturaes das fran- cezas, os amplos seios, as nádegas volumosas, a frescura da pelle, a redondeza das f(írmas, e lança em nome das suas constituintes um repto ás suas rivaes :

«Levantem as saias, diz elle, as francezas farão o mesmo, c ver-se-ha então a (|uem foi que a natureza mais favoreceu.»

E' claro que as lombardas não ousariam acceilar o repto, e por isso Ma- rot, senipre em nome das damas 'de Paris, convida os gentis-iiomens a vol- tar ao seu paiz. t)irige-se para isso a Francisco i, que, segundo parece, não tem mais pressa do (|ue os seus cortezãos de voltar aos patriíjs lares :

<ySire, sois muito cruel para nós! Amor incita-nos, e o desejo iq)pi-Hue- nos. Nossos corações estão cheios de tristeza. Paris chiíra, Tours suspira, RIois desfallece, e .Vmbroise não cessa de grilar: Sire, voltae, vollae!»

Franci.sco i c os seus cortezãos deixaram com pesar a ítalia, (inde, ((ue

DA PROSTITUIÇÃO 361

Marot e as damas de Paris nos perdoem ! o amor ora nuiilo mais agradável do que em França ; e trouxeram para o sou paiz os ooslumcs italianos, (|ue se fundiram com os costumes francezes, durante todo o scculo xvi.

A Itália foi sempre fatal á França, mesmo quando os louros da victoria enramavam a fronte dos capitães francezes. IJIlalie c'est le (ombeau des Fran- çais, tem-se dito e repetido. Os concjuisladores do xv século trouxeram para áquom dos Alpes, de mistura com os Iropiícus das victorias, o gérmen impuro de um flagello atroz, que ameaçou por muito tempo destruir o fundamento da sociedade. E a esse flagello succedeu outro não menos terrível a dissolução dos costumes, o completo esquecimento do todas as Iradicçôes honestas de um período menos açoitado pelo flagello da prostituição.

Tal foi o mais funesto dos resultados da conquista de Itália pelos exér- citos francezes.

HisTosu DA Prostituição. Tomo ii— Polba 46.

CAPITULO XXXI

SUMMARIO

As Damai nalaiites, de Biantòiue,.— IJedioaloila i raiuba Mai>iarida. —A prostituiríu nu tempo diis Va- lols. Kranci.-co i, o rei Gran-iXez. Causa da sua priíni^iia expudifão á Itália.— Sua primeira enlermidadi-.— Elo- Kio da Cúrle das Damas. —Sua oriseni e seu uso.- o e.vi-niplo da cftrti-.- Ei-roi libei imo —A copula dos veados.

As damas na í|uaresma loileceucia da hiisuaj^era e da poesia.— A meaina de Tallard e os papas. -A bel'a lieilly.

A cond>-ssa de Cbateaubriant. Favor da dui|ueza ri'Élampes. —A pei|Ucnacasa d'el-rei ua rua de la Hirondelle.

Surpivzas nocturnas no palácio d'tl-rei.— A prostitu rão na clemência. -Diana de Poitieis e seu pae. Joáo de liosse, marido da duqueza aÉtampes. A bella Ferronière.

HISTORIA DA Prostituição na corte de Franva iluiaiile o século XVI tiaria um volume inteiro, se quizcssemos aproveitar todas as aneedota.« próprias para descrever os costumes da aristocra- cia no reinado dos Valois. Para se fazer, porém, um quadro completo d'aquella inerivel depravação, bastaria extractar das obras de Brantòme o que este abbade corlezão reuniu de factos escandalosos, que relVre com a mais completa liberdade, sem suspeitar sequer que poderá oHender o pudor de alguém. Basta esta circumstancia para provar, melbor do que o poderiam fazer as mais extensas narrativas, o grau de corrupção a que havia chegado a sociedade franceza no tempo de Carlos ix e de Henrique iii. Nem sequer se possuia nesse tempo o sentimento da honestidade, e por isso nenhum estorvo havia para evplicar sem reticencias, mesmo diante das damas, os mais vergonhosos c. sórdidos mysterios da libei-tinagem.

Por isso Brantòme, ao dedicar as suas Damas galantes ao duque d'.4len- çon, filho e irmão dos )wssos reis, diz elle, supplica-lhe que honre e acredite com o seu nome e aucioridade esse livro, cheio de aventuras e contos engra- çados, que o mesmo príncipe lhe iiavia narrado, muilo particularmente, nas suas conversações familiares. O primeiro manuscripto d'esta obscena collccção, tão preciosa para a historia da corte, é uma espécie de homenagem que o au- ctor faz á rainha Margarida, esposa divorceada de Henrique iv.

Brantòme não se atreveu, porem, a dar ao prelo em sua vida os contos, historias, discursos e anecdolas, que havia colligido com Ímprobo trabalho. Sc) por disposição testamentária é que deixou a sua sobrinha, a condessa de Uurtal, o encargo d( os fazer imprimir.

364 HISTORIA

«Itein, é minlia vontade, dizia elle no seu testamento, que o primeiro livro que sahir da imprensa seja levado de presente, bem encadernado, à rai- nha Margarida, minha muito illustre senhora, que me deu a honra de ler al- guns, fazendo grande estimação d'elles.»

Tractaremos de resumir o mais possível este assumpto inexgotavel, e procuraremos apenas caracterisar o género da prostituição que reinava na corte de França, sob a influencia de cada um dos reis do ramo dos Valois, porque cada um d'cstes reis, com o seu exemplo e paixões, deu uma physionomia especial aos costumes do seu tempo, e pôde mesmo dizer-se que, se todo o século XVI se tornou notável pela sua monstruosa libertinagem, nada se parece menos com a libertinagem da corte de Henrique iii do que a libertinagem da corte de Francisco i. Uma é ainda toda franceza, ao passo que a outra é com- pletamente italiana. No reinado de Francisco i encontram-se ainda, aqui e alli, no meio dos mais vergonhusos excessos, algumas nobres e puras reminiscên- cias da cava.llaria da Edade-Media. Sobe ao throno Henrique iii, e tudo se de- grada, envilece e deshonra, com desprezo das leis religiosas e sociaes.

Branfòme dirá mais do que nós a respeito d'este capitulo deplorável dos excessos dos seus contemporâneos, e mais de uma vez, mesmo ao citai'mos textualmente este escriplor, seremos obrigados a eliminar muitas passagens das suas obras, que a decência não nos permittirá transcrever.

Francisco i, como disse um dos seus panegyristas, que Brantòme não ousou refutar, foi '(verdadeiramente grande, por isso que teve grandes virtudes e grandes vicios também.» Qualquer dos bobos da sua corte, o Triboulct por exemplo, accrescentaria ainda de bom grado que o grande rei fora grande até no nariz. O povo tinha-lhe posto a alcunha de narifjudo. Quem sabe até se este desenvolvimento nasal do monarchíi não teria alguma parte nos seus vicios ou nas suas virtudes!

El-rei teve por certo grandes qualidades, que etnanavam do seu caracter cavalheiresco; a paixão das mulheres dominou-o toda a sua vida, a ponto de quasi todos os actos do monarcha terem ordinariamente este principio.

Assim, segundo Brantòme, a primeira expedição de Milão, que produziu as desastrosas guerras da Itália, foi devida ao desejo que el-rei tinha de ver a signora Clarice, dafna milancza, considerada ao tempo como a mais bella mu- lher de Ilaiia, e de dormir com Ma. como o licencioso chronisla declara ex- pressamente.

Bonnivet fora em tempo amante da referida dama, e desejava tornar a vèl-a. Por isso aconselhou a el-rei, conhecedor como era do seu fraco, que pas- sasse os Alpes para vèr tal maravilla.

«Eis a explicação d'aquclle acto de el-rei, diz Brantòme; eis a causa principal d'clle, que nem de toda a gente é conhecida.»

Basta isto para |)rovar como el-rei Francisco i era capaz de sacrificar o reino e a corô.i, a troco da satisfd-çã) de um simples capricho de galanteria. Este ardor amoroso começou a manifeslar-se desde a mais tenra edade. O diá- rio de sua mãe, Luiza de Sabuya, conta-nos que o príncipe desde a edade de dezoito annos começou a sentir as consequências dos seus vicios.

UA PROSTITUIÇÀO 36$

«Dia 4 de seteiiibru de 1312. Teve doença nas partes de secrela natu- reza . I)

Esta doença reappareeeu muitas vezes, apresentando novos sympfomas e dores novas, a ponto de el-iei pi'oi'erir estas palavras, no dizer do liistorio- grapho Mathieu: «Deus castiga-me por onde pequei.»

Brantòme refere com uma engraçada ingenuidade que o ardor erotieo d'el-rei foi causa da grande multidão de mullieres, que ao tempo existiam na corte de França. Anna de Bretaniia havia tornado a sua corte mais abundante de bello sexo do que as rainhas suas predecessoras. Mas isto nada era ainda em comparação da corte de Francisco i, que «considerando que todo o adorno e decoro de uma corte consistia nas damas, quiz povoal-a mais do que o cos- tume.»

El-rei costumava dizer a este respeito :

«Uma corte sem damas é como um jardim sem llores, e mais parece a côrle de um satrapa ou de um turco, do que a de um rei christianissimo.»

Attrahindo á sua côrle a fina llòr das damas do reino, Francisco i pre- tendia, no dizer de iJranlòme, supprimir aqu?lla indecente e perigosa turba de mulheres dissolutas, que os antigos reis de Fi-ança traziam no seu séquito, e que o rei dos ribaldos tinha o encargo de alojar, dirigir e vigiar. vimos que o ultimo rei dos ribaldos exercia as suas funcções no principio do reinado de Francisco i, mas provamos com documentos authenticos que foi substituído por uma dama n'aquella cpocha, e que este cargo deixou vestígios até ao rei- nado de Carlos ix.

Brantòme atllrma que a corte de damas era destinada a substituir aquel- las ribaldas do séquito real, que mais temíveis se tornaram depois da invasão das enfermidades venéreas.

«Parece-me, diz muito a serio Brantòme, que um tal piilanisme desen- freado, publico, cheio de males, não podia ser muito acceitavel ás nossas da- mas, que eram muito limpas e sãs, e que não gastavam nem tornavam impo- tentes os homens, como as dos bordeis.»

Assim, pois, segundo o testemunho de Brantòme, esta prostituição da corte não havia sido prevista, mas até approvada por Francisco i, sob o ponto de vista da hygiene e da moralidade, e o rei costumava dizer que «as damas tornavam os seus cavalleiros tão valentes como as espadas.»

Não era isto a cavallaria austera e sentimental do século xiv; era uma cavallaria decerto egualmente apaixonada pela gloria das armas, mas an- ciosa de gosos materiaes e de prazeres grosseiros. N'outro tempo, nas épochas cavalheirescas, não havia senão amores castos e honestos. Na corte de Fran- cisco I, todos os amores eram carnaes, ou de facto ou de intenção, o que Bran- tòme não deixa de desculpar a seu modo:

«Se as damas ás vezes favoreciam os seus amantes e servidores, el-rei não era d'isso responsável, pois que sem usar de violência, deixava a cada qual guardar a sua fortaleza. Se alguém n'eila entrava, el-rei não podia evi- tal-o. N'uma fortaleza a que se quer fazer guerra a todo o cavalleiro é permít- tido entrar, o caso é poder.»

366 HISTORIA

A esplendida prostituição da corte d'el-rei não se deteve alli, infeliz- mente. Nos primeiros tempos, irradiou logo sobre a sociedade franceza, e pouco depois lornou-se um incêndio iiorrivel que devorou tudo quanto restava de bons costumes nas classes medias c populares. Eis o que dizia a Branlòme um grande príncipe, que não estava ainda suíDcientemente corrompido para negar as funestas consequências d'esta desmoralização da nobreza:

.4inda se estivessem apenas corrompidas as damas da corte, o mal não seria irreparável. O exemplo dado por cilas era, porem, tão funesto para todas as damas da França, que apressando-se a imilar por toda a parte as suas modas e os seus modos, pareciam dizer: «Na corte vestem assim, dançam as- sim, peccam assim ; pois bem, parece que do mesmo modo podemos nós lam- bem viver.»

Quer o meu amigo concluir, respondia Branlòme, que antes de Fran- cisco I não havia tantas ribaldas por toda a França '? Pois cu sustento, apesar de tudo, (]ue nunca houve melhor idéa do que esta de encher uma corte de da- mas. E oxalá que eu tivesse passado toda a vida na còrle do grande rei para gosar a(|uellas b ias foilunas!

Francisi-o i havia feito da sua corte uma espécie de serralho, e não le- vava a iii.il (]ue os seus cavalleirDS e serviílores eoiiiparliihasscm com eile os favores das damas. Dava-lhes ainda exemplos e iicçõcs de lil)eilinagem, e não se envergonhava de fazer ás vezes o papel de alcoviteiro, desijando que todos tivessem as mesmas fraquezas que clle linha.

«No seu reinado, diz Sauval, não havia eortezão sem amante, e quando algum lieava disponível, quer dizer sem c iinpaniieira de prazer, el-reí informa- va-se immedialamenledosru nDine, e ia elle próprio fallar com as damas, reconi- mendando-(j jiiiilo dillis. Eiiilin, ciuando os pretendentes vinham á falia, e eram enconli-ados no lance por el-reí, apressava-se a perguntar o que estavam dizendo, c se não lhe parecia bem, elle projirio ensinava o melhor plano do assalto.»

Não SC contentava, portanto, o monarcha de ser preceptor da galanteria, e podia orgulhar-sc de saber do seu (idi.-io ; acceilava mesmo, no interesse dos seus amigos, o papel de alcoviteiro, papel ([ue lodos os cort<"zãos também estavam sempre prom|ilos a desempenhar em f.ivor de seu amo. JNào consentia que hou- vesse na sua corte damas recaladas. E apesar d isso jaetava-se de ser o mais firme defensor da honra feminina, c considerava como um crime o mais ligeiro gracejo, que beliscasse essa honra por dle tão compromettida.

Um dia teve o extravagante capricho de querer ver como os veados dos seus parques se reproduziam. Para esse fim, fez-se acompanhar das damas mais bellas da corte a Sainl-Germain, onde em certa clareira se reuniam grandes manadas d'e>tes animaes, na estação do.s seus amores. O espeetacuhj, devemos convir, era de molde para oITcnder o pudor d. is damas, se t lias tivessem pudor, bem entendido. Elias, porem, não se oITenderam, e longe disso, observaram alegremente lodos os pormenores d'aquelle divertimento. L'm eortezão, que fora testemunha de similhanlc índecencia, lembrou-sc de dizer que os amores dos veados tinham feito crescer a agua na bocca ás damas da corte.

DA rnosTiTUiçÃo 387

El-rci indignou-se a )nl ponfo cnnlra o maligno aurlor do opigramma, que o desterrou da còríe, som pnrmillir jiímai-; qm' alli voltasse!

D'outra vez zangoii-se ainda mais seriamente com o jovon lírisamboiírg, a quem havia encarrcgailo de levar durante a quaresma ao easlello dcí Meudon alguns pratos de carne da meza real, destinados á duqueza d'Elanipcs e oulras damas da sua casa. Brisambourg teve a leviandade de dizer:

Estas damas não se eonlenhim de comer carne crua na quaresma; eo- mem-na também cozida a dois carriili is! . .

O epigramma cliegou aos ouvidos das damas qne compunham o que ao tempo se chamava a p^tllf bande. A palite bande. (|iu-i\ou-se a el-rei, c el-rei furioso até á loucura deu ordem para que o pobre Brisambourg fosse enforcado.

Felizmente o pobre rapaz, avisido a tempo, poz-se em fuga, illu- dindo as pesquisas da justiça real. D'aiii a pouco voltou novamente a graça do monareba, mas não sem se haver retraclado perante a pKlilff bande da duqueza d'Étampcs.

Era aquella a cpoeha do grande favoritismo da duqueza, concubina d'el- rei Francisco, e todos os cargos da magistratura, da fazenda e do exercito, se distribuíam a seu bel-prazei- entre os seus parentes, amigos e aduladores. A duqueza jactava-sc também de dispor do papa e do sacro collegio, que nada lhe recusavam, e cífectivamcnte cinco ou seis dos seus rccommendados id)ti- veram por sua interven^-ão a purpura cardinalícia. A este respeito dizia um dia a famosa duqueza que «não era mais didicil a uma mulher fazer um car- deal, do que fazer um cabrão.»

Francisco i, que lãa zeloso se mostrava da honra das damas, q\iando ella era atacada de viva voz, não era tão escrupuloso a respeito das expressões li- vres de que as suas damas se serviam com todo o descaramento. Qualquer das poesias alegres dos poetas palacianos pôde servir de specimen d'este desaforo da linguagem da corte. Não havia na giria da prosliluição uma palavra ou imagem, que elles hesitassem em empregar nos seus versos.

Brantômc refere um grande numero de aneedotas que comprovam esta espantosa licença da linguagem e da litleralura. Nem podia esperar-se maior eommedimento da parle de uma còrie depravada, cujas delicias eram o livro de Rabelais, onde se procurava menos o génio do auclor do que os grosseiros trocadilhos e as obscenas coarctadas.

Marot, moço da camará e secretario da bella Margarida, rainha de Na- varra, divertia immensamente as mais illustres damas da corte, poetizando os repugnantes amores de Alice e de Marlin.

Uma passagem muito divertida de Branfòme tem o sèlio da cpoeha e ca- racterisa perfeitamente a desfaçatez das damas da corte. Luiza de Clermont- Tallard, a quem Francisco i chamava a sua (grenouille) sem que Marot nos diga o motivo d'estc apodo, passava por ser o génio mais desenvolto e folgazão da corte. Era espirituosíssima, aquella geníil e pequenina loura, de quem o poeta diz:

Car rien qii'esprit est la pelile blonde.

569

HrSTORXA

Branfòme diz também quedesde a infância ella tivera sempre ditos magní- ficos. Quando o papa Paulo iii em Iõ28 teve em Nice uma entrevista com o rei de França, madame de Clermont-Tallard foi prostrar-se aos pés do sanfo pa- dre e pediu-ihe a absolvição, com ares de troça, rcferindo-lhe «que quando o papa Clemente xiii estivera em Marsellia, ella, criança ainda n'esse tempo, pe- gara numa das almofadas do leito papal, e se esfregara com ella da cintura para baixo, por diante e por delraz, deitando depois d'islo sua santidade a sua veneranda cabeça, cara e bocca sobre a referida almofada ( Dames (jalan- tes, disc. VI.)

Frncisco i teve sempre uma amante principal, que merecia mais que as outras, mas que Ucão podia evitar a existência de rivaes, porque el-rei não dei- xava de satisfazer os seus caprichos, ainda mesmo no meio dos seus mais ter- nos e duradouros amores. A duqueza d'Élampes foi a sua predilecta durante uma grande parle do seu reinado, mas el-rei chegou a ter ao lado d'ella, mes- mo á sua vista, outras amantes, que eram chamadas loijares-lene.nlcs de ma- dame Anna, e que esta dama não procurava derribar do seu throno ephemero, cerla coino estava de conservai' o seu logar, apezar de todas as inconstancias do seu real amante.

Anna de Pisseleu, a quem chamavam Mademoiselle de Heilly anfes d'el- rei a ter casado e de lhe haver concedido o ducado d'Étampes, ainda não ti- nha iniciado os seus amores com o monarcha cm 1526, na oecasião em que o prisioneiro de Pavia sahia de Hespanha par voltar a França. A rainha re- gente Luiza de Saboya, quando foi esperar seu filho, teve a graciosa ideia de lhe levar aquella formosa menina, que ella destinara para substituir a antiga concubina real, com quem a rainha mãe havia tido os seus dares e tomares.

Esta concubina, a quem a de Heilly facilmente supplantou logo na pri- meira entrevista, era a condessa de (^hateaubriant, a celebre Francisca de Foix, que devia pagar com a vida o seu amor e a sua abnegação pelo rei. Francisca de Foix, apezar da sua belleza, não poude dominar por muito tempe o velu- vel coração do seu real amante. Amava-o com a máxima delicadeza, e bem o demonstrou quando o rei grosseiro e brutal, lhe foi reclamar as jóias dadas na quadra feliz dos seus amores. A condessa mandou fundir as jóias e enviou a el-rei o ouro em bruto, dizendo que os emblemas eram seus, e que os ficava guardando na memoria.

A duqueza d'Étampes estava bem longe de querer imitar este exquisito spntimento. E' licito, todavia, duvidar do seu verdadeiro anuir para com el-rei. O que ella tinha em subido grau era o talento de saber atear constantemente a paixão d'el-rei, com toda a arte da mais hábil cortezã.

O amor da bella Heilly, como el-rei a chamava, era uma pro.stituiçào refinada e engenhosa, que fazia não a fortuna d'esta concubina, mas até a de toda a sua familia c de uma turba de protegidos que ella sem cessar recom- mendava á benevolência d'el-rei. A duqueza d'Élampes não contrariava em cousa alguma as phaniazias de Francisco i, que corria a novas aventuras, e voltava sempre para os braços da duqueza. A astuta amante do rei nunca o censurou pela sua volubilidade, e fingia até ignorar as suas infidelidades, ape-

DA PROSTITUIÇÃO 369

sar de que ellas algumas vezes llie tivessem prejudicado a saúde. A duqueza enlrou em Iraclamento e curou-se; cl-rci, não. O gérmen venéreo nunca lhe sahiu do organismo.

Toda a corte sabia das relações da bella duqueza com ei-rei, mas ainda assim, elia adoptava uma espécie de precauções refinadas, (|ue tornavam os seus amores mais interessantes. Assim, quando se encontravam cm publico, el-rei evitava tudo quanto podesse assimiibar-se á lamiliaridade, limitando-se unicamente ás galanterias do ceremonial, Quando se viam em particular, ado- ptavam-se de parte a parte todos os meios de prudência, para que estas visitas fassem ignoradas. Ia a casa da duqueza por subterrâneos e escadas secretas, ou então de noite, e disfarçado, ou outi^as vezes seguido do capitão das suas guardas. Ai d'aquelle que n"esta occasião reconhecesse o rei, ou surprehendesse o seu segredo !

A duqueza d'Etampes não vivia ordinariamente no palácio real, mas de- fronte d'elle, ou nas suas immediações, para mais livremente poder communi- car com o .seu amante. El-rei fez-llic doação de um palácio que tomou o seu nome e estava situado em frente do de Tournelles, onde o monarcba residia habitualmente. b'este modo podiam ter frequentes entrevistas no palácio d'É- tampes, sem que pessoa alguma suspeitasse no de Tournelles. Para estar ainda mais á vontade n'estas mysteriosas entrevistas, mandou construir na extremi- dade do cães dos Agostinhos, perto da porta de S. Miguel, uma casa que foi depois o palácio de Luynes,

A duqueza comprou também outra casa por detraz d'cste palácio, na rua da Hirondelle, e estas duas casas independentes, segundo parecia, não forma- vam senão uma, para facilitar as relações dos dois amantes.

Era alli que el-rei ia encerrar-se alguns dias, sob pretexto de repousar das fadigas do governo, e a duqueza ia em segredo, emquanto que toda a gente a suppunha em viagem, muito longe de Paris.

Pôde considerar-se esta casa da rua da Hirondelle, como a origem das casinhas mysteriosas, que tão vulgares foram em Paris dois séculos mais tarde.

Sauval diz a este respeito :

«Parece que era um pequeno palácio de amor, ou casa dos prazeres de Francisco i.»

Esta casa, no tempo de Sauval (em 1060) conservava ainda parte da sua decoração interior, que recordava o uso a que era destinada. As paredes esta- vam cobertas de esculpluras, entre as quaes se via a salamandra de Francisco I, emblema fabuloso dos seus amores inevtinguiveis, que se via repetido em lodos os ângulos do edifício com uma variedade de monogrammas e divisas. Por toda a parte se via um coração inflammado entre um aipha c um omeya, para significar que o amor era o principio c o lim de todas as acções d'el- rei.

Ha quarenta annos viam-se ainda os vestígios d'estas esculpturas n'a- quella casa, que os habitantes do bairro chamavam a casa d'el-rei.

Francisco i, graças ás suas delicadas precauções, guardou tão bem as

UUTOBIA PBOaTITOlÇÂO. TuMO Q— FSLHA 47.

370 , HISTORIA

apparencias com a duqueza d'Etampes, casada com João de Brosse sem fazer com elle vida marital, que esla dama podia negar de fronte erguida as suas relações com o monarcha.

Seu marido sabia tudo, porém, e de certa passagem das Dameò- galantes vemos que tinlia muitos zelos de sua esposa, e que procurava surprehendel-a com ei-rei para os matar, (^erta noite esteve a ponto de realisar os seus dese- jos. Surprelicndeu os dois amantes, e ia cahir sobre Francisco i, mas el-rei teve tempo de lançar mão da espada, e de pôr fora da porta o importuno, amcaçando-o de lhe mandar tirar a vida, se tivesse a ousadia de fazer mal a sua mulher. Em seguida, el-rei recomeçou o seu doce combate amoroso com a dama, tranquillizandn-a o melhor que poude do susto que havia tido.

O monarcha tinh;i muitas vezes necessidade de lançar mão de guarda- costas, no interesse das damas ([uc lhe davam entrevistas, (juando pela noite adiante se apresentava de improviso em casa d'cUas. Os maridos não o igno- ravam, mas sofTriam phiio.sophicamente uma desgraça, que demais a nlais pa- recia inherente á própria condição de cortezão. Tanto no palácio de Tournel- les, como no Louvre, como era todos os palácios reaes, el-rei preparava sem- pre os meios de poder entrar a toda a hora nos aposentos das damas que lhe agradavam.

Não havia escândalo, porque as paredes não tèem olhos nem ouvidos. As victimas d'estas surprezas nocturnas guardava m-se sempre de serem os pre- goeiros da sua própria vergonha, e por outra parte os criados d'el-rei estavam habituados a ver, ouvir e calar.

As damas estavam alojadas na corte, de maneira, diz Sauval, que el-rei tinha as chaves dos seus quartos c entrava n'elles de noite á hora que queria, sem tropeçar nem fazer ruído.»

Vé-se de tudo isto que os maridos, os pães, os irmãos e os amantes d'es- tas damas não deviam estar alojados a tão pequena distancia, que podessem ser advertidos da sua deshonra pelos gritos, que vinham expirar na espessura dos muros e das tapeçarias.

«Quaixlo as damas, accrcscenla Sauval, por serem virtuosas e iioiiestas, recu.savam estes traiçoeiros aposentos que el-rei lhes oiterecia em Tournelles, em Mcudon, ou no Louvre, era preciso que seus maridos tivessem muita cau- tella comsigo. Se desempenhavam cargos ou empregos, qualquer accusação po- dia leval-os ao patíbulo. E não havia a esperar graça, a não ser que suas mulheres lhes resgatassem a vida á custa da sua honra.»

Tal ci'a esla vergonhosa prostituição do reinado de Francisco i, se hou- vermos de dar credito ao testemunho de Sauval, que tinha por i-erto à vista preciosos documentos, de que nós carecemos. Sauval diz expressamente que nada era mais vulgar do que esta prostituição na còrle. Se as damas que ti- nham maridos, pães, ou amigos a salvar, não eram bcllas, mas tinham filhas que o fossem, eram estas que obtinham á custa da sua honra o perdão dos condcmnados. Francisco i não acceitava os olíerecimentos de ilinheiro que lhe podessem ser feitos para obter estes perdoes, mas se as mulheres ou as filhas d.s condcmuMiliis i;irn otlereccr-lhc os seus encantos, o rei cavalheiresco aceci-

DA PK<>ST1TUI(,:ÃÚ 371

tava sempre esta espécie de siihornn, eomlaiilo i|ue ellas livesseni lielleza, jii- venliule, ou pelo menos honesto procedimento.

Mem lodos os condemnados (luo salvavam a vida á eusia de similhante vergonha, se mostravam reconhecidos a suas muliíeres e lilhas, e ás vezes não lhes perdoavam o sacrifício que os havia livrado do palibulo. Fallou-se muito por aquclle tempo do perdão que Francisco i outorgou ao senhor de Sainf-Val- Uer, quando sua tilha, a hclla Diana de Poitiers, foi lançar-sc aos pés do mo- narcha, supplicando-lhc que perdoasse a seu pae, (|ue havia sido condemnado como cúmplice do condestavel de Bourbon. O rei nada recusou a Diana, que pela sua parte nada recusou também ao monarcha.

Saint-Vallier estava no cadafalso, na praça da (iiève, (|uando el-rei fez suspender a execução, commutando a pena de morte na de prisão perpe- tua. O fidalgo, ao descei' do cadafalso, exclamou :

Deus proteja o pássaro de minha lilha, que me salvou da moi'lc! Sau- val diz te fOí/, e Brantòmc emprega ainda outra expressão mais forlc.

Esta Diana de Poitiers, que Ião generosamente sacrificara a sua bcllcza para salvar seu pae, foi o (|ue o povo denominava la jiunetUa <lu mi, a mula <rel-rei. Era assim (|uc a chamavam os contemporâneos de Rahelais, e para continuarmos a nictapliora, entiou dahi a pouco tempo nas cavallariças do delpbim, ao depois Henrique ir, cujo primeiro cuidado ao subirão throno foi fazel-a duqucza de Valentinois. O reinado da duqueza dElampes acabou com o de Francisco i.

Se a prostituição sob este reinach» tomou na corte uma audácia, que nunca tivera até alli, devemos reconhecer ainda assim que Francisco i com o seu exemplo ccom as suas iicçõcs havia posto em moda a delicadeza e a galanteria, como véus destinados a encobrir o escândalo dos amores illegilimos. Mezeray, na sua Uisloire de lú-ancf, apresenta-nos um quadro curioso d'esla corrupção, que, diz elle, começou com Francisco i, propagiui-sc extraordinariamente com Hen- rique 11, e trasbordou com Carlos ix c Heni-ique iri. No emtanto, Mezeray apre- sentando os diUerentes graus da depravação moral, desde Francisco i até Hen- rique m, deixou de notar que o primeiro dos Valois foi o inimigo implacável do escândalo e o obstinado protector do que elle chamava a honra das damas. Francisco i não descobriu nem comprometteu neniiuma das suas amantes, e a própria duqueza d'Etampes, que por espiíço de mais de vinte annos foi a sua favorita, poderia dcfcnder-se de (|ual(iuer accnsação, e sustentar que fora ape- nas muito honradamente o que os cavalleiros da Edadc-Média chamariam a amiga do coração do rei Francisco de Valois.

«Ainda que se suspeitava que havia deshonestidadc, diz o senhor de Vau- privas, na sua Prasopnijrnphie, el-rei protestou que amava esta dama peia sua graça e donaire. Seja como fòr, julga-se (|ue ella era realmente sua amante. »

O senhor de Vauprivas, que escrevia e publicava a sua Prosopograpliia no tempo de Henri((ue iii, mostra-se pouco convencido da innocencia das re- lações da duqueza d'Etampes com el-rei. Sabia talvez que logo em seguida á morte de Francisco i o marido da duqnv.a, a quem Vauprivas suppòe homem pouco sen&ivel aos prazeres do amor, loi o próprio a publicar a sua deshonra,

372 HISTORIA

intentando um processo contra sua mulher a respeito de dinheiro, e provocando umas averij^uações judiciaes, que deram em resultado provar que elle havia ca- sado com a rihalda d'el-rei (patain riu roi).

P"rancisco i não se contentou de fazer da sua corte um serralho, onde nem os maridos, nem os tutores, nem os pães, nem as mães ousavam pertur- bar os prazeres do rei. Multas vezes divertia-se em procurar aventuras nas ruas de Paris, e dirigia-se a toda a classe de mulheres que encontrava. No Hepta- meron da rainha de Navarra, vc-se, porém, que estas aventuras não eram izemptas de perigos, e que mais de uma vez, surprehendido em flagrante, o rei foi tractado como um galan vulgar. Felizmente a sua espada dava-lhe meio de sahir do aperto cm que tão levianamente se mettera, mas nem sempre sahia são e salvo dos azares destes seus amores subalternos.

Assim foi que, segundo a tradicção, uns amores d'esta espécie lhe cau- saram a enfermidade que atinai o levou ao sepulehro, depois de dez ou doze annos de sotfrimento, e é de crer que as suas amantes da corte não ficassem indemnes da sua fatal enfermidade.

Dando curso a esta tradicção, que não podia appoiar-se em documentos authenticos, os historiadores não fizeram senão mencionar o acontecimento, sem afliançarem as suas circumstancias. Mezeray costumava tomar da narra- ção dos seus contemporâneos as particularidades mais curiosas da sua Historia de França. Segundo elle, a ulcera maligna que foi causa da morte de Fran- cisco I, começara em lo.39 a devoral-o com ardor insupporfavel, de modo que a dòr e a infecção, que era geral no corpo do monarcha, lhe produzia uma febre lenta e um desalento sombrio, que o tornavam incapaz de qualquer pm- preza.

«Ouvi dizi>r varias vezes, accrescenta Mezeray, que o mal d'el-rei lhe iòra coiniiuinicado pela bella Ferronicre, uma das suas amantes, cujo retrato se vc ainda em alguns curiosos gabinetes do palácio, e cujo marido, por uma eslraniia e estúpida vingança, fora buscar a infecção venérea a um lupanar jiara contaminar os dois.»

Mezeras, no seu Compendio clivonoloçjico da Historia de França, apre- senta novos pormenores d'cste lado, que consigna reporlando-se a certos boatos que haviam corrido no tempo de Francisco i. Brantòme, porém, não falia d'esta bella Ferronicre, nem de seu marido, que segundo uns era um ferrageiro, se- gundo outros, um advogado, e segundo todos elles um ciumento insupporla- vel.

Esta aventura, que merece um logar importante na Historia da prostitui- ção, apparece pela primeira vez minuciosamente narrada nas Diversas licções, de Louis (luyon (I. ii, lih. i, pag. 109.) O auctor rccebeu-a talvez da bocca de algum ancião ainda do tempo do rei cavalleircsco, por isso que escrevia a sua collecção em fins do século xvi. Além d'isso, na sua qualidade de medico, talvez encontrasse entre os seus collegas alguma tradicção especial, relativa á alVecção venérea de que foi victima el-rei.

«El-rei Francisco i, diz elle, pretendeu seduzir a mulher de um advogado, dama de verdadeira bclleza, que não (jucro nomear, porque deixou filhos, que

DA PROSTITUIÇÃO 373

alcançaram uma elevada posição e gosam de excellentc fortuna.» A dama não queria acceder aos desejos (í'el-rei, antes o repellia com palavras rudes que entristeciam o seu real animo.

«Sabendo este caso, alguns cortezãos, que faziam junto delle o papel de alcoviteiros, aconselharam ao monarcha que empregasse a sua real auctoridade e todo o seu poder para tomar á força o que de bom grado não podia obter. Effectivamente um d'elles foi avisar a dama da sorte que a esperava, e ella apressou-se a contar fudo a seu marido.

«O advogado comprehendeu immediatamente que elle e sua mulher te- riam de fugir do reino, e Deus sabia quanto haveriam de passar para salvarem as vidas, se ella não se submettesse áquelle real capricho. Determinou, por- tanto, aconselhar a esposa a resignar-se com a sua triste sorte, obedecendo á exigência do tyranno, e para não causar estorvo, tingiu que tinha de sahir da capital por uns oito a dez dias.

«>'ii emianto, conservou-se em Paris, e andou percorrendo os bordeis em procura do mal venéreo para contagiar sua mulher, a qual por sua vez se encarregaria de communicar o llagello ao rei.

«Depressa encontrou o advogado o que procurava, e foi logo contagiar sua mulher, e esta em seguida ao rei, o qual por sua vez pegou o mal a mui- tas outras mulheres com quem tinha relações, e nunca poude curar-se bem, porque o resto da sua vida passou-o sempre doente, triste, mysantropo e inac- cessivel.»

Nada se nos afigura mais verosímil do que a aventura da bella Ferro- nière, na parle que se refere á sua funesta inlluencia sobre a saúde d"el-rei. Julgamos inútil, porém, attribuir á vingança do marido as vergonhosas conse- quências da libertinagem do monarcha. O que isto prova somente é que o mal venéreo tinha n'essa épocha uma fonte inexgotavel nos albergues da prosti- tuição publica.

Ha certas duvidas, ainda assim, a respeito da épocha em que Francisco i foi tão gravemente castigado na sua incontinência. Mezeray cita uma data pre- cisa, l.")3"J. Branlòme, porém, attribue sem hesitação aos primeiros annos do reinado de Francisco i a invasão do mal venéreo, que lhe abreviou a vida e que lhe mereceu este famoso epitaphio :

L'an mil cinq cent quarente sept. François mourut á RambouiUel De la vérole qu'il avoit.

«El-rei Francisco, diz Brantòme, no elogio de Henrique ii, amou dema- siado, pois sendo joven e livre, tomava indistinctamente esta ou aquella, (n'a- quelle tempo não havia rapaz novo que não fosse amigo de mulheres, putassier.) D'aqui lhe proveio o mal que abreviou seus dias. Não morreu de velho, por isso que não tinha mais de cincoenta e três annos. Ouando se viu mortificado pelo mal, pensou que se continuasse nos seus amores vagabundos peior seria ainda, e por isso, tornando-se prudente com a experiência do passado, deter- minou amar galantemente. Com este fim instituiu a sua bella corte, frequen-

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tada por tão bellas damas e donzellas, para se preservar de feios males, e niinea mais manchou seu corpo com impuridades, antes seguiu d'aiii avante um amor limpo e puro. E depois que sahiu da sua prisão (ornou por sua prin- cipal dama e amante madcmoisclle d'Heilly.»

Esta passagem na qual Hrantòme persiste em dar uma origem tão im- inoral á grande corte das damas, instituída por Francisco i, parece dar a en- tender que a bella Ferronicre havia deixado tristíssimas recordações da sua seducção a ei-rei, antes d'elle ter sido feilo prisioneiro na batalha de Pavia, em 1525.

N'outro logar das suas Memorias, Brantftme está de accordo comsigo mesmo e confirma esta asserção, quando se compadece da sorte da rainha Claudia, dizendo que «el-rei seu marido a contagiara do mal que lhe abreviou a existência.»

A rainha Claudia morreu em julho de I5?4, em consequência do virus mórbido que seu espo.so lhe communicára.

Para descrever bem a prostituição da corte de Francisco i, seria mister citar textualmente metade da collecção das Dames galantes, e dar a conhecer pelos seus nomes os personagens que Brantòme não se atreveu a nomear ao referir as suas escandalosas aventuras.

Seria hoje, porém, muilo diílicil erguer o veu do anon\ mo que cobre a maior parte das galanterias, que o discreto compilador attribue a um grande príncipe, a uma grande princcza, umas vezes a uma bella viuva, outras a uma dama de elevada jerarchia. O auctor não as designa de outro modo, sem du- vida porque deixava a cargo das más línguas da corte supprir todas as suas omissões.

Não nos parece conveniente reproduzir n'este logar as anecdotas que pertencem ao reinado de Krancisco i, e que caracterisam a depravação moral da nobreza. No emtanto, deve notar-se que se a licenciosidade é enorme, se as mu- lheres casadas fazem um ludibrio da honra de seus maridos, e se as solteiras l)reUuliam o matrimonio com o esquecimento completo do pudor, ha, no emtanto, mesmo nos homens mais libertinos um sentimento elevado, austero, intransi- gente a respeito da virtude e da honra de uma mãe de familia. Os maridos que não temem manchar o Icilo alheio, velam pela honra do seu com a espada ou o punhal na mão. I) aqui tantas historias trágicas em que um amor impuro e criminoso termina sempre com o veneno ou com o ferro.

Estas sangrentas represálias que ameaçavam o mau procedimento das mulheres casadas, não eram ainda assim suíTicientes para as conservar nos li- mites do dever, ponjue Brantòme refere que o perigo era para ellas um esti- mulo a excilal-as a redobrar de astúcia na arte de enganarem seus maridos. «INão obstante, d. ciara o chronisln, depois de haver verberado esses coi- ladinhos perigosos, cruéis, sanguinoli'nlos e trágicos, que atormentam, ferem e matam suas mulheres inlieis não (d)stante, conheci damas e amantes que não se importavam com isto, porque embora os maridos fossem tcmiveis, el- las eram corajosas, e as piimciras sempre a animar os seus amantes, pensando que se a empreza é árdua e diílicil, tanto maior deve ser o valor para a levar

DA PROSTITUIÇÃO

37o

a cabo. Outras conheci tambom, (|iic não tinham coragem para estas árduas emprezas, c se occupavam de cousas fáceis e comesinhas: e por isso se cos- tuma dizer coração cobarde como uma prostiliUa.f

Lendo as Damas galantes de Hranlòme, até nos repugna acreditar que este desaforado historiador da inipudicicia das mulheres da còrle, quizesse de- monstrar que similhantes excessos de leviandade não fossem censuráveis nas grandes e honradas damas. Tão singular paradoxo reproduz-se cm muitos dos seus escriptos, onde o auclor o põe na bocca de certos personagens. Assim, uma dama escoceza de boa familia, que tinha lido um hlho de Henrique n, di- zia no seu escocez afrancezado :

".]'ai fácil tant que fui pu qu'à la bonne lieure je sais encentie dn ntij. itoni je m'en sens Irès-honoree et Irès-heurense : et si cenx-je ilire ijue le sang rogai a je ne sçaiy qiiog de plus suave et friand liqueur que 1'autre, tant }e m'en trouve bien, sans compter les bons brins de presents que l'on eu tire: Fiz quanto pude e tive a fortuna de ficar gravida d"el-rei, e por isso me sinto muito honrada e venturosa. Posso até dizer que o sangue real tem um não sei que de mais suave que os outros, que eu até me sinto muito contente, sem contar com os presentes que el-rei me dá.»

Brantôme accrescenta este commentario :

«Esta dama e outras muitas de quem tenho ouvido fallar julgavam (|ue entregar-se uma mulher ao seu rei não era cousa infame. Diziam até que pros- titutas são as que se entregam aos pequenos, porque as que vão dar-se a el-rei são grandes personagens.»

Brantôme faz dizer o mesmo a um grande que discorria sobre o assum- pto, defendendo uma grande princeza muito amável e sempre disposta a con- tentar todo o mundo, como o sol que espalha sobre todos o seu brilho. O fi- dalgo declara expressamente que estas leviandades são permittidas e ficam bem ás grandes damas, e nunca ás damas vulgares, tanto da corte, como da cidade e das aldeias.

«As mulheres vulgares, accrescenta elle, hão de ser constantes e firmes como as estrellas fixas. Se começam a mudar de amores, são dignas de castigo, e devem ser dillamadas, exactamente como as dos bordeis.»

Em presença d'esta engenhosa tlieoria, não é para extranliar que uma da- ma da corte, de certo uma grande dama, tenha a velleidade de invejar a liber- dade das cortezàs de Veneza, como se d'esta passagem :

«Quanto mais felizes não seriamos, diz ella a uma amiga, se estivésse- mos alli passando essa vida divertidíssima e aprazível, a que nenhuma outra pôde comparar-sel»

Brantôme, referindo este caso, exclama: «Eis um desejo bem patusco!" No emtanto, o licencioso abbade não deixa de o approvar por ter partido de uma illustre dama.

A famosa cortezà romana, denominada a Grega, que foi a França, se- gundo diz Brantôme, de propósito para ensinar a licenciosidade aos maridos c preleccionar suas mulheres nos segredos mais galantes da prostituição, dizia a algumas damas da corte:

376 HISTORIA

O nosso otlicio é fão ardente, quando se sabe como deve ser, que se tem cetn vezes mais prazer em pralical-o com muitos do que com um.»

Não eram, porém, somente as cortezãs eméritas que professavam este magistério de libertinagem na corte de Francisco i. Damas de jerarcbia iilustre, princezas, principes da Egreja encarregavam-se á porfia de o exercer. O car- deal de Lorena, a quem el-rei nomeara seu logar-tenente em questões de ga- lanteria, tinha a seu cargo amestrar as donzellas e as damas noviças que entravam na corte.

Que mestre aquelle! exclama Brantòme. (Juer-me parecer que o tra- balho não seria tão grande como o de amansar potros selvagens.

Depois de ter fallado a respeito da competência do cardeal, o abhade accres- centa que raríssimas ou nenhumas mulheres de bem haviam sabido daquella corte.

CAPITULO XXXII

SUMMARIO

A prostituição na corte de Henriíiue ii.— Elogio das beilas francezas.— Diana de Poitiere, concubina d'el-rei. —As cifras e divisas de Diana.— Brisac debaixo da cama.— Bonnivft na chaminé— Horhveis depravações da corte. —As arles conuptoras.— Uescripção dos (|uadros e estatuas dns palácios rraes.— A lai,-a obscena.— As figuras do AretiDO.— Digressão bibliograi.hica acerca desta liceuciosa colleiíão. Destruição das gravuras e exemplares do livit).— A .Siimína dej. Benedicti.— Miniaturas no gosto do Arelinn.— A galeria do conde de Cbateauvillaiu.

lE O .SERRALHO de Henriquc ii, diz Sauval, não foi Ião grande como o de Francisco i, a sua corte não eslava menos corrom- pida.»

.\s memorias de Brantiime ahi eslão para nos fazerem co- H nliecer esta corrup^.-ào de costumes, que não podia .ser maior, porque a corte de França naquella épocha havia adoptado e naturalisado to- dos os géneros de prostituição e libertinagem, todos os relinamenlos da luxu- ria e da galanteria. Iodas as licções de preversão moral, (|uc n'oufro lempo in- vejava às cortes italianas.

No emlanto, Brantôme applaude o que vé, considerando-o como uma conquista c melhoramento no interesse dos prazeres sensuaes.

«As nossas belias francezas, diz elle no primeiro discurso das suas Da- nies yah,ntes, eram em tempos que vão muito grosseiras, contentando-se de fazer o amor rudemente. Ha cincoenta annos a esta parte, porém, apren- deram de outras naçíjes tantos primores, attractivos, garridices e seducyões, tantas graças e maneiras lascivas, ou por si próprias se tem exercitado tanto, que lemos de confessar agora que vencem em tudo quacsquer outras. Até as mesmas palavras de sensualidade são na bocca das nossas compatriotas mais voluptuosas, sonoras e excitantes que as outras.»

(".onclue d'aqui o bom do abbade que o amor em França é melhor que n'outra parte qualquer, e invoca o testemuniio dos sábios na arte de amar e dos coftczãos, que são unanimes em dar a palma ás francezas, «ainda que te- nham de reconhecer em ultima analyse, que isto de pecoras e coitadinhos é fructa qiie apparece por toda a parte, visto que a castidade não habita uma região qualquer de preferencia a outra.»

Ainda assim, el-rei Henrique ii teve menos parte do que Francisco i na depravação do seu tempo, por quanto, «embora amasse tanto como el-rei seu pae, embora se desse de alma e coração aos encantos das damas,» como diz

BuTcaiÀ DA Peustituicâo. Tomo n— Folha í8.

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Branlòme, deu aos seus corlezãos um raro exemplo de constância c de amor nas suas relações com Diana de Poitiers, que foi a única concubina ofBcial (en tiire) de sua mageslade, duranie todo o seu reinado.

Diana não era joven a esse tempo, mas conservava ainda toda a sua bel- leza deslumbrante. Brantòme, que a viu na avançada cdade de setenta annos, seis mezes antes da sua morte, admirou extraordinariamente encontral-a tão bella, tão fresca, e tão appetitosa como se tivera apenas trinta annos. Accres- centa o cbronista da galantaria da sua cpocba «que a dama era muito branca, e que não usava pinturas nem cosméticos, o que fazia crer que se servia de certas beberagcns compostas com ouro potável.»

Seja como fòr, Henrique ii amava-a tão apaixonadamente que não podia passar sem ella, estando sempre triste, quando não a via. Vivia tão intima- mente com ella como se fora sua esposa legitima, e a rainha via-se obrigada a devorar em silencio o ciúme da supremacia dVsta rival, que ainda assim evitava quanto possível humilhar a sua soberana.

Henrique n não deixava, porem, de cohabitar com a rainha Catharina de Medicis, que parecia não ter outro destino senão dar ao mundo uma nume- rosa geração de príncipes e princezas. Diana, pela sua parte, não se mostrava ciosa d'esta virtude prolífica, a qual dava em resultado atlastar el-rei do leito conjugal, condemnando a rainha gravida a prolongadas ausências. N'essas oc- casiões, Diana era a verdadeira rainha da corte, até que Catharina de Medieis ficava livre da sua gravidez.

Diana tomou uma parte muito activa nos negócios do estado, e pôde di- zer-se que a sua influencia nunca foi funesta á politica do reinado de Henri- que II.

«Feliz o rei, diz IJranlòme, que encontra uma favorita boa, prudente c perfeita. Sendo assim, o seu reinado não pode deixar de ser venturoso!»

Sem accusarmos Diana de Poitiers de haver exercido uma influencia per- niciosa nos costumes da corte, podemos dizir, ainda assim, que a favorita nada contribuiu para os melhorar, nem com o seu exemplo, nem com o seu presti- gio junto do rei. Pelo contrai'i(», Diana devia rejubilar com a desenfreada licença c|uc reinava na còrle e que tendia sempre a fazer novos progressos, por isso que d'este modo justificava as suas relações adulteras com el-rei. A favorita, ainda assim, |)odia rehabilitar até certo ponto a sua conducta, comparando-a com as escandalosas desordens que as principaes damas se permittiam em torno (relia com um completo esquecimento du (|ue deviam ao seu nome c jerarchia.

Henrique ii, cujo amor tinha refinamentos de delicadezas para com a sua favorita, não omittia cousa alguma ([ue podesse fazer realçar o brilho d'csse amor, tornando-o por assim dizer respeitável á força de o rodear de attençòes c homenagens. Eis o motivo porque mandara collocar por toda a parte, nos adornos dos seus paços, no Louvre, em Fontainebieau, em .Meudon, etc, a ci- fra de Diana entrelaçada com a sua, e as armas d'ella unidas ao escudo real.

listes testemunhos de uma ternura e de uma admiração eiilhusiaslas nãi) se viam somente na decoração interior dos aposenlos, incluindo o da rainha, tnas até tnesmo nos fnmlesjiieios drts cililicios, nas esculp(in'as das janellas, nos

DA PROSTITUIÇÃO 379

lavoí-fs das portadas, no mosaico dos paviíiicntos, ek-., etc. Era um propósito feito de ostentar ú vista de todo o mundo os anagrammas dos nomes de Diana e Henrique. Nunca iiaviam alcançado uma tal apotiíeose o adultério e a pros- tituição !

O (im que el-rei tiniia em vista rcalisou-se por completo. Não a corte se habituou a confundir a concubina com a rainlia, mas o próprio povo consi- derou sempre Diana como uma espécie de fada, que devia ás suas artes a mi- lagrosa virtude de se conservar eternamente joven e bella, e cuja meia lua symbolica presidia aos destinos da França.

.4 tal ponto se havia familiarisado Henrique com este concubinato, de que tanto se orgulhava, que não tinha es'Tupiiio de se apresentnr em publico a ca- vallo, levando á garupa a duqucza de Valentinois, que se segurava abraçando o monarcha. E' preciso dizer que a moda auctorisava este costume de cavalgar a dois. Não podemos dizer se foi Diana ou Henrique quem mandou fazer um quadro em que os dois amantes estavam representados ambos a cavalio d"este modo. Ignoramos também se a ordem de multiplicar os anagrammas e em- blemas da real concubina nos edifícios públicos partia (feila ou do seu amante.

Julga-se com alguns visos de verdade que os arcbitectos, estatuários, pintores e outros artistas, conhecendo a louca paixão do rei por aquella mu- lher, o lisongeavam com estas allegorias destinadas a immortalisar os seus amores.

Os artistas italianos foram os primeiros a tomar a iniciativa n"esta obra de adulação, que agradou a Diana e não desagradou ao seu amante. Os artistas francczes imitaram em seguida o que os seus emulos haviam feito com tanta felicidade, e desde então lornou-se um costume geral em todas as obras d'arte, que se fizeram n'aquelle reinado reproduzir as iniciaes de Henrique e de Diana com a meia lua e a divisa: Doner lotum Impleaí orbem. Era uma allusão, se- gundo se dizia, ao desejo que el-rci tinha de vèr arredondar-se o ventre da concubina?

Henrique ii, a exemplo de seu pae, mostrou- se sempre muito discreto a respeito da honra das damas.

Brantòme diz acerca desta discrição real o seguinte :

«El-rei não queria que as damas fossem escandalisadas, nem divulgadas as suas condescendências, e elle próprio, quando ia visital-as, procurava sem- pre rodear-se de grandes mysterios para que as suas amantes ficassem livres de qualquer suspeita nu dilTamacão.»

Será crivei, porém, que el-rei tomasse tantas precauções para evitar que o echo das suas infidelidades chegasse aos ouvidos de Diana de Pnitiers, que pela sua parte traclava o melhor que podia de occultar as suas? Brantòme diz expressamente «que esta bella dama, no Icmpo do real favor, concedera os seus braços a tantas pessuas, (|ue bem podia dizer-se d'ella que era grande em tudo.»

Henrique ii ria-se d'eslas fragilidades da sua concubina, e não mostrava ciúmes. El-rei sabia que Diana tinha amantes, mas que não lhe dava rivaes.

380 HISTORIA

Um dia, seguntJu di/. Biantòtne, a duqueza de Valentinois e o marechal de Brissac estavam juntos, quando el-roi veio bater á porta do quarto. Brissac teve apenas tempo para se metter del)ai\o da cama. El-rei deitou-se convi- dando Diana a fazer outro tanto, mas d'ahi a pouco sentiu appetite e le- vantou-se.

Diana, toda tremula, apresentou a el-rei uns ixdos. O monarclia acceitou e comeu, mas de repente atirou com alguns para debaixo do leito, dizendo:

Toma, Brissac, é preciso que todos vivamos.

Em seguida retirou-se, e não tornou a failar da aventura nem a Diana nem a Brisac, que julgava ciicgada a sua ultima hora.

Em circumstancias análogas, Francisco i tinha sido menos delicado, ou menos philosopho com o almiianle Bonnivet. Estava o marechal longe de pen- sar na vinda d'el-rei, quando sua magestade se apresentou em casa da sua favorita, que fazia amor á porta fechada com Bonnivet. O galan, muito assus- tado, foi esconder-se na chaminé, debaixo de umas poucas de folhas seccas. Krancisio j substituiu-o no leito, fingindo não desconfiar da existência de um terceiro. Em seguida levantou-se sob pretexto de .satisfazer uma necessidade, c foi direito á chaminé, urinando em cima do seu rival, (|ue não se atreveu a dar palavra.

Quando d'ahi a piuico cl-rei se letirou, a dama deu uma camisa lavada ao seu amante, perfumou-lhe a cabeça e a barba, e fez quanto foi possível para que elle esquecesse a ridícula aventura.

o dissemos, seria mister transcrever para aqui uma grande parte das Dames GalanUa, de Brantôme, para caracterisarmos bem a prostituição do rei- nado de Ht nrique ii. Esta prostituição parece-nos tão horrível e monstruosa, (jue apodariamiis de cxaggcro o narrador, se elle se mostrasse mais indignado das torpezas ()iic refere. Enconlra-sc, porém, tanta ingenuidade nas suas nar- rativas, que nos é preciso confessar que as mais abomináveis depravações nem se quer tinham poder para fazer corar fosse quem fosse.

«Emquanto as viuvas e as mulheres casadas se entregavam a todas as extravagâncias do amor, diz Sauval, repetindo as historias de Brantôme o mais decentemente que a matéria pcrmittia, as .solteiras pela sua parte faziam outro tanto. De resto, fronte erguida dcscaradanente, e auzencia completa de vergo- nha. As mais escrupulosas casavan) com os primeiros que as pretendiam, a fim de poderem entregar-se d'ahi a pouco a quem melhor lhes parecia.»

Bianiòme a entender que na maior parte dos casamentos da còrle as desposadas não chegavam intactas ao thalamo nupcial, e que quasi todos os maridos sabiam que suas mulheres haviam tido logar «no registro de algum rei, príncipe, senhor, fidalgo, ou outro qualquer.»

Isto, porém, eram ainda |)cccados veniaes em comparação dos incestos, que segundo elle, eram muito communs nas famílias nobres, na maior parte das quaes o pae não casava suas filhas sem previamente as haver desllorado.

"Ouvi failar, diz elle, de muitos outi'os pães, e sobretudo de um de po- sição bem elevada, (]ue a respeito de suas filhas não linha mais consciência que tivera o gallo de Esopo.»

DA PROSTITUIÇÀlt 381

Depois de infâmias laes, (|ne Branlòinc nos refere sem iiorior nem repu- gnância, até se nos afigura uma innocente aqueiia beUissima e hnnesla donzeUa, que dizia ao seu pretendente :

Espera que me case, e verás como debaixo d'essa capa, <iue tudo tapa, nos poderemos divertir á nossa vontade!

«Quanto áqueilas que eram completamente descaradas, refere Sauval, umas saciavam-se de sensualidades antes do seu matrimonio, outras levavam o pudor a ponto de commetterem desvergonhas mesmo na presenya de suas mães ou aias, sem que ellas dessem por tal. Outras ainda recorriam a certos instrumentos de prazer, como esses que a rainha Catharina de Medicis encon- trou n'um cofre de certa donzella de honor. O uso d'estes instrumentos era muito vulgar entre as donzellas e viuvas.»

A Itália dos Borgias e dos Medicis havia ensinado á França todas estas praticas, todos estes instrumentos, todos estes estímulos da prostituição, e a corte, que era sempre a primeira n'estes jogos obscenos, a còi'te tão sollicita em aproveitar-se d'eslas innovações impudicas, propagava-as pela nação, onde den- tro em pouco se havia extinguido toda a candura gauleza.

Devemos dizel-o, embora nos custe, as artes que devem ter por objecto apaixonar os espiritos por tudo quanto é nobre, puro e generoso, foram as pri- meiras corruptoras, ou pelo menos as mais importantes auxiliares d'aquella corrupção universal.

Francisco i e Henrique u chamaram para junto de si uma multidão de artistas italianos, homens de grande talento sem duvida, mas de costumes dis- solutos. Os escuiptores fizeram estatuas de bronze e de mármore tanto de ho- mens como de mulheres, de deuses e de deusas, e n'essas obras, ás vezes ma- gnificas, triumphava sempre a lubrici<lade. Os pintores encheram os palácios reaes de frescos e telas, representando não cousas lascivas, mas também in- cestuosas e execráveis. Leonardo de Vinci, Benvenuto Cellini, o Priraatice, Ni- colo dellAbbate, o Rosso e seus discípulos não foram mais reservados e castos em França do que no seu paiz, onde o pincel e o cinzel pareciam os cúmpli- ces dedicados de todos os extravios dos sentidos.

Os maiores artistas da Renascença submctteram-se ao gosto prevertido dos seus contemporâneos, e houve entre elles uma deplorável emulação de gé- nio impudico.

Os priapos gregos e romanos multiplicaram-se por toda a parte e sob to- das as formas com tanta audácia, como se a França fosse pagã, como .se as mulheres houvessem perdido completamente o costume de se ruborisarem.

Os castellos e os palácios dos reis, as casas de recreio dos príncipes e princezas, os palácios dos senhores da corte e as casas dos particulares enchc- ram-se de (juadros e de frescos indecentes.

«Para dar uma succinta ideia de algumas d'estas pinturas, diz Sauval, que ainda as poude ver, aqui deuses completamente mis dançam ou fazem cou- sas peores com mulheres ou deusas nuas também. Alli outras mulheres oITc- recem aos olhos dos seus adoradores o que a natureza teve tanto cuidado em occullar; outros embrulecem-se em sensualidades bestiaes com águias, cys-

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ni's, avestruzes, touros, ele. !S'oufros logares vèem-se Ganvmedes, Safilios e oulras (|ue tacs. Deuses e liomcns, mulheres e deusas revolvein-se, ullrajanilo a natureza, no lodo dos vicios mais monstruosos. Depois d'isto, quem se admi- niirará ainda dos incestos e aboniinaç^ões que assignalaram tão ti-isteinente os reinados de (larlos ix e Henrique iii?»

Sauval aeerescenia ([iie em Konlainebleau as salas, as camarás e as ga- lei'ias estavam cheias d'estas pinluras eróticas, e (|uc a rainlia Anna de .4us- tria mandou (|ueiniar d"eslas ohscetiidades um valor superior a cinco mil escu- dos, quando foi rej^enlc em Kiíl].

Os mesmos assumptos estavam tamhcm repi^esenlados cm bai\(is-i-elevos nos aposentos, em todos os corredores e nos jardins das casas reaes. Figura- vam além d'isso nas tapeçarias e em todas as molduras da mobília. Brantòme, nas suas Dames (jaldule.s, consagra muitas paginas á narrativa dos discitrsos, sonhos, fieslos e palacrns das damas da còrlc, ás quaes se dava vinho a beber por uma ta(,-a de prata dourada, esculjiida com figuras obscenas.

Ksta famosa ta^a, que teve uma verdadeira celebridade ira(|uclla cpocha, pcili mia a um príncipe, que gostava immensode dar de beber por cila, á meza, aos seus convidados. Kra uma obra de arte, uma iirande spfcinuti', diz Bran- tòme, «cxcellcntemente lavrada, onde se viam abertas a buril muitas figuras de Aretino, homens e mulheres, isto na base. Ao alto da tai,'a havia ainda mui- t.is oulras allegorias de diversas maneiras de cohabitação com os animacs.»

(Is ililos das damas que por cila bebiam, que vem ref-ridos em Bran- lonic, 1 curiosos para conhecermos a falia absoluta de pudor, e o desvcrgo- nhanicnlo (l'aquellas damas.

i^Umas diziam, (juanilo se lhes perguntava o que tinham visto, e porque se riam, que não tinham visto senão pinturas, e (pie por isso não dei\ariam de beber ainda outras vezes.

«Diziam outras: (hianto a mim, não |)enso em maldade nenhuma. O que os olhos vccm não pode manchar a alma.

«Havia outras que tinhani esta iqtiniào: o bom vinho tão bom é por aqui como por outra parte.

«O mesmo diziam outras: Tão bem se bebe por esta taça como por outra qualquer. A sèile passa do mesmo modo.

«Se perguntavam a algumas delias, pnn|ue motivo abriam os olhos quando bebiam, respondiam ijue ijueriam vèr o qiu' bebiam, receiando que o liquido não fosse vinho, mas sim algum veneno ou bibcragcm.

«()uti'as a quem perguntavam o que mais lhes agradava, se vèr ou be- ber, rcspoMiliain (|iic ambas as cousas.

MOulras diziam ainda: Ouc bellas imagensi (^)uc bellos espelhos! Que en- graçadas cousas!»

Brantòme pretendeu evidentcmenie imitar n"esla passagem os ditos dos bebedores, ijue constilui in um dos capítulos mais jocosos do Garyantua de Ra- bclais.

Oeslc caso podemos conjediirar que as liguras obscenas do Aretino não eram menos conhecidas em França do que em Itália. K muito provável que as

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laminas d'estas figuras, tão tristemente celebres, fossem levadas secretamente a Paris depois do reinado de Francisco i, e que alii se conservassem até ao sé- culo xvn, em que foram destruídas. Consta que a collecção de dezeseis figuras obscenas que liaviam sido cravadas cm Bolonha pelo famoso Marco António Raymondi, sobre os desenhos de Júlio Ilomano, ia ver a luz, acompanhada de dezeseis sonetos impudicos de Pedro Aretino, sob o titulo De oinnibiis Venerin schemalibus, quando o papa Clemente vii mandou prender o gravador, o qual correu o risco de ser enforcado ou queimado vivo. Pedro de Medicis, porém, salvou-lhe a vida, a instancias de Aretino, que não foi perseguido, c ijue estava residindo em Veneza com toda a tranquillidade e seguranga. O pintor, impli- cado no processo, teve o bom senso de fugir para Manlua, (mrle esperou que o papa lhe perdoasse.

Tirara-se apenas um pequeno numero de gravuras, que foram dispu- tadas pelos grandes senhores de Roma, e até mesmo por muitos cardeaes. As laminas, porém, haviam desapparecido, e a jusliça ponlifical não poude dar com ellas. Foram depois, segundo se julga, levadas para França, e serviram para fazer muitas tiragens succcssivas, que mal chi'garam para satisfazer a cu- riosidade libertina do século xvi, mas que felizmente não deixaram vestígios, porque o deslino (restes abomináveis livros é não sobreviver nunca á pessoa que os possue.

Eis o motivo até porque a existência das gravuras originaes foi por va- rias vezes posla em duvida, mas o testemunho de RrantAme parece confirmar essa existência.

«Conheci, diz ellc, em Paris um bom livreiro veneziano, que lhe chamava messer Bernardo, parente d'aquelle grande Aldo Manuccio de Veneza, que ti- nha o seu estabelecimento na rua de Saint-Jacqucs. Jurou-me ellc um dia que em menos de um anno havia vendido mais de cem livros do Aretino a muitas pes- soas casadas e solteiras e até mesmo a mulheres, das quaes me chegou a no- mear três de elevada posição, cujos nomes não direi. O livreiro vcndeu-os a ellas mesmas, muito bem encadernados, com o juramento de que haviam de guardar segredo.»

E' muito provável que este messer Bernardo possuísse em loSO as ver- dadeiras laminas de Marco António, e que as recebesse na herança de .Manuccio, porque as referidas laminas, que a policia pontifieia não pudera descobrir, por occasião do proces,so do gravador, haviam por certo sido enviadas para Veneza, onde a publicação dos livros e das gravuras mais obscenas não encontrava, a a esse tempo, op|)asição alguma: tal era n"aquella cidade a liberdade, ou me- lhor, a licença dos costumes!

Os filhos do grande Aldo Manuccio imprimiam e publicavam sem repu- gnância os execráveis eseriptos do seu amigo Pedro Arelino. Foram elles, por certo, que fizeram uma edição italiana da collecção De variis Veneris schema- libus. Todos os exemplares, porém, d'esta edição desappareceram ha muito tempo, queimados, no interesse da moral e das famílias, ilepois da morte dos possuidores do perigoso livro.

Quanto aos exemplares da edição franceza, mais numerosos por certo

384 HISTORIA

que os outros, quasi todos desappafee^eram entre as mãos das pessoas que os possuiam. A severidade dos regulamentos das livrarias em França, durante o século xviii, impediu sem duvida que se fizesse uma nova tiragem das gravur ras originacs, (jue (içaram sepultadas nas estantes de algum antigo arma/.em de estampas, porque, se a venda de ohras obscenas costumava verilicar-se furti- vamente n'aquella époclia, as Figuras do Aretino eram muito reconimendadas á vigilância dos magistrados para que qualquer livreiro ousasse ter á venda exemplares d'ellas.

>'o emtanto, um anonymo accrescentou, segundo parece, quatro gravu- ras ás dezeseis, que Marco António havia gravado sobre desenhos de Júlio Ro- mano. Pôde suppòr-se que estas (juatro novas gravuras foram feitas também segundo desenhos do mesmo pintor, pois n'uma carta de 29 de novembro de 1527 Pedro Aretino envia ao siijHor Osare Fregoso // libro dei sonctli e ddle figure lussuriose .

Ha também mais de dezeseis sonetos, o que a suppòr mais de deze- seis figuras. O numero primitivo de ambas as cousas era dezeseis, mas este numero augmentou successivamente, e sempre, segundo julgamos, sob a inspi- ração do Aretino, que tinha a impudica vaidade de querer exceder a libertina- gem antiga, por isso (|ue o livro ilr Elepluinlis so continha nove íigurus, como nos diz Marcial: Suni illic Veneria noceni jiguriv. (Epigr, i:5, lib. 12.) Are- tino não se prendeu com bagatellas, e o numero de liguras chegou a trinta e cinco. Elle próprio o declara no seu famoso dialogo da Prosliniía errante, onde tracta di diverse congiuntjimente.

Depois do Aictino, houve (juem completasse a sua obra com a addicçào de uma trigessima sexta e ullinia figura, e a collecção assim augmentada era vulgarmente conhecida debaixo do titulo de Trinta e seis maneiras do Arelinn.

É para extranlnr que esta ccdlecção, apesar de não ser rara no tempo de Brantóme, visto que um livreiro de Paris vendeu mais de cem exemplares num anno, desapparccesse completamente. A nosso vèr, a causa da desappa- rição total dos exeuiplaies que no século xvi circulavam em França e na Itália é a seguinte: Quando um iiornem estava em perigo de vida, o sacerdote que lhe assistia aos uliimos momentos, em virtude dos seus p(jderes ecciesiaslicos exigia ao moribundo que lhe entregasse toilos os livros Ímpios, heréticos ou obscenos que tivesse. Estes livros eram queimados no mesmo acto, ou o sacer- dote os levava para os destruir.

Comprehende-se que, mesmo no caso do sacerdote os ter conservado, não deviam sobreviver-lhe. Esta guerra feita aos livros prohibidos foi determi- nada pelo clero calholico desde a origem da reforma, (jue atacava sobre tudo por meio de livros a n)issa e o papa, e foi como que um mol d'ordre em todo o catholicismo, passado com o máximo sigillo, e religiosamente ob.servado até nossos dias pelos confessores in extremis. D'aqui resultou que os escriptos heterodoxos de ("alvino, entre outros, a sua instituição da religião christã, vie- ram a ser tão raros como as escandalosas figuras do Aretino.

Brantóme faz uma dissertação theologica sobre o assumpto destas figu- ras, que elle conhecia perfeitamente, e prova que o franciscano bretão João

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Benedicti, que escrevia por aquelle tempo o seu livro dogmático e contessionai, as conhecia igualmente. E' sabido que este livro traduzido e impresso em fran- cez, em Lyon, no anno de loOl, sob o titulo de Summa e remédio dos pec- cados, não c menos sórdido que a celebre coUecção, a que parece passar revista no capitulo da luxuria.

No dizer de Brantòme, o franciscano Benedicti «escreveu muito bem so- bre todos os peccados, demonstrando que muito havia lido e visto». O abbade não se mostra mais escandalisado com esta Summa libidinosa, do que com a collecção do Aretino.

«Todas estas maneiras e posições, diz elle, são odiosas a Deus, por isso que S. Jeronymo diz : Ouem se mostra desordenadamente amante de sua mulher, c mais adultero do (|ue marido, e pecca. E, visto que alguns doutores da Egreja teem faltado a este respeito, direi em latim o que cUes consideram excesso no matrimonio: Excessus conjiij/iim fit, ijwindo u.ror cogtiosciUír ante retro, slando a lalere el mulier super virum.»

O tractado de Benedicti, na épocha em que appareceu, tinha por fim elu- cidar os jovens confessores sobre certos peccados que eram novos no antigo tractado dos casos de consciência, e que se accusavam quotidianamente no con- fessionário.

A auctoridade civil fechava os olhos a respeito das obscenidades plásticas, que podiam executar-se impunemente, pòr-se á venda, adquirir-se e exhibir-se á vista de todos. Não nos consta que se castigasse em França no século xvi nenhum pintor ou gravador de assumptos eróticos, ao passo que Sixto v man- dava enforcar, segundo diz Brantòme, o secretario do cardeal de Este, cha- mado ("apella, que havia representado ao vivo e pintado ao natural os amores de um grande fidalgo com uma bella dama romana.

Os pintores obscenos corriam menos risco em França. Brantòme cita um d'clles, sem nomear, que fez muito mais do que Capella, no tempo de Henrique iii: «Um fidalgo em quem me fallaram e que eu conheci, ofíereceu um dia á sua amante um livro de pinturas em que havia trinta e duas damas das mais elevadas da corte, pintadas ao natural, deitadas e divertindo-se com os seus amantes, pintados do mesmo modo. Havia algumas que se divertiam com dois ou Ires amantes, c outras mais ainda. Estas trinta c duas dainas representavam uma multidão de figuras das do Aretino, todas diversas. Os personagens esta- vam tão bcllamentc representados, que lhes faltava fallar. Mulheres nuas, ou- tras com a mesma roupa, que ordinariamente usavam, e os homens do mesmo modo. O livro era tão bem pintado, e feito com tanta perfeição, que não havia nada a dizer, e havia custado oitocentos a novecentos escudos.»

Brantòme arllirmaque os obscenos desenhos d'este livro produziam efleitos perigosíssimos nas mulheres que achavam prazer em vèl-os. De uma, conia elle que foi tal o ardor do desejo que se apoderou dos seus sentidos, que ao vera quarta folha cahiu por terra sem conhecimento. Oueremos crer que foi a ver- gonha c não outra causa qualquer que produziu este desmaio!

N'outro logar das liames galantes falia ainda Brantòme d'estas pinturas lúbricas, (jue começaram a entrar em voga no reinado de Francisco i.

HiSTOntA D.\ 1'R0STITU1CÃ0. TOMO II— FOLHA 49.

386 HISTORIA

«Taes pinturas c quadros, diz o abbadc com maior lino e decência do fjue habitualmente manifesta, prejudicam um espirito frágil mais do que se pensa.»

O conde de r.hateauvillain tinha na sua galeria entre muitos outros qua- dros bellissimos «uma d'estas pinturas libidinosas, onde estavam representa- das muitas e bellas damas nuas, n'um banho, em posições indecentíssimas, ca- pazes de fazerem morrer de desejos o mais austero e frio eremita.» Uma dama da corte, que foi vèr esta curiosa galeria, disse ao seu amante :

Vamo-nos embora d'aqui, e para casa sem perda de tempo. Não posso resistir ao ardor que me devora, e quero extinguil-o immediatamente.

Os maridos eram os principaes culpados da prostituição de suas mulhe- res, por isso que de tudo lançavam mão para as corromper.

«Alguns fazem mais indecencias com suas mulheres, que os frequenta- dores de bordeis com as prostitutas.»

Não se envergonhavam ctlectivamenfe de introduzir em suas casas taes estampas e livros obscenos, que faziam da esposa mais pura a corlezã mais impudica e descarada, olíerecendo ao adultério os mais enérgicos incentivos.

«Hoje, dizia Brantòme nos últimos tempos de Henrique iii, não ha ne- cessidade d'esses livros e pinturas. Demasiado ensinam os maridos as immo- ralidades, e se para que servem essas licções que elles dão

Havia maridos que eram os próprios a dar a suas mulheres o livro do Aretino com illustrações, em guisa de livro de missa. Brantòme cita uma bella e honrada dama que o tinha no seu quarto. Um fidalgo que estava namorado d'ella, logo que soube esta circumstancia, jurou que havia de conseguir os seus desejos, e «conseguiu-os, conhecendo que a dama havia aprendido boas lic- ções e praticas amorosas.»

Um fidalgo da corte namorou-se um dia de uma das raras damas d'esse tempo, que faziam gala de se mostrar austeras, no meio d'aquella enorme cor- rupção.

A dama resistia a todas as supplicas, e mostrava pelo seu adorador o mais soberano desdém.

O apaixonado sentia redobrar a intensidade do seu amor, ou do seu ca- pricho, com a frieza que lhe manifestavam, e resolveu recorrer a todos os ex- tremos.

Chegou a comprar toda a criadagem, e a introduzir-se de noite no quarto da dama, que ao dar pelo estratagema, repelliu energicamente o atrevido, obri- gando-o a ir para a rua sem conseguir os seus intentos.

Cada vez mais acirrado pela resistência que a fortaleza lhe ofíerecia, o nosso fidalgo resolveu recorrer a novos maleriacs de guerra.

O livro do Aretino tinha fama de ser um talisman infallivel.

Quantos milagres d'esta espécie não havia conseguido a musa obscena do ousado c impudico poeta italiano! (Jue fastos nos annaes da corrupção não tinha a registrar n'essa épocha o lápis erótico de Júlio Romano?

O fidalgo conseguiu que o livro obsceno fosse collocado por mão amiga no quarto da sua dcu.sa.

DA PROSTITUIÇÃO 387

O resultado não se fez esperar. Siirpreliendida novamente pelo seu ado- rador, uma noite em que se entregava, toda tremula de desejo, á leitura exci- tante do Aretino, a dama achou-se nos braços do audacioso amante, sem que d'esta vez o seu rude pudor lograsse cantar victoria.

O livro d'onde extraliimos esta verídica historia refere centenares d'ellas do mesmo género.

Os manes do Aretino deviam estremecer de horror, se podessem apreciar os funestos resultados da sua obra impudica !

(Jue mais poderia accrescentar-se para dar a conhecer a espantosa liber- tinagem de uma épocha, em que até o próprio leito conjugal não se envolvia no veu do pudor ?

Não obstante esta immoralidade atroz e deplorável, houve mesmo n'a- quella épocha homens escrupulosos, pertencentes, devemos dizel-o, ás classes medias, que mutilavam nos livros as passagens obscenas, arrancavam as gra- vuras, ou cobriam de tinta as figuras nuas. D'aqui a grande porção de volumes incompletos ou mutilados, provas irrefragaveis da castidade e da virtuosa cen- sura, exercida pelos seus antigos leitores ou proprietários.

CAPITULO XXXIII

SUMMARIO

A prostituição applicaila á politica por (latliarina de Medíeis.— Retratos das damas de honor por BrantOme. A bella Limeuil.— Depravação das damas e das suas criadas de ([uarto.— Digressão acerca dos cintos de casti- dade.— Pua oriyem. Sua ap[iai'içâo na feira de Saint-Geimain. Corrupí^ão da curte favorecida poi- Catharina de Medicis. - Carlos ix e Maria Toiícliet. Os inventos da rainha Margot. A casa da Saint-Barthéjémy. O grande cardeal de Lorena e a raiuha-mãe. U baar[uete de Chenonceanx. As bodas do ourives Marcello. A linguagem lúbrica.— As poesias do capitão Lasphrise.

REINADO de Catharina de Medicis, quer dizer dos seus Ires li- llios Francisco ii, Carlos ix e Henrique iii, que foram sucees- sivamente reis sob a sua tutelia e regência, um longo e es- candaloso reinado, cheio de guerras civis, de pertuibações reli- ^^]\ giosas e de horriveis morticinios, o(Terece-nos uma nova phase na historia da prostituição. Catharina de Medicis lembrou-se de applicar a pros- tituição á politica, transformando-a em arma para vencer os seus inimigos, em narcótico para os adormecer, em grilhão dourado para os algemar, e em ve- neno para os destruir. Nunca talvez a immoralidade recorresse a simiiliantes refinamentos; nunca a arte de governar empregara meios tão vergonhosos. O próprio Machiavello envergonhar-se-hia de transformar em systema permanente o que não havia sido até essa épocha senão um caso especial da politica.

As mulheres exerciam, é certo, em determinadas circumstancias uma notável influencia nos negócios públicos; em todas as épochas o seu encanto e seducção haviam feito numerosas viclimas; comtudo eslava reservado a (Catharina de Medicis exercer pela primeira vez, pelo menos em França, uma espécie de lenocínio politico, tendo a seu lado damas de honor amestradas, que deviam ser, quando chegasse a occasião, os impuros instrumentos dos seus planos po- líticos.

4 corrupção geral da corte n'aquella épocha é um facto que não carece de demonstração. Esta corrupção para a qual Catharina não havia pessoalmente concorrido não foi, como diz Bayle (Õeiifre.s, t. ii, p. 17), um eITeito da poli- tica desta rainha, por isso que seu marido Henrique ii nada lhe deixou por fazer n'estc assumpto; o que ella fez foi aproveitar-se d'ella em proveito do seu machiavellico governo.

«Antes d'esle reinado, diz Mezeray, no seu Compendio chronologico da

390 HISTORIA

Historia ãt França, eram os homens que com o seu exemplo e com as suas seducções attraliiam as mulheres á galanteria. Desde, porém, que os amores sensuaes começaram a tomar parte nas intrigas e mysterios do estado, eram as mulheres que procuravam os homens.»

Foi esta a estratégia galante que Catharina de Medicis ensinou muito ha- bilmente ás damas da corte, que formavam um bando, chamado n'esse tempo o esquadrão volante da rainha.

Catharina, em vida de seu marido, havia-se instruído n'csta táctica de novo género, quando, não tendo ainda filhos e receiando ser repudiada, «teve de ganhar a amizade e as boas graças da bella Diana de Poitiers, a íim de que ella a conservasse nas graças de seu senhor, o delphim seu e.sposo, e não se envergonhou de se transformar em alcoviteira para lograr os seus desejos.» (Discurso inararilhosQ da rida. feitos e loucuras de Catharina de Médicis, por H. Estienne.)

Faltam-nos dados precisos a respeito do famoso esquadrão volante da rai- nha, que conhecemos por algumas das suas proezas. Todos os historiadores, porém, são unanimes em affirmarem a sua existência ou a sua organisação eró- tica, e Brantòme, muito mais discreto do que o seu costume, a respeito d'este delicado assumpto, diz o bastante para nos fazer apreciar todos os serviços que as damas de honor da rainha mãe podiam prestar á sua politica.

«Um famoso prelado da nossa corte assegura-nos, diz Sauval, que Catha- rina de Medicis tinha um serralho de damas coquettes, que trazia sempre com- sigo como instrumentos para arrancar dos corações dos príncipes e dos senho- res do reino os seus mais secretos pensamentos. Estas damas souberam tão bem corromper os chefes dos partidos em I'37'J e sobre tudo Heni'ique iv, que uma das guerras civis d'essa épocha se chamou a guerra dos namorados.»

O tal famoso prelado citado por Sauval é Brantòme, que por certo havia historiado as proezas do esquadrão volante em memorias que não possuímos já. As que chegaram ao nosso conhecimento contèem por certo muitas anecdo- tas relativas ás damas inscriptas por Catharina n'esta milicia amorosa, mas Brantòme exime-se a declarar o nome das heroinas por elle apresentadas nas suas Dames çialantes.

«Fallo d'algumas, diz elle, e espero apresentar contos alegres n'este li- vro, mas modestamente, sem escândalo, apresentando tudo envolvido no véu do silencio dos nomes, e assim, se algumas se virem nomeadas n'estes contos, não lerão de que envergonhar-se, pelo contrario. Se o prazer amoroso não pôde durar sempre, por muitos incommodos, impedimentos e mudanças, pelo menos a recordação do passado trará ainda alguns momentos de alegria.»

Apesar d'islo, Brantòme não omittiu nas suas Dames //a/a/í7ís a lista das damas de honor que davam tanio lustre á corte da rainba-mãe. Em seguida, dirige-lhes elogios capazes de envergonhar as que houvessem ainda conservado um rosto de pudor.

«Toda esta esplendida companhia que acabo de nomear, diz elle, tinha uma invejável belleza, magestade, gentileza e graças. Ditoso aquelle que podia .ser ferido pelo seu amor: mais diloso ainda o que podia escapar ao seu dominio.

Catliarina de Medicis (/-/'íojí refralo (bt epocha)

Dianna de Poitier (rctrato^ que esteve na exposição universal de Paris)

(ignora-se o auctor)

DA PROSTITUIÇÃn 391

Juro-vos que nenhuma das que nomeei era feia. Todas ellas eram bellas, agra- dáveis e dislinclas, capazes de ineendiarem com os olhares o mundo inteiro. Assim, emquanti estiveram na edade juvenil ahrazaram os corações de muitos dos nossos fidalgos da còrle, que se approximaram do fogo do seu olhar.»

Brantòme teve o cuidado de explicar em que consislia a corlezia o a amabilidade d'estas damas :

«Na minha opinião, diz elle, o melhor tempo que cilas passam é o de solteiras, porque podem ser á sua vontade religiosas de Vénus e de Diana, tendo sempre toda a prudência c habilidade para evitarem as inchações do ventre.»

Era isto o que a rainha especialmente lhes evigia, e sem duvida aquella prudente e experimentada italiana havia-lhes ensinado remédios para evitarem estes precalços do ofQcio. Qnando tal desgraça succedia, era implacável para com as suas alumnas. Foi por isso que expulsou da corte Mademoiselle de Li- meuil, a mais bella das suas damas de honor, «apesar de não haver omittido cousa alguma para servir a sua ama com boa vontade e zelo», diz Mezeray. Esta pobre rapariga, depois de haver seduzido o príncipe de Conde, chefe do partido protestante, «teve a infelicidade de se achar indisposta nove mezes», accrescenta o grave Mezeray, c por isso foi logo demitlida do serviço da rai- nha mãe.

A respeito d'esta aventura, fez-,se uma composição latina, que começa assim :

Puella ista iiobilis,

Quw eral amahilis.

Com in isit adullerium

Et nuper fecil filhem;

Sed diciint matrem reginam

Illi fuisiie Lucinam,

Et quo hoc patiebatur

Ut principein lucraretur.

Mulli dicunt quod pater

Non est princeps, sed esl alter . . .

O Discurso maravilhoso da vida de Calharina refere (|uc «estando o príncipe de Conde preso na corte de França no anno de 1561, Mademoiselle de Limcuil foi uma das damas de honor enviada pela rainha ao príncipe para o seduzir, por isso que a ambição julga tudo louvável, quando trata de conse- guir os seus fins.»

Por isso quando a rainha quiz censurar á Limeuil a sua desgraça, esta teve a audácia de responder «que havia seguido as suas prescripções e obe- decido á lettra ás suas ordens.»

.Mademoiselle de Rouet, companheira e amiga da Limeuil, desempenhou melhoroseupapel, quando a rainha lhe deu o encargo de se apoderar do rei de Navarra, e arrastal-o aos prazeres da corte, segundo declara Henrique Estienne. Era uma espécie de pesca á rede, dirigida por Catbarina de Medíeis nos mares da politica, como diz d'Aubigné, na Confissão de Sancy :

392 HISTORIA

«Oiiaiido as aguas não estavam turvas, pescava-sc com a máxima tran- quillidade, economisando-se a coca levantina, ministrada pelas droguislas ita- lianos. Assim foram pescados os mais incommodos, taes como os marechaes Montmorencv e Case. Depois passou-se aos mais gordos, cahindo António de Bourbon, rei de Navarra no anzol da Rouet, e Luiz de Bourbon no da Limeuil, mas este ultimo logrou salvar-se a tempo. Alguns peixes perdem-se na esteira dos delphins, taes como são os barbos, os sargos e outros peixes miúdos.»

E' fácil de calcular que no meio d'esta companhia de damas de honor, que viviam juntas na corte em numero de duzentas ou trezentas, a deprava- ção dos costumes não tardou em produzir os mais escandalosos excessos, que não eram um segredo para ninguém, e Brantôme os aponta nas suas Dames galantes.

Sauval procura referir o mais decentemente possível as torpezas que o histuriographo Brantôme se compraz em descrever minuciosamente com o seu cynismo habitual :

«Assim comu os homens havia achado meio de passar sem mulheres, diz elle, assim também as mulheres tractaram de passar sem homens. l'ma grande |)rinceza amava apaixonadamente uma das suas damas, que era herma- phrodita. Paris e a corte estavam cheias de mulheres lesbias, tanto mais que- ridas de seus maridos, quanto era certo que elles não tinham motivos de ciú- me. Umas tinham raparigas adestradas, outras acirravam os desejos com os seus adoradores sem nada lhes concederem, para d'ahi a pouco se embrutece- rem com as suas eompinheiras. Esta belia vida era tanto do gosto de algumas que não quizeram cazar, nem permittiram que as suas amigas cazassem.» (Amours des róis ih France, edic. de 1739, p. I 1-5.)

Brantôme diz que as doninhas eram entre os antigos o symbolo dos amores femininos, amores que se faziam por dois processos fricatrix, egemi- nos committere cunnos. Esta segunda maneira não causa damno, segundo al- guns, quando para isso se empregam instrumentos apropriados chamados go- (lemicbijs, palavra que se forma de duas latinas: gaude mihi.

Depois de alardear a sua erudição clássica a respeito de um assuni|)to que não era então m^nos commum do que na antiguidade grega e romma, Brantôme pergunta «se duas dam;is namoradas uma da outra, como é tão fre- quente hoje em dia, deitadas na mesma cama e fazendo o que os italianos chamam donna com, donna, á imitação da illustre Saplio, peidem commetler adultério e enfeitar a fronte de seus maridos.»

O abbade opina que não :

«O caso c intrincado, diz elle, mxs eu sustento que onde não ha homem não pikle haver adultério.»

«Desculpa dão alguns a estas mulheres, continua elle, que sendo s(dtei- ras ou viuvas, procuram similhantes prazeres frívolos e vãos, preferindo dar-se a elles para extinguirem as suas paixões, a entregarem-se aos homens, e e\porcm-se á prenhez c á deshonra, se não destroem o fructo como teem feito c fazem muitas. Atfirma-se que estas lesbias não ollendeni tanto a Deus nem são tão pécoras, como os homens.»

DA PROSTITUIÇÃO " 393

Brantômc, n'este espiriliioso capitulo, (|iio toria podido desenvolver milito mais, não cita o nome de nenluiina das damas que se davam a estes infames exercícios, mas a entender que as damas de honor da rainha n<ão se corrompiam mutuamente. Ilehitivamcntc ao senhor de Clermont-Tallard, diz que este fidalgo, que ao tempo fazia os seus estudos em companhia do duque de Anjou, ao depois Henrique iii, viu um dia pela fechadura da porta duas damas de elevada jerarchia, entregues a esse obsceno passsatempo.

E o abbade, depois de ter dado os pormenores d'esta scena escandalosa, accrescenta :

«Conheci muitas senhoras inclinadas a estes amores, entre as quaes ouvi lallar de uma, que era famosa n'esta especialidade, e que amava varias da- mas, as honrava e servia mais do que os homens, c lhes fazia amor, evacta- mente como um homem á sua amada. Se as lomava por sua conta, dava-lhes tudo quanto ellas exigiam. Seu marido eslava muilo satisfeito, assim como outros maridos que folgavam sempre, que suas mulheres se davam a estes exercícios e não aos dos homens, julgando que d'este modo não eram tão doidas nem Ião pécoras. Eu creio que se enganam muito estes senhores, porque esse pequeno exercido das damas é apenas uma espécie de tirocínio, que as prepara para o grande exercício dos homens.»

E' para extranhar que no meio (raquelles impudicos extravios, que ex- cediam todos os limites da moral e da religião, os maridos se preoccupassem ainda com a honra conjugal. E' todavia certo que aquelles maridos, que haviam passado uma juventude dissoluta, conspirando a cada passo contra a virtude das mulheres, fossem em geral intransigentes, quando se Iractava do seu lar domestico, e timbrassem cm defender de portas a dentro o que tantas vezes haviam atacado nos lares dos outros. I)'aqui esses terríveis ciúmes e essas fe- rozes represálias que apenas serviam para agu(,'ar a audácia e a astúcia das mulheres.

Brantòme, no primeiro discurso das suas Daines ijalante-s, intitulado Do amor de muitas damas casadas, que não são Ião dignas de censura como pa- rece, pretendeu escrever os annaes dos maridos burlados, dos coitadinhos ce- lebres do século XVI, e temos de reconhecer que, apesar da depravação universal, o pundunor do matrimonio era mais sagrado do (jue em épochas menos dissolutas.

Os maridos eram ciosos da honra conjugal na proporção dos motivos que tinham para o ser, e não tinham compaixão para com as suas pérfidas esposas. E' isto o que explica a introducção dos cintos de castidade em França no rei- nado de Henrique iii, de certo por conselho de alguns italianos da corte, que sabiam d'este meio empregado no seu paiz para ter debaivo de chave, como se fosse um thesouro, a virtude das mulheres.

Nada mais escandaloso do que o emprego d'esta medida de segurança, adoptada em Veneza liavia muitos séculos, e que alli fora importada do Oriente. E' provável que as cruzadas importassem também em França este uso odioso, que não podia conciliar-se com o respeito que nossos maiores tinham pelas damas. Os cintos de castidade datavam da mais remota antiguidade e pcrpetua-

HlSTOBIA DA PhOSTITUICÃO. TOMO II— FoLHA 50.

394 itisToiíiA

ram-se naturalmente ontrc os pov.is cuja religião preceituava a escravidão ria mulher.

Mas unia nação tcão nobre como a franceza, diz o conde de Laborde, re- pelliu com desprezo este vergonhoso instrumento da tyrannia e da escravidão. Pio emtanto, parece que o cinto de castidade se conservou por excepção nos costumes da cavallaria mais retinada. Se o marido o não punha a sua mulher, a mãe a sua filha, ou o irmão a sua irmã, a amante adoptava-o espontanea- mente como um symbolo de tidelidade, e olferccia a chave d'elle ao seu namo- rado. Era uma d'ai|uellas provas mais delicadas dadas entre dois amantes para afTirmarem a constância c a (irmeza do seu amor.

D'csle modo o cinto de castidade, em vez de um ultraje ou de uma ver- gonlia, veio a ser uma delicada prova de amor e abnegação. Tal é, a nosso vèr, a explicação mais natural que pôde dar-se de muitas passagens das poe- sias e cartas de Guilherme de Machaut, relativas ao thesouro cuja chave lhe havia remettido a sua amada Ignez de Navarra.

O conde de Lab.irdc, citando essas curiosas passagens, não é de opinião que esse thesouro signifique um cinto de castidade. Não obstante, vamos vèr de que termos se serve aquelle poeta do século xv, para dizer que linha ern seu poder a chave do thesouro de Ignez :

«Então a bclla abraçou-me, e n'essa occasião coUocou-me ao pescoço uma chavesinha de ouro, feita por mão de mestre, e disse : Amigo, trarás sempre comtigo esta chave, e guardal-a-has bem, porque é a chave do meu thesouro. Faço-te senhor d'e!lc, e sel-o-bas sempre, aconteça o que acontecer. Esse the- souro amo-o mais do que as meninas dos meus olhos, porque é a minha feli- cidade, a miniia riqueza, tudo aquillo de que eu posso dispor.»

Ignez de Navarra, escrevendo a (íuilhernie de Machaut, faz-lhe recoin- mendações, que não tèem sentido, se o thesouro confiado á sua guarda não é o que nós suppoinos.

«Não percas, meu amigo, a chave do cofre, porque se a perdesses, nunca eu teria alegria. Esse cofre, por Deus o juro, nunca será aberto com outra chave, senão com a que tens em teu poder, e ahril-o-lias quando quizeres, pois não tenho no mundo outro desejo senão esse.»

Esta passagem e outras similbantes, igualmente explicitas, não impedem o conde de Laborde de negar a aulbenticidadc dos cintos de castidade, que se encontram em certos gabinetes de curiosos.

«N'estas espécies de particularidades, diz por uma distracção demasiado evidente para que a lancemos á conta de falta de erudicção, se é forte, quando se lem a penna de Branlòme.»

«No tempo de Henrique iii, refere liraiitòme, houve certo negociante de quinquilherias que apresentou uma dúzia de cintos ou cadeados de ferro, des- tinailos defender a castidade das mulheres. Eram muito bem feitos, e prepa- rados com tal artificio, que uma vez cingida com um d'elles, a mulher não podia cntregar-se ao doce prazer da copula, jjorque não linha senão um pequeno ori- fício por onde sabiam as urinas.»

A descripção d'esles cintos é Ião exacta, que bem se (]ue o auclor

DA PROSTITUIÇÃO 39o

conhecia o original, e além d'isso Brantòiiie não se mostra admirailo, ilanclo a entender que isto não era novidade para eile.

Accrpscenía ainda que ninil; s fidalgos da côrfc ameaçaram de morte o re- ferido quinquilheiro, se continuasse a fabricar e a pòr á venda aquelles cadea- dos, e obiigaram-no a destruir lodos os que ainda linha. Tanto elles conside- ravam prejudiciaes aos seus amores aquelles artiíicios!

('ontava-se por essa épocha uma aneedota curiosa. Uma mullier prosti- tuiu-se a um serralheiro para obter uma segunda chave para o cinto, que seu marido julgava que mais ninguém podesse abrir, mas esla aneedota é prova- velmente um d'aquelles conlos ji>eosos, que a apparii;ão dos cintos de castidade fez correr por toda a corte.

Ainda assim, (>mb!>ra o quinquilheiro da feira de Saint-Germain fizesse o sacriflcio de alguns d Csles cintos, o modello não se perdeu, e continuaram a fabricar-se secretamente para uso de certos maridos ciumentos, que não se envergonhavam de proceder para com suas mulheres como os mercadores de escravos na Turquia.

O ridículo, porém, não tardou a declarar guerra a esta invenção desho- ncsta, e um pequeno numero de ciumentos ousaram recorrer aos cintos de castidade, que a lei franceza considerava como uma sevicia ou mau tractamento do marido a sua mulher.

Apesar de tudo, encontram-.se ainda exemplos d'esta extravagante e in- decorosa precaução até melados do século xviii, por isso que o advogado Frey- dier defendeu no parlamento uma mullier casada, que accusava seu marido de a haver siibmetlido a este imligno tratamento. ( Plnidoijer contre l.'inlroiluclit)n lies cadena-i, od cplntures de chasleté. Montpeilier I7o0, in-8.°, com uma fi- gura representando o cinto.)

Era preciso realmente que os costumes italianos estivessem muito arrei- gados em França para que se ousasse pòr publicamente á venda similliantes objectos, e para que houvesse também quem os comprasse e os applicasse ao uso para que tinham sido inventados. N'um dos capítulos seguintes, veremos de que modo a influencia italiana tinha prevcrtido os costumes dos homens na eòrte dos Valois, mas, por honra da França, diremos também que taes torpezas não sahiram por assim dizer dos limites da corte, e foram geralmente repelli- das e condemnadas pela galanteria írancezn.

a corte era n'aquella épocha o theatro e o receptáculo de todos os ví- cios. (>alharina de Slcdicis julgara que esta corrupção desenfreada servia os interesses da sua poliliea, eITeminando os caracteres mais fortes e corrompendo os mais nobres corações. No emianio, a rainha deu assim aos inimigos do go- verno e do catholicismo uma força immensa e uma arma terrível, porque a reforma desfraldando o estandarte da revolução contra a monarchia e o papado, poude dizer ao povo com razão que o fim traquelia guerra santa era destruii' Sodoma e Gomorrha.

O povo aprendeu deste modo a desprezar e a odiar os grandes, prestou a todos os rumores verdadeiros ou Talsos, que sabiam da corte, deixou de ser indiíierente á vida privada dos piincipes e cortezãos, julgou ter o direito

396 HISTORIA

de a accusar perante os tribunaes e pronunciou a sentença de Henrique iii, quando a Liga o fez tomar as armas, sob o pretexto de defender os costumes e a religião dos seus maiores.

Pôde, |)oitaiiio, dizer-se que se Cattiarina de Medicis recorreu á prosti- tuirão para governar, a pi'osti(uiç,'ão, deshonrando o rei e a còrle, produziu a gran<]e sublevarão popular da Liga.

Não devemos acreditar, ainda assim, Iodas as abominações que os escri- ptores reformados imputaram à sua implacável inimiga Catbarina de Medicis. Assim, temos como inverosímil a ideia de que esta rainba tivesse corrompido com intenção politica os costumes de seus c|ualro filbos e Ires fillias ; ainda que ambiciosa, Catbarina era niãc terna e cbcia de sollicitude por seus filbos. Na sua correspondência, vé-se que a sua ideia dominante ei'a a consolidação do poder real tia dynastia dos Valuis. Se reinou sempre cm nome de seus tilbos, foi por se sentir mais capaz do que illcs de dirigir os negócios e de sustentar o tbrono, onde todos elles successivamenle se sentaram. Sentia um pesar pro- fundo por vèr que neiíbum dos seus quatro filhos, que pareciam prometter uma numerosa descendência, p.jdéra continuar a posteridade de Henrique ii. É pouco provável, portanto, que a própria rainba pretendesse esgotar de caso pensado as fontes bereditarias da sua familia.

Disse-se tumbem n'algnns librllus infames que a rainba não esperava pela ad(descencia de seus íilbos para os impellir á mais repugnante prostitui- ção- Segundo estes pampbletarios anonymos, a rainba alterara profundamente com espantosos excessos a saúde dos desgraçados reis Francisco ii, Carlos ix e Henrique iii, os quaes, em consequência de prematuros abusos das suas for- ças pbvsicas não foram capazes de ler um herdeiro.

Carlos ixencarregou-sc de desmentir esla caiumnia, porque teve uma fi- lha legitima, morta em tenra edade, e dois filhos naturaes. O que deve, porém, ter-se por averiguado é que estes três reis não haveriam deixado extinguir a linha dos Valois, se a libcrlinagem os não houvesse privado da faculdade de se reproduzirem.

Quanto á aflirmativa de que a rainba Catbarina tivesse relações inces- tuosas com seu filho Henrique, a quem cflectivamente amava mais do que aos outros, é essa uma das infâmias (|uc a historia não deve ir buscar ao lodo das guerras civis, em que cada partido jírocura desbonrar o outro nas pessoas dos seus chefes. Catbarina foi sem duvida demasiado indulgente a respeito.da mo- ralidade de seus filbos, e esse foi a nosso ver o seu erro mais imperdoável.

Francisco ii, que morreu Ião joven, e que era de constituição extrema- mcnle dcbil «não era tão inclinado ao amor como os seus predecessores, diz Brantòmc, no que commefleu um grande erro, porque teve por esposa a mais bclla mulher do mundo, e a mais amável de todas (Maria Sluart.") Apesar d'isso accrescenta o cbronista, vi-o peccar muitas vezes.»

Carlos IX, que lhe succedeu, pouco se importava com o bello sexo, na sua juventude, preferindo a caça e os exercícios gymnasticos. Apezar d'isso, respondeu a uma grande dama que meltia a ridículo a sua frieza:

Julgaes então que me apraz mais o exercicio da caça do que o vosso. . .

DA PROSTITUIÇÃO 397

Por Deus, que se algum dia me resolvo, atiro-me a Iodas as damas da corte e haveis de caliir commigo umas atraz das outras!...

Branlòme, referindo esta tirada do rei, accrescenta apenas :

«O que el-rei não fez, apezar ifisso, com todas, e com algumas, mais por vaidade do que por laseivia, e ainda assim mui sobriamente, e escolheu para concubina uma donzelía de boa casa, á qual não nomearei. Essa dama era muito bclla, prudente e honesta, e recebeu d'el-rei todas as honras e res- peitos possíveis. »

Esta concubina foi Maria Touchet, filha de um perfumista ou notário d'Or- leans, e el-rci amou-a sempre, mas secretamente, porque a rainha mãe, muito complacente para com amores passageiros, via com desagrado seu filho seria- mente ligado a uma mulher que lhe dava bastardos. Catharina de Medicis tão contraria se mostrou a este concubinato, que Carlos ix ao morrer não teve co- ragem para lhe recommendar Maria Touchet.

E foram estas relayões amorosas a causa da morte do rei, se havemos de dar credito á chronica escandalosa da corte, que popularisou este epitaphio d'el-rci :

Four aimer trop Diane et Cytherée aussi, L'une et 1'autre m'onl mis en ce tombeau ícy.

Brantòme mostra algumas duvidas a respeito dos boatos que correram então.

«Alguns disseram que durante a sua doença fugira para junto da rainha sua esposa, e que tanto se excedera com ella, que abreviara seus dias, o que deu occasião a dizer-se que Vénus o fizera morrer com Diana.»

Apresentamos em itálico as palavras que o primeiro editor de Brantòme houve por bem introduzir no texto original, em substituição das iniciaes que alli havia.

«Brantòme, diz Sauval, que tinha á vista um manuscripto d'aquelle des- bocado historiador, refere o boato profusamente espalhado por esse tempo, de que el-rei durante a sua enfermidade fugira do leito e se fora metter no da rainha Margarida, ainda que confessa não se fallar na corte n'estes amores; mas, no emtanto, a voz mais geral era que este caso se dera com L. R. M. (a rainha Margarida), e d'cste modo devemos restituir a passagem de Bran- tòme, porque em summa el-rei e sua irmã amavam-se mais do que fraternal- mente, o que elles nem mesmo dissimulavam.»

O incesto de Margarida de Valois com seu irmão Carlos ix é um facto averiguado, posto que Brantòme não alluda a elle senão n'esta passagem, em que o nome de Margarida é occulto por iniciaes que podiam ser interpretadas de diversos modos. Não devemos esquecer, porém, que o jovialissimo abbade era o favorito e o secretario de Margarida, e d'aqui as attenções e delicadezas que devia ter para com esta princeza.

O auctor do Divorcio satyrico, escripto sob a inspiração de um rei enco- lerisado, não tinha de guardar as mesmas conveniências; no emtanto evita

398 HISTORIA

fazer recaliir nos reis de França a vergonha qae lança sobre a irmã dos monar- chas, e deixa na obscuridade esles incestos, (lue ainda assim ncão pôde negar: «Depois d'isto, diz elie, accresccniou ás suas conquistas immundas o amor de seus jovens irmãos, um dos quacs, Francisco (duque d'Alençon) continuou toda a sua vida estas relações incestuosas ; c Henrique (Henrique iii) tanto se aborreceu d'ella, que nunca mais a poude amar, vendo que os annos, em vez de apagar-llie os desejos, mais llic augmentavam os ardores.»

Os amores de f.arlos ix com sua irmã, a quem chamava Margot, teriam causado maior escândalo n'uma corte menos corrompida. IN'aquella époclia este facto deplorável apenas deu assumpto a alguns versos e canções.

E' de presumir que o incesto não fosse para estes irmãos mais do que uma distracção passageira, e que cm breve voltaram ás suas paixões favoritas: Carlos á caça e Margot aos galanteios.

Carlos IX conhecia demasiado Margot, para não fazer d'ella a mesma ideia que faz o auclor do Divorcio salijrim :

«Tudo serve àquella sensualidade insaciável, e não a contém nem a edade, nem a grandeza, nem o nascimento, quando tracta de .satisfazer os seus appetitcs. Desde a ed i i^ i- onzi; annos até agora, nunca s'^ recusou a nin- guém.»

Assim se explica o sentido d'estas palavras d'el-rei, que alguém repetiu a propósito do casamento de Henrique de Navarra com esta princeza :

«Não dou a meu primo, el-rei de Navarra, minha irmã Margarida, mas a todos os liuguenotes da França.»

Este casamento occultava uma traição horrível. Os chefes; protestantes, que tinham vindo a Paris para assistirem a elle e assignarem a paz, foram quasi todos envolvidos na mortandade da Saint-Barthélémij. No dia que succedeu áqueila noite sangrenta, Carlos ix dizia rindo aos seus dignatarios:

Tfih ! que c'est um ijenlil c. . . qm celui de ma grosse Maryot! Uma cousa verdadeiramente singular. A rainha mãe, que havia fomen- tado por politica esta escandalosa licença, parece que não se contaminou no lodo da prostituição em que toda a còrle chafurdava. Agripa d'Aubigné e ou- tros escriptores buguenoles dizem, segundo observa Sauval, que «a rainha amava o mais illustre prelado do seu tempo e outros senhores da corte.» Não podemos, porém, admiltir esta supposição como um facto averiguado, porque não encontramos cm lírantòme uma s() palavra que alhida aos galanteios da rainha mãe. Henrique Esticnnc diz apenas no Discurso marnnilhoso que Ca- tharina, desde a mais tenra edade, havia dado signaes evidentes de um génio ambicioso e propenso a satisfazer as suas voluplés. Parece-nos, porém, que esta palavra devo corrigir-se no texto por nolontés, vontades, e que revela tão somente um erro de coinposição.

Quanto ao cardeal de Lorena, que no dizer de Esticnnc tinha síMupre na bocca palavi'as torpíssimas, e que, segundo lírantòme, era «o mais enamorado do reino,» foi cúmplice dos actos [loliticos da rainha mãe. Se teve, porém, a boa fortuna de a tornar infiel á memoria de seu real esposo, guardou sem|»re mui discretamente este segredo de estado.

DA PROSTITUIÇÃO

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Brantòme refere que este opulento prelado, lendo ido á còrie do Piemonte, abraçara duas ou três vezes á- força a duqueza de Saboya (a infanta D. Beatriz de Portugal), que havia recusado eoneeder-ihe o beijo da etiqueta.

Como I dissera-lhe o cardeal, é para mim que vossa alteza guarda es- ses melindres! Eu beijo a rainhi minli.i senhora, que é a mais excelsa rainha do mundo, e não hei de beijar vossa alteza, que não passa de unui simples du- queza ! Deveis saber, senhora, que tenho dormido com damas Ião bellas e tão illustres ou mais que vossa alteza!...

E Brantòme accresccnta discretamente :

Talvez o cardeal dissesse a verdade.

E' licito suppòr que o prelado, que esteve a pontn de descobrir o seu se- gredo, se gloriasse dos favores que a rainha mãe lhe havia concedido.

Seja como for, o que é certo c (|ue a rainha mãe não era muito severa em questões de moralidade ou de pudor, o que podemos avaliar pelo banquete que deu a el-rei em lo77, no jardim do castello de Chenonccaux :

«As mais bellas e honestas damas da corte, diz o diário de L'Estoile, semi-núas c com o cabello Ihiclnante, como desposadas, foram empregadas no serviço.»

O chronista não assistiu infelizmente, e não poude por isso dizer-nos (piaes . foram as consequências do banquete. As festas d'este género, poiém, acabavam ordinariamente com excessos preparados e favorecidos pelas repelidas libações.

l\o casamento do ourives Cláudio Mareei com a (ilha do senhor de Vi-

'courl, as bodas foram celebradas no palácio de Guise, sendo convidada toda a

corte Depois da ceia, el-rei Henrique lu e os seus cortezàos, as princezas e as

damas da còrle mascararam-se para ireni levar o malrimo)tio aos dois esposos, cc-

remonia indecentíssima, que havia sobrevivido ao culto de Priapo e de Vénus.

«As mais prudentes retiraram-se, e fizeram bem, diz Estoile, pois a con- fusão produziu taes excessos e infâmias, que se as tapeçarias e as paredes po- dessem fallar, teriam dito bonitas cousas. {.Journal <l'[Ienri iii, 10 de dezem- bro de lo78.)

A mascara no reinado dos Valois não era menos propicia aos amores do que no tempo de Carlos vi, pois que, segundo a expressão de Brantòme, a mas- cara tudo esconde. No emtanlo, as damas da corte de Carlos ix e de Henrique III despresavam ordinariamente estas precauções e mysterios.

«Quando queriam procurar amantes, diz Brantòme, sabiam escolhel-os bem e fazer-se amar e servir d'elles. E quando conheciam a sua lealdade e perseverança entregavam-se-lhes sem mascara nem disfarces, á luz do dia, deixando-se francamente abraçar e tocar, deleitando-os com os seus discursos levianos, razões lúbricas e palavras lascivas.»

Esta licença da linguagem era então considerada como um elemento in- dispensável dos prazeres sensuaes :

«A palavra, em questões de amor, diz Brantòme, que consagra a este as- sumpto um capitulo das suas Dames galanies, tem grande etficacia, e aonde falta é incompleto o prazer.»

As poesias obscenas que se liam na corte, sem (jiie ninguém se escanda-

400 HISTORIA

lisasse, deixam-nos julgar o que seria a linguagem nas entrevistas dos aman- tes. Assim, Brantòme apresenta como principio,, que «a sós com o amante toda a dama que se preza de saber amar, quer ser livre nas suas palavras e dizer o que lhe apraz, afim de melhor excitar Vénus.» Não é, pois, de extranhar que as grandes damas fossem em particular «cem vezes mais impudicas e lascivas na linguagem e nas maneiras que as mulheres vulgares.»

O provérbio tão vulgarisado n'aquella épocha pulain comine une prin- cesse foi sem duvida motivado por essa espantosa libertinagem de palavras que fazia a admiração de Brantòme, e que accrescentava diariamente tantas pa- lavras, tantas phrases e tantas imagens á linguagem erótica.

«N'outro tempo, diz elle, a nossa lingua não era tão bella nem tão rica como hoje é. Ha muilo, porém, que a italiana, a hespanhola e a grega o são, c nunca vi mulher d'estas nações, que por menos pratica que tenha tido do amor, não saiba exprimir-se admiravelmente.»

De tudo quanto deixamos dito, conclue-se ([ue nenhuma espécie de pros- tituição, nem sequer a da linguagem, faltava áquella corte corrompida, que ri- valisava nos costumes e na linguagem com os mais sórdidos alcouces e bordeis.

Vejam-se a este respeito as Pretnières reuvres jioéliques do capitão La- phrise, Paris, J. rresselin, (1599).

CAPITULO XXXIV

SUMMARIO

O edict'1 de 1500 contra a prostituição.— Abolifão dos bordeis.— Rescisão do inquilinato.— Encerramento das casas de prostituição em Paris.— Processo celebre.— Urig-em das cafas de tolerância.— Decreto do parlamento contra os bordeis de Champ-Gaillard e filiarap d'Albiac.— Horríveis estrap-os da syphilis causados pela prostituição.— O Gros-CaiUou As i uas de la Corne.— O inferno da tia Cardine e outros gracejos a respeito da abolição do Hurleur.— As ribaldas do e:çercito.— P/eço correntj das prostitutas no século xvi.— A cortezã arrependida, por .leaquim t)u- bellay.

i'M FACTO realmente notável que a ordenação de Luiz ix, que aboliu a prostituição legal, e que não ponde execular-se no rei- nado d'aquelle .santo rei, fosse novamente promulgada e posta em vigor no reinado de Carlos ix.

Os pliylo.sophos e os magistrados tinham opinado até então que havia um perigo real em supprimir absolutamente, em principio e de facto, a libertinagem publica, essa lejjra inevitável do corpo social. A auctoridade ci- vil estava, porém, de accordo com a ecclesiastica para impedir que o mal se estendesse além dos limites que a legislação lhe havia traçado.

De repente, porém, em pleno século xvi, no meio de toda aquella pre- versão de costumes, em frente da corte mais corrompida e desaforada, a pros- tituição lega! foi abolida por um edicto do rei, que os successores de Carlos ix não ousaram resuscitar, nem mesmo modificar n'um sentido vigoroso.

Verdade seja que o edicto foi expedido em nome do joven rei em tutela, pelos Estados d'0rleans, que se occuparam da reforma dos costumes com um zelo digno de uma cpocha mais virtuosa.

O artigo Kll da grande ordenação de '!o60, que não foi lida nem registrada no parlamento, senão em 13 de setembro de I06I, era concebido nos seguin- tes termos :

«Prohibimos a todas as pessoas alojar e receber em sua casa por mais de uma noite gente vadia e desconhecida. E ordenamos que a denunciem á jus- tiça sob pena de prisão e multa arbitraria. Prohibimos tanibem todos os bor- deis, jogos de bola e de dados, que queremos sejam castigados extraordinaria- mente sem dissimulação nem connivencia dos juizes, sob pena de privação do emprego.»

Carlos IX tinha apenas dez annos, quando assignou o edicto, que era in- capaz de comprehender, e que talvez mais tarde não houvesse sanccionado. HisTOBiA PRosTirmcIo. Tomo n— Folha 51.

402 HISTORIA

«Não obstante, diz Estevani Perrier, n'»ma das suas cartas (l. ii p. 120) nenhum dos seus predecessores fez fão bons edictos como clle. Para prova ci- taremos o de 1560 nos Estados celebrados na cidade d'Orleans, o do Rossillon, no anno de 15G3, e o ultimo cm Moulins no anno de lo6fi. Todos elles conti- nham uma multidão de artigos em matéria de policia e regulamentos que exce- dem todas as ordenações anteriores. A quem somos devedores d'este benefi- cio? A mcssire Miguel de THòpital, seu sábio chanccller, que sob a auctoridade do joven monarcha, seu amo, fui o principal auxiliar e instigador do primeiro edicto, e o promotor e auctor dos outros dois. E oxalá, accrescenta o douto Pas- quier, que todos elles fossem observados com o mesmo zelo com que foram pro- mulgados!»

Deve, pois, attribuir-se ao grande chanceller Miguel de THòpital toda a honra d'estes edictos, que, como diz Pasquier, cabiram logo em desuso, em- bora deixassem nos códigos de. França testemunho impericivel de uma alta mo- ralidade.

A ordenação probibitiva da prostituição produziu uma surpreza geral, e julgou-se logo como cousa impraticável, pelo menos em Paris. Não obstante, havia sido precedida de differentcs ordenações reaes, que pareciam destinadas a abrir-lbe caminho e que, apesar dos obstáculos e resistência, eram executa- das fielmcnttv Assim, a prostituição clandestina era de tal modo perseguida, que uma mulher dissoluta podia ser srmpre expulsa da casa em que vivia, tendo os visinlios o direito de obrigar o proprietário á rescisão do contracto com elia feito. Mais ainda: um inquilino de bons costumes e que vivesse em uma casa pertencente a uma mulher de vida, não tinha mais do que de- nuncial-a como tal, para obrigar a referida proprietária á expulsão, ou ao reem- bolso, depois de uma simples informação judicial.

O parlamento de Paris confirmara uma sentença d'esta espécie por um decreto de 1 I de s"tembro de 1542. Outro decreto de 10 de fevereiro de 155i foi ainda mais explicito :

«Foi determinado, diz Papou, na sua coUecção de decretos notáveis dos tribunaes supremos de França, que uma mulher de vida não fosse admit- lida á adjudicação do arrendamento judicial de uma casa embargada, ainda que offerecesse mais dinheiro que outro qualquer, e que, outrosim, quando por ventura a obtivesse e n'clla se estabelecesse, o seu mau comportamento fosse sufficiente para a obrigarem a desalojar.»

Não é tudo. Henrique ii havia tentado muitas vezes afíastar da corte e do exercito uma multidão de mulheres perdidas, que viviam do producto do seu trafico, seguindo o exercito e a corte: mas el-rei nunca logrou comprehen- der n'esta exclusão parcial as corfezãs privilegiadas, que exerciam a sua pro- fissão sob a direcção ou governo de uma alia dama!

Quanto ás ribaldas do exercito, nenhum rei, nenhum general poderia expulsal-as completamente. No emtanto, a policia militar tendia a diminuir o numero d'ellas, que ia sempre cm augmento com prejui/.o da disciplina. Não se sabe precisamente o numero de mulheres aggregadas a cada corpo de tropa. Consta apenas que os inspectores dos alojamentos auelorisavam a presença de

DA PROSTITUIÇÃO 403

um mo(,'u de campanha por cada três soldados, e nos exércitos estes moços e as ribaldas compartilhavam a mesma sorte.

O prebostado de Paris apoderou-se do artigo relativo á prostituição, em- quanto teve força de lei o edicto de loôO, e determinou executal-o na cidade. Havia então nas classes medias uma espécie de ostentação de austeridade mo- ral, que protestava ao mesmo tempo contra as desordens da corte' e rivalisava com os huguenotes em rigidez de costumr-:. O protestantismo havia feito uma espécie de repto ao calholicismo, apresentando-ihe, como modelo de continência e de virtude, aquelles herejes que eram enforcados e queimados como crimi- nosos. Houve então, tanto em l'aris como nas principaes cidades, uma guerra declarada á piostituição, uma cruzada emprehendida pelo poJer municipal, com o intuito de fazer desapparecer os logares de libertinagem e a sua vergonhosa população.

As mulheres de vida, que até enião haviam exercido tranquillamente a sua escandalo.sa industria sob a protecção das leis e dos magistrados, foram expulsas do recinto d.as cidades, presas e condemnadas, no caso de reincidên- cia, á flagellação, á marca de ferro em braza, ao pelourinho, balidas nos cam- pos como animaes damninhos e obrigadas a esconder-se para se subtrahirem a esta perseguição geral.

Parece, no emtanto, que os logares públicos de Paris, que haviam sido destinados á prostituição legal desde o reinado de S. Luiz, e que estavam, se- gundo os termos das antigas ordenações, apropriados para este fim, não soIlVe- ram a principio os efteitos do edicto de 1560, porque este edicto não devia invalidar a antiga legislação, que regulara durante tros séculos o modo de vida das prostitutas.

Estas, pela sua parte, principalmente as que não receiavam as despezas e os perigos de um processo, apresentaram as suas razões ao prebostado, sus- tentando que o novo edicto não podia expulsal-as dos logares públicos, desti- nados á sua profissão.

«Esses logares são, dizia a ultima ordenação do prebostado que renovara a de Luiz xi em LJ67 : Abreuvoir de .ilascon, Boticlerie, rua de Froidementel, junto ao circo Brunei, Glatignij, Cour Robert, Baille-Goc, Tijron, rua de Champon, e Champ-flory.»

Ignoramos as circumstancias d'este processo, que durou muitos annos, mas temos motivos para julgar que a prostituição continuou de posse de alguns dos seus antigos albergues.

«As ruas de Glatigmj ou do \'al-d'Aniour, de Arras ou Champ-Gaillard, de Fromenteau, etc. continuaram a olíerecer as\io á libertinagem.» (Historia de Paris, por Dulaure, edic. de 182o, t. iv, pag. oGI.)

Não descobrimos os decretos promulgados a este respeito, mas podemos quasi affirmar que, se o numero de logares nomeados na ordenação de 1367 foi reduzido por decisão do parlamento, muitos (içaram na posse do seu obsceno privilegio, pois (|ue se provou, por cartas authenticas, que haviam sido cons- tituídos por S. Luiz. Assim, o lupanar d.i rua de Champon, que por tanto tempo arrostou a indignação dos bispos de ChJons, permanecendo aberto junto do seu

404 H .STOIUA

palácio, foi então fechado por não podor provar a sua antiguidade. (Anii- quités de Paris, por Sauval, t. ii, p. 78.)

Outro lupanar publico, celebre por causa da sua directora, a lia Cardine, resistiu mais do que t.idos os bordei.s de Paris á ordenação real que os sup- primiu. A tia Cardine, a quem conhecemos por varias peças satyricas, publi- cadas por aquelles tempos, devia ser a rainha das alcoviteiras de Paris. Era decerto muito rica, porque teve de sustentar uma grande demanda, e quando se pronunciou sentença contra elia no tribunal do Chatelet, teve ainda bastante força para impedir a execução da referida sentença.

O estabelecimento da tia Cardine era considerável. Comprehendia muitas casas de vaslas proporções nas ruas do lírand e PeAil-fíurleur, no centro do bairro Bour(j-l' Ábhé . Estas ruas infames, cujos nomes indicam talvez a maneira porque alli se gritava ou ciiainava pelos liberlinos, não tinhiuii outros habitan- tes senão as mulheres publicas e os seus vis amantes e apaniguados. lodosos proprietários d'aquelles predids empregaram esforços para conservarem os seus inquilinos, e dirigiram-se para esse tim aos juizes do Chatelet, ao preboste de Paris e até ao próprio rei.

Tudo foi inútil, porém. Depois das peripécias de um longo pleito, el-rei por decreto de 12 de fevereiro de t.'iG5(ou 1566, segundo o calendário actual,) ordenou aos do Chatelet que pozessem em execução sem demora a referida sentença.

Em consequência d'isto, o decreto foi intimado pelo pregoeiro á entrada das ruas do bairro llurkur. As mulheres de vida que alli habilavam tive- ram de sahir dentro de vinte c quatro horas, e todos os bordeis se fecharam sem remissão, sendo vencidos na lucla por fanlo tempo sustentada contra o Cha- telet e o parlamento.

Sauval, referindo-se a este desenlace, diz que n'aqiielle anno «os asylos das mulheres publicas ficaram completamente arruinados.» O decreto real re- gistrado no Chatelet a 2i de março de l-iG-i (ou melhor, e como dissemos io66,) provocou uma nova ordenação Jo preboste de Paris, que supprimiu de- finitivamente a prostituição legal nos termos do edicto de 1560. (V. os Edictos e ordenações dos reis de França, colleccionados por Fontanon, t. i, pag. 547).

Migue! de THòpifal era infatigável na emprcza verdadeiramente árdua da reforma dos costumes. Foi elle quem resolveu impedir que as mulheres disso- lutas ousassem fazer frente a el-rei e á magistratura. Ao decreto de 12 de fe- vereiro, que alludia siimente ao bordel d'ífurli'iir o preboste d(> Paris fez o ad- ditamenlo seguinte, confirmando o artigo prohibilivo do edicto:

«Além d'isso, fazendo justiça ao requerimento verbal dos referidos súb- ditos d'el-rei, fica probibido a todos os habitantes d'esla cidade e arrabaldes de Paris, consentir em suas casas bordeis públicos ou secretos, sob pena de 60 libras pnrisis de multa, pela primeira vez, de 120 pela segunda, e pela terceira perda dos prédios que possuírem. E o dito real decreto será com a presente ordenação lido e |iublicad() ao som de Iriimbeta e voz de pregoeiro, tanto nas ruas d'esta cidade como nos arrabaldes de Paris e outms togares, onde existem os ditos bordeis, a tim de que ninguém possa allegar ignorância.»

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O encerramento dos bordeis do Grand e Hetit-Hurleiír trouxe comsigo o de quasi todos ao tempo existentes em Paris. Aquelles que foram exceptuados d'esta prohibição geral, e consentidos pelo preboste de Paris perderam todos os direi- tos que gosavam peia ordena(,'ão de S. Luiz, e como tinham apenas uma exis- tência precária, como eram unicamente consentidos á porta fechada, e sob a salvaguarda de uma permissão tacita, foram a nosso vér denominados desde essa épocha com um titulo, que ainda hoje está em uso, e que define a natu- reza do seu privilegio: Casas de tolerância.

De resto, a partir d'esta épocha, segundo Sauval diz expressamente (t. ii, pag. 650), as mulheres publicas «deixaram de ter estatutos, juizes, vestidos especiaes e ruas destinadas á sua libertinagem», podendo dizer-se que a pros- tituição legal foi legalmente abolida em França.'

Indicámos as causas que nos parecem haver provocado esta grande me- dida policial ; dissemos que o protestantismo havia obrigado o governo a to- mar esta iniciativa de uma grande reforma de costumes; observámos que o virtuoso chancellcr de THòpital se havia interessado especialmente n'esta re- forma, que vinha satisfazer os votos das pessoas honestas sem distincção de crenças nem de idéas politicas. DifTerentes historiadores sustentam, porém, que a suppressão dos bordeis tivera como causa as imperiosas necessidades da saúde publica, porque a enfermidade venérea que se havia generalisado de uma maneira espantosa, em consequência da libertinagem popular, havia feito de cada bordel um foco permanente de infecção.

Sabe-se eflectivamedte que esta horrível enfermidade, cujos symptomas não eram tão repugnantes como n'oulro tempo, havia não obstante multi- plicado os seus estragos ao ponto de chegar a ser a prostituição o inimigo de- clarado da vida humana.

A i de dezembro de 1553, o advogado d'el-rei Dyonisio Riant, apre- sentou perante o parlamento de Paris um requerimento contra os bordeis de Champ-Gaillard e Champ-de VAbbé, «onde se commettiani diariamente infini- tos roubos, violências e outros crimes por parte dos inquilinos das casas, que tèem pela maior parte os bordeis nas suas próprias vivendas, onde recebem gente desconhecida e vadia, rufiões e prostitutas.»

O advogado accrcscenlou no seu requerimento que «somente n'um anno, dezoito ou vinte mancebos, estudantes e filhos de boas famílias, haviam sido atacados do mal venéreo, por terem frequentado as referidas casas, o que é muito deplorável e requer da parte das auctoridades enérgicas e promptas pro- videncias.»

a esse tempo o parlamento havia expedido dois decretos, em que or- denava aos proprietários das casas de Champ-Gaillard e Champ-de l' \bbé, que não as alugassem senão a gente conhecida e bem comportada, e para este fim ordenara ao juiz do crime que executasse os decretos precedentes, pondo termo a similhantes torpezas. (V. Provas da Hist. de Paris, por I.obineau e Fili- bien, t. II, p. 767.)

E facto quasi averiguado que o mal napolitano havia invadido todos os albergues da libertinagem, no momento em que Carlos ix supprimiu totalmente

406 HISTORIA

a prostituição legai. O poeta Baif nos seus Passatemyon faz o retrato de mes- sire Maeé, que liavia sollrido grandes infortúnios:

A suivre les anwurs communs.

Eis a mercurial dirigida por um amigo a este ineorregivel, que não podia desistir de festejar as rihaldas :

«Pois não está ainda satisfeito de ter tido tão más fortunas n'esses amo- res communs, mcssire Mace?! Não se cançou ainda dos eITeitos da vérole, que não lhe poupou nem os dentes nem as guellas?! Não se lembra, desgraçado, que tem a hocca devorada pelos cancros, e que o membro, roido, lhe está ca- hindo aos pedaços?

Outro epigramma de Baif, em que um certo Galin é o heroe de uma triste aventura, desereve-nos esse heroe com cores não menos repugnantes:

Poiír hanter snuoent les boiírdeaux Le chancre 1'acueiUil si bien, Que du ner en ta face rien Ne Vest re.ité que les naseaux.

Um escriptor da mesma époclia, António Duverdier, era de opinião que Deus havia enviado esta peste á terra em castigo das sórdidas, illicitas e fre- quentes sensualidades dos preversos, e reconhecia nas suas Diversas licções que o mal ora muito mais contagioso ao principio (jue no seu tempo, por causa, dizia eile, «dos soberanos remédios que se tèem descoberto.» Admira-se, to- davia, de que os libertinos ousassem arriscar-se a um mal, que se não era mortal, deixava ordinariamente recordações bem tristes ás suas victimas.

«Ha muitos, diz elle com assombro, que teem tido o mal seis e sete vezes!»

Luiz Ciuyon, que escreveu também as suas Diversas licções, para conti- nuar as de Duverdier, altirma na sua qualidade de medico, que a enfermidade venérea zombava ainda de lodos os remédios da sciencia:

«Este contagio venéreo, diz elle (t. i, p. 612), por se contrahir mais fre- quentemente no acto deshonesto com mulheres de bordeis, é vergonhoso.»

Luiz (iuyon quer dizer com isto que o virus da mulher commum era mais perigoso que outro quaUiuer, e cita o facto de dois adolescentes de famí- lia illustre, aos quacs tractára em Paris, em loG3, sem ter podido obter a sua cura. Verdade seja que estes dois imprudcnics haviam procurado occultar o seu mau estado, ale (|uc elle próprio se revelou, «por pústulas vermelhas na fronte, dores nos ossos, tantíj nos braços como nas pernas, nas espáduas e no interior da cabeça, desde o anoitecer até de madrugada, e outros signaes, como dores na garganta, que lhes dillicultavam a deglutição.»

Todos os médicos e cirurgiões, em cujas mãos se entregaram os pobres enfermos, dcclararam-sc impotentes contra mal Ião rebelde, até que um em- baixador do rei de llcspanha, (|ue os ouvia queixar durante a noite, lhes acon- selhou que partissem para a America, para se curarem alli, segundo o tracta- menlo dos indígenas.

DA PROSTITUIÇÃO 407

Este tractamento teve um cxifo feliz, e os desgraçados rapazes que ha- viam partido éticos, e similhanles a cadáveres, voltaram a França completa- mente, restabelecidos.

Um tal resultado serviu sem duvida para confirmar a opinião dos sábios, que pretendiam ter sido o mal napolitano descoberto an mesmo tempo que a America por Colombo. Não obstanie, esta opinião níio eslava ainda tão solida- mente estabelecida, que certos doutores da Faculdade de Medicina de Paris não sustentassem tenazmente que esta enfermidade não era nova, embora ti- vesse mudado de caracter.

«Enganam-se redondamente, dizia António Duverdier, os que acreditam que a enfermidade, chamada pelos antigos meníagra, e por nós usagre seja o mal que denominamos venéreo.»

E' possível que os homens de estado, que tentaram abolir a prostituição por um decreto real, quizessem applicar um remédio heróico á vergonhosa enfermidade, que esperavam repellir de França, juntamente com as desgraçadas mulheres que pela sua maior parte estavam por ella contaminadas. Deveria, no emtanto, ter-se previsto que, obrigando assim as mulheres de vida a vol- tar ao seio da sociedade e a disfarçarern-se no meio d'ella, sob honestas appa- rencias, se fazia refluir o contagio venéreo para a corrente da vida domestica.

Falfam-nos absolutamente os documentos para apreciarmos os effeitos physiologicos e hygienicos da suppressão dos bordeis. Os excessos da liberti- nagem, como é fácil de suppòr, não cessaram com esta medida: não tinham, é certo, asylos auctorisados, mas mostravam-se á luz do dia com o maior des- plante. Assim, a prostituição clandestina teve mercados públicos em todas as ruas e em todas as praças. .A mulher commum, ao perder o direito de exercer legalmente a sua profissão em certas condições determinadas, adquiriu a liber- dade de se apresentar em toda a parle e de regular por si própria as condições da criminosa industria que exercia furtivamente. Em breve, por certo, devia haver em Paris tantos lupanares secretos, como antes d'isto houvera públicos. O numero dos agentes da prostituição não diminuiu: pelo contrario, .sendo d'ahi em diante mais necessários os alcoviteiros de ambos os sexos, vieram a ser também mais numerosos, e o uso designou na cidade e nos seus arrabaldes pontos de reunião, onde a libertinagem ia recrutar a sua milicia e assentar as suas baterias.

Os bordeis, que deixaram de estar sob a vigilância do poder municipal, ficaram á mercê de todos os entes abjectos, que não receiavam expòr-se ao castigo da lei e que fizeram d'esfas inpuras cavernas o receptáculo de todos os criminosos.

Não deve restar a menor duvida de que o edicto de 1560 contra os bor- deis teve escandalosas consequências, quando se a prostituição errante agru- par-se de noite em torno das cruzes de pedra, que se elevavam em quasi todas as praças de Paris. Em lo73, o bispo quiz tirar a cruz de (lastini, erecta n'uma pequena praça da rua de Saint-Denis, porque esta cruz, segundo a ex- pressão de um chronista, servia de taboleta aos libertinos, que alli se reuniam todas as noites e commettiam mil profanações.

408 HISTORIA

O Journal d'Henri iii refere n'estes termos o facto de se tirar outra cruz, que a libertinagem egualmente profanava :

«Em a noite de quinta-feira, 10 de março de 1580, por ordem do bispo de Paris, foi tirado do sitio onde estava o crucifixo cbamado Maquereau, e foi levado pela gente da policia ao paço episcopal, e isto em consequência do es- candaloso nome que o povo Ibe havia dado, por que este crucifixo, de madeira pintada e dourada, do tamanho de dois que ha nas parocbias, estava pregado na parede da uma casa, sita no fim da antiga rua do Templo, perto das cloa- cas, na qual rua havia um bordel. De modo que este venerável signal da nossa redempção servia de tabolela, ou indicação de todos os albergues de prosti- tutas.»

Pedro de TEstoile não nos diz se o bordel foi fechado por ordem do pre- bostado, depois que o bispo Pedro de (londi puzera termo ao escândalo, que era mais deplorável que o da impunidade de um albergue de libertinagem.

A maior parte das casas n'aquelle tempo tinham marcas que as faziam conhecer á falta de números ou de outros signaes indicadores. .4s casas de prostituição deviam, pois, ter também a sua marca ou signal, que não recor- dava sempre o destino do logar, por isso que o signal podia ser mais antigo que o destino actual da casa. Frequentemente, porém, annunciava com um emblema indecente, ou com uma divisa equivoca, o género de commercio a que o local se consagrava. Assim Piganiol de la Force atfirma que o bairro do Gros Caillou, devia o seu nome a um. gros-cailloii, que servia de taboleta a um lupanar. Em todo o caso, este nome não esteve em uso antes do século XVI, e póile ser qu:' proviesse da installação d"estc logar de libertinagem e da sua taboleta metaplioricamenle obscena.

Os historiographos de Paris mencionaram muitas taboictas da mesma es- pécie, que haviam dado o nome de la Corne a duas ruas do antigo arrabalde de Saint-Germain-ilf-s-Prrs. chamadas agora rua Beurrirri' e ISeuce-duillemin, do mesmo modo que outra riia do Fauhourg de Saint-Marceau veio a ser o becco sem sabida das Corderies. Sauval refere que havia uma cabeça de veado, <vque o povo chama corne (corno), incrustada na parede, esquina da rua de la Corne, e que esta insígnia havia dado também o nome de l'elile-Corne á rua adjacente, e accrescenta que este nome proviera lambem de uma turba de prostitutas que tinham ido alli estabelecer-se.

Alii pelos fins do século xvi estas prostitutas, que não podiam residir no recinto da cidade, rcfugiaram-se no arrabalde, onde o abbade de Saint-(ler- main as deixou estabelecer mediante uma certa renda ou imposto.

Mais tarde, este estabelecimento de libertinagem provocou taes desordens, c escandalisou de tal modo os bons parochianos de S. Sulpicio, que o cura d'esla parochia obteve do abbade de Saint-dermain a expulsão de tão escan- dalosa visinhança.

Ao mesmo tempo fez-se desappareccr a taboleta ou annuncio d'cste lu- panar e o próprio nome das duas ruas, derivado d'aquella taboleta. A primeira rua tomou então o nome de fiuillcmin, por causa de um f('»ro pertencente a uma familia dVste appellido, e a segunda o de Beurrière, ou fíeiírriers.

DA PROSTITUIÇÃO 409

O povo, porém, quo se rebordava lii' ler visto o corno e o bordel que

annuneiava aos lianseunl<>s, insisliu por muito tempo em designar as duas

ruas pelos seus antigos nomes, ainda que os novos houvessem sido cravados

com leltras d'ouro em lapides de mármore postas nas esquinas de ambas as

ruas por ordem do baillio de Saint-Germain.

Foi mister por fim que todos se acostumassem a substituir pelos moder- nos os antigos nomes, mas ainda assim alli ficou sempre alherente a ideia de uma casa de prostituição, e isto, segundo Sauval, «porque o nome de Guil- lemin é um tanto proverbial, e o povo que se compraz em escarnecer de tudo, não se contentando de juntar ao nome de (iuillemin, proprietário do local do bordel, a aleunlia de Crocquesolle, poz também a mesma alcunha á rua, de maneira que mais commummente se diz rua de Guillemin-CrocquesnUe, do que apenas rua de GuiUrmin.»

Sem que nos seja mister entrar aqui em bmgas dissertações archcologi- cas, diremos desde que Guillemin, na linguagem metaphorica das ultimas camadas populares, significava muitas vezes a natureza máscula, o membro vi ril, assim como a palavra guillenj. Por esse tempo cantava-se nas ruas de Pa- ris a famosa copla, ainda cm voga no tempo da Regência, por isso que o du- que d'Orleans a tinha sempre na bocca (]li'moires du cardinal Dnhois):

Du temps du roy Guillemot, De la reine Fuillemotte. Ou prenoit les hommes nu niot Et les femmes à la m . . .

Deixamos aos etymologistas a tarefa de procurar e descobrir a origem de guillemin e guillemot. Quanto a crocquesolle, é evidentemente um epitheto qua- lificativo, e quer-nos parecer que, sendo a solle ou soulle um jogo de pella muito vulgar nCitro tempo, se fez uma approximação muito natural entre este jogo e o que se usa nas casas de prostituição, onde a mulher passa de mão em mão comj uma solle, ou pella, que os jogadores atiram um ao outro; d'aqui a palavra solle, como synonymo de prostituta, e por extensão, da natureza ou sexo de uma mulher de vida.

E' evidente que o povo tinha então diminuta sympathia e bem pouca piedade para com as mulheres de vida, por isso que as perseguia cora di- tos sarcásticos, e até as apedrejava quando as encontrava nas ruas honestas. Vimos também que os libertinos, que ousavam entrar de dia nas ruas infames destinadas á libertinagem, não eram tractados mais benevolamente pelo po- pulacho.

Pode, portanto, conjecturar-se que o edicto de 1560, que supprimia a prostituição legal, foi favoravelmente acolhido pela opinião publica, c que os habitantes de Paris, excepto os que tiravam d'esta prostituição interesses dire- ctos, foram unanimes em applaudir as medidas policiaes que deram em resul- tado ã suppressão da mór parte dos bordeis.

A ruina e perturbação dos que viviam do lenocínio, a desordem e disper- são das meretrizes, a raiva e a confusão dos libertinos, não interessaram a

HisToiíÀ DA PaosTirmcÃo. Touo n— Folha 52.

4 I O HISTORIA

ninguém, antes fizeram rir toda a gente, e de Ioda a parte se ergueu um concerto de epigrammas e sarcasmos contra os exilados da prostituição. O lupanar de Hurleur, e a sua celebre directora, a tia Cardine, deram especial- mente margem a estas verrinas em prosa e verso, que a hilaridade popular inspirava com tanto estro e abundância.

A mais conhecida d'estas satyras é o Inferno da tia Cardine, cuja primeira edição, que não possuímos, foi certamente contemporânea de todas as troças em verso a que deu logar a destruição do Hurleur. Eis o summario d'esta cu- riosa e raríssima satyra contra as cortezãs mais famosas d'aquelles tempos:

«O inferno da lia Cardine, onde se trácia da mais horrível e espantosa batalha, que houve nos infernos entre os diabos e as alcoviteiras de Paris, por occasião das bodas do cão Cerbéro e de Cardine, a quem as suas companheiras queriam fazer rainha do inferno, tendo uina d'ellas dado o conselho da traição.» (Não tem data nem indicação de logar, mas foi sem duvida impresso em Paris em 1570, in-S.")

Esta composição poética, geralmente attribuida a Flaminio de Birague, sobrinho do chanceller de França, foi reimpressa em 1583 e em 1597. Nas reimpressões foi-Ihe addicionada uma canção de certas- mulheres de Paris, que fingindo ir de viagem foram surprehendidas em casa de uma alcoviteira de Saint-riermain-dcs-Prcs. Não existem senão dois ou três exemplares das edi- ções do século XVI, mas em 1793 um philosopho benemérito não quiz que des- apparecesse completamente o Inlerno da tia Cardine, e fez outra edição de 108 exemplares, que são actualmente tão raros como as das antigas edições.

Eis o principio d'este poema allegorico, espécie de satyra collectiva con- tra todas as rainhas da prostituição, e não um acto de vingança pessoal do poeta contra a tia Cardine, como suppõe o marquez de Rouze, no seu Analecta- biblion :

«Pois que a ociosidade é a mãe de todos os vícios, quero cantar aqui a maldade, a traição e os cruéis esforços, que fez Cardine um dia na região dos mortos, quando Cupido lhe fez tirar as cliammas, que atormentam na outra vida as nossas almas peccadoras.>^

«A fabula do poema é muito simples, diz o marquez de Rouze. Cardine casa com Cerbéro, e no festim das bodas apparecem as princípaes prostitutas de Paris: Margarida Rémy, denominada a dos Olhou grandes, a Cre-smière, Anna Pardalinha, a .\ormanda, a Leoneza, ele., ele. Cupido, inimigo decla- rado de Plutão, comparece na boila para excitar os condemnados a combater contra o inferno, e para estrangular o Orbéro.»

O marquez de Rouze resume todo o poema n'este apophtegma : «Algu- mas mulheres são peiores que todos os diabos juntos.»

O editor de 1793 reimprimiu além d'isso, em continuação do Inferno da tia Cardine, uma peça do mesmo género, (jue nos a data do poema de Fla- minio de Birague, a que vem junta:

«Lamentação e queixumes da tia Cardine, de Paris, em tempos directora (lo Hurleur, a respeito da abolição d'esle estabelecimento. Esta lamentação foi encontrada depois da morte de Cardine, n'um cofre onde tinha os seus mais

DA PROSTITUIÇÃO 4H

particulares e preciosos segredos, os tilulos das suas qualidades aullienticas, receitas, contas, antídotos, baisatnos, pinturas, arrei)ii|ues, ferramentas c uten- sílios pertencentes ao oíTicio.» (Nfio tem nome de logar, 1570, in-i.")

Citaremos outras duas coniposi(;õos da mesma époclia, que foram inspi- radas peia execução do edicto de loíiO.

«Destruiç<ão e desolação das poljres ribaidas do Hurleur e do Darnetal. (Sem logar nem data, in-H." com uma gravura de madeira sobre o titulo.)

M. J. C. Brunei, no seu Manual do Livreiro, diz que esta peça de ver- sos de seis syllabas foi composta em Io20. Sai)e-se, porém, que Brunei não é auctoridade, quando julga uma obra apenas pelo tilulo. Esta lamentação é evi- dentemente do mesmo tempo, se não é d;i mesma penna que escreveu a da tia Cardine.

A outra composição, que se refere lambem ao mesmo assumpto da abo- lição dos lupanares, intitula-se: ^Desterro de alguns commerciantes de mau género e de algumas ribaidas de Paris. (Sem designação de logar, I.tOO, in-8'\) Duvidamos, porém, que um exemplar da edição primitiva sobrevivesse á sua épocha. Por fortuna, em 1814 liouve um bibiiopbilo que fez reimprimira obscena salyra, cujo auctor, Rassé Desneux, era cirurgião de Carlos ix e amigo de Ronsard.

A abolição dos bordeis, por mais incompleta que tivesse sido, obtivera tantos appiausos em toda a França, que Carlos ix e o seu chanceller Miguel de THòpital, resolveram insistir na reforma dos coslumes por meio de orde- nações. Fora muito mais fácil afifastar do recinto das cidades os logares do libertinagem, do que expulsar completamente as prostitutas da corte e do exer- cito. Desde os tempos mais remotos, a còrle e o exercito arrastavam no seu séquito uma multidão de gente perdida de ambos os sexos. El-rei, de accordo com o seu virtuoso ministro, esforçou-se por evitar este abuso, e n'um edicto de 1570 ordenou que todos os vadios da corte, sabissem dentro de vinte c quatro horas, sob pena de serem enforcados sem esperança de graça nem re- missão e que todas as mulheres publicas d'ella sabissem também dentro do mes- mo prazo, sob pena de serem açoitadas e marcadas.

Houve decerto muitas mulheres publicas condemnadas a estas penas, porque não se apressaram a comprir a real ordenação, e Carlos ix teve por muitas vezes de recordar a mesma lei no decurso do seu reinado.

A que decretou contra as ribaidas que seguiam o exccito não encontrou menos difliculdades na sua applicação, por isso que Henrique iii a reproduziu nos mesmos termos assim que subiu ao throno.

«Ordenamos não aos prebostes dos marechaes e aos seus tenentes, mas também aos juizes ordinários, que expulsem as ribaidas das suas compa- nhias e troços, castigando-as com a pena de açoites, assim como aos moços da tropa, logo que haja mais de um por cada Ires soldados.»

Consta que esta ordenação nunca fora executada, pelo menos de um modo regular. Algumas vezes, porém, teve uma applicação cruel, segundo o capri- cho do chefe do exercito. Se dermos credito ao Itstemunho de Varillas {Hisl. d'Henri m, lib. ix), o marechal Filippc SIrozzi, que o historiador nos repre-

41 á KISTORIA

senta sevi-m cin dcniasia, mandou doita' ao rio nitocentas ribaldas que seguiam as suas fi-opas!

Não LMain estas desgraçadas tiaeladas em tndn parte com o mesmo rigor, e se não figuravam nos exércitos dos reformados, passavam alegre vida nos exér- citos catholicos. Assim, Branlôme descreve com ufania a bella reefagnarda a que o duque de Alba, na sua expedição contra os hcrejes da Flandres, podia passar revista, juntamente com os seus dez mil homens de tropas aguerridas.

«Eram, diz o licencioso ehronista, quatrocentas cortezãs a cavallo, bellas e valentes como princezas, e oitocentas a pé, de muito bom aspecto também.»

Fazia parte do exercito hespanbol um fidalgo francez, messire Francisco Le Poukhre, senhor de la Motte Messemé, cavalleiro da casa d'el-rei, e capi- tão de cincoenta homens d'armas das ordenanças de sua magestade. O (|ue este brilhante fidalgo mais admirou foi o corpo das mil e duzentas cortezãs, de que falíamos, que pareciam encarregadas de assegurar a honra das mulheres lio Iheatro da guerra.

Eis como eile falia (restas creaturas, no livro vii dos seus Honnêtes Loi- sirs (Ócios honestos), obra dedicada a el-rci Henrique iii. (Paris, 1587) :

«Quem queria fallava com ellas durante o dia, mas com mil altenções e delicadezas. Eslas damas recebiam todas as noites alojamento e viveres por ordem do marechal do campo, e ninguém ousaria fazer-liies uma insolência.»

A vaidade d'estas cortezãs cresceu de tat forma, que acabaram por que- rer fingir de mulheres honradas, e tão alto preço puzeram aos seus favores, que SC tornaram inacessíveis aos soldados. Foi preciso que o duque de Alba interviesse e mandasse annunciar no acampamento pelos seus arautos de armas :

«Que nenhuma d'ellas ousasse d'ahi avante recusar ceder a quem lhe pedisse, mediante cinco soldos por noite.»

A taxa estabelecida pelo duque de Alba não peide considerar-se como preço corrente da prostiluifão popular n'aquella époeha. No emtanio, pôde sup- por-se pelo capitulo de Rabelais, intitulado: «De como Panurgio ensina uma nova maneira de edificar as muralhas de Paris», que a relaxação dos costumes públicos havia prejudicado singularmente o officio impudico das prostitutas das viellas.

«Vejo, diz Panurgio que os c. . . das mulheres d'este paiz estão mais bara- tos (jue as pedras. Seria bom edificar as muralhas com elles, collocando-os com boa symetria de architectura e pondo os maiores cm primeira linha, em se- guida os medianos, e (inalmente os pequenos.»

Esta torpe truaniee de Panurgio symbolisa por certo uni indicio do vil preço das mercadorias da libertinagem. O encerramento dos bordeis não dimi- nuiu o numero de mulheres de vida. I/Estoile, no seu Journal cfllenri m, com data de l"í7">, caracterisa do seguÍTite modo a corru[)ção que via rei- nar em redor de si nas classes medias e no povo de Paris :

«Aquillo de que se lamenta .leremias no capitulo iii das l-'ilhas de Sião, que caminhavam de pescoço erguido, c com os olhos cerrados pela volupluo- sidade, rcquebiando-se e fazendo resoar os passos, poderia dizcr-se lambem e

DA PROSTITUIÇÃO 3

com muita mais razão das mulheres de Paris, em nossos dias, e das filhas da còrfe especiahnenle. Assim, pois, não é de extranhar que o Seniior, se- gundo a ameaça que faz no mesmo logar pelo seu propheta, desgrenhasse os seus eabellos e exposessc á vergonha puhliea as suas partes secretas, por meio dos insanos poetastros da corte. Em conclusão, as desordens dos costumes fa- ziam com que o adultério fosse um dos mais notáveis rendimentos d'aquelle tempo. (V. a edição puhlicada por M. M. Champollion, pae e lilho, na colle- cção das Mein. pour servir à rilistoire de Franre.)

Nas obras dos poetas do século xvi, encontrariamos por certo uma mul- tidão de personagens referentes ao nosso assumpto, e que nos permittiriam fazer a pintura fiel e mesmo minuciosa dos costumes da prostituição. Temos, porém, picssa de sahir d'este .século impuro em que a libertinagem italiana é o derradeiro esterquilinio em que vae manchar-se e extinguir-se a raça dos Valois, e seriamos por certo arrastados a uma larga digressão, folheando os poe- tas libertinos, que se compraziam em fundar o Parnaso de Priapo, e tinham por única musa inspiradora a Vénus dos bordeis das mais immundas vicllas.

Os poetas estavam decerto previamente auctorisados a todas as desordens da poesia erótica, por isso mesmo que se encontravam em casa das prostitutas com os mais graves personagens da corte, com os príncipes da Egreja, e com os austeros e graves magistrados. O cardeal Carlos de Lorena não ia, como po- deria fazer um estudante, passar a noite fora do seu palácio em casa de uma mulher perdida? Luiz Régnier, senhor de la Planche, refere-nos na sua His- toria de Francisco ii, que e.ste prelado libertino, «sahindo uma madrugada de casa da bella Romana, famosa cortezã do tempo d'aquelle rei, esteve em pe- rigo de ser maltractado por certos rufiões, que procuravam esta espécie de pro- veitosas aventuras em viclimas de primeira ordem.

A Romana, que rivalisava em bellcza e libertinagem com a Grega, tão exaltada por Brantòme, parece-nos ser o typo d'aquella cortezã, que Joaquim Kubellay pòz em scena n'um poema famoso intitulado A Alcoviteira, ou a Cor- tezã arrependida. O poema ofierece-nos muitos dados que servem para fazer o retrato das cortezãs celebres do século xvi. Ella própria conta a sua vida e, passados os seus bons tempos, procura suavisar as maguas

Par les soupi)'s d'une complainte vaine.

Na edade de dezeseis annos, corrompida pelo mau exemplo de sua mãe impudica, deixou-se seduzir por ura criado, mas o caso ficou a tal ponto no es- curo, que nunca ninguém d'clle suspeitou, a não ser sua própria mãe.

Em seguida, foi parar ás mãos de dois ou três fidalgos romanos, que imaginaram ter colhido a llòr da virgindade, segundo a mãe lh'a havia ven- dido. O logro continuou por algum tempo ainda, cahindo mais uns seis na es- parrella de pagarem á mãe da uympha por alto preço uma virgindade hypothe- lica, de ha muito pertencente ao rol das cousas destruídas, como diz o poeta d'esta famosa cortezã. O ultimo explorado foi um cardeal, que a comprou por bom preço como donzella, e a ensinou em seguida a cantar, a dançar, a locar

414 HISTORIA

alaúde, a faltar com correcção e a ataviar-se como as altas damas. O prelado amava-a bastante para não lhe recusar nenhuma prova de ternura. Enrique- ceu-a primeiro, e em seguida casou-a com um fidalgo, que a roubou emquanto se celebravam as bodas. Ficou arruinada, e deitando para traz das costas os res- tos de vergonha, abriu a porta, e sabendo mais o que era o mundo do que no principio, em pouco tempo toriiou-se celeberrima. Quando se viu tão conhe- cida, determinou pòr-se por conta de dois ou três, que lhe davam cada qual trinta escudos por mez.

Era pouco. Tractou de esfollar os seus amantes, fazendo crer a cada um d'elles que era mais amado do que os outros. Não eram jovens nem bonitos, mas eram crédulos e generosos. .41ém d'isso ella fugia como da peste d'esses rapazolas, que sem gastarem um ceitil querem ser amados das bellas, e ima- ginam ter pago muito bem com uma chalaça, uma canção, uma serenata.

Conhecia todos os mysterios da vida das cortezãs e empregava-os em proveito próprio, dando-se ainda assim ares de honradez e honestidade.

Tinha também um cuidado especial em não tolerar no seu corpo a me- nor immundicie. Bebia pouco, comia sobriamente, cheirava bem, estava sem- pre vestida com accio irreprehensivel tanto em publico, como nos seus apo- sentos. Nunca lhe faltava roupa branca perfumada com essências agradáveis. O seu quarto de vestir era uma espécie de loja de perfumaria. Um artificio muito vulgar nas cortezãs, e em todas as mulheres que se preoccupam com as impressões que podem causar: nunca permitlia que a surprehendessem de manhã. N'uma palavra, estava instruída na arte, tão proficientemente ensinada pelo Aretino. Conhecia theorica e praticamente todos os segredos do livro do poeta italiano, e além d estes, muitos outros ainda, que tinham por fim acor- dar os sentidos adormecidos.

Sabia também occultar a sua profissão. Era recatada nas palavras, fingia admiravelmente a virtude, e conseguia disfarçar-se tão bem, que da sua bocca apenas saiam palavras honestas; era como engraçadamente diz o poeta:

Sage au parler et fôlalre « la couche.

Foi assim que ella conseguiu adquirir fama em Roma e em Paris, de maneira que era do bom tom fazer-lhe amor,

Au demeurant, (úl de nuil ou de jour.

Comprehcnde-se que a famosa cortezã nada tinha a temer das medidas policiaes relativas ás suas similhanles, que pertenciam á arraia miúda da pros- tituição. Não leceiava andar pelos logares públicos sem a sua licença, porque tinha auctorisação tacita para fazer o que quizesse. Nem o preboste, nem os beleguins a assustavam. A própria prisão não lhe incutia terror. Em caso de perigo tinha pelo seu lado a protecção de um cardeal, ou de um grande fi- dalgo, de tantos que lhe fre(|uentavam a casa, o que fazia com que fosse res- peitada.

DA PROSTITUIÇÃO 415

A Romana chegara a este apogeu de fortuna, em seis ou sete annos. Quando o espelho começou a revelar-lhe os primeiros symplomas da decadên- cia, penetrou-lhc no coração a vergonha e o arrependimento dos seus erros. Um dia entrou n'uma cgreja, e o sermão, que alli ouviu, fez-lhe comprehender bem o escândalo da sua vida passada, e sentiu toda a amargura que deixam na alma os prazeres da prostituição. Que prazeres aquellesi murmurava ella ar- rependida e humilhada. Expor vergonhosamente o corpo ao appetite lúbrico de tantos libertinos, imitar o viver dos animaes mais sórdidos, para procurar no vicio o ouro deshonesto, não fallando nos perigos de enfermidades horríveis, que são quasi sempre a triste herança de uma vida abjecta e dissoluta I

A celebre cortezã entrou n'um convento para fazer penitencia e lavar-se das suas impurezas com a pratica das mais austeras devoções, e julgando não precisar de bens terrenos legou á santa casa o producto dos seus vicios.

Pouco depois, arrepende-se de se ter arrependido. Atira com os hábitos para traz dos moinhos, e volta novamente á vida antiga.

Era tarde, porém.

Adeus, grandes fidalgos! Adeus amores de alto cothurno!

Em vez delles, bate á porta da cortezã a syphilis gottoza,

La denterelle et pelade honteuse,

como diz o cantor dos seus feitos impuros.

Um dia bate-lhe á porta o carrasco a quem cila recebe no leito em vez de algum dos antigos e fidalgos amantes, e que lhe recompensa os sediços fa- vores, açoitando-a, pouco depois, na praça publica I

CAPITULO XXXV

SUMMARIO

A prostituição nas modas —Historia dos Irajíissnh o ponto do vista dos costumes. O amor do luxo conduz A p-ostituífão.— l.eis sumptuárias dos reis. Simpliciílade do trajo nacional dos IVanci^zus.— Começo da licença dos tiajos. Os monges de Saint-lténv de lleims. O cal;adu « la pnnlnine. - A poulaine, araaloiçoada por lleiís.— Anatliemas da E-r.J i contra esta moda obscena. As cruzada» trazem á França os costumes urientaes. —O culto da mola, se-uudn Roberto Gaíuin. O iiom-ni esFoieando-se por se parecer com o demónio.— Os cornos c os rabos no tempo de Carlos vi Esap-ee.ação dos rmurinos dos vestido?.— Dellnieão doí vi'Stidos boneslos. seRundo Cliris- tina de Pisan —As modas de Isabel de lia viera Estiavagantes vestidos. -Preoccupaçõe.í contra as mullieres que se lavam,— Os banbos e estufas.— As modas dos homens no S''ai\nxv.—3lali.oUrcs.—Braguettes.—Basquines.— $en uso.— O decote, o:i nudez do seio. - Leitos de setim preto.— RePinimentos de sensualidade. Progresso.s da decen cia publica.

xiSTiRAM serapre intimas relagóes, analogias c aíTinidailes, singu- lares cnlrc os costumes c as modas francezas, de inodo tal que podem apreciar-se uns poios ouiros. Ouando os costumes são puros, austei-os, moderados, as modas são lambem simples, ducenli's i' honestas; pelo contrario, são as modas extra- vagantes, dissolutas, obscenas, quando os costumes são desenfreados e escan- dalosos. O trajo de cada époclia da Historia de França é, por assim dizer, um espelho fiel dos hábitos da vida intima das famílias. Basta por exemplo ver a represenlaçã.0 fi^i dos trajos dos homens e mulheres do século xvi, para reconhecer de uma maneira exacta que eslc século foi mais inclinado á pros- tituição que todos os precedenles.

Seria fácil escrever a historia do trajo em França, sob o ponto de vista dos costumes, desde os tempos mais remotos. No emlanlo, limilar-nos-hemos aqui a procurar episodicauicnle os caracteres mais salientes do que se poderia chamar a prostituição indumentária de ambos os sexos. Pretendemos apenas esboçar este vasto e curioso assumpto, dizendo comtudo o bastante para termos como assente (|ue a moda foi sempre entre os nossos maiores o reflexo dos seus costumes.

A moda não é ordinariamente senão uma forma e uma expressão do luxo, que tão funesta inlluencia exerce na moralidade publica, e que abre, por assim dizermos, a porta a todas as loucuras, a todas as desordens e a todos os vicios. O amor do luxo conduz á libertinagem e aconselha a prostituição; é o atlraelivo e o chamariz de todas as paixões más. Ha em todo um povo uma emulação ardente e desordenada para o mal, quando o objecto único de todos os pensa- mentos e de todas as acções humanas não é mais do que a satisfação immode-

HuTOBU DA PaoiTiruiçÃo. Tomo n— Folha 53.

4-18 HISTORIA

rada dos sentidos c da vaidade. N'estas circumstancias, a moda é simultanea- mente um alarde de orgulho e uma excitação á incontinência.

Os soberanos tentaram por mais de uma vez pôr limites ás exaggerações do luxo, por meio de leis sumptuárias regulando o trajo especial de cada classe de cidadãos. Em todo o caso, não attenderam senão á qualidade e valor dos objectos materiaes que haviam de auctorisar ou prohibir, e as suas prescripções são, portanto, puramente económicas e politicas. Umas vezes pretendem que cada qual vista segundo o seu estado, e que por meio dos trajos, como diz uma ordenação de Carlos vii, possa reconhecer-se a classe da pessoa, seja ella príncipe, nobre ou plebeu ; outros querem que os seus vassallos não se arruinem com vestidos sumptuosos, impróprios da sua condição e estado, como se n'uma ordenação de Carlos viii, que recorda ao mesmo tempo que taes abusos são desagradáveis a Deus, nosso Creador: outros ainda pretendem que o paiz não se empobreça com a compra de certos artigos estrangeiros, que fazem sahir do reino uma parte do numerário, como se diz n'uma ordenação de Carlos ix ; nenhum d'elles, porém, tracta de manter a decência do trajo com regulamen- tos fixos e uma penalidade severa. Recommendar, exigir, impor a modéstia do trajo, é da competência do poder ecclesiastico; a elle pertence condemnar, proscrever e anathematisar as modas, que não estão em harmonia com o pudor que a religião chrislã impõe a todos os seus filhos.

Não deixam de encontrar-se aqui e alli nas leis de policia ordenações do parlamento, que prohibem o uso de trajo.s dissolutos: ainda assim não eram designados sob esta denominação os vestidos immodestos que os dois sexos usavam á porfia, como refinamento de galanteria e de sensualidade. A lei civil não atacava senão os excessos do luxo. a lei religiosa e a lei moral, desde a introducção do christianismo nas Gallias, podiam reprimir a licença das mo- das, e vigiar os trajos sob o ponto de vista dos costumes.

Nos primeiros tempos da monarchia, hom\^ns e mulheres usavam trajos largos e amplos, que dissimulavam os movimentos do corpo sem deixarem nada a descoberto. Os francezes adoptaram o trajo romano, a toga, a chlamj'de e a túnica, conservando as bragas ou calções dos povos bárbaros.

O trajo da mulher, mais simples ainda que o dos homens, compunha-se de uma túnica de ampla e fluctuante até aos calcanhares e de um manto preso ao hombro. Usavam além d'isso um longo véu, em que se envolviam completamente e que prendiam á cabeça com um broche de metal. Fosse qual fosse a classe da mulher, não se mostrava em publico, senão honestamente velada, e tinha um cuidado especial em não deixar ver sob aquellas vestes ro- çagantes forma alguma reveladora do seu sexo.

O amor dos adornos e enfeites, esse traço distinctivo da nação, apenas se traduzia pelos braceletes de ouro macisso, auneis, collares e jóias de toda a espécie. A mulher mais carregada de ouro era a mais adornada, e comprehen- de-se que esta necessidade de brilhar a todo o custo fizesse ás vezes vacillar a virtude.

Bem depres.sa, porém, o bello sexo se mostrou mais cioso dos seus di- reitos e vantagens. As mulheres começaram a usar túnicas, cujo feitio deli-

DA PROSTITUIÇÃO 4 I

neava as formas, modelando-se no seio. Em seguida estas túnicas decotaram-se ainda em volta do pescoço e até ao principio dos hombros. Mais tarde, para dar graça ao movimento do andar, ajustaram-se mais ao corpo debaixo da cin- tura, de modo que dessem relevo ás nádegas e aos músculos das pernas, que até então desappareciam completamente sob as espessas pregas da casta e an- tiga túnica das gaulezas.

Apesar d'isto, porém, nenbuma mulher honrada ousaria facilmente, an- tes do século XII, arrostar os olhares dos homens com um trajo que deixasse vèr o seio, os hombros e os braços.

Talvez fossem os homens que começassem a relaxar a decência do trajo nacional, a que Carlos Magno quiz dar a antiga singeleza franca. Em um sy- nodo celebrado em Reims, em 973, Raul, abbade de Saint-Rémy, queixou-se dos seus frades, que, ajustando os hábitos sobre as nádegas, pareciam por de- traz mais umas cortezãs do que austeros religiosos. (Chronica, de Richer, lib. m.) Estes mesmos frades usavam calções impudicos (iníqua) de desme- dida largura, e de fazenda tão transparente que nada occultavam.

Desde esta épocha, o calçado à la poulaine, de garra ou de bico, foi usado por mais de quatro séculos, apesar dos analhemas dos papas e das reprehen- sões dos pregadores. Este calçado foi sempre considerado pelos casuistas da Edade-Média, como o mais abominável emblema da sensualidade. A primeira vista não se percebe muito bem o que poderiam ter de escandaloso esses sapatos terminados em garra de leão, bico de águia, proa de navio, ou outro qualquer appendice de metal. A excommunhão imposta a esta espécie de cal- çado procedia da impudente invenção de alguns libertinos, que o usaram em f(5rma de phallo, ou membro viril. Este calçado phalloide foi egualmenfe ado- ptado peias mulheres, que talvez nem comprehendessem bem o que a moda lhes fazia usar nas biqueiras do calçado.

Este calçado, maldito de Deus, como era então denominado, fora também prohibido pelas ordenações dos reis ((Cédula de Carlos v, de 1 7 de outubro de 1367, relativa ao trajo das mulheres de Montpellier).

Comtudo isto, porém, as damas principaes e os grandes senhores não deixaram de usar este calçado, por certo mais honesto então do que aquelle que suscitara a indignação da Egreja, e que segundo a expressão do continua- dor de Guilherme de Nangis, parecia querer tirar do seu logar os membros iiumanos. Por esta razão Carlos v, de accordo com o papa de .4vinhão, Ur- bano V, prohibiu o uso d'este indecente calçado :

Quia res erat valdè liwpis el qiiasi contra creationem naluralium inem- brorum circa pedes, quin ima alimus nalunv videbatur. (Continuator Nangis, an. 1365.)

A moda arrostou, porém, com os edictos reaes, porque no tempo de Luiz IX a gente da corte usava ainda esses appendices de vinte a trinta centí- metros de comprimento, d' une quarlier de long, como ao estylo da épocha di- zia Monstrelet, ou o seu continuador. Estes appendices, porém, não tinham formas obscenas, voltando-se apenas para cima como o calçado chinez ou turco.

Temos de attribuir precisamente ás cruzadas a variação do trajo nacional

420 HISTORIA

francez. As modas do Oriente foram impo"tadas em França pelas cruzadas eom as sedas do paiz, e a juventuJe nobre cffL'minou-se para logo, apropriando-se os usos e hábitos do luxo asiático. Não se viam por essa épocha senão teci- dos de ouro, panos de purpura, sedas, selins, pelles preciosas, bordados e fran- jas, em vez dos grosseiros tecidos de e de pelle de cabra, que chegavam até alii para os fatos dos nossos maiores.

Vimos como o luxo foi projudi -iai aos hons costumes. Pôde dizer-se af- foitamente que, desde esta épociía, sobre tudo as mulheres se deixaram arras- tar a todo o impudor do que hnje denominamos a toilelle. A partir d.i século XII, renunciaram á simplicidade e castidade, para seguirem com desenfreada paixão o culto da moda, que veio a ser desde esse tempo uma divindade com- pletamente franceza.

Eis em que termos Roberto Gaguin se pronuncia contra este culto pro- fano, que o demor)io da luxuria parecia ter inventado :

«Esta nação, diz elle lallando dos írancezes, entregue ao orgulho c á li- bertinagem, não faz senão desvarios c loucuras. Umas vezes os vestidos que ella adopta são muito largos, outras muito estreitos; aprescnta-os agora com- pridos e logo curtos. Ávida sempre de novidades, não pode conservar por es- paço de dez annos a mesma fíírma de vestidos. (Compendiuni Uobeni Gaguini, lib. VIII, anno 134(i.)

Dir-se-hia que em toda a Edade-Média houve uma espécie de porfia en- tre os inventores da moda para deformarem o corpo do homem com vestidos ridículos ou monstruosos, a que o chronista (iaufredo Vosiensis chama defor- mila.s vestinni, e para accrcscentarem á creatura de Deus alguns attributos do diabo, tal como a imaginação dos pintores e dos estatuários o havia creado. Assim, podemos coiisideiMr o calçado à la pouíaine como uma imitação do fendido que se altribuia a Satauaz e á sua infernal familia. D'aqui sem duvida a cólera da Egreja contra a audaz pretensão do homem libertino se assimilhar physicamente com o espirito maligno.

A' mesma origem foi certamente buscar a moda do século xiv os cornos e os rabos. Os cornos extraordinariamente largos e elevados, que adornavam lateralmente o toucado das mulheres no tempo de (larlos vi, chegaram a tomar taes proporções, (]ue as portas das salas não eram sutiicientemente grandes para que uma dama assim adornada podesse passar sem se abaixar.

Um pregador da corte fulminou os raios da sua cólera contra os cornos, exactamente o mesmo que os seus predecessores haviam feito contra o calçado phalloide.

«Depois, diz Juvenal dos Ursinos, na sua chronica, as damas levantavam e abaixavam os cornos, e lizeram como os caracoes, que, quando sentem algum ruido, os retiram e escondem.»

As caudas, que mereceram também as imprecações dos pregadores, eram mais ou menos deshonestas e desenvolvidas por baixo das saias e nas extre- midades dos capuzes. As caudas dos vestidos, que Olivier Maillard considera como invenções diabólicas em muitos dos seus sermões, ficaram não obstante em uso sob a protecção da etiqueta.

DA PROSTITUIÇÃO 421

As dos capu/es, que cabiam pelas costas dos homens e das mullieres e chegavam até ao chão, cnrolavam-sc a principio sobre o hombro e depois ao pescoço.

Não podemos conjecturar se um orgulho satânico poz em moda as gar- ras, os cornos e os rabos, ou se um gosto depravado aconselhou os homens e as mulheres a diminuir ou a augmentar nos seus trajos as proporções de cer- tas partes do corpo. A origem d'cstas illusões de trajo accusa certamente o de- sejo de corrigir a natureza no que ella pode ter de defeituoso ou imperfeito. Procurou-se talvez, com o auxilio dos prestígios do toucado, descobrir o meio de occultar os vicios da forma: a muliíer demasiado magra quiz parecer gorda, e pelo contrario a mulher demasiado gorda quiz dissimular a sua adi- posidade.

«É preciso, diz Maria de Romien, na sua Inslrucrão ás damas, é preciso remediar os defeitos e imperfeições da natureza o melhor que podermos.»

Devemos reconhecer, porém, que a maior parte d'eslas exaggerações da forma de trajar tiveram por objecto satisfazer instinctos e caprichos de liberti- nagem, porque similbantes exaggeros aflectaram sempre as partes do corpo que principalmente influem nas imaginações licenciosas. Assim, as nádegas, as pernas, a cintura, o collo c o seio foram sempre nas mulheres as formas que excitaram a arte das costureiras e modistas ; pela sua parte, a industria do alfaiate procurou sempre pôr em relevo e offerecer á vista com descarado cynismo os membros mais desiioncstos do homem.

Esla alTcctação indecente de ambos os sexos nunca foi mais sensível do que no tempo de Carlos vi, e devemos alfribuir á garridice desenvolta da rai- nha Isabel de Baviera os extravios das modas do seu tempo, em que a pros- tituição tão audazmente se rellecliu no trajo da corte.

Christina de Pisan, aquella honesta e casta dama, que por esse tempo compunha o seu Trésor de la cite des dames, não foi decerto muito estimada n'aquclla sociedade depravada, que bem pouco se importava aprender d'ella como as mulheres da nobreza devem ser recatadas no vestir. (Christina recom- mendava-lhes expressamente que não fossem insolentes nos seus trajos e modo de vestir, nem nos costumes nem nas maneiras.

Uma das razões que ella apresentava contra o luxo immoderado da moda, era que «o fato dissoluto fornece ao homem occasião de peccado, de murmu- ração, ou de appelite sensual.»

Este appetile ou desejo é, elTectivamente, uma das más paixões a que a moda se dirige especialmente, e Christina de Pisan notava com justiça «que o mais perigoso e inconveniente que tem para a mulher o trajar deshonesto é a ideia que d'ella podem formar os néscios, de que se veste assim para ser sensualmente desejada.»

Eis algumas das virtuosas instrucções, que Christina ás damas e don- zellas, mas que ninguém acceitava nem seguia :

«Convém, portanto, a toda a mulher que quer guardar a sua boa repu- tação, que seja honesta e desaíicctada. Os vestidos nem devem ser muito es- treitos nem muito largos, nem de outras maneiras impudicas, nem procurar

422 HISTORIA

coisas novas, quasi sempre deslionestas. Os inodos agradáveis, o bom porte, a compostura ficam sempre bem a toda a mulber.»

Apesar d'estes prudentes e bonestos conselhos, as contemporâneas de Cliristina não se contentavam com os trajos modestos, e porfiavam em mos- trar-se aos olbos dos homens com todos os requintes da elegância sensual da sua épocha.

Usavam hennins, ou altos capuzes de orelhas e cornos, vestidos de cauda arrastando pelo chão, surcots, ou corpctes justos, sapatos ã la poulaine, todos os enfeites e adornos dos seus eslals e bomhans, e o seu gosto era mostrarem a sua aptidão para a luxuria, o seu en boii poinct, como se dizia em França no estylo da épocha.

O poeta da corte de Carlos vi, Eustáquio Deschamps, no poema intitu- lado Miroir de maringe. Espelho do matrimonio, anima as solteiras que procu- ram marido a adoptarem os vestidos da ultima moda para tornarem mais ap- parentes o seio e a garganta.

Ainda que a magreza nas mulheres fosse mais rara n'oulro tempo do que actualmente, havia não obstante mulheres magras que se teriam julgado des- honradas, se não adquirissem por meios artificiaes a gordura que lhes faltava. Era aquillo ainda a infância dos falsos attractivos, que desde aquella épocha até nossos dias não deixaram de fazer parte essencial da compostura da mu- lher. O poeta Eustáquio Deschamps, no poema citado, não os deixa no ol- vido, e dá-se até mesmo ao trabalho do indicar o modo de os fabricar, de forma que pela descripção do poeta tinham quasi o aspecto de um corset moderno.

Uma mulher da moda n'aqueile tempo devia fazer sobresahir as nádegas e quadris, dando ás suas formas posteriores grande amplitude e proeminência. O processo menos íiclicio consislia em apertarem muito a cintura, afim de pa- recerem mais amplas e desenvolvidas estas formas, debaixo do busto oppri- mido por aquella espécie de corset, de que falíamos.

Eustáquio Deschamps descreve este processo como se houvera aprendido a poesia n'um atelier de modista. Segundo a sua descripção, o vestido de uma mulber da moda devia ser estreito dos lados, largo e entufado atraz, guarne- cido com esse accessorio (|ue chamamos lournuve, menos largo abaixo dos joe- lhos, e cabindo sobre os pés em forma de fundo de pipa.

As miniaturas dos escriptos da épocha permittem-nos apreciar o aspecto extravagante, rigido e desengraçado, que similhantes vestidos davam ás mu- lheres.

Weste modo de vestir, o peito estava inteiramente descoberto, pectus dis- coperlum usqae adve.ntre.in, diz Olivier Maillard iVuin dos seus sermões. Esta espécie de vestidos, abertos por diante até ao ventre, foram inventados pela rainha Isabel, e o povo que se indignava d'cste luxo escandaloso, cbamou-lhes vestidos à la grande (jorre, como quem diz á grande porca. Chamava também gorrières, ou porcas, ás mulheres que os usavam, e consideravam como mulheres publicas as (jue não tinham a procancão de segurar com um broche a abertura do peito.

Desde os fins do século xiv, existiu sempre nas modas das mulheres uma

DA PROSTITUIÇÃO i?3

intenção mais ou menos pronunciada de patentear o que se fingia querer en- cobrir.

Se a licença de costumes d'aquella épocha trouxe a deshonestidade do trajar, se o amor do luxo foi o principal agente da prostituição, precisamos confessar que o galanteio ensinou as mulheres a serem limpas, ellas que ate então eram tão porcas e tão pouco cuidadosas de suas pessoas. Um provérbio popular, referido e commentado por Bernardo de Verville no seu \lot]en de par- tenir, prova sullicientcmente que as mulheres honestas se jactavam de nunca se permittirem ablucções secretas.

Segundo este provérbio obsceno, as cortezãs lavavam outras partes do corpo que não fossem a cara e as mãos.

O desejo e a necessidade de agradar ensinaram evidentemente as damas a ser limpas e acceiadas, a perfumarem-se e a combater com cheiros agradá- veis as emanações nauseabundas da enfermidade humana. Parece, no emtanlo, que certos cuidados de toucador foram a principio desprezados pela preoccupa- ção nacional, e que decorreu muito tempo antes de se empregarem. Se as mu- lheres, porém, rodeavam do mais profundo mysferio estas delicadezas do acceio local, não receiavam confessar o uso que faziam dos cosméticos, pelo que se lhes deu a alcunha de muguettes, isto é, presumidas.

Até ao século xvi a limpeza do corpo não era uma condição essencial da belleza feminina. Maria de Romien, na sua Instrucrâo das damas, convida-as a estarem sempre muitas limpas, «ainda que não seja senão para satisfacção própria, ou de seus maridos.»

E accresccnta :

«Não se deve fazer o que fazem algumas, que eu conheço, que não tcem cuidado da limpeza senão do (jue apparcce á vista, conservando-se immundas por baixo das roupas. Eu quero que uma joven se lave frequentemente com agua em se hajam misturado alguns perfumes, pois não ha nada mais certo do que o acceio e limpeza fazerem llorescer a formosura da dama.»

Nas Controvérsias do sexo masculino e feminino, de Graciano-Du-Pont, senhor de Drusac, publicadas era 1530, lê-se que, não obstante as leis natu- raes da limpeza, as mulheres usavam mais de perfumes do que de agua limpa, com o que não faziam mais do que augmentar o mau cheiro que pretendiam destruir. Drusac diz que algumas d'eUas, as gordas sobretudo, usavam espon- jas perfumadas, «entre as coixas, debaixo dos assentos, para não cheirarem a bacalhau, a suor, e a outros fedores infames.»

E' mister ler estas Controvérsias para se fazer ideia do que era a por- caria de quasi todas as mulheres, e principalmente das honradas, apezar do seu abuso de perfumarias, que não consideravam de modo algum como uma deshonra.

O senhor de Drusac refere que algumas d'ellas costumavam usar (-alças quando dançavam as danças lombardas ou alegres, e que essas calças estavam ordinariamente tão cheias de manchas, que cheiravam peior que uma latrina. Não era isto um perservativo ellicaz da sua virtude ?

Os banhos de agua do rio, fria ou tépida, quasi não estiveram era uso

i84 BkSTOKIA

antes do século xvii. Tomavam-sc apenas no interior das casas ricas, quando se voltava de uma viagem ou antes de se sentar á meza.

Na Chronica escandalosa de Luiz xi, vemos que este rei, quando ia ceiar ou pernoitar em casa de alguns moradores de Paris, encontrava sempre um banho tépido á sua espera. JNada era menos geral, porém, do que esta es- pécie de banhos, a que todos preteriam os simples banhos de vapor, e para esse fim iam ás estufas.

Estes eslabelecimenlos públicos multiplicaram-se em Paris ate ao século XII e foram muito frequentados até ao século xvi, cm que foram abandonados, não sabemos bem porquê. Eram uma imitação dos costumes orientaes, que as crusadas haviam importodo em França.

As mulheres, porém, pelo menos as que tinham em alguma conta a sua reputação, nà) iam ás estufas, onde se encontravam parteiras, criadas de servir e mulheres de vida.

«Assim, dizia Chrislina de Pisan, banhos e estufas, e a frequentação de taes companhias, como as que existem alli, sem necessidade algutna, são ape- nas despezas superlluas, sem que possa provir de tal bom resultado, e por isso de cousas taes mulher prudente que se prése, deve abster-se caulellosamente.»

Deduz-se de uma multidão de testemunhos, todos concordes, que a mu- lher que frequentava as estufas não voltava d'ellas limpa do physico, senão á custa da sua pureza moral. l'"is o motivo porque estas estufas foram equipa- radas aos logares de prostituição.

Os homens podiam jactar-se, pois, de serem mais difficeis em questões de limpeza do que as mulheres, e por isso se habituaram menos do que ellas aos perfumes e arrebiques. iNo emianto, em modas e atavios modellavam-se sempre pelo sexo, que era o arbitro soberano destas preoccupações mundanas. Em todas as épochas eríi que o luxo dos vestidos se resentia da depravação dos costumes, os homens, do mesmo modo que as mulheres compraziani-se, se- gundo a expressão de Dulaure, em desfigurar a forma, refazendo por assim dizer a obra do creador, sob a inspiração de uma ideia indecente ou libertina.

Assim, quando as mulheres se empenharam em fazer resallar artificial- mente as formas do seio, das pernas, das nádegas e do ventre, os homens, diz Monstrelct, usaram vestidos tnais curtos de que nunca, de forma que se lhes via a saliência do trazeiro e o volume das pudendas, coisa deveras impudica e indecente. Usavam também nos gibões grossos mahoiíres, para fingirem que eram largos dos hombros.

Os mahoiíres eram apparelhos acolchoados, que augmenlavam o volume dos hombros e guarneciam o antebraço, de maneira que o franganote mais es- quálido podia assim offerecer o aspccio de um Hercules.

A vaidade masculina não parou aqui, porém.

•«No tempo de Carlos vii, diz Ludovic Lalane, no seu Diclion. Enajclo- ped. de la France, artic. Coslumes, gcncralisou-sc a moda dos homens artificiacs ou enchumaçados, chamados mahoiíres, de que pendiam grandes mangas acolchoadas, e a das braguelles, que se collocavam ao meio das calças e se adornavam com franjas e fitas.»

DA PROSTITUIÇÃO 425

Os historiadores lia moda faliam com grandes reservas d'esta parle das calças, ou d'este evlranho appendice a que se chamava liraguetti' ou breijette. nos séculos xv e xvi, e que nos seria dilíicil considerar como uma moda his- tórica, se não a encontrássemos nos antigos quadros e f^ravuras. i\'a sua origem, era uma bolsa ou funda de coiro, separada inteiramente das calças, a que se unia por meio de nós ou laços.

Comprehende-se que esta singular peça de vestuário não esteve em uso a principio senão entre a gente do povo. C.onsiderou-se, porém, como moda, e quando todos se habituaram a véi-a, não houve inconveniente algum cm lhe dar foros de cidade e de iiobrc/.a. Desde logo muitos homens, sem distiiicção, tanto o rei como o trabalhador, adoptaram a liraiiaeiíe, e a cxhibiram á vista das damas, que olharam para ella sem rubor.

A origem da hroíjuelle remonta sem duvida á hisloi-ia das armas defen- sivas.

A este respeito, pôde Icr-se um capitulo ijc l^antai/nifl (iib. iii) intitu- lado: De como a hrmjuetle c' pritneirn pfva de armadura entre a (jeiíle de guerra.

Quando um homem de guerra estava armado dos pés á cabeça e coberto de chapas de ferro, uma caixa de metal, guarnecida interiormente por uma es- ponja protegia-lhe as partes pudendas. Esta caixa foi substituída por uma rede- sinha de aço, e depois por uma bolsa de couro. O couro não tardou muito a ceder- o logar a pannos de ou de seda, logo que a braguelte veio a ser uma peça do Irajo civil, c como que para melhor despertar a attenção, enfeitou-se com fitas, com dourados e até com jóias.

1'ma passagem do Garijanlaa, em que Kahelais descreve minuciosamente o trajo de um heroe, uma ideia exacta do efíeito que devia produzir uma d'aquellas braguettes-monsivos, que estavam cheias de vento. E' preciso não esquecer que o Gargantua era um gigante enorme, que olhava para os pari- sienses como que do alto de uma torre.

Para a bragiiette d'este collosso foi mister empregar perto de vinte me- tros de panno de estopa, branco, e deu-se-lhe a forma de um arco de aboboda preso por dois anneis de ouro, que enlaçavam dois broches de esmalte, em cada um dos quaes se engastava uma grossa esmeralda do tamanho de uma laranja, «porque, como dizem Orpheu e Plinio, não tem virtude coercitiva nem confor- tativa do membro natural». A abertura da braguelte era do comprimento de mais de um metro, dehiuada, como os calções, de <lainasco azul.

«Yendo, porém, o bello bordado de canulilhos e os preciosos lavores de ourivesaria, guarnecidos de finíssimos diamantes, de rubis, de turquezas, esmeraldas e pérolas pérsicas, comparar-se-hia á cornucopia da abundância, tal como se na antiguidade, e tal como a que deu Rhéa ás duas nymphas Adrastea e Ida, amas de Júpiter: cornucopia, galante, succulenla, sempre ver- dejante, florescente e fructificante, cheia de humores prolíficos, (lòres, fructas e delicias. Por Deus juro que era bello de ver!»

Rabelais occupa-se tantas vezes das braguetlea, no decurso da sua bur- lesca historia, que é fácil comprehender o importante papel que desempenha-

HlSTORIi DA PBOSTITDIÇÍO. TOMO n— FOLHA 54.

426 HISTORIA

vam no mundo. O mesmo jocoso auctor falia até de um livro que havia es- cripto a respeito da dignidade e impoiiancia das braguettes.

O reinado d'este acccssorio dos trajos masculinos chegou até Henrique III, em que os alfayatcs tiveram a ideia de o substituir pelos calções á suissa.

De resto, no decurso do século xvi, o trajo dos homens sem ser amplo nem largo começou a ter uma decência que não tivera até então, embora os velhos e os libertinos usassem ainda a antiga braijuette, «esse vão e inútil mo- delo de um membro que nem sequer podemos nomear honestamente, e do qual, sem embargo, fazemos mostra e gala em publico». {Essais, de Miguel de Mon- taigne, lib. 1, cap. 22.)

Os trajos enchumaçados estavam em moda; a nosso vêr, porém, não se dava uma intenção deshonesta áquella mania de pôralgodão em tudo, enchendo assim o peito, o abdómen, as pernas, as costas, com almofadinhas enchumaçadas.

Lemos, todavia, em alguns auctores que os costumes italianos, que a esse tempo reinavam na côrtc de França, foram as causas únicas d'aquella os- tentação de formas redondas e voluptuosas, que os jovens libertinos invejavam ás mulheres. Estas, pelo menos, mostravam-se fieis ás tradicções do seu sexo, descobrindo quanto possível o seio, e ostentando todos os atlribulos da Vénus Callipygia.

As basquines, inventadas d'ahi a pouco, fizeram furor. Um commenta- dor da Satijre-Menippée (Edic. de Ralisbonne, ITPG. t. ii, pag. 388), diz que estes trajos foram inventados pelas cortezãs para occultarem a sua prenhez. Assim, quando as mulheres honradas quizeram rehabilitar esta moda, adop- tando-a, um franciscano, que ao tempo pregava em Paris, disse n'um sermão, que as damas haviam deixado a virtude, mas que lhes havia ficado a sarna.

Esta moda estava em voga em looO. Um poeta moralista, embora jo- coso, publicou por esse tempo uma satyra a respeito d'este trajo. A peça teve bastante êxito para excitar o estro salyrico dos imitadores. Um d'elles compoz e deu á luz a Querella do c. . . contra os inventores das basquines. Outro fez logo em seguida a resposta da basquine ao c. . . em forma de invectiva.

Os postiços que as mulheres usavam posteriormente tomaram um nome grosseiro, que se manteve na linguagem usual por espaço de mais de quarenta annos. Quando uma dama queria sabir, dizia ás suas criadas : «Tragam-me o c...» E as criadas, que o procuravam, respondiam: «Não apparcce o c... da senhora», ou então: «O c... da senhora perdcu-se». (V. o Dialogo da nora linguagem franceza italianisada, por Eslicnne, edic. de Auberes, 1o79, p. 202.)

Lé-se também na Salgre- Menippée, escripla em 1393:

«Mandou-se igualmente ás mulheres que usassem grandes c. ..»

A grosseira palavra, de que as damas se serviam sem resguardo para de- signarem as suas basquines, fora inventada pelo povo, que com repugnân- cia se acostumou a similhanle moda. As más linguas perseguiam com ditos sa- fyrieos e injuriosos as que ousavam aprcsenlar-se cm publico tão ridiculamente vestidas. O auctor anonymo da salyra contra as basquines faz-llies guerra sob o ponto de vista christão, e aprcsenta-as como dissoluções infames, que não serviam senão para produzir escândalo e arriscar a salvação dos homens. Pre-

DA PROSTITUIÇÃO 427

tende ainda provar que toda a mulher que se deshonra com esta moda disso- luta é uma ribalda, ou uma desavergonhada, uma alcoviteira ou uma adultera.

O auetor da Querella, de que acima falíamos, tracfa este assumpto com muito menos severidade. Queixa-se apenas de que esta moda expõe mais a virtude da mulher a assaltos perigosos, contra os quaes o antigo vestido es- treito as defendia. Refere nos termos mais livres o favorável serviço que pres- tava a basquine, quando um amante queria conseguir os seus fins, e assegura que Lúcifer inventou por certo uma moda tão favorável á libertinagem para ter a complacência de comprometter a honra das mulheres, que tinham a des- graça de cahir. «Depois que isto se inventou, diz elle, as mulheres são mais descaradas, e se caliem, vé-se-Ihe ludo.»

Estes trajos serviam também para occultar a preniieí por espaço de cinco ou seis mezes e conservar á mulher gravida a apparencia fina e delicada das que o não estavam. Segundo uma pas.sagcm do Dialogo acima citado, parece que esta moda não tivera por fim dar a apparencia de gordas ás magras, como muita gente suppoz.

No melado do século xvi, as mulheres magras eram muito mais estima- das que as gordas.

Diz o francez que figura n'cste Dialogo:

«As damas venezianas procuram por todos os meios parecer, não direi gordas, mas obesas, e contam-mc que para este fim fazem uso da noz da ín- dia entre outras viandas. Sabeis como as nossas damas detestam esta gordura.»

No emianto, para significar que nem ludo era algodão nas modas d'aquelle tempo, fazia-se o elogio de uma mulher empregando este italianismo: «E' um hom vestido.» Os homens, porém, preferiam a carne á gordura, o que bem se manifesta n'esta profissão de de um libertino latinista :

Carnarius sum, pinguiarius non suni.

Estes trajos foram abandonados no tempo de Luiz xiii, mas reappare- ceram, annos depois, com proporções phantasticas e com os nomes de mrtuga- din, paniers, luslucru, etc.

De resto, haviam trazido comsigo um antigo costume que não interessava menos á limpeza que ao pudor: as mulheres tinham voltado ao uso das calças, tanto para se preservarem do frio e do pó, como da vergonha de uma queda.

«.4lém d'isso, as calças, diz o francez italianisado dos Diálogos de Es- tienne, livra-as de alguns jovens dissolutos, pois que, mettendo-lhes a mão por debaixo das saias, não póJeni de modo algum tocar-lhes na carne.»

Cremos que a moda das calças para as mulheres era essencialmente fran- ceza, por isso que esta moda, introduzida na còrle ahi pelos fins do século XIV, recommendava-se por variadíssimas razoes de ulilidade e decência. A moda, porém, dos vestidos abertos, decotados, sem peito, essa moda que reinou era lodo o século xvi, foi introduzida cm França com os costumes italianos no rei- nado de Francisco i.

N'aquella épocha, o povo chamava mulheres à la grande yorre ás que

i28 HISTORIA

usavam os vestidos abertos no peilo. Os vetilidos d porca eram apenas uma recordação vaga n'esse tempo, apesar do escândalo que haviam causado, quando Isabel de Baviera os pòz em uso. Foi evidentemente a Itália que deu o exem- plo d'este novo abuso da desnudez do seio. Uma salyra impressa em 1612, que tiniia por titulo «A moda do tempo e as suas particularidades», auctorisa-nos a sustentar uma tal accusayão contra esse bello paiz, que foi n'csse tempo o foco da corrupção.

Foi d'alli que veiu também a moda de apresentar com impudor o peito à vista, elevado artificialmente, para recreio dos libertinos, e por isso se dizia n'aquelle tempo:

Jeanne qiii fiiit de xon telon parure,

Fa/t veoir h tous que Jennrip reiít jiaslure.

Os poetas e romancistas da cpocha fallatn-nos d'esta escandalosa nudez do seio, favorecida pelos esparlilbos de aço e de baleia.

No Discurso noco da Moda, exceliente satyra em verso publicada em IGI3, o auctor anonymo, depois de descobrir sem grande repugnância

D'un large sein le tetín bondissant,

diz-nos que, se por um resto de pudor, a mulher honesta usava ainda pannos e lenços para cobrir o peito, a maior parle, do que tractavam era de se apre- sentarem em completa nudez.

As mulheres gostam muito fie deixar ver a alvura alabastrina do seio, com que lançam dardos cem vezes mais luxuriosos do que com o fulgor lú- brico do olhar.

Nunca em c|)ocha alguma as mulheres do bom tom haviam posto maior cuidado e esmero na arte de se ataviarem e patentearem a altura do seio, e pa- recerem o (|ue então se chamava honne cuiiche. A mais magra, á força de aper- tar o busto, encontrava meio de fazer avolumar os peitos, com auxilio, é claro, de almofadinhas de algodão. A mais gorda não procurava dissimular a enormi- dade da sua lablatiire, segundo a exjiressão equivoca tomada da notação mu- sical da épocha. As próprias velhas não se julgavam dispensadas d'este imle- cente abuso de nudez.

O Divorcio satyrico, de (|ue falíamos, apresenta-nos a rainha Marga- rida na edade de cincoenta e cinco annos, «indo ao templo receber a sagrada communbão. Ires vezes por semana com a cara coberta de arrebiques, e o peito completamente nú, que mais parecia na verdade ura c. . . do que um peilo.» (Edic. de I7'ii, I. IV, p. oM.)

Apesar d'isso, Branirtme, nas suas Dnmes (jalantes, cujo manuscripto o licencioso cbronista dera a ler á rainha Margarida, não procura evitar uma al- lusão desagradável a esta [)rinceza, (|iiando falia sem reparo de certas mulhe- res ««pulentas de peilos, mas ([ue os tinham mais frouxos e decahidos do que uma vacca leiteira.» Branlòme accrescenta jovialmente «que se um ourives qualquer tomasse estes peitos para modelo de alguma taça de ouro, a sua

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obra ficaria tendo a a|t|)areiicia de uma d'essas gamellas n-doiidas de madeira, em que se de comer aos porcos.»

Nem os confessores e pregadores condemnavam esta nudez impu- dica. Os philosoplios e moralistas aconselhavam egualmente ás mulheres que não perdes.sem uma grande parte das suas vantagens, não deixando nada que desejar ao homem.

«A saciedade produz o ledio, dizia a este respeito Montaigne {Essais, lib. II, cap. XV); é uma paixão embotada e entorpecida.»

Depois, como se não tivesse visto ainda o que a moda tão escandalosa- mente ofTerecia a todos os olhares, Montaigne tinha a ingenuidade de julgar que as damas da corte de Henrique iii andavam Ião decentemente vestidas como as matronas romanas.

«Porque motivo, dizia o poeta, cego por esta preoccupação ingénua, por- que motivo andam veladas até aos calcanhares essas bellezas, que cada qual de- seja mostrar, e todos anceiam por vèr? Para que se encobrem, sob tantas pre- gas decentes, as partes a que naturalmente se inclinam os nossos desejos?»

O philosopho, apesar de não ter visto ainda a nudez escandalosa do seio das suas contemporâneas, notara ainda assim as proporções monstruosas das basquines, por isso que pergunta com uma certa malícia :

«Para que serve essa fortaleza de panno? Para que .se armam as nossas mulheres com uma inchação, senão para nos excitarem os desejos com a dilfi- culdade, e para nos attrahirem, ao passo que parecem aflastar-nos

De tudo isto parece concluir-se que o pudor, por essa épocha, consistia antes em exaggerar certas formas sob véus que mais as faziam avultar, do que em as occultar aos olhares licenciosos. A prostituição era decerto a inspiradora d'estes caprichos da moda, e segundo Branlòme pretende provar com anecdo- tas que podem lèr-se no capitulo intitulado De. la veue en amour, os olhos eram sempre os corruptores da alma e os cúmplices da imaginação.

A nudez não oflendia a vista dos homens mais graves, quando acompa- nhava, como um accessorio indispensável, o trajo de gala da corte. vimos no castello de Chenonceaux Catharina de Medicis, dando um festim, servido pelas suas damas de honor, semi-núas.

As memorias do tempo ministrar-nos-hiam uma multidão de factos aná- logos. iXada mais vulgar do que vér nos bailes, nas mascaradas, nos banque- tes, mulheres representando nymphas e deusas, com os cabellos soltos e (lu- ctuantes sobre os hombros, o peito descoberto até á cintura, as pernas e os braços nós, e o resto do corpo apenas velado por algumas gazes transparentes.

A nudez não era considerada como um ultraje ao pudor, quando se ex- cluía d'ella toda a ideia deshonesta e todo o desejo carnal. Assim, por occasião das entradas solemnes dos monarchas nas principaes cidades do seu reino, o povo comprazia-se em vér representar nas praças certos mysterios ou quadros allegoricos, por homens e mulheres completamente nús. Gabriclla d'Estrées fez-se pintar muitas vezes núa pelos pintores ordinários do rei, Raymundo Dubreuil e Martin Freminet, no acto de entrar ou sahir do banho. O que aflasta comple- tamente d'estes quadros qualquer suspeita de um pensamento libertino ou vo-

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luptuoso, é que a amante de Henrique iv, ao fazer-se pintar núa, mandava sem- pre coilocar na sala as amas de leite dos seus fiilios.

A nudez do seio não era, pois, n'aquclla cpocha senão um adorno indis- pensável do trajo de ceremonia, e os ccclesiasficos c os protestantes se for- nialisavam contra ella. A maior parle dos hclios retratos que Dumoustier e os seus imitadores executaram nos fins do século xvi provam a generalidade d'esta moda, que havia então ciiegado aos seus ullimos limites, por isso que os ves- tidos, os de gala pelo menos, eram abertos ate deixar vér metade do seio e al- gumas vezes mais ainda. Os liombros viam-se até aos sovacos e as espáduas até abaixo das omoplatas.

A etiqueta da corte auctorisava este esquecimento completo do pudor, que a moral publica e a religião condcmnavam ao mesmo tempo, sem obterem uma reforma que tanto parecia interessar aos costumes. As mulheres que iam ao tem- plo ouvir um sermão contra os vestidos dissolutos, não se envergonhavam de se apresentar com o peito descoberto, mesmo defronte do pregador. Attribuiam simplesmente ao rigorismo dos huguenoltcs a guerra continua feita pela Egreja a estas pompas de Satanaz e a estas vaidades mundanas. Elfectivamente, Gene- bra começou a fulminar maldições contra as modas impudicas.

Em lool, um amigo de Calvino publicou, sem se nomear, uma Inslruc- ção christã sobre as pompas e excessos dos homens e mulheres dissolutas, no artificio dos seus adornos e no impudor dos seus vestidos. Esta instrucção foi novamente publicada para uso especial dos calvinistas, sob o titulo de Traité de Vestal honneste des chrétiens en leur accouslrement (Genebra, J. de Laon, 1580, in-8.°), e para uso dos catholicos por Jeronymo de Choestillon, sob ou- tro titulo : Bref et utile discours sur l'iminodeslie e siuperfliúlé des habits (Lyon, Seb. Griphius, 1577, in-4.°)

Os casuisfas catholicos dedicavam-se de preferencia a censurar o luxo, sob o ponio de vista do orgulho. Os heterodoxos mostravam-se mais preoccu- pados da castidade e da decência, quando atacavam a dis.solução dos trajos. Temos de reconhecer um austero protestante n'esse Francisco Estienne, que em 138! fez imprimir em Paris um tractado de moral sumptuária, intitulado: Remoustrance chnrilahle aux dames et demoiselles de ['rance sur leurs orue- mens dissolus, pour les induire à laisser 1'habit du paíjanisme et prendre celui de la lemmç pudique et chréslienne.

Os theologos catholicos cslimularam-se, porém, com isto e não deixaraoí que fazer aos protestantes, denunciando ao desprezo das pessoas piedosas aquelJa espantosa nudez, que o padre Jacques Olivier não esqueceu no seu Álphabel de Vimperfeclion et malice des feinmes. (Paris, IG23.)

Esta cruzada dos escriptores ecelesiasticos contra a nudez continuou por lodo o século XVII, e pode registrar-se como um dos seus eiTeitos mais dispu- tados a reclusão de uma parle do seio e dos hombros no corpo do vestido. Não devemos perder de vista que os inimigos implacáveis das modas impudicas haviam tocado o ponIo mais delicado da controvérsia. Polman tomou a inicia- tiva, publicando o Chancre ou couvre-seiíi féminin. (Douai, 16.3o, in-S.") De- pois d'elle, Pedro Juvernay tocou ainda mais de perto a questão no seu Dis-

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eours particulier sur les femmes desbraillées de ce. temps. (Paris, Lemur, 1637, in-S.")

Foi grande o cxito (l'ostc livro, sem que possamos averiguar a que classe de leitores o deveu. Em IG40, porem, a i." edição apparecia com este titulo: Discours particulier conire les filies et les femmes decoucrant leurs sein et portant des moustaches. Não se dissera tudo ainda sobre o assumpto, quando um anonymo, sob cujo vcu houve quem pretendesse descobrir o abbade João Boileau, doutor da Sorhonna, irmão do grande salyrico, publicou finalmente a obra prima do género: De l'abus des nudilcs de la gorrje. (Bruxellas, 1675.) A segunda edição (Paris, 1677) era augmcntada com a ordenação dos vigários geraes de Tolosa contra a nudez dos br.iços, dos bombros e do seio.

O marqucz de Rouze fez na sua Analecta-Bibllon uma curiosa analyse <l'este celebre tractado, em que o auctor examina em 113 paragraphos o damno e peccabilidade da nudez dos bombros e do seio :

«Não sabem as mulberes, lé-sc na referida analyse, que a vista de um bello seio não c menos perigosa para nós que a de um basilisco?

«Quando cilas patenteiam estas cousas, não pôde deixar de ser com intenção.

«Se as mulberes têem cm alguma conta o que diz S. João Cbrysostoniò, devem cubrir-se.

«Querem apenas agradar aos libertinos? Serão suas victimas.

«Querem agradar aos homens honestos? Então cubram o seio.

«A mulher é um templo cujas chaves estão nas mãos da pureza.

«E uma inconsequência serem castas nas palavras e não o serem nós adornos.

«Um seio e uns bombros nús dizem muito mais que as palavras.

«Deus compara uma nação corrompida á mulher que eleva o seio para o fazer ver melhor.

«Cubri-vos, senhoras, velae vossos encantos, mas cubri-os de todo, e não deixeis ver uma cousa depois de haverdes coberto outra.»

Esta controvérsia da Sorbunna acabou por chamar a attenção da corte de Roma e por decidir o papa Innocencio ix a expedir uma bulia de excom- munhão contra o abuso da nudez do seio. N'aquella cpncha, porem, a Ejíreja não estava já, como no século xvi, interessada em questões de vida ou de morte.

Comprebende-se, por tanto, que as modas licenciosas d'aquelle século depravado, tão combatidas pelos escriptores protestantes, haviam quasi esca- pado ás censuras dos doutores catholicos, que não desciam a estes pormeno- res da vida mundana, entretidos como estavam nas cspheras nebulosas do do- gma. Havia então moralistas que se constituíam em defensores da honestidade publica e que não perdoavam os vergonhosos excessos do trajar.

O venerável João de (laurrcs, reitor do eollegio d"Amicns, aqueile singu- lar prototypo de Miguel de Montaigne, falia frequentemente das indecencias do trajo dos seus contemporâneos, na volumosa coUccção das suas Oeucres mora- les et dicersifiées en histoires. (2.° edic. Paris. 0. de la Noue, Iõ84, in-8.° Umas vezes exclama:

i33 HISTORIA

«O disfarce é tão grande e tão supérfluo, que hoje se toma a mulher por homem e o homem por mullter, sem nenhuma distincção de sexo.»

Outras vezes condem na os espelhos que as cortezãs e raparigas disfar- çadas traziam á cinta, e que elle chama: «Espelhos, do peccado, pendentes so- bre o ventre.»

«Prouvera a L)eus, accresccnta elle, que fosse permittido a todo o mundo

chamar-lhes libertinas e p para vêr se se corrigem! Leiam-se todas as

historias divinas e humanas e vèr-se-lia que as impudicas e meretrizes jamais trouxeram este adorno em publico, senão agora, em que parece que o diabo anda solto por toda a Franga

O honesto João de Caurres volta repetidas vezes ao assumpto da usur- pação do trajo sexual, ao disfarce dos sexos, e indigna-se de ver as mulheres com fatos e capas de homem «o que é um trajo muito inconveniente para as ditas mulheres e prohibido por Deus no Deuteronomio, quando diz: Non in- duel/ur muUer veste virile, nec cir ntetur reste feminea, ahominabilis enim apud Deum est.»

Os cortezãos, porém, de Henrique iii, a exemplo do rei e dos seus man- cebos, levaram mais longe ainda do que as mulheres esta vergonhosa masca- rada, estudando o modo de não conservarem cousa alguma dos caracteres e attributos próprios do seu sexo. Paliaremos mais oppurtunamente d'este as- sumpto no capitulo que precisamos de consagrar aos hermaphroditas.

Brantòme os leitores sabem que o licencioso chronista estava longe de ser um moralista, muito embora fosse abbade como João de Caurres, da- nos também a coniiecer alguns dos excessos da moda do seu tempo. Citando-os porém, compraz-sf em apresental-os com uma indulgência accusadora da des- vergonha dos seus costumes. Refere sem indignação, nem vergonha, os mais exiranhos factos da preversão da corte. Renunciamos a traduzir o que elle diz, por exemplo, a respeito das almofadinhas, e do seu uso nas alcovas das bellas. Do mesmo modo ommiltiremos o que nos conta a respeito das calças usadas pelas mulheres, e as suas extranhas revelações a respeito dos arcanos do tou- cador das damas galantes.

Desejaríamos, ainda assim, indicar, como um dos stigmas da prostituição d'aquelle século, o incrível adorno inventado pelas mulheres libertinas para contentarem os seus amantes, mas preferimos recommendar ao leitor o capi- tulo intitulado De la veue en amoiir, na collecção das Dames galantes do torpe chronista da depravação da corte.

Alli se encontrarão todos os pormenores d'esta moda secreta, que as da- mas da còrle não se pejavam de imitar das prostitutas. Brantòme ouvira fallar de uma belia e honesta dama que tomava sem pudor estes obscenos cuidados, e (|ue SC presava de ser assim mais (juerida aos olhos de seu marido.

A morte trágica de madame de Rourdaiscièrc revelou uma inilccenciad'esta espécie, e causou um escândalo, cujo echo se repercutiu por toda a França. Todas as memorias contemporâneas referem o caso, que pôde considerar-se como o typo dos costumes d'aquella cpocha tão corrompida. Pedro de TEs- loile teve o cuidado de o archivar no seu registro-diario. Encontra-se também

DA PROSTITUIÇÃO 433

consignado nas observações que o editor do Journal iVHenri iii (edic. de 1744) imprimiu cm conlinuagão dus Amours du (jrand Alcandre, dizendo que estas observações «vinbam de uma pessoa que conhecia a fundo a còrle do rei Hen- rique IV.» Francisca Babon de la Bourdaiscière, tia de Gabriella d'Estrées, vi- via em concubinato com o barão d'Alpgre, que morreu com elia em 1592, as- sassinados pelo povo em Issoire, d'onde era governador ao serviço de Hen- rique IV.

Brantòme falia ainda do um dos refinamentos mais engenhosos da pros- tituição na corte dos Valois:

«Um grande príncipe que eu conheço fazia dormir as suas cortezãs entre iençoes de tafetá preto. . . »

Poderia ter accrescentado o licencioso chronista que esta invenção, attri- buida á bclla Imperia, e usada frequentemente peias grandes cortezãs italianas, fora introduzida em França sob os auspícios da rainha Margarida, primeira mu- lher de Henrique iv. O auctor do Divorcio satijrico refere a propósito d'isto que esta rainha adultera, «continuando na sua obcecada inclinação á sensuali- dade, e querendo enlregar-se a ella com maior delicia, e fora da aspereza dos Iençoes vulgares, recebia o seu amante, o senhor de Champvallon, n'um leito allumiado por diversas luzes, e entre dois Iençoes de tafetá preto, no meio de uma mullidão de caprichos voluptuosos, que deixo de referir.»

Os leitos do século xvi costumavam ser de sete ou oito pés de largura, por isso i|ue cm certas circumstancias a etiqueta, a cortezia ou a amizade exi- giam que um cavalheiro otíerecesse a outro um logar no seu leito, para lhe fa- zer honra e dar-lhe uma prova de fraternal confiança. Era um antigo costume da cavallaria esta confiança gentil, que equivalia a todos os juramentos da an- tiga fraternidade de armas.

Em a noite que pi-ecedeu a batalha de Montcontour, segundo uma rela- ção citada por Mayer, «o duque de Guise deu logar no seu leito ao príncipe de Conde e dormiram juntos.»

O auctor da Galeria philosophica ilo século xvi, (^ Paris, IT83, in-8.", 3 vol.), acc.rescenta :

«O costume de oflerecer o leito não passou de moda até á menoridade de Luiz XIV. Luiz xiii partilhou o leito do condestavel de Lu\ nes : o condes- tavel dormia no meio, o rei á sua direita e a dmiueza á sua esquerda.»

Este singular costume, que parece haver-se conservado nas classes infe- riores ate á revolução, e que prova unicamente a simplicidade dos costumes dos nossos maiores, nem sempre foi tão respeitável. E' difificil, por exemplo, não termos uma suspeita, quando a tradicção de Luiz siv nos recorda que a bella viuva de Scarron, ao depois a severa e irreprehensivel madame de Maintenon, compartilhava frequentemente o leito da sua amiga, a bella iNinon de Lenclos. Seja como fòr, quando favorita do rei e quasi rainha de França, recordava ainda cora saudade as intimas e alegres conversações da camará amarella do bairro de S. Paulo.

Kuma épocha de desmoralisaçào geral, como a que havia em França, sob o reinado de Henrique iii, tudo era pretexto ou occasião de escândalo. A

UiiTOBiA Dx Phoitituição. Tomo n Folha 55.

434 HkSTORIA

prostituição mais geral e audaz infestara tanto a vida publica como a particular. O próprio rei que dava o exemplo do vicio e que fazia gala da sua vergonhosa depravação, publicava inutilmente edictos contra o luxo. As ordenações sum- ptuárias dos seus predecessores eram «tão mal cumpridas e guardadas, que nunca se vira, em memoria de homens, dizia elle no seu edicto de 24 de março de 1583, um excesso mais licencioso nos trajos e adornos.»

O que motivava, porém, estas ordenações successivas era menos a inde- cencia do trajo que o uso immoderado das sedas, dos bordados de ouro e prata, das jóias e de todos os productos da arte estrangeira. O que preoccupava so- bretudo a nobreza, a quem particularmente interessavam estas ordenações, não era tanto ver desapparecer as modas impudicas, quanto obrigar a gente rica, mas da classe media, a soffrer um regulamento tyrannico a respeito do preço, da matéria e da forma dos seus vestidos.

Henrique iii dizia no preambulo do seu grande edicto de 1583 que os seus vassallos se destruíam e empobreciam «peia dissolução e superíluidade dos vestidos, e o que é peor e mais nos desagrada. Deus está por este motivo muito olfendido, e a modéstia vai-se quasi de todo extinguindo.»

Mas cl-rei não pensou cm introduzir nos artigos da ordenação uma disposição que fosse contra a immodestia do trajar. Prohibe com minucioso cuidado os bordados, as passamcntcrias, as franjas, os acolchoados, os diade- mas, as cadeias, os coitares, etc; enumera com a mesma severidade as diffe- renças notáveis que a condição das pessoas deve auctorizar com a riqueza do trajo; prohibe os capuzes de panno,.mais de uma cadeia de ouro ao pescoço, e mais de uma tilei ra de botões, e ao mesmo tempo os laços e bordados nos corpos e costuras dos vestidos. Mas não procura remediar as abominações e disfarces da moda, como os qualificava eriião o honrado João de Courres, que supplicava aos magistrados e mais auctoridades a graça de corrigirem a escan- dalosa relaxação dos costumes.

em 1.^76 Henrique iii havia tentado pôr em vigor os edictos sum- ptuários de Carlos ix, fazendo-os lér e publicar «ao som de trombeta e pela voz do pregoeiro pelas ruas de Paris c demais cidades do reino.» Uma multa de mil escudos de ouro devia ser imposta a todo o contraventor, homem ou mu- lher, que usasse vestidos impróprios da sua condição social.

No momento, porém, em que el-rci considerava como uma necessidade renovar as excellentes ordenações dos seus antepassados contra os excessos do luxo, «com prohibição ás pessoas que não fossem nobres, de usurpar o trajo dos fidalgos, e de apresentar como damas as suas mulheres», não attendia, nem pouco nem muilo, á indccencia do Irajo feminino.

O parlamento, apesar de haver mandado fechar o theatro italiano dos Oelosi, pela immoralidadc das suas comedias, não ousava refrear, nem refor- mar o impudor das modas femininas.

«Os excessos dos costumes, diz Pedro de TEstoiie, no seu Registro diá- rio, com data de 2o de junho de 1577, annunciando a expulsão dos Gelosi, era bastante grande já, mesmo sem taes preceptores, principalmente entre as damas e donzellas, que pareciam seguir as modas dos soldados do seu tempo,

DA PROSTITUIÇÃO 435

que fazem gala de mostrar as suas couraças douradas e reluzentes, quando se apresentam nas revistas. De igual modo fazem ellas gala dos peitos descobertos e de outras partes do peito, que teem cm perpetuo movimento, similhantes aos folies dos serralheiros, quando accendcm o fogo na sua fragua.»

As ordenações sumptuárias, que tão frequentes foram no decurso do século XVI, não se dirigiram nunca senão ao luxo ou á qualidade das sedas ou brocatins, que deviam regular-se pela condição das pessoas. Nunca atacaram os caprichos deshonestos da moda, eram mesmo indiíTei^entes aos escandalosos abusos da nudez.

Mas a religião e a moral suppriam o silencio das leis relativo ao trajar. Ambas ellas favoreceram os progressos da decência publica, e as mulheres honestas, que se terião envergonhado de se assimilharam ás cortezãs na ma- neira de trajar, encarrcgaram-se muito melhor do que o poderia ter feito o rei e os parlamentos com os seus cdictos e ordenações, de submetter a moda ás leis do pudor e da honestidade.

Não obstante, como diz Joiy, nas suas Adve)'tencias christãs para instruc- ção dos meninos, «uma das cousas mais diíliceis c tirar aos jovens a affeição dos trapos e adornos do corpo. A razão d'isto é que as mulheres desejam natural- mente parecer bem.»

A loucura havia ido tão longe em questões de vestidos e adornos, que o próprio excesso do mal produziu uma feliz e salutar reacção. Todos quizeram que a sua maneira de vestir não fosse um vergonhoso indicio dos seus costu- mes, e ninguém, execepto as pessoas de vida, procurou distinguir-se d'ahi avante por caracteres exteriores de impudor e libertinagem.

As conveniências recuperaram pouco a pouco o seu império nos domínios da moda, e as damas, reservando a nudez do seio para os bailes e outros actos de ceremonia, abstiveram-se de se apresentar nas ruas, como no século xvi, com a impudica libré da prostituição.

CAPITULO XXXVI

SUMMARIO

O Ualiineíe du rcí de Friincu.— Nicolau Beroaud não é o auctor (l'esla obra.— I,a MoDnoye refutado.— O «Segredo das rendas dtí Friinçan.— (Jucni f o seu auc'or.— Analy.stí do Gabinete, e explicação das suas ti'es pérolas. —O tractado da polyganiia sagrada.— Estatística singular da piostituição em !.')8I.— O pessoal do bispado de Lyon. —Trechos curiosos eitrahidos do livro da polyganiia sagrada.— Excessos e desordens de uma diocese —O auclor prova a exactidão dos seus cálculos pelo computo da Honarcliia az'«òo/íca.— Pormenores do estado das dioceses de Fran^ja, sob o ponto de vista da prostiluição.- Piovas singulares ministradas pelo auclor em appoio da sua estatís- tica.—O cardeal de Lorena desculpado por Branlôme.- Os pagens dos cardeaes.- Pessoal de um palácio episcopal. O baile do bispo.- Os pagens dos abbades, dus priores, dos monges, etc. Cinco artigos do ColloqutO de Poissy. Polygamia dos nobres.— Prostituição da nobr, zadn Berry —A collação do abbade.— Rendimentos do clero.— Con- clusão do libello buguenotte.— Os costumei eccli siasticos no século xvi.— Testemunhos de João de Monlluc e de Brantôme.— Informação contra o abbade d'Aurillac.— O clero recebe a inllueucia moral da Reforma.

ossuiMos um documento tão .singular como curioso sobre o es- tado da prostituição, alii por fins do século xvi. E' uma obra intitulada o Gabinete do rei de França, em que ha Ires pérolas preciosas de valor inestimável, por meio das quaes sua maijes- tade é o primeiro monarcha do mundo e os seus vassallos ficam exemplos de tudo. Esta obra rara, de que não ha senão uma edição, forma um volume de 64-7 paginas in-8.°, com cinco folhas preliminares e cinco de Índice. Não tem designação de imprensa, e apresenta a data de 1381 e a dedicatória a Henrique iii. O auctor occulta-se sob as iniciaes N. D. C, e a impressão ter- minou em novembro de loSI.

Os bibliographos apenas se tem dignado citar este livro, sem se occupa- rem do que elle contém. Conhecemos tão somente a collecção Mélamjes d'une grande bibliothéque, onde se encontra uma espécie de analyse, muito succinta e imperfeita, d'esta extranha publicação, sabida da imprensa ,secreta dos refor- mados.

Basta examinar este volume e comparar os caracteres e a maneira da im- pressão com a dos livros publicados pela mesma époeha na Rocbella, para fi- carmos lendo a certeza de que foi fabricado nas oíEcinas typographicas d'esta cidade, que era então a capital dos huguenottes.

Quanto ao auctor do Gabinete do rei de França, o doutor La Monnoye, nas suas observações sobre os auctores disfarçados de Baillet, sustenta que é Nicolau Bernaud, a quem attribue igualmente o Espelho dos francezes, que contém o estado e manejo dos negócios da França, publicado sob o pseudonymo

438 HISTORIA

de Nicolau de Montaud. Nada auctoriza ou justifica, porém, esta opinião que La Monnoye não se deu ao tral)alho de appoiar cm provas ou razões attendi- veis. A opinião suslentada peio commentador de Baillet não é um facto averi- guado em bibliograpliia, embora se quizessem interpretar as iniciaes N. D. C. por Nicolau de Crest, fundando-se esta conjectura em Nicolau Bernaud ser na- tural de Crest, no Delphinado.

Pouca importância tem, portanto, o nome do auçtor, e não entraremos em longas minuciosidades para demonstrar que Nicolau Bernaud, medico, theologo sociniano e sobre tudo investigador imfatigavel da pedra pbilosopbal, não po- deria ter nunca reunido os immensos materiaes estatísticos, que serviram para a composição do Gabinete do rei de França. Basta consignar, com referencia a uma carta de Bernaud, eseripta em Leyde em 1599, que bavia viajado por Hespanba por espaço de mais de quarenta annos, antes de ir residir na Hol- landa. (^Veja-se esta carta no seu tractado de alchimia intitulado: Quadriga au- rífera, nunc primum d Nicola Bernaurdo Delphinale in lucem edita. Lugd. Batav. ap. Cbrist. Raphetengium, 1399, in-S."»

Sentimo-nos muito mais inclinados a attribuir o Gabinete a Nicolau Fromenteau, cujo nome figurava com todas as lettras no titulo de uma obra do mesmo género publicada n'esse anno : «O Segredo das rendas de França, descoberta e dividido em três livros e agora publicado para arbitrar os meios legítimos e necessários de pagar as dividas d'el-rei, desonerar seus vassallos dos subsídios impostos ha trinta annos e recobrar todo o dinheiro dado a Sua Magestade.»

A primeira edição, muito menos completa do que esta, forma três tomos in-8.°, e havia apparecido em 1-38 1 cora este titulo dillerente: «O segredo dos thesouros de França descoberto e dividido em três livros.» O impressor, n'uma advertência que se encontra junto do frontespicio, diz que esta obra era esperada com tanta impaciência, que até se disputavam as folhas húmidas ainda, á propoição que iam sahindo dos prelos. Esta circumstancia indica suf- ficientemente que a impressão se fizera n'uma cidade protestante, onde se im- primia furtivamente.

Com etleito, o Segredo das rendas parece haver sido impresso, como o Gabinete do rei de França, na Rochella, e é muito provável que esta ultima obra anonyma publicada depois da primeira, que foi igualmente dedicada a Henrique Kl, e datada de Paris, 1 de janeiro de 1581, tivesse por auctor o mesmo Nicolau Fromenteau, cujo nome não se encontra em nenhum outro livro.

Falta agora saber se Fromenteau é um pseudonymo, sob o qual se oc- cultava algum dos mais terríveis campeões do protestantismo d'aquelle tempo.

Os principaes campeões da Reforma eram a esse tempo em França Agrippa d'Aubigné, Plessis-Mornay, Lancedot-Voisin de Ia Popelinicrc, e o fogoso mi- nistro reformado Guilherme Reboul, que escreveu muitos livros violentos, e não menos excêntricos.

Não pretendemos occupar-nos aqui do «Segredo das rendas», embora elle nos podcsse ministrar muitos factos curiosos para a historia da prostituição,

BA PROSTITUIÇû 439

como por exemplo o numero das mulheres violadas em França durante as guer- ras civis. O «Gabinete do rei de França» é um vasto repositório de dados e noticias, e por isso não precisamos de ir buscal-os a outra parte a respeito do mesmo assumpto e da mesma épocha.

Eis a analyse d'esse curioso livro :

As três pérolas preciosas que o auctor se propõe examinar, são a Palavra de Deus, a Nobreza e o Terceiro Estado que nos mostra encerradas n'um estojo, que não é outra cousa senão o reino de França. Faz em seguida a enumeração dos bens e rendimentos do clero, pretende que el-rei se apodere d'elles, a fim de com o auxilio destes novos recursos, manter exércitos, soccorrer os pobres, auxiliar a agricultura e pôr termo ás desordens que deshonram a Egreja catholica.

Indica em seguida os vicios e excessos da nobreza e as reformas que poderão restabelecel-a no seu antigo esplendor.

Finalmente falia do terceiro estado com uma predilecção mui especial. Segundo o plano financeiro, imaginado pelo auctor, o terceiro estado far-se-hia colono das terras ecciesiasticas e nobiliárias. Em seguida, encarrega-se-hia de pagar as dividas da republica, encher as arcas do rei, e prover aos dotes conve- nientes para casar todos os frades e sacerdotes.

Depois d'esta simples exposição das ideias priíicipaes do auctor, que era por certo um feroz huguenotte, perguntará talvez o leitor, que relação pode ter similhante obra com historia da prostituição.

Basta abrir o «Gabinete do rei de França», para comprehender a importân- cia dos documentos interessantes que alli se amontoam, embora não hajamos de tomar á Icttra todas as accusações que o auctor acumulou contra a nobreza c o clero do seu tempo.

Parece todavia que este auctor reunira sob o titulo de Tractado da Po- lygamia sagrada, uma immensa quantidade de notas e materiacs eslaliscos para estabelecer com a prova dos números o verdadeiro estado da Egreja catholica. Este Tractado não tinha menos de três mil folhas, e teria dado grande numero de volumes se chegasse a ser publicado. Pode aíTirmar-se, porém que jamais se imprimiu, bem que muitos bibliographos, especialmente Leduchat, nas suas ob- servações sobre a Confissão de Sancy, o tenham cilado como obra impressa.

D'esta obra tirou, pois, o auctor do «Gabinete do rei de França», o que diz sobre a polygamia e prostituição do reinado de Henrique iii.

Não obstante o exaggero dos cálculos, apezar da grosseria das reflexões que os acompanham, por mais monstruoso que seja o resultado do seu livro, é preciso reconhecer-se, ainda assim, que o auctor da estatística fez mais do que uma obra de phantazia, tendo tido o cuidado decolligir indicações precisas. Assume uns certos ares de convicção e de boa na maneira de fazer as suas investigações e de deduzir as suas conclusões, mostra-se animado de um santo horror contra a polygamia e a prostituição, dizendo que quizera ver, não todos os frades casados, mas também todos os maridos e todas as mulheres fieis. Este zelo pelo matrimonio inspira-o continuamente, e torna-o implacável contra os celibatários, adúlteros e polygamos.

«Sustento, diz elle na sua dedicatória a el-rei, que mais de quatro vezes

440 HISTORIA

setecentas mil mulheres se dão á polygamia e ao concubinato, com esses ma- gos e encantadores, que liveram por tanto tempo occultas estas pérolas no vosso gabinete.»

Os magos e encantadores são os maus sacerdotes, os falsos nobres e os libertinos de toda a espécie. O aucfor não declara de outro modo que é luigue- notte, e que sob o pretexto de reformar os rendimentos da nação, quer subs- tituir a egreja catliolica pela egreja reformada de Calvino, à qual cliama a ver- dadeira palavra de Deus. Os pormenores, porém, que elle pretende haver ex- trahido das melhores fontes, a respeito do estado moral do clero, não são me- nos preciosos, prescindindo do que possam ter de e\aggerados. Por testemunho dos próprios escriptores calholicos, sabemos que o clero não tinha uma vida mais ediíioante que o resto dos fieis, n"a(iuella épocha de corrupção universal.

O auctor do «Gabinete do rei de França», depois de citar o facto do ren- dimento total do clero se elevar a duzentos milhões de escudos, que, segundo o actual valor do dinheiro, representariam perto de dois milhões, pretende de- monstrar que este rendimento enorme é devorado pela prostituição, por isso que, segundo elle, ha mais de dais milhões de pessoas, que sob o veu da egreja gallicana, vivem a expensa; da cruz. Para comprovar a exactidão dos seus cál- culos, toma como typo um dos arcebispados de França, o de Lyon, e faz a enumeração de tudo o que compõe n'este arcebispado o pessoal da polygamia sagrada.

Sem entrarmos em lodos os pormenores d'esta espantosa estatística, antes de apresentarmos esse quadro, imitação dos que Parent-Dnchatelet forma tão laboriosamente na sua obra acerca da prostituição, julgamos que bastarão alguns trechos para fazei' ideia do processo estatístico, seguido pelo auctor.

«Enconlram-se, diz elle na pagina 19, nas dioceses d'este arcebispado mais de quarenta e cinco mulheres casadas cora homens honrados de todas as condições, torpemente' amigadas com os prelados. Além de taes adulteras, estes prelados teem tido e continuam a ter mocetonas solteiras, que lhes tem dado muitos filhos, alguns dns quaes dão o ser a outros filhos, Não faremos conta, por agora, senão dos bastardos gerados por estes prelados e bispos, durante o anno corrente, que são em numero de vinte e sete. Encontram-se na lista qua- renta e duas mulheres deshonestas.»

O auctor falia ainda das épaves episcopales, isto é, <,<das mulheres com que é costume obsequiar os bispos, quando andam em jornada, ou melhor quando visitam as suas diocezes,» mas declara que o numero d'ellas não figura n'esta lista.

Os serventes e fâmulos dos prelados seguem naturalmente o exemplo de seus senhores.

«Na lista que a este respeito nos apresentaram, diz o auctor com a tran- (luiilidade de um mathcmatico, estão mencionadas sessenta e cinco mulheres, casadas com homens honrados, as quaes estão por conta dos referidos domés- ticos dos paços episcopaes. Além d'estes adultérios e sodomias, encheram o ventre de cento e sessenta jovens, oitenta das quaes tiveram cada uma o seu bastardo, no anno que vae correndo.»

DA PROSTITUIÇÃO 441

Esíes domésticos eram cm numero de cincoenta. Vêem depois os secre- taries e capellães, dando um total de duzentas e quarenta e duas pessoas, entre as quaes o auctor comprehende os dispenseiros, os músicos, os monteiros, etc, mas exceptua os pagens e os lacaios.

«D'este numero, a lista representa cincoenta e três sodomitas, sem com- prehender pagens nem lacaios, que são por assim dizer obrigados a satisfazer estes monstros. Trezentas mulheres casadas e todas ellas nomeadas na lista mantiveram relações com estes familiares, que além d'estas, téem aiuda qui- nhentas raparigas, de cuja relações resultaram trezentos bastardos no anno em que estamos. Segundo os dados estatísticos do Tractado da Polygamia, não se descobriram mais de quarenta e oito proxenetas. Se ha mais, de tal modo são secretas, que não as podemos conhecer, nem ao menos pelos seus nomes ou sobrenomes.»

Esta passagem dá-nos a entender que o catalogo dos agentes da polyga- mia se fazia por nomes e sobrenomes.

«Os suíTraganeos, vigários, curas e outros formavam um pessoal de du- zentos 6 quarenta e cinco indivíduos. A lista da polygamia sagrada attribue- Ihes cincoenta e oito mulheres casadas, de famílias honradas, dezenove sodo- mitas, quatorze alcoviteiras, trinta e nove velhas criadas de quarto, e outras, das quaes cento e vinte e uma tiveram bastardos no anno que vae correndo.»

Os cónegos, em numero de quatrocentos e setenta e oito, não são mais regulares na sua conducta, se dermos credito ao auctor da estatística. Dcscul- pa-se de não ter podido descobrir mais de seiscentas mulheres casadas n'estas relações canónicas, mas cita um cónego, que n'um anno teve relações com nove mulheres, a saber: duas mulheres de advogados, uma de um procurador, três de fabricantes, uma de cambista, uma de um corretor e outra de um mer- ceeiro. Faz entrar no capitulo dos cónegos sessenta e oito sodomitas, trinta e oito alcoviteiras, oitocentas e quarenta e seis raparigas e criadas, «a maior parte das quaes destruíram o fructo dos seus ventres», e sessenta e duas al- coviteiras designadas pelos seus nomes e sobrenomes.

«Além dos referidos cónegos, accrescenta, sessenta e seis mais são go- tosos e syphiliticos.»

oHa também muitos sexagf^narios. Todos estes por causa das suas enfer- midades c velhice, nem téem dentes, nem podem reproduzir-se.»

Estes cónegos teem ao seu serviço novecentos domésticos, frescos, gor- dos e fartos, os quaes conhecem carnalmente mil e quatrocentas mulheres sol- teiras e cento e cincoenta casadas.

Os capellães, em numero de trezentos, «multiplicam extraordinariamente os bastardos», e a lista da polygamia a cada um d'elles duas ou três aman- tes, casadas ou solteiras.

Os sachristães são mais libertinos ainda, e um d'elles apparece na lista, por ter conhecido em um anno vinte e oito mulheres.

Os creados dão-lhes exemplo de continência, por isso que, apesar de se- rem em numero de duzentos e quinze, a sua polygamia apenas consta de cento e sessenta e oito mulheres, que produziram cento e dezoito bastardos n'um anno.

HiSTOBU. DA Prostituição. tomo n— Folha 56.

i43 HISTORIA

Os escreventes, que havia por esse tempo no arcebispado de Lyon, em numero de trezentos e dezescte, todos jovens e bem dispostos, procuravam me- nos as solteiras que as casadas. Duzentas d'estas ultimas foram inscriptas como cúmplices da libertinagem d'esses jovens. Presume-se, porém, que o auctor não tivera noticia de todas.

Detenhanio-nos n'esta escandalosa nomenclatura. Púnhamos de parte tudo o que o implacável inimigo da prostituição refere a respeito das loucuras dos frades e freiras. Bastar-nos-ha termos especificado com citações textuaes o gé- nero de estatística, que tão audazmente se empregou na Polygamia sagrada.

Vamos agora apresentar um quadro synoptico, feito pelo mesmo auctor, a respeito do estado numérico e completo dos inauditos excessos do anno de 1581 no arcebisfiado de Lyon, escolhido entre todos os outros como um escan- daloso espécimen da depravação do clero.

Estado rirciiraslaiiciado da poljjjaiiiia sajjrada no arcebispado de Lyon, em lS8i, segundo as invesligações e cálculos do auclor do «Gabinele do rei de França»

1 Arcebispos, bispos, abbades e priores 480

2 Fâmulos e domésticos 1:782

3 Dependentes abbaciaes 957

4 Seus criados p serviçaes 1:250

5 Cónegos 478

O Criados e serviçaes 900

7 Curas 13:200

8 Criados e serviçaes 6:700

9 Vigários d'estes curatos 13:200

10 Seus criados e serviçaes 4:200

11 Sachristães 849

12 Criados 225

13 Dependentes claustraes . 800

14 Seus criados 420

15 Frades 4:200

Ifí Seus criados e leigos 800

17 Cnrtuclios 150

18 Seus criados 169

19 Franciscanos 700

20 Dominicos 600

21 Seus criados 166

22 Carmelitas 452

23 Seus criados 180

24 Seus leigos 160

25 Antoninos 315

26 Mínimos, Celestinos, etc 500

27 Jesuítas e seus criados 62

28 Cavalleiros de Malta 692

29 Seus criados 1:800

30 Freiras e religiosas 2:345

31 Padres, guardiães e serventes d'estas freiras 600

32 Noviços e meninos de coro 2:800

33 Serventes de egreja 317

DA PROSTITUIÇÃO 4i3

Episcopaes 468

Canónicas 750

De capellães 160

Societárias 600

Parochiaes 17:000

Re vigários 24:700

Monachaes 12:100

Maltezas 12:120

Franciscanas 400

Dominicas 200

Carmelitas 200

Agostinhas 130

Cartuchas 40

Jesuitas 5

SOLTEIRAS

Episcopaes 900

Canónicas 2:200

De Capellães 800

Societárias 600

Parochiaes 20:000

De vigários ,30:003

Monachaes ou abbaciaes 22:000

De bastardos de bastardos 5:000

Maltezas 2:000

Franciscanas 400

Dominicas '. 1:278

Carmelitas 410

Agostinhas 378

Cartuchas 166

.4.ntouinas 800

Celestinas, rainimas, etc 600

Jesuitas 7

De guardiães 600

De serventes de egreja 187

PROXEIVETAS

Episcopaes 484

Canónicas ' 62

De capellães 45

Societárias 411

Parochiaes 2:000

Dos vigários 3:000

Monachaes ou abbaciaes 2:400

Da ordem de Malta 200

De Franciscanos 75

De Dominicos 180

De Carmelitas 130

De Agostinhos 96

De Cartuchos 40

Í44 HISTORIA

De Jesuítas 3

De Celestinos 24

De Guardiães 38

De empregados de egreja õ9

De freiras 300

S0I>03IITAS

De bispos 124

De cónegos 68

De capcllães 200

De parochos 200

De secretários 112

De abbades e priores 411

De frades 1:100

De Franciscanos 160

De Dominicos 108

De Agostinhos 60

De Cartuchos 30

De Celestinos e Minimos 9

De Jesuítas 49

Nota: Julgamos inútil fazer figurar n'este quadro a enumeração dos bas- tardos, dos bastardos dos bastardos, ele. ctc.

O auclor d'estes estranlios cálculos, tirados do tractado da Polygamia sagrada (Lib. v, cap. í) e 10) não nos diz de que modo fez o mysterioso com- puto, que assegura haver existido não na egreja gallicana, mas até em toda a christandade, mas vae ao encontro da objecção, que desde logo se offerece ao espirito dos seus leitores:

«Dir-me-bão: Como foi que poude contar n'este arcebispado tantos ecele- siaslicos, tantas mulheres de ma vida, tantas proxenetas, e tantas outras pes- soas qualificadas no sunimario d'cs(e capitulo?»

A resposta, se bem que especiosa, não é muito concludente. O auctor diz que não lhe foi mais dilficil fazer o cadastro da prostituição, do que a ou- tros o catalogo das estrelias e o recenseamento da monarchia diabólica, que comprehende 72 príncipes e 7.40.):926 diabos, sem contar os pequenos. Te- mos, pois, de confessar que similhanle estatística era menos fácil que a outra, visto que, segundo diz o auctor, <<frequenfamos, comemos, e bebemos a cada passo com os cúmplices da Polygamia sagrada.»

Depois de defender (Test»' modo a authenticidade dos seus dados, o ins- pector geral da Polygamia sagrada faz um resumo, por diocezes, dos prelados e beneficiados, dos seus familiares e outras pessoas que vivem á custa da Egreja. Este resumo, ao qual bem longe estamos de conceder inteiro credito, merece todavia ser arcbivado, á falta de dados mais sérios e menos suspeitos de par- cialidade calvinista. Formamos assim um ([uadro, á maneira de Parent-Ducba- telet, para darmos corno que um balanço da prostituição em cada dioceze, com a receita e despeza dos polygamos da egreja gallicana.

DA PROSTITUIÇÃO

445

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446 HISTURIA

O auctor do «Gabinete do rei de França» envia sempre os seus leitores para o traclado da polygamia sagrada, d'onde tira os elementos dos seus monstruosos cálculos, mas não diz que este traclado havia sido impresso. Nào podemos, pois, apreciar as circumstancias que o impediram de sahir á luz, ou que destruíram todos os seus exemplares. O que nos demonstra a existência da referida obra, é que o auctor, referindo-se a ella, não apresenta dados exactos a respeito da polygamia dos nobres, e não pôde formar uma estatística análoga á que encontrava preparada na enumeração geral da polygamia dos re- ligiosos. Dedíca-se de preferencia e com uma espécie de prazer maligno á pri- meira parle do seu assumpto, sem se cançar de a repelir em todo o decurso da obra, que parece não ter outro fim, senão fazer passar os bens do clero para o domínio do rei, casando de boa vontade ou à força todos os ecclesíasti- cos e religiosos de ambos os sexos.

A maneira de estabelecer a prova do numero dos agentes da prostituição nada tem de sério nem de autbentico, e reconhece-se n'esle processo de insi- nuação e inducção a dos huguenottes furibundos e raivosos, como então lhes chamavam. INo emlanto, estas mesmas caluinnias, cheias de veneno, não são completamente para desprezar, por quanto pintam a vida licenciosa, que ao tempo levavam alguns membros indignos do clero catholico.

Eis, por exemplo, como o auctor se justifica de haver attribuido a cada cardeal franccz um serralho composto de seis concubinas, sem contar as rela- ções adulteras :

«Como provaremos, porém, este numero de seis? l^.om os próprios car- deaes. Nem tão pudicos elles costumam ser, que não ousem confessar muitas mais ainda. O mais antigo d"clles teve amores com mais de trinta n'um anno so. Ha mesmo cardeaes que não se occupam de outra cousa. Nos três primei- ros mezes depois da imposição do barrete, um dos mais novos, apesar d'esse tempo dever ^er o de maior continência para elle, cardinalizou duas mulheres casadas e três solteiras. Como provar isto? Com elle próprio.»

Effectívamente Brantòme, que se presava de muito bom catholico, não falia n'outros termos do cardeal de Lorena, que era o professor das jovens e inexperientes damas de honor, na arte do galanteio. Para o desculpar da sua incontinência, o hístoriographo das damas galantes, diz apenas que o cardeal era um homem de carne e osso como os mais, e que el-rei o queria assim e fazia muito gosto n'clle.

O auctor do «Cabincte» eslá, portanto de accordo com Branfôme, quando chega a esta conclusão rabelaisíana, que recorda o eslylo da Confissão de Sancy : «Todos esses numerosos cardeaes de còrle são outros t;inlos eavallos de padreação (esta'nns-, diz o textn). O numero de coitadinhos feitos |)or elles du- rante a semana é igual ao das pedras que lhes enfeitam as mitras. Eque hão de elles fazer? Pregar? Sabem o que isso c?! A maior parle d'elles nunca sou- beram o que é um sermão. Di.-ípular IhcologiafNcm as damas estão preparadas, nem os cardeaes Ião pouco. De (|ue hão de elles tractar ? De dançar e cousas alegres. Para qiic? Para namorarem. Como se prova? Observando como vão augmentaníío de vidiime os ventres de algumas, cmquanto vae diminuindo a

DA PROSTITUlÇiO A47

bolsa dos cardeaes. E os próprios nogocianles que lhes vendem fazendas de seda, objectos de ouro e de praia, bem sabem para 'quem são taes presentes.»

Depois d'esta pintura dos costumes dos prelados, não é para exlranhar que o censor da polygamia sagrada não escrupulise em pintar com as mesmas . cores os seus fâmulos e domésticos.

«Os prelados e cardeaes, diz elle, escudando-se no proloquio de taea amos, taes criados, são tão lúbricos e desregrados como todos os seus ser- vidores. Se elles se perdem por mulheres, aos criados succede o mesmo, não porque sejam cardeaes, mas porque os servem, que para o caso o mesmo é exactamente. No mais impuro e desaforado bordel de França não se ouvem as torpes conversações que a cada passo se celebram nos palácios dos cardeaes. Invoco o testemunho de quantos as frequentam. De resto, não se acarretar para alli, de dia e de noite, senão cai-ne fresca. É assim que elles denominam as pobres mulheres que prostituem, e depois de o fazerem, zombam impunen- temente delias.»

No tractado da polygamia sagrada, faz-se menção da burla pregada pelos servidores dos cardeaes, até mesmo os moços das bestas, abusando de algumas cortezãs, cujos restos, deixem-nos assim dizer, offereciam em .seguida a seus amos, como se fossem primícias deliciosas.

Era sobretudo em viagem, por occasão das visitas dos prelados ás suas diocezes, que os fâmulos e outros domésticos davam larga a esta libertinagem. Alojavam-se com seus amos em casa dos notáveis de cada povoação, onde cos- tumavam pernoitar, ou mesmo passar alguns dias, «e raros são, diz o impla- cável critico, os que se retiram sem haverem manchado a casa hospitaleira. Se a filha da casa é rica, arranja-se-lhe o casamento com algum dos secretá- rios, se é casada, está perdida, porque, no meio de tamanha[confusào e desa- foro, não logra escapar áquella polygamia.»

D'aqui podemos concluir que os numerosos servidores do séquito de um prelado estavam longe de ser modelos de continência e moralidade, quando se apreciam os tristes resultados do mau exemplo e dos maus conselhos n'uma reunião de homens ociosos e libertinos. O pessoal de um palácio cardinalício compunha-se de mais de cem indivíduos, e o de um palácio episcopal não com- prehendia menos de cincoenta a sessenta, vivendo todos á custa do prelado. Assim um bispo que linha completo o pessoal da sua casa, contava os seguin- tes familiares :

Um ou dois eapellães.

Um mordomo.

Um picador.

Um mediei).

Três protonotarios.

Três ou quatro gentis-homens.

Quatro ou cinco pagens.

Um ou dois secretários.

Um ou dois ajudantes de camará.

Um cosinheiro.

448 HISTORIA

Um reposteiro.

Um copeiro.

Dois cliantres.

Dois ou três músicos.

Um alfayate.

Um boticário.

Um monteiro.

Um vivandeiro.

Oito serventes.

Um faicoeiro.

Três ou quatro lacaios.

Um arcabuzeiro.

Um palafreneiro.

Dois moços de estrebaria.

Um carroceiro.

Um cocheiro.

Dois trintanarios.

Todos estes homens, na sua maior parte novos, e votados peio geral ao celibato, tinham os mais depravados costumes, qualquer que fosse, de resto, a conducta do prelado a cujo serviço estavam. Concebe-se que, em dadas cir- cumstancias, poderiam fazer recahir nos seus respeitáveis amos a vergonha do seu irregular procedimento, e n'este capitulo, pelo menos, o auctor do «Gabi- nete d'el-rei de França» não exaggerou talvez as cifras da prostituição que fer- mentava em redor <le um prelado.

«O bispo é himem, diz o auctor fallando como um huguenotie, o seu fâmulo não é cavallo. Não querem que se casem, e elles necessariamente hão de viver e arranjar a sua vida á custa da honra dos mais.»

Uma aventura escandalosa, referida com graça pelo auctor que a apre- senta como um quadro intimo da vida episcopal, declarando além dMsso haver conhecido pessoalmente a heroina, dar-nos-ha uma ideia do que eram ás vezes os costumes dos príncipes da egreja n'aquella épocha de dissolução e de desa- vergonhamento universal.

«Uma noite, diz o narrador a paginas 79, uma dama de distincção mas- carou-se e foi em companhia de vinte c três mulheres suas amigas jogar a casa do bispo, que sem duvida a esperava, ainda que d'isto não suspeitava a refe- rida dama, pois de outro modo, é muito provável que não tivesse ido.

«O prelado perdeu três escudos, c para se compensar da perda mandou chamar a orchestra, e toda a companhia desatou a dançar até perder o fôlego.

«Na dança, tomaram parte o bispo, dois prolonotarios, o secretario e sete ou oito cónegos que o jogo alli havia attrahido. Os pagens, como as mulheres chegavam para todos, tractaram também de arranjar cada (jual seu par.

«Em poucas palavras, o baile continuou desde as dez até ás duas da noite, seguindo-.se-lhe a collação com grande abundância de doces e bebidas. A dama de distincção foi victima de uma indigna surpreza. Foi o caso que uma das al- coviteiras episcopaes a conduziu illudida ao gabinete do prelado, dizcndo-lhc

DA PROSTITUIÇÃO 449

que iria encontrar alli outras liainas, mas quem estava era o prolonotario, que fez com ella o que bem poderão presumir. A dama, ao sahir da embosca- da em que havia cabido, coi)riu de injurias a proxeneta, jurando-lhe que a fa- ria arrepender, e derramando lagrimas amargas, apressou-se a sahir do paço episcopal.

«O bispo n'essa noite mandou chamar até os seus palafreneiros, que lhe confessaram as proezas por elles feitas n'aqaella campanha nocturna. Sua gran- deza riu a bandeiras depregadas de tudo quanto n'essa noite ouviu contar.»

Parece ura capitulo do Moijen df panenirdií Bcroaldo de Yerville. O auc- tor accrescenta que o marido d'aquella dama, quando soube a emboscada em que sua esposa cabira, jurou vingar-se do bispo e se fizera huguenotte. É possí- vel, ainda assim, que o bispo não fosse cúmplice do acto de violência pratica- do por um dos seus domésticos. Talvez sua grandeza fosse apenas demasiado amigo da dança e dos contos licenciosos, mas nem por isso deixa de ser me- nos responsável pelo proceder desregrado do pessoal da sua residência.

O tractado da Polvgamia sagrada accusa dos mesmos desvarios os serven- tes dos cónegos, abbades, priores, etc, das ordens religiosas ou militares.

«Este servidores, diz o auctor do «Gabinete do rei de França», são tão bem tractados, que basta olhar para elles, conhece-se logo que são pessoas ads- trictas a cónegos e frades, tão nédios e corados elles andam.

«Nem assim lhes é difíicil arranjar raparigas, porque as de seus amos tra- zem outras em sua companhia, e que não trouxessem, elles sabem perfeita- mente onde hão-de ir buscal-as. De tal modo estão i)s claustros habituados a presenciar as scenas escandalosas com estas raparigas, que ao passar por alli, scnte-se o cheiro da carne.»

E innegavel que esta promiscuidade de domésticos, bem mantidos e ocio- sos; não podia deixar de favorecer os progressos da prostituição livre e secre- ta, especialmente desde que fora abolida a prostituição legal pela ordenação de Carlos IX.

«.Não ha filha de artífice, de operário, de trabalhador ou serventuário em que estes infames não se refocillem, e muitas vezes a troco de um pedaço de pão desfloram uma pobre donzella. Se é formosa, é para o senhor cónego : se o não é muito, e o amo o permitte, o domestico encarrega-se de o substituir. Quem lançar os olhos para esta prostituição que nos cerca, verá que não ha pae nem mãe que não deva tremer pelo grande perigo em que se encontram suas pobres filhas e serventes, porque os homens do pessoal do paço são como os touros entre as vaccas e as novilhas.»

Os serventes das abbadias gosavam certos privilégios que os dos có- negos lhes invejavam.

«Ha mesmo infames, que depois de haverem abusado de algumas mu- lheres, graças ao credito, auctoridade e favor do seu abbade, casaram com suas filhas, bem contra a vontade dos pães.»

Quanto aos serventes dos frades, que segundo a estatística eram em nu- mero de cem mil e faziam então um terrível escândalo em questões de amores, apresentam-se como infames, «que se introduzem nas casas mais honestas

UUTOJUÂ DA PROSTTTDIÇÃO. ToMO U FOLHA 57.

450 HISTORIA

para prostituirem as filhas-familias e as criadas, deixando-nos depois o encargo de liies sustenlarmos os Ijastardos.»

0 escriptor protestante conclue o odioso quadro com esta ultima pince- lada :

«Os que são tão castos, que não téem senão uma ou duas ribaldas, po- deis crer que se entregam á sodomia.»

Diz também que nas aldeias, sufíraganeas da abbadia de Cluny, se con- tavam sete a oito mil mulheres libertinas, destinadas exclusivamente a satis- fazer os desejos dos seus religiosos.

«Basta lèr o tractado da Polygamia sagrada, accrescenta, para se conhe- cerem as subtilezas monásticas dos frades, mais voluptuosos do que se pôde imaginar.»

A tantas torpezas, a tantos excessos públicos ou particulares, os hugue- nottes oppôem um remédio único, um remédio que elles reputam como infal- livel o matrimonio. Elles queriam que todos os celibatários ecclesiasticos e religiosos respondessem ás perguntas seguintes :

1 .* Se são virgens.

2.* Se conheceram mulheres.

3." Quantas téem tido, ou téem ainda?

No caso de serem a este respeito negativas as respostas, far-se-lhes-hiam ainda outras perguntas mais apertadas :

I .■ —Se téem tido copula com os demónios?

2." Se commetteram algumas vez sodomia?

3." —Se sabem que a continência é um dom singular de Deus, que elle não concede senão a certas pessoas, e ás vezes por um tempo determinado, e que aquelles a quem este dom é recusado, devem recorrer ao matrimonio, que é o remédio disposto por Deus para a necessidade humana?

Em consequência d'isto, o matrimonio da gente da egreja devia ser re- querido e ordenado pela lei religiosa, tanto mais que os cinco artigos propostos e adoptados no Colloquio de Poíssy, como uma salvaguardada moralidade pu- blica, nunca poderam ser executados por parte do clero.

Estes cinco artigos encerravam todas as garantias moraes, que se tinham podido inventar contra a luxuria e seus desastrosos effeitos.

1." Os ecclesiasticos, que não tivessem o divino dom da continência, eram obrigados a jejuar a pão e agua, sempre que se sentissem espicaçados pelo aguilhão da carne.

2."— Não podiam failar nem communicar com mulheres, senão em pre- sença de seus pacs ou mandos, sob pena de degradação.

3.° -Não deviam beber vinho senão duas vezes por semana para melhor se poderem conter.

4.° Se fossem convidados para algum banquete nupcial, deviam limi- lar-se a dançar um simples minuete, com os mais modestos, santos e editi- cantes movimentos.

5," A confissão auricular não poderia realisar-se senão em uma ca- pella com cinco nu seis pessoas ao mesmo tempo.

DA PROSTITUIÇÃO 451

O auctor do Gabinete du rei de trança, desmascarando e perseguindo assim os escândalos da polygamia sagrada, julga ler provado que a primeira pedra preciosa que se pôde tirar d'este lodo é «a palavra de Deus, ou a ver- dadeira religião, por cujo meio o rei pôde limpar o seu reino d'esta sórdida e detestável polygamia.»

A segunda pérola, a nobreza, parece menos enlodada que a outra. No emtanto, o rigido reformador, depois de liaver assentado como principio que a verdadeira nobreza é completamente inimiga d'aquella cxccravel polygamia, admoesta os nobres, e censura-os, «por se prenderem tanto com a nobreza do sangue, que esquecem e desprezam a nobreza da virtude, de tal modo que cbcgava a parecer a alguns que nenbum vicio poderia desbonrar a nobreza berdada de seus pães e maiores.»

Considera os lalsos nobres como o mais perigoso sustentáculo da poly- gamia, e a ennumeração d'estes falsos nobres dá-nos a conbecer o caracter e o calibre de cada um d'elles. «Fidalgos de Mort-Dieu, e outras blaspiíemias si- milbantes; fidalgos feitos á pressa, lobos brancos, lanzudos, birbantes, etc.»

Toda esta fidalguia dava por certo grande contingente á prostituição, mas o auctor carece de materiaes e números exactos, vendo-se obrigado a entre- ter-se com generalidades, e contentando-se de mencionar na sua revista da no- breza franceza as qualidades distinctivas boas e más, que caracterisam os no- bres de tal ou tal província.

Os nobres da Touraine são sobretudo juradores e blasphemos, atheus ou epicuristas. Os da Guyenne, dados á rapina e moedeiros falsos; os da Gasco- gne, cruéis e sanguinários, etc.

«O vicio predominante entre os nobres do Berry é a luxuria. Ainda que os nobres das outras províncias não sejam exemplos d"este vicio, não se refo- cillam tanto n'elle, ainda assim, com(» os do Berry, sem que possamos dar a ra- são d'isto. Devem saber, pois, que se téem outros sórdidos e feios vicios, não é este um dos mais pequenos, e vejo-me na necessidade de lhes dizer o se- guinte : Como tractam de gosar as mulheres dos seus parentes e visinhos, a torto e a direito, devem esperar que elles façam o mesmo ás suas.»

O censor da nobreza passa logo ao seu assumpto favorito, accusando o clero do Berry de todas as desordens que a nobreza do paiz se permittia a exemplo da Polygamia sagrada. Denuncia a immoralidade que preside ás rela- ções das damas nobres cora os ecclesiasticos, e condemna o pouco reparo dos maridos pela conducta de suas mulheres.

«E' uma prostituição manifesta, exclama elle com a indignação de um pregador, erguer-se uma dama do leito conjugal para ir procurar á meia noite um abbade ou prior, e passar até de madrugada dançando e divertindo-se com elle, sem que o marido o saiba, praticando além d'isto tão exlranhas e mons- truosas impurezas, que as ribaldas dos bordeis se envergonhariam de as fazer. E' uma prostituição e até um lenocínio dar de beber a estes patifes e ás suas amigas, e tomar depois a taça e beber com elles. Se isto continua, eis uma província inteira manchada de toda a abominação e impureza.»

Depois d'este exórdio, espera toda a gente que o auctor anonymo, tão pro-

452 HISTORIA

digo de números ao tractar da polygamia sagrada, faça lambem uma estatística do mesmo género a propósito da nobreza do Berry, que parece conbecer me- Ibor que as outras províncias. Não nos apresenta, porém, cálculos que nos re- vellem o numero de mulheres casadas e solteiras da aristocracia, entregues á libertinagem. Prefere deliciar-nos sobre este delicado assumpto com a narra- ção de uma aventura, que alguma cousa provaria, se se tivesse repetido com frequência.

«Nove íidalgos e três rapazes mais de boa família foram a uma feira, e depois de haverem dançado alegremente, levaram umas parentas suas a casa de um abbade, que os havia convidado para um banquete. O ecclesíastíco, pela sua parte, tractou também de arranjar umas quatorze ou quinze mulheres, suas conhecidas, e por outras vezes habituadas a estas diversões. .4 reunião cor- reu animada c alegre, e na meza servirani-se manjares delicadíssimos.

«Um pagem veio em seguida deleitar os convivas com o som do .seu alaúde; organísaram-se danças animadas, e depois d'ellas os convivas dirigi- ram-se ao jardim.

«AUi cada conviva, levando pelo braço a sua dama, dirigiu-se ao bosque, e depois de duas ou três horas, quando começou a anoitecer, se lembraram de voltar, provavelmente por lerem procurado nas sombras do arvoredo algum logar aprazível, onde as horas passaram rápidas. . .

«O abbade e Ires dos seus fâmulos, que tomaram parte em todas as di- versões, mostravam-.se contentíssimos.

«Veio a hora da ceia, e todos ceiaram lautamente, voltando em seguida ao passeio, e depois d"elle para. . . os leitos.

«No dia seguinte, correu o boato de que uma das mais honestas damas do Berry, não podéra salvar a sua honra das garras de um libertino, e que fora um primo quem lhe havia armado o laço em que a sua virtude succum- bira. E como alguém censurasse ao indigno parente o haver prostiluido sua prima, tendo-se indisposto por causa d'isto com o marido, que poderia lançar- Ihe em rosto a sua traição, respondeu :

«Meu primo tem bastante senso commum, para comprehender que se os porcos não fizessem o presunto, nem elle, nem eu o comeríamos.»

X historia da polygamia accrescenla, como que para confirmar a sua narrativa, «que os nobres do Berry são Ião indecentes, que trocam uns com os outros as suas mulheres.»

O auctor volta mais vezes ainda a este assumpto da licenciosidade que attribue aos ccclesiaslicos, mas não procura apreciar de uma maneira mais pre- cisa os damnos da prostituição na nobreza e no terceiro estado. Vc-se que neste assumpto lhe escasseiam materiaes e pormenores.

De reslo, exceptuando a violência dos seus ataques contra a polygamia sagrada, as suas intenções são cxcellentes.

«E' preciso, diz elle, que o bem s'>ja n'este reino mais forte e poderoso que o mal ; c preciso ([ue a modéstia domine o orgulho, a nobreza a villania, a castidnde a impureza.»

Exborla em seguida os bons cidadãos a unirem os seus esforços aos d'elie

DA PROSTITUIÇÃO 453

para corrigir os costumes e levantar ao seu verdadeiro esplendor a monarchia franceza. Entra nos cálculos financeiros, e com uma minuciosidade prodigiosa enumera os dilTerentes productos que constituem os rendimentos da egreja gal- licana, concluindo que estes rendimentos, que se elevam a cento e dez milhões, são sutíiciontes não para sustentar o clero, que não gastaria mais de setenta, implantando geralmente o regimen matrimonial, mas também para occorrer ás necessidades do thesouro de sua magestade.

Todo o segredo d'esta grande reforma consiste no matrimonio dos poiy- gamos, e na entrada dos bens temporaes da Egreja nos domínios da coroa. Taes são as bases d'este plano de economia politica, architectado em números e combina^.'ôes, que parecem demasiado minuciosas para não serem reaes, por- que o auctor d'este singular plano apresenta como specimen do seu trabalho um estudo completo de todos os rendimentos do arcebispado de Lyoii, gaban- do-se de não haver esquecido no seu quadro estatístico nem um frangão, nem um salamim de aveia, nem uma carroça de palha.

Esta admirável aptidão de calculista, cousa rara e nova naquelle tempo, permitte-nos ter alguma confiança no recenseamento especial, feito pelo auctor ou auctores da Polygamia .sagrada.

Não julgamos, porém, que o remédio proposto por este terrível adversá- rio do celibato, tivesse produzido os benéficos e promptos eITeitos que elle es- perava para a melhoria dos costumes. O casamento de todos os ecclesiasticos pagos pelo rei teria por certo diminuído o numero dos mercenários que viviam em torno (Telles da prostituição, mas a própria prostituição que as ordenações reaes não conseguiam destruir, privando -a da sua forma legal e regular, teria continuado a reproduzir-.se, como uma corrupção, á sombra dos conventos e das communidades.

.4pe.sar d'isto, o auctor do «Gabinete do rei de França» estava tão conven- cido da eflicacia da sua panaceia conjugal, que supplicava ao digno e virtuoso cardeal de Bourbon, a esse tempo com cincoenta e oito annos, que desse um exemplo salutar ao clero e á nobreza, casando-se e fazendo uma confissão so- lemne de todas as suas «infracções á virgindade e á continência requeridas pelo celibato.»

Este bom casamento, na opinião do inventor das três pérolas, devia in- fallivelmente produzir dentro de muito pouco tempo trezentos ou quatrocentos casamentos puros e legítimos.

«D'este modo, diz elle ao cardeal que suppõe arrependido de ter violado o seu voto de castidade mais de sete vezes, d'este modo, chegareis a preve- nir trinta ou quarenta mil incestos todos os annos na Egreja gallicana, c da- reis sobre tudo fim á sodomia, por isso que as vinte e cinco ou trinta mil pes- soas habituadas a esta infâmia, voltariam á pureza pelo caminho do matrimo- nio. Obteríamos também a suppressão de todas as ribaldas (putains) cardina- lícias, episcopaes, abbaciaes, canónicas, monásticas, presbyteriaes e de todas as outras cathegorias, e a suppressão de todos os rufiões, alcoviteiros e bastar- dos, cujas despezas de alimentação e posição são mais que sufficientes para sa-

454 HISTORIA

tislazer todas as obrigações, tanto ordinárias como extraorditiarias da coroa de França.

«Eis o beneficio que o vosso casamento traria conisigo. Yêde, porém, um outro, o maior que elle produziria. Seria a causa de todas as mulheres reclu- sas nos mosteiros se cazarem, e darem assim um golpe mortal no incubismo, essa sensualidade diabólica, exercida pelo inimigo da natureza no sexo frágil.»

O cardeal não se cazou, apesar do bom conselho, e a prostituição seguiu o seu curso.

Não damos a esta curiosa obra mais do que ella merece; convimosaté com o marquez de Paulmy (Mélanges lirés d'une grande bibliothèque) que o auetor revelia nas suas paginas um ódio encarniçado contra o clero; mas temos forçosamente de reconhecer que o clero do século xvi estava muito longe de se recommendar pelas virtudes que deviam ser para elle o mais santo dos pa- trimónios.

Dulaure, na sua Historia de Paris (p. 316 e seguintes do t. iv) reuniu incontestáveis testemunhos da immoralidade e preversão do clero, e estes tes- temunhos estão quasi completamente conformes com as asserções da Polyga- mia sagrada. João de Montluc, bispo de Valência, dizia a 23 de agosto de 1360, em um discurso proferido perante o conselho do rei:

«Os cardeaes e bispos não tiveram escrúpulo de entregar os benefícios aos seus mordomos, e o que é mais ainda, aos seus criados de quarto, cozi- nheiros, barbeiros e lacaios. Os mesmos sacerdotes pela sua avareza, ignorân- cia e vida licenciosa, tornaram-se odiosos e desprezives.» {Mem. de Conde, t. i, p. 360).

Em uma assembleia de notáveis, celebrada no Hotel de Ville de Paris, em dezembro de 1373, dirigiram-se humildes observações a el-rei, nas quaes se nota esta passagem :

«Nem os bispos nem os parochos residem nas suas diocezes ou benefícios, entregando assim o seu rebanho ás garras do lobo, sem instrueção nem bons exemplos. Os ccclesiasticos são tão inclinados á luxuria, á avareza e aos outros vicios, que o escândalo é espantoso.»

No mesmo anno, um escriptor catbolico, B. Marchand, dirigia egualmente admoestações a povo fraiicez a respeito dos vicios innumcravcis que reinavam por aquelle tempo.

«Haverá hoje em dia gente mais cheia de vicios do que os prelados da Egreja

Censura amargamente os sacerdotes e os frades por frequentarem as ta- bernas, as casas de jogo e os bordeis, e lamenta-se dos vergonhosos excessos que manchavam a casa do Senhor.

.4s mesmas q seixas se encontram consignadas n'uma multidão de docu- mentos históricos que não sabiam das imprensas dos huguenotfcs nem jamais suscitaram contradictores. Brantòme, por exemplo, fez na sua Vida de Fran- cisco I um trisle i|uadro do interior dos conventos e das abbadias antes da Con- cordata. Diz-nos que os frades elegiam para superior da communidade «o melhor companheiro, quer dizer, o que mais gostava de raparigas, de cães e

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de pássaros, n'uma palavra, o mais dissoluto de todos, a fim de que lhes per- mittisse todas as loucuras e excessos da libertinagem.»

Corria entre o jidvo um provérbio, que a ninguém escandalisava : Avaro «... dissoluto como um padre, ou como um frade.

Finalmente Brantòrae atreve-se a fallar dos bispos e abbades nos termos seguintes :

«Deus sabe a vida que elles passam. Estão agora mais permanentes nas suas diocezes do que antigamente, mas para que? Para passarem uma vida com- pletamente dissoluta, em caçadas, festins e orgias de mulheres, de que fazem serralhos, como um de quem tenho ouvido fallar, que procurava raparigas de dez annos, contanto que promettessem vir a ser bonitas para diante, man- dando-as criar e educar nas aldeias das suas diocezes, como os fidalgos costu- mam fazer aos cães, para se servirem d'elles quando são grandes.»

Taes vicios e depravações seriam talvez apenas tristes e deploráveis excepções na Egreja catholica, e o próprio B-antòme o confirma, quando diz :

«Os nossos bispos modernos são mais cautos, ou pelo menos mais astutos e hj'pocritas, para melhor occultarem a sua vida licenciosa, dizia-me ha tem- pos um elevado personagem. O que digo de alguns d'elles, tanto antigos como modernos, não o posso dizer de todos, nem Deus tal permitta. Em todos os tempos tem havido muitos homens de bem, de vida santa e exemplar, e hade havel-os sempre, mercê de Deus, que nunca abandona o seu povo.»

No emtanto, no interesse da verdade, e sem querer attenuar a homenagem prestada por Brantòme á conducta irreprehensivel de certos prelados, confron- taremos com os factos e cálculos apresentados pelo auctor do Gabinete do ret de França um documento jurídico, cuja authenticidade Dulaure nos assegura, e podia fazel-o, porque o teve diante dos olhos. E um inquérito ordenado pelo parlamento de Paris, em virtude da representação dos syndicos e cônsules da cidade d'Aurillac, e feito em 1555 pelo logar-tenente do baillio d"esta cidade.

Demos a palavra a Dulaure que analysa este inquérito, em que foram ouvidas mais de oitenta testemunhas.

«Carlos de Senectaire, abbade do convento d'.4urillac e senhor d'esta cida- de; seus sobrinhos, João Belveser, protonotario e António de Senectaire, abbade de S. João, sua sobrinha Maria de Senectaire, abbadessa de Blois, convento da mesma cidade, e os frades e freiras de um e outro convento entregavam-se a todos os excessos da libertinagem.

«Cada frade vivia com uma ou muitas concubinas, mulheres por elle prostituídas, e que roubara da casa paterna ou conjugal. Estes religiosos sus- tentavam-nas e alojavam-nas no convento, bem como os filhos que de taes re- lações provinham, e que chegavam a setenta, consummindo todas as offe- rendas feitas á Egreja.

«O abbabe tinha no jardim da sua residência um pavilhão destinado ás suas sensualidades e adornado de pinturas obscenas. Dera-lhe um nome que não pode escrever-se por demasiado grosseiro e impudico. Os padres eram os fornecedores habituaes d'aquelle logar infame, desempenhando ás vezes também os sobrinhos do abbade essas funcções. A mercadoria impura era recrutada

436 HISTORIA

iião so na cidade, mas até nas aldeias circumvizinhas. Donzeilas inexperientes eram barbaramente arrancadas em pleno dia dos braços das mães á vista de todo I) mundo, e os libertinos arrostavam a indignação publica, mostrando-se insensíveis ás queixas e gritos das suas victimas, que conduziam ao convento a pontapés e empurrões para servirem de pasto á brutal lubricidade do pre- lado e de seus sobrinhos, e finalmente de todos os frades.» (Edic. de 1825, t- IV, p. 322.)

Mão parece estar-se lendo uma pagina da polygamia sagrada ? Em con- sequência d'esta informação foi secularisado o convento, e a cidade d'Aurillac viu-se livre por fim dos seus abomináveis tyrannos.

Depois de se ter visto o resumo do inquérito judicial, em que Dulaure, ainda assim, imprimiu o sello da sua parcialiJade, sentimo-nos inclinados a repetir com o auctor do «Gabinete do rei de França» :

«Ninguém deve, portanto, admirar-se de ver a polygamia prostituir com os seus vícios todas as famílias d'este reino.»

E' preciso notar, comtudo, que a licença dos costumes no clero e sobre- tudo no innumeravel exercito de cúmplices desbragados, era uma consequên- cia fatal da desmoralisação publica n'aquelia épocha, em que poucas pessoas tinham uma verdadeira ideia da honestidade sob o ponto de vista social.

A religião reformada, devemos confessal-o para sermos justos, com o seu exemplo c com as suas severas censuras, contribuiu muitíssimo para de- purar os costumes do clero catliolico, que devia oflerecer brevemente tão cas- tas e gloriosas virtudes.

CAPITULO XXXVII

SUMMARIO

A prostituirão dos mignons de Henriíiue lu. Cbpgada dos italianos a corte de França - Influencia dos seus costiimi'S. —Nicolau Maillard. da Soibonna. Opioiãi) das pessoas honestas, citada por B:antôme. Maridos abomináveis. -- Heniii|ue iii voltada Polónia. -Uma aventura d'el-ici cm Veneza —Data exada da sua conupçSo.

Os estudantes e os italianos. O capitão L,a Visrerie Oi i^ein da iramoialidade e (lepravaçiio dos mifinons.

Retrato d'elles por E>toiIe .As diguidadi-s da côrle. Catalogo djs mit/nons. —Torpe soneto. A calumoia. Poesias e liliellos salvricos dos liusuenoltes e dos da iíja.— Carla de ura parisimse. .\s feiticerias de Hi^nriíue de Valois Mascaradas e procissões. A confraria dus Penitentes. O frade Pon^et - Nomes dos miiy/íons. Os Trágicos de Agfrrippa d'Aubigné.— Os hermaphrodita,s. O altar de Antinoo A deusa Salauihuna A Confi-^são de Sancy. O Juvenal da corte ile Henrique m.

NTES DE EXPOR.Mos 30 Icíloi' () estíido da prostituição na corte de Henrique iii, não podemos, sob pena de deixarmos uma grande lacuna n'esfy historia dos costuines, omiltir um género de de- pravação, que inaiieliou vergonhosamente o reinado do ultimo dos Valois.

Tractaremos este assumpto á parte, com toda a repugnância que nos inspira, e com todas as precauções que a decência da linguagem nos permittir lio extracto das obras contemporâneas. .\ão pódc esludar-se a vergonhosa épo- cha de Henrique ui sem fallar dos seus mitjnons e das torpezas com que elles deshonraiam a memoria de seu amo. Todos us historiadores mais sérios e gra- ves, .\ubigné, Tliou e Mezeray, etc, resignam-se a manchar as paginas dos seus aniiaes históricos, apresentando n'ellas, para exemplo e licção da posteri- dade, as abominações que aviltaram a vida intima de um rei christão. Apenas um, o Padre Daniel, procura justifical-o, ou pelo menos favorecel-o com certas reticencias.

«Ainda que não possamos dar fé, diz clle na sua grande Historia de França, a tudo quanto os huguenotles e os da Liga disseram e escreveram a respeito das suas libertinagens secretas, é dillicil crer que fosse calumnioso tudo quanto d'este monarcha se propalou.»

Não emprehenderemos a árdua empreza de defender Henrique iii e os seus migaons das accusações por lodos formuladas no seu tempo, e que bem depressa formaram a trementia voz da opinião publica. Reconheceremos, porém, com o Padre Daniel, que as calumnias dos huguenottes e mais tarde as dos da Liga, não deixaram de formar um tecido das mais torpes extravagâncias, appoiadas infelizmente em alguns factos verdadeiros. O horrível episodio dos

HiSTOkU HA. Phostituicão. toho n— Folha 58.

458 HISTORIA

mignons de Henrique iii, parece-nos haver sido singularmente exaggerado pelo espirito de partido, tanto religioso como politico.

Não pôde negar-se que a chegada dos italianos a França, no séquito de Catharina de Medicis, não deixou de ter uma influencia deplorável nos costumes da corte; mas se alguns jovens libertinos se davam ás vezes á imitação dos vergonhosos costumes de Chouse, como se chamava ao italianismofrancez, pu- nham especial cuidado em não alardearem estes infames excessos, muito con- traries á galanteria nacional, e até mesmo se defendiam da accusação de um vicio que causava horror a todas as pessoas honradas. Bem depressa, porém, se foi perdendo aquella salutar vergonha e começou a haver tolerância para o que, até então, não tinha havido mais do que indignação implacável.

«E quando mesmo não houvesse mais de que sodomia, com ella hoje se pratica, diz H. Estienne, no seu apologo p. Heródoto, publicado em 1576, mas escripto muito antes, não poderíamos chamar ao nosso século o cumulo da preversidade, mas de uma preversidade execravel e maldita

No emtanto, o povo conservou-se por muito tempo exempto d'estas e de outras impurezas, e o deplorável exemplo da corte não havia tido o poder de corromper a antiga virtude gauleza. A sodomia, era vulgar em Itália, onde o homem que tinha este vicio ficava absolvido d'elle, desde que pagasse 36 libras tornezas e 9 ducados (V. a Taxe des parlies casuelles de la boutique du pape). Em França este peccado obsceno era um crime capital que levava o criminoso á fogueira. Verdade seja qne os tribunaes raríssimas vezes impunham esta pena, comminada pela lei, quando este crime, que se considerava como um caso de heresia, não se complicava com a magia, a feiticeria ou o atheismo.

«Eu seja leproso, diz o Petit-Jean de Bragmarde, na sua arenga a Gar- gantua (lib. i, 20) se não vos fizer queimar como sodomitas, libertinos, herejes e seductores, inimigos de Deus e das virtudes!»

Os libertinos suspeitos d'esta macula indelével eram apontados a dedo, detestados e aborrecidos, como diz Rabelais. Ninguém perdoava aos italianos estabelecidos em França desde o casamento do delphim Henrique com a filha de Lourenço de Medicis, duque dTrbino, uma innovação de libertinagem, que haviam trazido comsigo.

O auctor do «CTabinete do rei de França», na sua epistola a Henrique iii, não hesitou em denunciar o atheismo, a sodomia «e outras sinistras ou asque- rosas manias, (|ue o estrangeiro introduziu em França.» Ouinze annos antes, H. Estienne quizera, ao que parecia, rehabilitar a Itália e os italianos para dirigir este cruel epigramma ao doutor da Sorbonna, Nicolau Maillard.

«Eu digo que nem todos os que se mancham com este abominável pec- cado o aprenderam na Itália ou na Turquia, por(|ue o nosso Maillard ensinava-o prolicicntemenle, e nunca esteve n'aquelles paizes.»

Demonstrámos n'outro logar que as expedições da Kaiia foram falaes aos costumes francezes. As relações constantes entre os dois paizes desde o reinado de Carlos iii, não podiam deixar de espalhar odiosos elementos de corrupção entre a nobreza e o exercito. H. Estienne indica também o pernicioso ensino que a Itália havia comraunicado á França.

DA PROSTITUIÇÃO 439

«Voltando a esse infame ppccado, diz ellc na sua Apologia, (pag. 107 da edic. orig. de 1566,) não é para lastimar que alguns indivíduos, que antes de porem o em Itália até aborreciam as conversações relativas a esta infâmia, depois de terem estado não se comprazem a failar, mas até mesmo façam profissão d'esses vicios como cousa aprendida em boa eschola ?

Apesar do vicio italiano haver feito deploráveis progressos na corte de França, todos os homens honrados sentiam um profundo desprezo por aquelles indignos transfugas do amor francpz, que era o único approvádo e recommen- dado, segundo a expressão de Brantòme. Encontramos nos escriptos do gracioso abbade a prova do sentimento de repulsão, que inspiravam estes sórdidos e ignó- beis excessos, n'uma épocha em que a prostituição não conhecia limites.

Diz elle nas suas Dames gnlantes:

Ouvi dizer a um grande fidalgo, e é verdade, que nunca o sodomita foi bravo e generoso, exceptuando o grande Júlio César. Deus permitte que tão abomináveis pessoas sejam geralmente desprezadas. E, ainda que pareça ex- tranho haver alguns indivíduos manchados d'este vicio em grande prosperi- dade, Deus os espera para o castigo, e alfim se verá o que vem a ser d'el- les.»

O licencioso chronista era homem de consciência fácil e nada timorata em assumptos de galanteria, mas ainda assim, vemol-o sempre horrorisado a respeito dos vicios contra a natureza, e mesmo quando a corte de Henrique III se entregava loucamente aos costume italianos, Brantòme não deixa de os censurar, nas suas Damen (jalanles, livro que, não obstante, pôde considerar-se como o repertório da libertinagem do século xvi. E' verdade que Brantòme escrevia este tractado de moral lúbrica, sob a inspiração e auspicies da rai- nha Margarida de Valois, que presidia por essa épocha á banda feminina, (^ha- mava-se assim, na corte de Carlos ix, uma espécie de liga das damas contra as vergonhosas desordens da juventude italianisada.

«Não me espanto, diz Estienne, nos seus diálogos da linguagem franceza italianisada, não me espanto de que as damas, italianisando a linguagem, a exemplo dos homens, queiram também italianisar outras cousas.»

Quando Henrique iii, que era rei da Polónia, foi chamado a succeder a seu irmão Carlos ix, os italianos haviam penetrado na corte, mas os seus péssimos costumes apenas se propagavam em segredo, sem que ninguém ou- sasse declarar-se do seu partido. Assim, o poeta palaciano Estevam Jodelle, que passava pelo mais notável arauto do amor anti-physico, deshonrou-se mes- mo aos olhos dos seus amigos da Pleyade, prostituindo a sua musa ate ao extremo de compor, por ordem de Carlos ix, segundo se cré, o Triumpho de Sodoma.

«Foi encarregado pelo defunto rei Carlos, refere Pedro Estoile, que con- signa nos seus Registros-diarios o fim miserável e digno de d'este poeta parisiense, o mais indigno e lascivo de todos, de escrever o hymno que el-rei chamava a «Sodomia do seu preboste de Nantouillet.» (Journal dlíenri m, edic. de Champollion, p 29, anno de 1373.)

Quando Henrique iii partiu de França para a Polónia, onde o esperava

ífid HISTORIA

uma coiòa, pôde aílirmar-so que» não s<" havia aimla manchado com o vergo- nhoso vicio, que Ião deploravelmcnfe o defjradou ao vollar ao reino de seus maiores. Era desde a mais tenra edade propenso á luxuria, ardente, sensual e libertino, mas, ainda que rodeado de cortezãos perversos c voluptuosos, nunca se entregara aos (culpáveis extravios do amor italiano. Não seria diílicii averi- guar se cohtrahiu esta infame inclinação na Polónia ou em Veneza, onde pas- sou alguns dias no regresso a Franç.i, quando veio receber a coroa, por morte de seu irmão.

«Desde a morte da princeza de Conde, diz Mezera\ , no seu Renimo chr. da Historia de França, Henrique iii mostrou-se pouco alTeiçoado ás mulheres, e a sua aventura de Veneza deu-lhe outras inclinações.»

Esta aventura de Veneza não foi outra cousa senão uma enfermidade sy- philitica, que o real viajante contrahiu, e que o incommodou por muito tempo. A princeza de (^ondé, Maria de Cièvcs, a quem Henrique amava apaixonada- mente, morreu em Paris no dia 30 de outubro, seis semanas depois do re- gresso do seu real amante, a quem viu em lastimoso estado, em consequência da referida aventura. Eis algumas datas que nos permittem fixar de uma ma- neira quasi indiscutível a épocha om que começou a vergonhosa libertinagem d'el-rei.

Apenas el-rei chegou ao Louvre, formou-se em volta d'elle a corte dos mancebos (miijnons) e dos italianos. Estes últimos produziram a principio na piqiulação de Paris uma surda irritação, que não tardou em transformar-se em ódio implacável. Os estudantes da Universidade tornaram-se interpretes d'este ódio puramente nacional, e perseguiram o bando italiano com canções, libellos e satyras injuriosas, havendo frí^quentes pendências e mortes, por causa dos escândalos provocados pelos maus costumes d'aquelles estrangeiros.

Em julho de io73, um valenli' capitão, chamado La Vergerie, foi con- demnado á nioric c enforcado, por ler dito publicamente que, «n'esta questão, era preciso pôr de parte os estudantes, e cortar o pescoço a toda essa cáfila de pederastas italianos, que eram a causa única da ruina da França».

Pedro de TEsloilc, ao referir-nos o triste fim do capitão, affirma que el- rei assistira ao supplicio, embora d: -sapprovassc a sentença que o ordenara. Ueve suppòr-se, no emtanto, que o processo d'aquelle desgraçado official não se formou sem annuencia d'el-rei, pois que o chanceller Renato de Biraguo se encarregou pessoalmente d'elle.

Desde o supplicio do capitão Ea Vergerie, «houve sempre quem ultra- jasse com toda a classe de escriplos e libellos os italianos c a rainha Catharina de Medicis, sua ama e protectora.» Pedro de TEstoile archivou muitas d'estas satyras, entro outras algumas estancias e sonetos contra os italianos, a quem se imputavam lodos os males e desordens do reino.

No anno seguinte, porém, deixou de failar-se dos italianos, como se os Miíjnons os tivessem feito desapparecer. Pedro de TEstoile, echo fiel de toda a maledicência do seu tempo, escrevia em julho de lo7G nos seus Hegistres-Jour- tiauT :

«O nome de llií/nons começou então a andar na bocca do povo, que os

DA PROSTITUIÇÃO 461

odiava laiitu pelas suas maneiras sarcásticas e altivas, coniu pelos enfeites e atavios elíeininados e impudicos, c sobre tudo pelas mercês e benefícios que el-rei llies dispensava, julgando-sc geralmente que isto era a causa da ruina do paiz, quando a verdade era que as munificencias regias não eram por clles amontoadas, antes passavam para o povo, como um rio que vae dar ao oceano.

«Os Mignons usavam o cabello comprido e artificialmente annellado, lendo no alto da cabeça um pequeno gorro de velludo á maneira das p. . . Os collares engommados e largos davam á cabeça d'estes indivíduos o aspecto da cabeça de S. João n'um pralo. O resto do trajo era na mesma proporção. Pas- savam a vida a jogar, a blasphcmar, a dançar, a procurar pendências e na- moros, a acompanbar o rei a toda a parte. Nada faziam nem diziam (|ue não fosse do gosto do seu príncipe, pouco se importando, de resfo, com Deus ecom a virtude, bastando-ihes estar nas boas graças de seu amo, a quem lionravam e temiam mais que ao próprio Deus.» {Journal d'Henri iii, edic. de Cliampol- lion.)

Esta passagem é muito importante, por isso que íixa de um modo posi- tivo a data d i apparição dos .Uif/nons, ou pelo menos a épocba em que come- çaram a ser apontados pela indignação popular. De resto, Pedro Estoile nada diz próprio para caracterisar os seus costumes perniciosos, e o retrato que d'elles faz podia applicar-se a todos os cortezãos.

.Iccrescenta a este retrato um poema composto de quinze estropbes, que foi espalhado largamente por toda a cidade, sob o titulo de Virtudes e proprie- dades dos Mignons, 25 ãe julho de i576.

Os editores do Journal d'Henri iii não publicaram mais do que seis es- tropbes d'este poema, que vem publicado na sua integra com o titulo de in- dignidades da corte, no «Gabinete d'el-rei de França,» (p. i97.)0s textos apre- sentam algumas difierenças: observaremos, no emtanto, que tanto n'um como n'outro, a accusação de sodomia não se formula contra os mancebos senão sob a forma de uma duvida injuriosa.

O auctor anonymo, que era sem duvida um poeta, ataca especialmente a deshonestidade e o luxo dos vestidos, que elle considera como vergonhosos indícios de um mau procedimento.

Eis a paraphrase de algumas estropbes, escriptas no francez ainda bas- tante rude da épocba.

«Estes bellos e vistosos mignons refociilam-se constantemente em deli- cias, e talvez em vicios de tal ordem, que nem podem dizer-se por desho- nestos.

«Na linguagem e nos atavios são peiores do que as mulheres. Vestem-se lascivamente, de forma que uma mulher honesta rcceiaria tomal-os por mo- dello. O pescoço dillÍL-ilmente se move n'ai|tielle marde panno cngommado, que tem de rocorrer ao de arroz, para apresentar uma alvura que a farinha de trigo nãn poderia facilmente dar-liíe.

«Cabellos desegual mente cortados, compridos na frente e curtos atraz, cuiíscrvando-se arrepiados por meio de um cosmetic) apropriado. N'aquellas ca- beças ocas, um leve gorro mais os disfarça c eflemina.

462 HISTORIA

«Não ousarei dizer que os atavios liies sejam mais gratos do que ás mu- lheres. Receiaria oílendel-os, dizendo que entre elies se pratica a arte do im- pudico Ganymedes. Quanto ao trajo, direi que excede os recursos d'aquelles estouvados, porque cada um dos mignons não veste como simples fidalgo, mas sim como principe.»

Dêmos a preferencia ao texto do «Gabinete d'el-rei de França,» e deve- mos notar, que segundo este texto, o poeta parece querer evitar a suspeita de que os mignons praticassem a arte do impudico Ganymedes. Pelo contrario, na versão evidentemente alterada que nos ministram os diários d'Estoile, o sentido é muito diíTerente, pois que o auctor di/ que elles praticam essa arte vergonhosa, por meio de uma insinuação, que equivale a uma declaração formal.

Parece concluir-se d'esta salyra, datada de lo96, que na sua origem os mignons de Henrique in não eram considerados como agentes da libertinagem italiana. Accusavam-nos apenas de devorarem a substancia do povo, de esgo- tarem as arcas do thesouro, de usarem trajos deshonestos e de viverem n'uma elíeminada ociosidade.

Outro poeta se encarregou por esse tempo de responder ás Indignidades da Corte, compondo um poema florido e palavroso, que intitulou Brasões da Corte. Sem se demorar nas imputações indirectas a respeito dos costumes dos cortezãos, vitupera somente as linguas satyricas e os espíritos mordazes, que diziam ser a corte de França

Un retrait des abus, des dissolutions.

Poderia, pois, inferir-se d'este certamen poético que a libertinagem dos mignons não foi a principio estygmatisada pela opinião publica. Havia certa- mente muito que reprehender na sua conducta, mas a calumnia inventou desde logo tudo quanto devia tornal-os odiosos e abomináveis. D'aqui o papel infame attribuido aos mignons, isto é, a todos os jovens voluptuosos que formavam o .séquito d'el-rei. O que não era mais do que uma triste excepção nos favoritos de Henrique iii foi considerado como um vicio geral, e a corte de França veio a ser aos olhos do povo indignado o receptáculo da mais abominável prosti- tuição.

Dulaure tinha razão em dizer «que Henrique iii se distinguiu dos seus predecessores pelas suas predilecções efíeminadas, e sobretudo pelos seus ex- cessos uUramontanos.» {Hist. de Paris, t. iv, p. 493.) Devia, no emtanto, ter accrescentado que os huguenottes e os da ÍÂga não foram extranhos a muitas das calumnias, propaladas contra o rei e os seus ministros.

«A infâmia em que haviam cabido as damas da corte, diz elle com grande parcialidade, estendeu-se durante este ultimo reinado aos jovens cortezãos, que muito mais desprezíveis do que ellas, se entregavam como seu amo aos mais repugnantes excessos da libertinagem.»

Os mignons eram rapazes de boas famílias e bem parecidos, que Renato de Villequíer c François, commissarios dos prazeres d'el-rei, haviam introdu- zido na sua intimidade. Os mais notáveis d 'elles foram : Levy deCaylus, Fran-

DA PROSTITUIÇÃO 463

cisco de Maugiron, João Darcet de Livarot, Francisco d'Epinay de Sainf Luc, Paulo Estuer de Caussade de Sainl-Mesgrin, Bernardo e João Luiz de Nogaret, ambos filhos de João de la Valette.

Os outros eram menos conhecidos, porque não tinham a tal ponto con- quistado a estima do monarcha, e por isso os seus nomes não sahiram da es- phera da corte. No emtanto, alguns d'clies vêem nomeados n'um soneto, que circulou em Paris em 1577, e que foi conservado nos Registros diários de TEs- toiie. O soneto pôde servir para provar que nem todos os mignons estavam corrompidos pelas mesmas torpezas :

Saint Luc, petit qiiil est., coinmande bravemenl A la troupe líaultefort, que sa bourse a conquise. Mais Cayliis, dédaignant si paurre marchandise, Ne trouve qii'en son c. . . toul son advancement.

D'0, c'est archi-larron, hardy, ne scay commenl, Àime le jeu de main, craint atissi peu la prise ; D'Archaut, d'un beau semblant, veut cacher sa sottise ; Sagonne est un peu bougre et noble nullement ;

Montigny fait le òeryiíc, e ooudroil bien sembler Estre honneste hoiiime un peu, mais il ny peut aller ; Riverac est un sot, Tournon une cigale ;

Sainl-Mesgrin, sans sujet bravache audacieux : Je parlerois pius haut, sans la crainte des dieux, De ceux qui tiennent rang en la belle eabale.

Este torpe soneto, como diz Estoile, demonstrando a corrupção da corte e do século, não contém a nosso ver mais do que os nomes dos mancebos, que se prestavam á mais odiosa prostituição. Os deuses que o poeta não ousa nomear, são o rei e os seus favoritos O e Villeguier, com vários outros, que partilhavam com os fidalgos da côrle o dominio da prostituição italiana.

Pedro de FEstoile apresenta-nos também estes mignons, enfeitados, fri- zados, penteados, polvilhados com pós tão odoríferos, que perfumavam as ruas, as praças e as casas que frequentavam. Este abuso dos perfumes, estas modas feminis, estes vestidos ridículos, são os únicos artigos de accusação fei- tas por este chronista aos mignons, e não vemos que caracterise em parte al- guma os costumes d'elies, de modo que pareça dar credito aos rumores que cir- culavam a respeito d'estes favoritos reacs. Llmita-se a reunir escrupulosa- mente satyras e epigrammas, que provam sobre tudo o ódio do espirito publico contra Henrique iii e os seus favoritos.

Quasi todos elles morreram miseravelmente, uns em duello, outros as- sassinados, muitos victimas de diversos accidentes. O horror que inspiravam ao povo tradu7.ia-se nas suas orações fúnebres ; em todo o caso, as injurias e maldições fulminadas contra a sua memoria não se referiam a circumstancias authenticas da sua vida libidinosa, que estava sempre envolvida n'um veu impenetrável.

Í64 HISTORIA

Os cscriptores prolestaiites c os da Liga procuraram levantar este veu, muito tempo depois de terem desapparecido os mignons; e a t-adicção da corte, desfigurada ou envenenada peia malevolencia, retlectiu-se em muitas obras safyricas, que não foram impressas até ao reinado de Luiz mii, vinte e cinco ou trinta annos, depois da morte de Henrique m.

Na vida d'este principe appareceram unicamente algumas peças em verso ou em prosa, que circularam clandestinamente em Paris, e que não tiveram pu- blicidade, embora momentânea, senão em consequência das Barricadas. an- tes d'isto, porém, outras composições mais infames ainda haviam sido divul- gadas, sem que nenhum impressor ousasse puhlical-as.

Pedro de TEstoile archivou muitas d'estas composições nos seus Regis- tros diários, e na reunião de curiosidades que consagrou k historia anecdotica e escandalosa do seu tempo. Todos os editores do Journal iVHpnri iii hesitaram ante a publicação das poesias obscenas, que formam o triste monumento da hor- rível reputação dos mignons. N'esta ultima edição, que devemos á sollicitude de Champollion, lemos apenas com data de 10 de setembro de lo8fl:

«Diversas poesias e escriptos satyricos foram publicados contra el-rei e seus favoritos, n'estes três annos 1377, l-o78 e 1579, os quaes por serem na sua maior parle Ímpios e torpes, de tal modo que o papel se envergonhava, seriam dignas do fogo, assim como os seus auolorcs, nV)utro século que não fosse este, que parece destinado a ser a vergonha dos precedentes.

«Os seus titulos são os seguintes :

«Les trésoripvs el les mignons, por M. . . da Uga.

«O soneto impudico a Saint-Luc.

«O Pasquim cortezão.

«Este ultimo é torpe, obsceno, lascivo, e corria na corte em 1379, sendo cousa muito conhecida.

«Os versos livres que se escreveram na egreja da abbadia de Poissy, num dia em que o rei foi.»

Cada vez que um dos favoritos d'el-rei era arrebatado por uma morte violenta ao aííecto de seu amo, quando Caylus, Maugiron, Schomberg e Riberac morreram num duello, quando Saint-Mesgrin foi uma noite assassinado á porta do Louvre, desencadeiou se em Paris e na corte uma explosão de libei- los atrozes contra os mignons de cabelio frizado. Seria, porem, injustiça con- siderar estes libcllos como a expressão legal da verdade histórica. Era antes a obra pérfida das vinganças da corte, e ás vezes também das paixões politicas.

Não escasseavam poetas no palácio da Universidade, para infamarem os mignons, cm versos cortezãos, quer dizer, em versos deshoneslos, torpes, sór- didos, á moda da corte, ainda mesmo que atacassem também a honra d'el-rei, segundo a definição de Pedro Estoile.

Damos n'esle logar para exemplo um soneto satyrico, largamente espalha- do em Paris em 1378, e que sahiu da odicina da Uga.

DA PROSTITUIÇÃO 46È{

Ganymédes elfrontéx, impudique canaillc, Ceroaux ambitieux. d' ignorance coinblés, Cest Vinjure du temps et les gens mal zeles, Qui vous font prn.iperer sous un )-ní fail de paille.

Ce n'est ni par assault ni par grande bataille Qu'avez eu la faveiir, mais pour èlre alliés, D'un corrompu esprit, l'un et 1'autre enfidés, Guidés de vnstre chef, qui les lininienrs mus baille.

Qui vos teinls, damiseaux, vos perruques trousées Aime, aulanl comine esciis et lume et epées; Puisque les grans estiits qui vous rendent infames

Sont de vice loieurs au.r jeuues imprudents, Gardez-les d toujours, car les hoimnes vaillanls Pfen veulent aprés vous, qui êtes moins que feuimes.

Paraphraseemos esta composiçcão poética :

«Ganymédes desaforados, canalha impudica, patetas ambiciosos, odres de ignorância, a preversidade dos tempos que vão correndo e as pessoas infa- mes vos fazem medrar á sombra de um rei de palha.

«Não foi por assalto nem por batalha que alcançaste esse favor, mas sim pciíis vossos costumes corrompidos, unidas estreitamente uns aos outros, e guiados peio vosso chefe, que vos dislribue os cargos e as honrarias.

«Ha quem seja tão inclinado aos vossos feminis enfeites, como ás es- padas c aos escudos. Uma vez, que as grandes honras que vos tornam odiosos, são o premio do' vicio, guardae-as muito embora! Os homens valentes e dignos nada querem comvosco, que valeis menos que as mulheres

Esta inimisade irreconciavcl contra os favoritos foi constantemente pro- gredindo cm todo o reinado de Henriciue iii, e o povo sempre inclinado a crer o que é cxtranho e monstruoso, nunca tomou a precaução de acceitar com des- confiança as calumnias frequentemente ridículas, que corriam a respeito do bando dos mignons.

Houve mesmo quem se convencesse muito seriamente que João Luiz -Nogaret, duque d'Épernon, que Pedro de TEstoiie chama Árchi-mignon d'el- rei, c que veio a ser o principal favorito de Henrique iii, depois da morte dos mignons Caylus e Maugiron, não era senão um demónio do inferno, destinado a acabar de corromper e condemnar o desgraçado Henrique de Valois.

Esta lenda diabólica foi largamente referida, n'um libello publicado por essa épocha, e que tinha por titulo:

«Cousas horriveis contidas n'uma carta dirigida a Henrique de Valois por um filho de Paris, no dia 28 de janeiro de 1589, e impressas pela copia, que se encontrou nVsta cidade de Paris, perto do relógio do Palácio, por Jacques Gregório, impressor mdlxxxix.»

O filho de Paris, a quem Pedro de TEstoile cliama um patife da Liga, refere n'esta carta, cheia de obscenidades, que os feiticeiros e encantadores haviam dado ao rei um espirito familiar, chamado Terragon, e que este espi-

UíSTOBu DA PHoiírrmçÃo. Toom ii— Folha 59.

466 HISTORIA

rito, com a appaiencia de um mancebo, lhe fora apresentado no Louvre, como um fidalgo da Gascunha. Apenas el-rei vira este fidalgo, cliamou-lhe logo seu irmão, e o levou a dormir á sua própria cama. Por conseguinte, o duque d'Épernon não era senão aquelle mesmo espirito Terragon.

O filho de Paris, referindo-se ao tal archi-mignon d'el-rci, entra em por- menores maravilhosos, que provam a sua impudica diabrura. Estes pormeno- res são tão horríveis, que M. M. ChanpoUion não se atreveram a reprodu- zil-os todos, reemprimindo apenas alguns extractos da carta, no appendice da sua edição do Journal d'Henri iii, que forma parle da collecção de memorias relativas á historia de França, publicada por M. M. Michaud e Ponjoulat.

Talvez não exista nem um único exemplar da edição original d'este celebre disparate, como o qualifica Pedro d'Estoile. Este chronista, porém, pu- blicou uma copia feita por elle na grande coUecção in-folio, composta de libei- los, impressos e estampas gravadas em madeira e intitulada: As bellas figuras e anecdolas da Liga. Esta preciosa e curiosíssima collecção existe actualmente na secção de livros impressos da Bibliolheca imperial.

Attribuiam-se ordinariamente aos feiticeiros as infâmias de que Henri- que III era accusado pela opinião publica. Estas infâmias pareciam ao vulgo crédulo consequências naturaes das feiticerias imputadas ao desgraçado rei. Assim, ninguém duvidava em Paris de que os mignons, e especialmente o du- que d'Épernon, estivessem ligados a seu amo por um pacto diabólico, e todo o mundo se convenceu d'isto, quando se disse do alto do púlpito que as provas raateriaes dos seus sortilégios abomináveis haviam sido descobertas no Louvre e no bosque de Vincennes, nos próprios aposentos d'el-rei.

«Eram dois salyros de prata dourada, da altura de quatro pollegadas cada um, tendo na mão esquerda uma grande massa a que se encostavam, e segurando com a direita um copo de chrystal puro e brilhante, levantando-se sobre uma base redonda sustentada por quatro pés. N'estes copos havia dro- gas desconhecidas, que constituíam uma oblação, e o peior de tudo era esta- rem defronte de uma cruz de ouro, no meio da qual havia incrustado um pe- daço de madeira da verdadeira cruz de Nosso Senhor Jesus Chrislo.»

Esta ingénua descripção, que tomamos de um libello, que appareceu por aquelle tempo com o titulo de Feiticerias de Henrique de )'alois, e oblações que elle fazia no bosque de Vincennes ás imagens de demónios de prata dou- rada (Paris. Didier Millot, 1589), refere-se simplesmente ás navetas do in- censo collocadas n"um oratório de cada lado do crucifixo.

Oauctor do referido pamphlcto indica o uso impuro e sacrílego dos sup- postos Ídolos, dizendo :

«Sabe-sc que os pagãos adoravam os satyros como deuses dos bosques e logares retirados, por acreditarem que delles provinha a aptidão e a potencia da sensualidade.»

E impossível purificar a memoria de Henrique m das manchas que a deshonram. Pode allirmar-sc, no emtanio, que as torpezas de que são resjion- saveis no tribunal da historia este príncipe e os seus tnignuns, não foram nem Ião repugnantes, nem tão frequentes como se suppõe, pelas accusações dos hu-

DA PROSTITUIÇÃO 467

guenottcs o dos da Liga. Clieganios a aciTditar que em muitas circiimsfancias o atleclo do rei aos seus favoritos cra alheio de toda a impureza, e não temos coragem para vèr uma pai\<ão vergonliosa nos sentimentos de amisade e dôr, que Henriqne iii deu publicamente a Caylus e a Maugiron, chorando-os amar- gamente, beijando-os depois de mortos, diz Estoile, fazendo com que liies cor- tassem os cabeilos louros, e tirando a t^aylus os brincos que elle próprio lhe havia dado e posto por sua própria mão.

Nada é mais commovedor do que a morte de Cay''i''i repetindo até ao ultimo suspiro: Oli ! meu rei! meu rei!. . .

O povo considerava tudo isto de modo difTcrente, e via com desgosto os sumptuosos túmulos crigitlos em honra d'estes dois jov(>ns efíeminados, que tanto se havia habituado a odiar. O povo, cego e irritado pelas intrigas dos partidos anarchicos, tinha aversão a tudo quanto considerava como causa dos seus males e misérias. Estava sempre dispjsto a acreditar os horrores que ou- via referir a respeito dos costumes d'el-rei e dos seus favoritos, deixava-se en- ganar pelas apparencias, c sentia-se prevenido desfavoravelmenti* contra os cortezãos que faziam mascaradas e procissões.

Os pregadores com as suas declamações tiveram por essa épocha a mais funesta inlluencia na opinião, e Henrique iii teve motivos para se arrepender de os não ter reduzido ao silenciíi. Depois de o terem aviltado e dilfamado, mandaram-n'o assassinar por JacqU'\s Clemente.

«N'um dia de quaresma, lé-se no .lournal d'flenri iii de 20 de fevereiro de lo83, el-rei e os seus favoritos mascararam-se e sahiram pelas ruas de Pa- ris, onde practicaram mil insolências, e de noite andaram de casa em casa, visitando gente de mau porte até ás seis da manhã do dia seguinte. ]\'essedia, quasi todos os pregadores de Paris nos seus sermões o accusaram desasssom- bradamente das suas noitadas e insolências.»

Foi talvez para fazer penitencia d'estas loucuras, que el-rei poucos dias depois instituiu a Confraria dos Penitente.^, fazendo procissões, em que os ir- mãos, vestidos de sacco,iam ein duas alas cantando psalmos e açoitando-se. Os mignons figuravam, porém, n'estas procissões, e a sua presença destruiu logo todo o salutar efTeito d'ellas.

«Soube de fonte limpa, dizia o frade Poncet, que pregava a quaresma em iSotre-Dame, que hontem se encheu o assador para a ceia d'esses bons peni- tentes, e que depois de haverem comido carne de porco, passaram a noite a olFender o Senhor nosso Deus.»

O pregador foi preso por ordem d'el-rei, e as procissões continuaram com a comparência do monarcha, vestido de sacco e rodeado sempre dos seus favo- ritos.

«Houve alguns d'el!es, diz Pedro de TEstoile, que, segundo se conta, se açoitaram n'csta procissão, apresentando os hombros vermelhos dos açoites que se applicavam. A respeito d'isto correram muitos versos satyricos, que foram distribuidos na mesma confraria de pcMiitentes d'el-rei.»

SegunJo alguns historiadores, Henrique iii fazia estas procissões e pe- nitencias publicas para evpiar os feios pcccados, que intimamente se censurava,

468 HISTORIA

mas cm que recaliia sem cessar. Obriga /a, por isso, os »ii(jnons, como seus cúmplices a apparecerem rrestas ceremonias em trajo de penitentes. Ia com eiles visitar as egrejas e conventos, rezar estações, fazer preces, ouvir ser- mões e ganhar indulgências, isto, como o povo julgava, era apenas uma pre- paração para melhor peccar d'ahi a pouco. Allirrnava-se que el-rei fizera pintar no seu oratório e em habito monástico os seus mignons e favoritos. (Confession de Sancy, capitulo viii.)

Contava-se que fazia açoitar na sua presença e no seu gabinete os seus companheiros de devoção e de vicios, e suppunha-se que a Confraria dos Pe- nitentes havia apenas sido instituída para angariar vis e complacentes auxilia- res de torpezas, e para propagar, sob a capa de uma associação religiosa, os infames principies da sodomia.,

O diário de Henrique iii diz-nos eíTecti vãmente que um dos mestres de ceremonias da confraria era um tal l)u-Peirot, fugitivo de Lyon pelo crime de alheismo e sodomia. Comprehende-se facilmente o motivo porque o povo cha- mava aos penitentes confrades do Gabinete e ministros do bando d'el-rei.

Sully, nas suas Economies réelles, uma lista dos mignons, na qual fi- guram entre outros que nomeamos, Bellegarde, Sonoré, Buchage eThermes. Não allude, porém, aos seus costumes, e diz unicamente que todos elles haviam sido ao mesmo tempo favoritos d'el-rei. O douto Leduchat, nas suas armota- ções á Confissão de Sancij, nomeia mais quatro d'estes privados, refei'indo-se ás Mem. do esiado dn /■'rança no tetnpo de Carlos ix, e ás cartas de Estevam Pasquier.

«Le Voyer, senhor de Lignerolles, Pibrac, Roissy e Vic de Ville, os quaes, accrescenta o commentador, não eram tidos como igualmente viciosos e «or- rompidos.»

Qualquer fidalgo, honrado por el-rci com a sua sympathia ou intimidade, ficava logo suspeito de miqnon ou hermaphrodita. Esta ultima denominação, menos popular e mais refinada que a outra, caracterisava a espécie de prosti- tuição, á qual segundo a fama deviam o seu valimento e fortuna.

Agrippa d'Aubigné, o Juvenal d'aquella épocha, que elle nos descreve como mais depravada ainda que a de .\ero e Domiciano, consagrou a sua prosa e os seus versos ao estygma dos favoritos de Henrique iii.

No lib. II dos seus Tragiciens, exclama :

. . . les Heriniiphrodilex, moni^lres ejfeniinés, Currnmpuit hnrihlierí et qui e^tuyenl inieiíx nés Pour valeis de putains que .spíjockí-s sur les Iwninies, Sont les inoustres dn siècle et dii tenips oit noits sommes.

Os Tragiciens foram apenas impressos em 1616, sem nome de auctor, mas estas admiráveis satyras haviam sido cscriplas na mocidade ded'Aubigné, que apesar de ser um calvinista demasiado zeloso, nem por isso deixou de ser um homem honrado e um grande historiador.

Outra obra igualmente salyrica, mas muito menos apaixonada c cruel,

DA PROSTITUIÇÃO 469

foi também composta pelo mesmo tempo para verberar os costumes dissolutos (la corte de Henrique iii. Não sahiu á luz senão muito tempo depois de haver sido escripta, mas ainda assim muito antes do poema de d'Aubigné.

Piide, portanto, ser considerada como um documento contemporâneo, que merece mais confiança que os pampblefos do tempo, ainda que não passe de uma engenhosa aliegoria.

O livro de que vamos faltar, e que não nos permitte rehabilitar os rni- (jnons, intitulava-se apenas os Hennaphrodiííis, na 1." edição que foi feita em Paris, n'um pequeno volume in-12.", sem nome de imprensa, ahi pelo anno de 1604. O frontespicio tem o retrato de Henrique iii em pé, e com trajos e attributos de homem e mulher ao mesmo tempo. Por cima do retrato, esta di- visa: .1 /ous accords, para todos os usos. Por baixo, estes seis versos, mali- ciosamente enygmaticos:

Je ne suis mâle ni femelle Et je ne .■<çaij bien en cervelle Le quel des deiix je dois choisir ; Mais quHmporle à qui je rassemble .' 11 vaul iiueux les avoir ensemble : On en reçoit dotible plaisir.

Traducção: «Não sou nem macho nem fêmea, nem mesmo sei qual dos dois escolher. Que importa atinai o que eu pareço? Vale mais ter os dois se- xos ao mesmo tempo, porque o prazer assim é duplo.»

A publicação d'este volume fez grande sensação, especialmente na corte, onde muitos dos antigos mignons de Henrique iii, taes como Bellegarde, Épernon, etc, conservavam ainda o mesmo valimento, sem o deverem a meios tão ignóbeis. O pamphleto foi denunciado a el-rei e envidaram-se gran- des esforços para que o auctor recebesse um castigo severo. Henrique iv, po- rém, depois de ter lido os Hermaphrodilas, não quiz que se procurasse o auctor, apesar de ter achado a obra demasiado livre e audaciosa, «não sendo justo, dizia el-rei, que se castigasse um homem por ter dito a verdade.»

Pedro de TEstoile transcreve esta memorável sentença de Henrique iv, na qual temos necessariamente de vèr a prova dos factos históricos referidos pelo auctor dos Hermaphrodilas.

Quem era o auctor do livro?

Estoile chama-lhe Artus Thomas, que alguns julgam ser Thom;iz Artus, senhor dEmbry, litlerato obscuro e palavroso. Sorel, na sua BibUolh. (rançaise, diz que o livro se attribuiu ao cardeal Pcrron.

Pouco importa para o nosso caso saber a que penna elegante e satyrica se deve esta composição poética, que fui reimpressa pouco depois com outro titulo ainda mais explicito :

«Ilha dos bermaphroditas, reccm-descoberta, com os costumes, trajos, leis e ordenações que lhes dizem respeito.»

Este novo titulo annuncia que o auctor se propuzera criticar sobre tudo a extravagância e immodestia dos trajos da corte. Estas modas eITeminadas estão

Í70 HISTORIA

elTectiv;imente descriplas tão prolixamente na obra, que preferimos citar uma passagem dos Tragiciens, em que d'Aubignc resume em versos bellissimns, muitas paginas dos Hermaphroditas :

Henry fui mieux instruii a jiiger des alours

Des putains de sa cour, plus propres aux amours:

Avoir ras le menton, garder la face pale,

Le geste elfeminé, Vair d'un Sardanapale,

Si bien qu'un jour des Róis, ce douleux animal,

Sans cervelle, sans front, parul lei en son bal :

De cordons emperlés sa chevelure pleine

Sous un bonnet sans bord, fait à l' ilalienne,

Faisait deux ares voutés; son menlon pincele,

Son cisage de rouge et de blanc embosté,

Son chef toiíl etiipoudré, nous monslrèrerenl l'idèe ;

En la place d'un roy, d'une pxitain fardée.

Pensez quel beau spectacle ! el comme il fil bnn voir

Ce prince avec un buse, un corps de satin noir

Coupé à 1'éspagnole, oii des dechiquetures

Sortoienl des passemens et des blanches tirures,

Et a [In que 1'habit s'enlresuivil de rang,

II monslroit des manchons gauffrés de satin blanc,

D'autres manches encor, qui s' eslendoient fendues,

Et puis, jusqtie aui pieds. d'anlres manches perdues.

Pour nouveau paremenl il porta tout ce jour,

Cel habit monstrueux, pareil à son amour ;

Si qu'au premier abord chascun éloit en peine,

S'il voyoit un roy-femme, ou bien un homme-reine.

Traducção : «Henrique entendia como ninguém de todos os atavios e adornos das cortez.ãs. Um dia este animal inqualificável, imbecil e sem juizo, apresentou-se n'um baile com a barba perfeitamente escanhoada, o rosto muito pallido, o gcblo effeminado, e os olhos de um Sardanapalo. Levava o cabello cingido com diademas de pérolas, sob um chapéu sem abas, á moda italiana. O rosto cheio de arrebiques, a cabeça polvilhada, ofTerecendo mais o aspecto de lima ribalda, que o de um rei. Vede, pois, que bello espectáculo, e que deplo- rável figura a d'aquclle príncipe espartilhado, com o seu justilho de setim preto á hespanhola, coberto de bordados brancos ! E para que o trajo fosse com- pletamente ridículo, levava mangas de setim branco, com outras mangas por- rima d'estas, e outras ainda que lhe cabiam até aos pés. Este trajo, tão mons- truoso como as suas inclinações amorosas, fazia duvidar a quem o via se Hen- rique era um rci-inulher, ou uni homem-rainha.»

O auctor dos fhrmaphrodilns não omitte pormenoi' algum a respeito do vergonhoso trajo dos seus personagens, ou dos seus refinamentos de sensuali- dade e galanteio. É, porém, demasiado sóbrio era dados estatisticos e em allu- sões a respeito dos costumes, o que a entender que houve algumas sup- prcssões na impressão. E' fácil suppòr o que deviam ser os actos secretos dos agentes do llerniaphrodila n aquella camará, que denominavam o altar de An- tinoo, porque a tapeçaria representava os amores d'este personagem mytholo-

DA PROSTITUIÇÃO 471

gioo, OU mesmo naquella galeria em que estavam pintadas a fresco as lascivas occupações de Sardanapalo, e as meditações do Aretitio, relativas ás melamor- plioses dos deuses, e outras scenas iguaes, perfeitamente pintadas ao natural.

Pfide imaginar-se lambem o que o auetor ou o impressor omittiram, quando se notam, na galeria dedicada aos legisladores da libertinagem, calças com os assentos abertos, que subiam e desciam conforme se queria, invenção hermapbrodita, recentemente introduzida no paiz.»

A opinião de Henrique iv a respeito d'esta obra, que o monarcha julgava demasiado livre e audaciosa, reconhecendo, não obstante, que dizia a verdade, não necessita justificação de citações. É, todavia, extrabida das ordenações re- lativas á policia entre os herma|)liroditas, e não deixa duvida acerca do objecto principal, que o auetor se propunha n'esta mordaz satyra dos mignona.

«E, como, os nossos leitos são altares em que queremos que se faça um sa- crifício perpetuo á deusa Salambona, desejamos também que sejam mais ricos que os demais, e bem adequados á maior commodidade dos nossos Íntimos ami- gos. Sabendo também que as acções vulgares se fazem sob um ceu que se chama lunar, e estando os mysterios de Vénus dois graus acima, entendemos que cada qual deve ter duplo ceu no seu leito, e que o de dentro não deve ser menos rico do que o de fora. Queremos que a sua historia se tome das Metamorpkoses de Ocidio, transformações de deuses e coisas similbantes para animar os mais frios; que o posterior seja mais notável que o anterior pela sua largura como o mais conveniente aos Herniiipbroditas. E, como a terra não é digna de supportar cousas tão preciosas, ordenamos que se estendam sobre o pavimento, debaixo dos leitns, ricos tapetes do Cairo ou qualquer alcatifa de seda.»

O auetor limita-se a tocar o assumpto com uma delicadeza que prova bem todo o horror que lhe inspirava a vida desordenada dos cortezãos, e con- fessa que se allastava com repugnância dos que jogavam e brincavam, com re- ceio de ver alguma cousa que lhe podesse desagradar.

Temos de voltar aos escriptos de igrippa d'.4ubigné para conhecer os ca- racteres mais salientes da prostituição dos mignons. O grave e sensato Thou não teve inconveniente em fazer entrar na sua Historia algumas anecdotas que também se encontram na Confissão de Sancy. A da buzina, por exemplo, prova quando menos que o rei não eslava tão endurecido pelo vicio, que se entregasse a elle sem remorsos.

Ahi pelo anno de 1580, Saint-Luc e Joyeuse, envergonhados da sua deshonesta condição, quizeram sahir d'ella, fazendo ao mesmo tempo enver- gonhar seu amo dos vicios a que mui dillicilmente se submettiam. Por conselho da c mdessa de Retz, a quem ambos amavam, furaram a parede do gabinete de Henrique iii e «introduziram pelo orifício, entre as cortinas e o leito, uma buzina de bronze, por meio da qual pretendiam fazer crer na inter- venção de um anjo », segundo a narração que Aubigné faz d esta aventura, (Hist. iniverselle), lib. ii, cap. v. t. iii.)

Tractava-se de fazer chegar mysteriosamente aos ouvidos d'el-rei um avi- so do ceu, aviso e ameaça ao mesmo tempo, para ver se se corrigia dos seus

47? H.STORIA

odiosos hábitos. O êxito d'este estratagema superou a espectativa de Saint-Luc c de Joyeusp, porquo Henrique iit, apenas ouviu a imperiosa voz que o cha- mava ao caminho da moralidade, sob pena de ser castigado como os preversos ha- bitantes de Sodoraa e Gomorrha, jurou não tornar a reincidir no seu peccado, fazendo também arrepender os seus mifjnons.

O pobre peccador ciiegou a ter tanto medo, (jue ao menor trovão corria a csconder-se debaixo do leito, e por pouco que a trovoada continuasse, fugia todo tremulo para os subterrâneos do Louvre.

Joyeuse, porém, teve compaixão do rei, vendo o deplorável estado a que che- gara, e para o curar do seu terror tudo lhe confessou, lançando as culpas a Saint-Luc. Este teve tempo de fugir, antes que a cólera real podesse alcançal-o, e refugiou-se na cidade de Bronage, de que era governador, abjurando para sempre os seus vieios de miynon.

Thou refere a mesma aventura, mas como cúmplice de Saint-Luc a Francisco de O, em vez de Joyeuse, e attribue á mulher de Saint-Luc, Joanna de Coisé-Brissac, a invenção da famosa buzina.

De resto, apesar dos seus peccados da mocidade, o ex-miçinon Francisco d'Epinay, senhor de Saint-Luc, veio a ser grão-mestre da artilheria e marechal de França, no reinado de Henrique iv.

«Este pobre rapaz tinha horror por aquelle vicio, diz Agrippa dWubigné : na Confissão de Sanrii, e foi forçado da primeira vez que o commetteu, mandan- do-lhe o rei buscar um li\ro a um cofre, com cuja tampa o prenderam por me- tade do corpo o grão-prior e Camillo, c a isto se chama apanhar uma lebre na armadilha, de maneira que o honrado rapaz foi posto á força na degradação d'aquelle vil ofBcio.»

A deshonra do desgraçado favorito tornou-se publica na corte, por meio deste obsceno anagramma, que Rochepot compoz com o nome de Saint-Luc: Cast in c . .

O anjo da buzina deixou todavia no animo del-rei uma saudável dispo- sição para ttmer o castigo do ceu, e d'aqui as suas procissões, penitencias e expiações solemnes. .Não é dilFicil, porém, de acreditar, como diz dAubignc, que «o terror crescia com o artificio esquisito das sensualidades». Pela nossa parle, repellimos com horror as monstruosas columnias que os da IJga, ainda mais que os huguenottes, propalavam venenosamente para aniquillar aquelle reinado, stygmatizando o rei.

Custa a crer, na verdade, como Aubigné pôde obstinar-se a repetir estas indignidades nos seus Trn<iir,ns. na sua Historia unirersal, e na sua Confissão de Sdnnj. Devia ter deixado nos pamphictos da Liija aquelles rosários trazidos de Hmna, aquellas contas bemdilas, que el-rei havia distribuído pelos seus com- panheiros de orgias, ordenando-lhes que as resassem antes das suas sensuali- dades ; aquella missa sagrada que se dizia no leito do gabinele-lupanar d'el-rei, com ornamentos próprios do peccado; aquellas ablucções e clysteies de agua benta, ((ue os impudicos mignons usavam como preservativos contra o fogo do ceu.

Sauval, nas suas memorias históricas c secretas a respeito dos amores

DA PROSTITUIÇÃO 473

dos reis de França, não hesitou em lomar a defeza de Henrique iii, em pre- sença das odiosas profanações ailegadas por Auhigné.

«Todas estas abominações de Gomorrlia, diz olle, com que o denegriam, e que os satyros chamavam amores sagrados, como que prohibindo o amor das mulheres, eram antes os vieios dos grandes e sobretudo dos seus favoritos, de- nominados o bando xaijrado, do que os seus. Assim, dizia-se a respeito das monstruosas desordens que faziam as suas delicias :

«Em Hespanha, os fidalgos: em França, os grandes ; na Allemanha, pou- cos ; na Itália, todos.»

Não obstante, temos de acceilar como verdadeira uma parte das revela- ções da Confissão de Sancy, por mais infames que ellas sejam, preciso não confundir com os abjectos pamphletarios da Liga o honrado e leal Aubigné, que foi o amigo e companheiro de armas do rei bcarnez, ainda mesmo quando te- nhamos de o ouvir dizer com profundo sentimento de indignação:

«Se eu contasse o que me revelou em segredo o príncipe de Conde, quando passou a noite muito contente, elle e os da corte, com a aprendizagem do conde d'Auvergne; ou se fallasse no desterro do joven Bonny, por não querer ser do bando!

«Noailles escreve no seu leito estes versos :

"Nul heur, nul bien ne me cunlente, «Absent de ma divinitél

«E 0 rei de Navarra accrescenlou em seguida com a própria mão :

''iTappelez pas ainsi ma tante: «Elle aiine írop humanité.

«Estes versos deram a conhecer que de Noailles amava as mulheres con- tra as regras do amor sagrado, e por isso foi expulso a pontapés, como o du- que de Longueville.

«Se contasse também os deposorios de Caylus, e o contracto íirmado com o sangue d'el-rei e com ú sangue de O, como testemunha, por cujo con- tracto se casava com M. Grande. Emfim, se eu repetisse as palavras d'este príncipe, ajoelhado diante de Maugiron morto e com a bocca pegada ás suas partes vergonhosas!. . {Confissão de Sancij, cap. vii.)

Quando Aubigné escrevia d'este modo as horríveis revelações da historia secreta de Louvre, havia sido condemnado á morte, duas ou três vezes, como contumaz, como huguenotte incorrigível, e gosava um alto favor na corte de Henrique iv. Tinha a esse tempo a barba grisalha, e sentia ainda estuar nas veias o ódio implacável que lhe inspirava o vicio coroado. Trinta annos antes, durante as guerras de 1577, residia cm Castel-jaloux, onde commandava al- guns soldados da cavallaria ligeira do exercito protestante, e formulava as mes- mas accusações contra Henrique mi e os seus cortezãos na sua obra, os Traçji- cos, publicada vinte annos mais tarde.

HitTOKIA PB09T1T0IÍÃ0. TOMO H— FoLHA 60.

474 HISTORIA

No leito da dòr, com a morte á cabeceira, entregava ainda à execração da posteridade os odiosos feitos dos mignons e do seu real protector. Eis como o poeta preparava o trabalho do historiador :

Quand j'oy qu'un roy transi, ejfrayé du, tonerre Se couvre d'une voiite, et se cache sous terre, Sembusque de laurier, fait les cloches snnner, Son péché, poursuivy, poursuil de 1'eslonner; Quil use d'eaw lustrale, il la boit, la consomme En clystères infects; il fait venir de Rome Les cierges, les agnus, que le pape fournit; Botíche tous ses conduils d'un charme grain bénit; Quand je voy coinposer une messe complete, Pour repousser le ciei, inutile amulette; Quand la peur n'a cesse par les signes de croix, Le braier de Massé, ni le froc de François: Tels spectacles inconnus font confesser le reste, Le péché de Sodome et le sanglant iiiceste Sont reproches joyeux de nus impurs cours. Triste, je trancheray ce tragique discours, Pour laisser aux pasquins ces ejfroyables contes. Honteuses vérités, Irop véritables hontes!

Damos em seguida a traduc^ão d'estes excellentes versos, que parecem inspirados pela musa de Juvenal :

«Quando me dizem que um rei, com o medo do trovão, se esconde de- baixo da terra, se cobre de folhas de louro e manda tocar os sinos ; que o seu ppccado habitual o persegue sem descanço; que usa de agua benta, de todas as maneiras, bebendo-a, lomando-a em cl3'steres; que manda vir de Roma cí- rios e afinus-dei, que o papa lhe fornece; que tapa todos os seus orifícios com contas bentas ; quando vejo celebrar uma missa solemne para aplacar o ceu inútil amuletto! quando o medo não cessa nem com signaes da cruz, nem com o cinto de Massé, nem com o habito de Francisco. . . Estes espectáculos desconhecidos fazem conhecer o resto. O peccado de Sodoma e o repugnante incesto são alegres censuras de uma corte obscena. Interrompo com tristeza este trágico discurso, para deixar aos libellos tão espantosos contos, vergonho- sas verdades, verdadeiras vergonhas!»

Podíamos multiplicar as citações d'Aubigné e de outros escriptores hu- guenotles, que se occuparam da espantosa dissolução da corte de Henrique iii. O leitor deve estar, porém, ennauseado de todos os excessos que temos nar- rado, e que dão a medida exacta da inlluencia da depravação italiana, ifuma corte, em que, como vimos, a prostituição foi arvorada cm meio politico, destinado pela rainha Catharina de Medíeis, consecução dos seus ambiciosos planos.

A épocha era de depravação gerai. O século xvi refinou todos os exces- sos da sensualidade antiga, e tanto em Itália, como em Hcspanha, como em França, a dissolução dos costumes chegou a limites nunca até então phanta-

DA PROSTITUIÇÃO 475

siados. Os grandes, sobre tudo, largaram desaforadamente a rédea a todas as paivões infames, e por toda a parte cuidaram incessantemente de adquirir pelo vicio a mais triste das celebridades.

Henrique iii, um rei fraco, demente quasi, presidia inconscientemente, na sua bestialidade estúpida, a este desmonoramento dos princípios moraes e das ideias virtuosas. A sua corte era o triste quadro das mais espantosas obs- cenidades.

Resta-nos descrever ainda a consequência do funesto exemplo do mo- narcha em todas as classes sociaes.

CAPITULO XXXVIII

SUMMARIO

o níDorcíO Salijíkú.— As Memorias da ramha Margarida.— Os amores do Grande Alcanáre.— Os pri- meiros amoii-s de Margot.— I.a Mole, Russy, Tureniie, Maycnne, Clermont d'Amboise, etc. -Uma aventura da rainha com Chani|ivalloii.— Partida da corte e prisão da rainl]a.— Carla de Henrique iii a seu cunhado.— Mar!,'arida casada. —Sua fuga de Nerac— Sua cliegada a Carlat.— Os bastardos da Gascuntia e os caldeireiros do Auversíne. Em que se occupava a rainha em Carlat.— Auviac e o man|uez de Canillac— O castello d'Usson. Seus mysterios, segundo va- rias testemuidias contemporâneas.— O cantor Poraiuy- —A caixa de prata.— O culto de Vénus llrania Os seus dois sacerdotes Diipleis e Brantònie.— O divorcio de Henrique iv.— Regresso de Margarida a Paris -O palácio de Sens Morte do mitjnfín Date.— A ilha de Cytheia no arrabalde Saint-Germain—Baujaraont.— Últimos clarões da galante- ria da rainha .Margot.— Historia das mil e uma concubinas do rei de Navarra —Opinião sobre a condiicta dVsle prín- cipe.—Catharina de Luc, Mademoiselle de Montaigne, TignouviUe, .Maioquin. Madame de Sauve Dayelle, La Fos- Seuse, etc— A condessa de Guiché.— Madame de Guercheville.— As abbadias de Longchamps e Monlmartre Ga briella d'Éstrées.— Seus amores com el-rei e com outros.— A duqueza de Verneuil La Haye. Kanuche, a condessa di; Moret, La Glandée, etc— .4 princeza de Conde.— As proxenetas d'el-rei.

ER-SE-HA traçado o melhor quadro dos costumes da corte nos fins do século xvi, contando os pormenores da vida privada de Margarida de Vaiois, rainha de Navarra, primeira mulher de Henrique iv, e alguns dos factos relativos aos amores de seu esposo, immortali.sados sob o titulo de Grande Akandre. Os dois esposos tomaram a peito revelar o segredo dos seus adultérios, a rainha nas suas Memorias, onde enumera com grande reserva e delicadeza os aggravos de seu infiel e volúvel esposo ; o rei no famoso Divorcio Satyrico, redigido sob os seus auspícios por Agrippa d'Aubigné, ou por outro qualquer, para servir de elucidação aos commissarios, encarregados de examinar as causas de separação que existiam entre os reaes esposos.

Estas duas peças authenticas do divorcio não foram impressas senão muito tempo depois, mas é certo que circulavam manuscriptas ao principiar o pro- cesso. Ambas provavam do modo mais escandaloso que el-rei de Navarra e sua esposa nada tinham a exprobrar um ao outro em questões de libertinagem.

De resto, o escândalo era moeda corrente na corte, e quando a princeza de Conti escreveu os Amores do Grande Alcayidre, para servirem de comple- mento ás Memorias de Margarida de Vaiois, não julgou infringir as leis da ga- lanteria, oITerecendo estes exemplos de depravação e escândalo á juventude no- bre da França.

Seria difficil passar revista a todas as loucuras da rainha Margarida, desde a sua entrada precoce na senda da prostituição, quando Enlragues e Charins

478 HISTORIA

«gosaram as primícias do seu ardor», como diz o próprio Henrique iv, no seu Divorcio Satijrico.

n'outra parte nos referimos aos boatos que corriam em tempo de Car- los IX a respeito dos amores incestuosos da rainha com os seus três irmãos. Não faltaremos aqui d'esses primeiros amantes, nem do coronel Martigues, que a amava eslremosamente, ao ponto de levar sempre para a guerra uma banda bordada e um cãozinho com que ella o havia presenteado. Deixaremos também no silencio o duque de Guise, que «imaginou casar com ella depois dos seus impudicos beijosx> e de la Mole que foi decapitado com Coconnas na praça da Greve, e cujo coração e outras relíquias mais singulares ainda ella conservava em caixas de ouro, e Saint-Luc, a quem recebia todas as noites para se consolar da perda do seu ultimo amante, e de Bonny, que «apesar de valente como as armas, não o podia ser com as mulheres, por causa de uma cólica violenta, que lhe costumava dar á meia noite.»

O Divorcio Saiijrico cita ainda entre os que mereceram os favores d'esta princeza, o duque de Mayenne, ijordo e coluptuoso como ella, o visconde de Turenne, que ella despediu dentro em pouco, por lhe achar varias despropor- ções na sua pessoa, Lebnle, que n'um accesso de ciúme lhe comeu as plumas do chapéu, Amhroise, que a acariciava em roupas brancas, mesmo á porta do seu aposento, emquanto o rei de Navarra jogava ou passava a noite com os da sua corte, o velho rufião de Pibrac, que por gostar muito de vinho veio a sér seu chanceller, emfim o senhor de Champvallon, que penetrava no guarda- roupa da rainha dentro de um cofre, que os creados levavam e traziam.

Passaremos agora a contar o grande acontecimento da partida da rainha Margarida, quando por ordem d'el-rei, seu irmão, teve de sahir de Paris, para ir ter á Gascunha com seu marido. Henrique iii estava muito irritado contra ella, porque as suas relações com Champvallon haviam fruclificado n'um me- nino que desappareceu logo em seguida ao nascimento. Champvallon retirou-se prudentemente para a Allemanha, quando o estado de Margarida começou a inspirar suspeitas. Disse-se por essa épocha que o filho adultcrino havia sido afogado, feito em pedaços e atirado a uma latrina, mas soube-se mais tarde que lòra criado com o nome de Luiz de Vaux pelo porteiro do palácio de Na- varra, e que passava por filho de um perfumista da corte.

Seja como fòr, tendo Henrique iii ordenado a partida de sua irmã, esta obedeceu de muito vontade, pondo-se a caminho na segunda-feira, 23 de agosto de \'')8'.i, com algumas pessoas do seu serviço, ('hegou de noite a Palai- seau, mas el-rei havia determinado que a seguissem sessenta archeiros da sua guarda, e o seu capitão, o senhor d"Archant, cumprindo ordens secretas, foi procural-a até ao próprio leito, prendendo por essa occasião as senhoras de Duras e de Bclluine, «accusadas de incontinência e de promoverem abortos á rainha.»

O senhor de l.odon, gcntii-huriicm ila rainha de Navarra, foi também preso, e bem assim o seu escudeiro, o seu secretario, e outros creados seus.

Tod IS eiles foram conduzidos a Montargis, onde o próprio rei os interro- gou a respeito da conducta de sua irmã, e acerca da crcança que ella tivera

p-t

Margarida tle Valois, rainlia de França e de Navarra (Copia d' um retrato des uFummes Célhhres)

DA PROSTITUIÇÃO 479

na côrlc. Este iniefrogatorio, porém, bem como o processo que (Iflle resultou nenhuma luz deu ao assumpto e todas as pessoas presas foram postas em li- berdade. Margarida poudc então continuar a sua viagem e chegar a Nerac, onde estava seu marido.

El-rei de Navarra não quiz recebel-a, em razão do escândalo que este caso havia produzido, e nenhumas relações se estabeleceram entre estes dois espo- sos, que vivian) separados sob o mesmo tecto, como se o divorcio se tivesse realisado.

Henrique iii quiz intervir, para os chamar a uma reconciliação, quando menos apparcnte, e n'uma das suas cartas, dizia maliciosamente a seu cunhado:

«Bem sabeis, meu querido irmão, que os reis estão sujeitos a ser enga- nados por falsas informações, e que nem as princezas mais virtuosas estão li- vres da calumnia. Até da defunta rainha, vossa mãe, se fallou sempre mal, como deveis saber.»

O rei de Navarra soltou uma gargalhada, e dirigindo-se a Bellievre, que lhe havia entregado a carta, disse-lhe em tom jovial :

El-rei vosso amo faz-nie sempre muita honra nas suas cartas. Nas primeiras chama-me coitadinho. . . e na ultima, (ilho da p. . . «.lounial d'Henri III, edic. de M. M. Champollion.)

Os dois esposos não viveram d'ahi avante em boas relações, posto qi^e o rei de Navarra, por politica, apparentasse haver olvidado os seus aggravos.

«O rei de Navarra, diz Estoile, acceitou sua mulher para obedecer a sua magestade, que tinha sobre elle grande império. Nunca foi, porém, possivel, persuadil-o a recebel-a no seu leito. l'ma noite apenas teve a complacência de a acariciar com bom semblante e boas palavras, mas não passou d'aqui, e por este motivo a mãe d'ella (Catharina de .Medicis) e a filha davam-se a todos os diabos.»

Estoile riscou esta passagem, ao passar a limpo o seu Uegistro diário, contentando-se em dei.\ar com a data de fevereiro de lo85 uma phraze, em que diz que a rainha Margarida «não estava satisfeita com seu marido, que a desprezava, não lhe tendo reclamado nunca mais os seus direitos conjugaes, desde a noticia da afíronta que o rei seu irmão lhe fizera sofiVer em agosto de 1583.» Durante este tempo passado na corte de Nerac, a rainha, que parecia (juerer mudar de vida, mostrou tendências mais ajuizadas, cicendo com a ver- gonha dos seus peccados, diz o Dirorcio Srtyrico, mas por fim cançou-se d'esta continência forçada, «e deixou-se novamente arrastar pela carne e pela sua des- enfreada sensualidade.»

Abandonou, portanto, o palácio do rei seu esposo, onde era estreitamente vigiada e guardada por ordem de seu irmão Henrique iii, e relirou-se para a cidade d'Agen, «para estabelecer alli commercio impuro, e continuar nas suas torpezas com maior liberdade de consciência.»

Não parou por muito tempo em Agen, por isso que os habitantes da cidade, que eram do partido catholico, apenas souberam que a rainha de Navarra alli se havia installado, revoltaram-se, e obrigaram-na a partir, tendo de fugir a toda a pressa.

480 HISTORU

«Diíiicilmente se poude encontrar um cavallo e uma cadeirinha para a transportar, e bem assim para as suas damas, que a seguiram n'um deplorá- vel estado, parecendo mais ribaldas do que damas de boa familia. Alguns no- bres que no mesmo deplorável estado a acompanharam, conduziram-n'a, sob a guarda de Liguerac ás montanhas do Auvergne, a ('arlat».

Quando Henrique iii, soube da fuga de sua irmã, irritou-se extraordina- riamente e disse em alta voz aos seus eortezãos :

Os bastardos da Gascunha não poderam saciar a rainha de Navarra, e por isso foi procurar os caldeireiros do Auvergne.

A pobre Margarida, no transito de Agen para Çarlat, tinha ido á garupa do cavallo que montava um dos seus creados, tendo por essa occasião deslo- cado uma perna, de que esteve doente um mez. O medico que lhe assistiu apanhou uma tremenda sova, por ter dado demasiado a lingua, o que nos leva a crer que a deslocação da perna tivera uma origem suspeita.

A rainha de Navarra, se dermos credito ao Divorcio Saiijrico, carecia de tudo no castello de «onde esteve muito tempo, chegando não a não ter docel nem leito de gala, mas até mesmo camisas para vestir todos os dias.» A rainha indemnisava-se d'estas priva(,'ões entregando-se a todas as sensuali- dades do seu temperamento, n'aquelie castello, que mais parecia guarida de ladrões, do que habitação de uma princeza, filha, esposa e irmã de reis.» Margarida não podia alli renovar tão frequentemente como desejava o pessoal das suas galanterias, tcodo de limitar-se a um pequeno numero de amantes. Na ausência do senhor de Duras, a quem encarregara de ir pedir dinheiro em seu nome a el-rei de Hespanha, dignou-se pôr os olhos em Choisnin, um dos músicos da sua çaiuaia, no seu. cosinheiro, em Saint-VincenI, seu mordomo, e ultimamente em Aubiac, o «mais bem penteado de todos os seus criados, ao qual elevou desde a cavaliariça até ao seu real e obsceno leito.»

O referido Aubiac, havia-se enamorado d'ella, ao vel-a pela primeira vez sete ou oito annos antes.

De bom grado me deixaria enforcar, disse elle em voz alta a troco de possuir essa mulher!

Paliando assim, com os olhos encendidos em sensualidade, o pobre homem nem suspeitava que estava pronunciando o seu horóscopo, porque depois de ler logrado os favores da rainha, apesar de ser um miserável moço de estre- baria, vermelho, mais pintalgado do que uma truta, cujo nariz còr de mala- gueta nunca se poderia lembrar de ser em sua vida acariciado por uma prin- ceza de França, foi preso com a sua dama no castello dlvoy, onde ella fora rcfugiar-se, ao sahir de Carlat.

El-rei de França, indignado contra sua irmã, deu ordem ao marquez de Canillac para que se apoderasse d'clla, por isso que Margarida muito tempo antes havia abiaçado o partido da /.(V/a, para se vingar ao mesmo tempo de seu irmão e de .seu marido.

Foi então a rainha conduzida ao castello dTsson, no Auvergne, onde o mar(|uez de Canillac devia tel-a encerrada, emquanto que o seu ultimo amante, o desgraçado Aubiac era transferido para Aiguiperse, onde devia ser julgado.

DA PROSTITUIÇÃO j g-J

O resultailo creste julgamento foi ser comiemiiado á forca como partidário lia Lign. Xu caminho para o siipplicio, ia beijando fervorosamenie um miléne de velludo, única rciii|uia dos favores de sua ama.

Margarida a esse tempo cuidava em dar-llie um successor, o o mar- que/, de ('iniilac .lei\ava-se captivar das seducçóes da sua l)eila prisioneira. f)e desastrado e immundo que era até alli, o marquez tornou-se tão amável, lielio e perfumado, como o fidalgo mais joven e apaixonado da corte.

A rainha não o amava, mas fingia extremos e caricias que o enlouque- ciam. O pobre homem, ciumento como um tigre de todos os rivaes possíveis c imagináveis, esquecia o servi(,'o do rei, para obedecer aos menores caprichos da sua amada. Tá<i habilmente cila soube ilirigir o seu plano, que logrou de- sembaraçar-se do enamorado cavalheiro, e assenborear-se do castello apro- veilando-se de uma ausência do marquez.

No seu regresso, o ludibriado amante encontrou a porta do seu castello fechada, e uma carta em que a rainha de >'avarra lhe declarava que não pre- cisava dos seus serviços.

O bom do marquez teve de se retirar de Usson, triste e cabisbai.vo, dando grande assumpto de troça c risada á corte de Henrique iii. El-rei perdoou-lhe (1 mau desempenho da sua commissão, a troco da sua ridícula derrota.

Henrique ui, por único castigo, perguntou-ihe diante dos seus cortezãos :

Marquez, porque não soilicitaes da rainha Margarida a graça de serdes peiTumista da sua corte ?

,\ fortaleza de Ussnn, edificada sobre uma rocha alcantilada, era inexpu- gnável. O rei de Navarra nem por sombras se lembrou de sitiar n'ella sua es- posa, e deu-.se por satisfeito de a ter alli captiva, embora como soberana d'a- quella espécie de prisão.

.Mais de vinte annos durou aquelle capliveiro da rainha. O padre Hilarion de Caste, nos FAoíjíos das Damas illustres, não hesitou em dizer, apesar de ser o panegyrista desta princeza, que «aquelle fortíssimo castello do Auvergne fora um Thabor para a sua devoção, um Líbano para a sua sollicitude, um Olympo para as suas musas, e um (Cáucaso para as suas afleiçôes».

Bjyle observa com justiça que a estada da rainha de Navarra em Usson, podia mais razoavelmente comparar-se ao retiro de Nero na ilha de (]aprea. E" certo, porém, que a voluptuosa sereia de Isson, tão habilmente soube occul- tar aos profanos os mysterios de sensualidade que se praticavam no interior do seu castello, onde nunca penetrou um extranho, que os olhos e os ouvidos do publico nunca lograram ver nem ouvir nada desfavorável. Tudo quanto se pas- sava detraz daquellas fortes muralhas escapava á curiosidade e á censura ex- terior. Até mesmo nos arredores se ignorava o género de vida que se fazia n'aquelle retiro impenetrável, onde todos os echos foram mudos até que Mar- garida o abandonou.

Eis como um homem honrado e serio, .loão Durnall, procurador do rei no tribunal de Agen, chegou a illudir-se a respeito dos costumes da castellã de Usson :

«E' cousa verdadeira e para notar-se, diz elle nas AnliquiUs d' Agen, obra

HisTonu DA Prostituição Toom ii— Folha 61

482 HISTORIA

impressa em Paris em I60(j, que sua magestade segue escrupulosamente cos- tumes muito austeros, desde que alli reside. Depois de se entregar modera- damente ao e.;ercicio das musas, passa o resto do tempo na capeila, encom- mendando-se a Deus com todo o ardor e vehemencia, e commungando uma vez ou duas por semana.»

O digno Tiagistrado, que escrevia sem duvida de boa o seu extrantio elogio, não se teria atrevido a publical-o, nem sequer a escrevel-o, se podesse suspeitar a verdade, porque estas palavras dirigidas á rainha mais parecem iro- nias, e Margarida devia rir-se a bandeiras despregadas, quando Darnalt lhe di- zia muito a serio n'este bello trecho de eloquência :

«Phenix, que renasces diariamente de tuas próprias cinzas, abrazando-te c consumindo-te no amor divino! Tu vives de outra vida bem dilTerente da d'este mundo! Retiro santo, devoto mosteiro, em que sua magestade se consa- gra completamente á devoção .ustera, que tende dos fins ao fim supremo! Rochedo, testemunha da soleda !e voluntária, muito louvável e religiosa d'esta princeza, onde pela doçura da musica, pelo canto harmonioso das mais bellas vozes da França, parece que o paraizo na terra não pode estar n'outra parte, e onde sua magestade gosa o c itentamento e o repouso do espirito que as al- mas bemavcnturadas .sentem nc outro mundo!»

Não temos infelizmente uma contraprova para este incrível panegyrico. l\o Divorcio Salfjrico ha apen is algumas linhas pouco importantes relativas à estada de Margarida em Ussoii. Quando se livrou do marquez de Canillac, «resolveu não obedecer nem seguir mais do que os seus caprichos, diz Henri- que IV no seu pamphleto, e estabelecer n'aquelle rochedo inexpugnável o im- pério das suas delicias, onde | reservada por três recintos de muralhas. Deus sabe os bellos jogos, que em \inte annos alli jogou I A. Nanna do Aretino e a sua Santa, nada são em comparação d'isto.»

Depois d'este preambulo, que promettia revelações singulares, o libello do rei nada nos diz, porém, a respeito dos laes bellos jogos, que por tanto tempo occuparam a dama dUsson, e que foram sufficientes para apagar n'ella os sonhos ua ambição e as vaidades do orgulho.

Pôde inferir-se com toda a certeza do próprio silencio do historiador a respeito dos pormenores de tão largo período de isolamento, que a illustre re- clusa vivia entregue á dissolução mais monstruosa.

«E' verdade, diz a este respeito o seu real esposo, que em vez dos nu- merosos amantes que costumavam suavizar-lhe a sua vida passada, está redu- zida, á falta de cousa melhor, aos seus criados, secretários, cantores, e mesti- ços da nobreza, desconhecidos dos seus mesmos vizinhos, e indignos de ([ue se faça menção d'elles.»

Henrique iv cita apenas um, (|ue bem a medida dos outros, mas que reinou com grande prestigio, por causa do amor desenfreiado que soube inspi- rar á rainha.

«.\ respeito d'cllc, diz a rainha que é homem para mi dar de voz, de cara, de cabellos, como e quaiidii lhe apraz, e i|uc onlra á porta fechada onde quer. Por isso Margarida ordenou (|ueos leitos das damas d'lIsson fossem altos, para

DA PROSTITUIÇÃO 483

poder olhar para debaixo d'clles sem se curvar, (|uando tivesse de o procurar. Por causa d'elle apalpou muitas vezes as tapeçarias, julgando encontral-o de traz d'ellas ; por sua causa magoou mais de uma vez o rosto nas portas e nas paredes, procurando-o ás escuras desesperada ; por sua causa ainda deveis ter ouvido às mais beilas vozes da corte a musica d'cstes versos, compostos pela rainha :

A' CM bois. CPU prés et ces antres,

0/frnns les rceux, les plmirs ies sons,

La pluine, les ris, les chansons

D'un poete, d'un amanl, d'uH chantre.

Era effectivamente um cantor, cliamado Pominy, ou l^omines, filho de um caldeireiro do Auvergne, que tinha de notável a sua enorme lealdade e a sua beila voz. Fora menino de coro n'uma egreja rural antes de ser admit- tido na capella da rainha, que teve de o jiuiir um pouco para fazer d'ellc seu secretario e seu favorito. Margarida enamorou- ;e (relle d'uma maneira insen- sata, e houve quem attribuis.se a algum encant magico uma paixão tão vio- lenta, que tomava ás vezes o caracter de uma inicura furiosa.

Henrique iv dizia que ás vezes não podia deixar de rir dos estravagan- ganles zelos e vehementes paixões que se conta\ain d'aquelles amores «o que a leva com frequência a desprezar o que vê, e a crer o que não existe ; umas vezes procurando ardente e furiosamente os seus amantes por todos os cantos da casa, apesar de saber muito bem que estão 'foutra parte, outras, vendo-os e ouvindo-os, e não obstante persuadindo-se q c sob aquelle seu aspecto estão outros que procuram enganal-a.»

Tudo isto fazia crer que a rainha nos sell^ arrebatamentos amorosos era victima de um sortilégio que lhe suíTocava o sentimento do pudor, crença esta muito mais justificável pelos extravagantes amuletos que usava, do que pelos excessos e loucuras que fazia.

Dizia-se que guardava em caixinhas de ouro os corações dos seus aman- tes mortos, como relíquias dos seus amores, e este boato é até certo ponto con- firmado pelo grande numero de caixas e bocetas em forma de coração, que trazia nos bolsos dos vestidos, ou presos á cintura. Sabe-se, porém, que n'es- sas caixas não havia senão perfumes.

Não obstante, quando estava em Usson trazia de ordinário ao pescoço e mettida entre a camisa e a peile uma bolsa de seda azul, «de ilro da qual os seus Íntimos haviam descoberto uma caixa de prata, cuja superfície cinzelada representava, entre outros difterentes e desconhecidos caracteres, de um lado um retrato e do outro o seu brazão.»

Deve acreditar-se que esta caixa de prata não era um talisman de feiti- ceria, mas sim um amuleto de amor. Podemos até comparal-o com aquelle que Brantòme nomeia, faltando de uma dama da corte, cujo nome deixa no mysterio:

«Tendo-lhe morrido o marido, diz elle, cortou-lhe as partes genitaes, tão amadas n'outro tempo, embalsamou-as, aromatisou as, e encerrou-as n'uma caixa de prata dourada, que guardou e conservou como cousa preciosíssima.»

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A tradicção diz-nos com eíTeito que Margarida de Valois não foi ella própria roubar a cabeça do seu querida La Mole, a quem não poude livrar do supplicio, mas mutilara também o cadáver, que eslava feito cm quartos pre- gados nos quatro ângulos da praça da Greve. A cabeça foi enterrada de noite por ordem e sob a vigilância da desolada amante, na capeila de Sainl-Martin ; o coração e os outros despojos, roubados ao corpo do justiçado, foram embalsa- mados e mettidos em caixas de ouro c prata, que a rainha usava como joyas e relicários, muito embora acceitasse novos amores, que apenas serviam, se- gundo ella dizia, para relembrar o antigo.

«A rainha usava, refere Tallemant des Reaux, que o sabia de boa fonte, um amplo verlufjalle, que tinha muitos bolsos, em cada um dos quaes guar- dava uma caixa com o coração de um dos seus amantes mortos, tendo sem- pre um grande cuidado, quando elles morriam, de lhes mandar embalsamar os corações. O i;?rt.n'jalk pendurava-so todas as noites n'ura guarda-roupa que se fechava com um cadeiado, pjr dctraz do doeel do seu leito.»

O historiador Dupleix, a quem Margarida havia aggregado ao seu serviço na qualidade de advogado, como elle diz, não esteve para encobrir a desorde- nada vida da princeza, quando teve que faltar d'clla na historia de Henrique iv. No emtanto, lançou alguns véus sobre o quadro de prostituição que tivera á vista por espaço de vinte annos.

«Proc.lamando-a todos como deusa, diz elle na Historia de Luiz xiii (p. 53) chegou a imaginar que o era, e d'aqui a sua complacência em que a cha- massem Vénus Urania, quer dizer celeste, tanto para mostrar que participava da divindade, como para fazer distinguir o seu amor do amor do vulgo, pois tinha uma maneira de amar diíTcrente da de todas as outras mulheres, afFe- ctando sobre tudo que amava mais com o espirUo do que com o corpo, e cos- tumava dizer a miúdo :

Quereis deixar de amarí' Possui a cousa amada.

«Se eu quizesse, poderia fazer uma novella mais cxcellente e admirável do que Iodas as que se tem cscripto nos séculos precedentes, mas tenho occu- pações mais serias», accrescenta o historiador.

Dupleix juslificou-se de haver revelado, ou antes de ter deixado adivi- nhar a incontinência da rainha, declarando «que não fazia panegyricos de prín- cipes, mas sim uma verdadeira historia que deve expressar as suas virtudes e não occullar os seus vicios, a fim de que os seus successores, receiando os baldões da posteridade, imilem as suas boas acções e evitem as más.» Mas foi l)or isso geralniente vituperado, e Bassompierre tornou-se o eccho d'estas cen- suras nas suas Notas á obra de Dupleix, a ([uem chama :

«Vibora vil, que rasgas com as tuas calumnias as entranhas de quem te deu a vida, gusano que devoras a própria carne que te creou, (|ue envergonhas a França, publicando e legando á posteridade cousas tão infames de uma das mais notáveis princezas de sangue real, que talvez sejam falsas, ou pelo menos apenas conhecidas de um pe(|ueno numero de pessoas.»

Ainda assim, o próprio Bassompierre, loíoando tão vivamente a defcza de Margarida, confessa que as calumnias por elle censuradas a Dupleix podiam

DA PROSTITUIÇÃO 485

ser somente indiscrições. Dupleix, no emlanto, nãu tizera mais do que renetir com extrema reserva o que se dizia por toda a parte, (anto na corte como por entre o povo, desde que a rainlia de Navarra deixou o seu casteilo encantado de Ussnn para voltar a Paris, ahi pelos fins do anno de KiOo. O estado li^-ste- rico ou hypocondriaco da rainlui era tão grave por essa époclia, que os seus continuados escândalos davam assumpto ás conversações de toda a França.

«Este estado, diz Dupleix, manifestava-se apenas a principio em ""rtos factos conhecidos dos seus familiares, mas desde a sua ultima viagem á corte, ella própria se encarregou de o tornar conhecido de todo o mundo.»

Qualquer que fosse a notoriedade dos excessos e loucuras da rainha Margarida, Hrantòme, que havia sido tamhem um dos seus familiares, e que conservava ainda por ella tanto respeito como admiraçtão, não se lemhrou, a exemplo de Uupleix, de descobrir os segredos da vida privada de sua ama e senhora.

Se nas suas Dame-s ijalanles referiu muitos factos, que lhe diziam res- peito, e que talvez a própria Vénus Urania lhe houvesse contado nas suas in- timas confidencias, nunca a nomeou n'essas alegres narrativas, chegando até a desnortear o leitor, modificando adrede diversas particularidades.

A noticia por elle consagrada a Margarida, nas Vidas das Mulheres 11- iustres, é ura panegyrico brilhante, em que o auctor não admitie nem uma sombra de galanteria, como se tivesse em vista oppòr este elogio de sua ama ao Divorcio Salyrico, ao tempo em grande circulação na corte. Assim, evita refutar uma por uma as accusações que o auctor do Divorcio Satyrico havia accumulado n'esse libello contra os costumes de Margarida. Longe de entrar n'essa Ihcse difficil e delicada, passa a generalidades iaudalorias, e dedica-se quasi exclusivamente a pòr em relevo os encantos de seducção que haviam sido sempre os característicos da rainha.

«Eis aqui uma dama, que em tudo e por Indo está a cima do commum das damas de todo o mundo.»

O alegre cirronista d'aquella corte dissoluta compraz-sc em descrever a maraviliiusa belleza da rainha, a sua graça incomparável, o seu gosto delicado para as cousas do toucador, a riqueza do seu corpo, as suas admiráveis perfei- ções physicas, esse complexo de encantos, que faziam dizer a um joven fidalgo, recem-chegado á corte :

Não admiro, senhores, vér-vos tão unidos e satisfeitos na còrle. Quando mesmo não tivésseis outro prazer senão ver todos os dias esta formosíssima princeza, tinhcis o bastante para vos julgardes n'um paraizo terreal I. .

O auctor do Divorcio Satyrico, entre todos os crucis epigrammas que dirige á esposa repudiada de Henrique iv, não escreveu talvez injurias mais sensíveis ao amor próprio de uma mulher do que as que se lêem em duas ou três passagens, em que ousa atacar uma belleza que o próprio tempo havia respeitado. Estas injuriosas passagens são aquellas que Brantôme se esforça por combater e apagar principalmente, como se ellas apenas interessassem á iionra da rainha Margarida.

O pamphletario censurava a esta princeza o abuso que fazia dos arrebi-

486 HISTORIA

ques e cosméticos para oci_ iltar as rugas da velhice. Branfòme lembra iiabil- menle a csle respeito uma 'omparaçào que havia feito d'esta rainha com a bella Aurora, «quando acaba de nascer com a sua branca face rodeada da mais linda e viva côr vermelha.»

O oamphlelario zomh.va em termos demasiado grosseiros da impudica exhibiçtão que a raiiilia fazia do seio. Brantôme, sem fazer allusão a uma cen- sura, que menos recahia na rainha que nas modas da sua épocha, approva e glorifica 'sta nudez, que elle não via do mesmo modo que Htnrique iv :

«Os seus bellos trajos e riquíssimos adornos, diz elle, não ousarão nunca cobrir-lbe o esplendido seio, receiando causar damno aos olhares que tão agra- davelmente vão pousar sobre tão bellas cousas. Nunca se viu seio tão formoso, tão cheio de encantos, tão abundante e opulento como ella nos mostrava, de tal modo que a maior parte dos cortezãos morriam por elle, e até as próprias damas o admiravam, pois vi algumas das mais intimas beijal-a n'elle, com pre- via licença, mostrando n'isso a maior paixão.»

Brantôme, velho e enfermo a esse tempo, permanecera sempre fiel ao serviço de sua antiga ama, a qual n'uma carta escripta de Usson lhe manifes- tava nos seguintes termos a expressão do seu affecto inalterável :

«Soube que como cu, meu amigo, resolveu abraçar uma vida tranquilla, na qual lhe desejo que permaneça, como Deus me fez a mim a graça de m'o conceder vae em cinco annos, tendo-me deparado uma arca de salvação, onde as tempestades das antigas perturbações não podem altingir-me, graças á di- vina bondade. iN'este retiro, se me restar algum meio de poder servir aos meus amigos e particularmente a si, cncontrar-me-ha sempre disposta e animada da melhor vontade.»

A rainha Margarida, satisfeita da vida tranquilla que passava na sua arca de salvação, nem se(|uer teria protestado contra a ruptura do seu matrimonio com el-rei, se não receiasse vèr passar a coroa de França para a cabeça de Ga- briella d'ÉstréLS, a quem detestava, não como uma rival indigna d'ella, mas sim como uma inimiga fatal á coroa. Por isso recusou associar-se ás inten- ções e diligencias de Henrique iv, que havia apresentado uma informação de divorcio ante a corte de Roma. Logo, porém, que a sua rival morreu subita- mente, envenenada sem duvida, a 10 de abril de l.'J99, Margarida consentiu immediatamente no divorcio.

«Desisti da minha opposição, escrevia ella em 29 de julho, e sabeis o mo- tivo melhor que ninguém. Não queria vèr em meu logar uma infame rameira, indigna d'elle.»

Em consequência d"isto, ella própria apre.sentou ao papa Clemente viii uma informação idêntica á d'el-rei, a quem não guardou rancor pelos meios bem pouco delicados e corlezes que havia empregado para realisar o divorcio, apesar d'ella. Perdoou-lbe igualmente os ultrajes do Divorcio Satyrico e os do interrogatório que os commissarios do papa fizeram sofTror a ambos os esposos. Margarida riu-se de boa vontade ao saber que seu marido havia respondido ao cardeal .loveuse, qui lhe perguntara se no matrimonio haviam tido communi- cação carnal :

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Ambos cramos jovens na noite nupcial, e Lão libertinos, que não po- diamos conter-nos.

Margarida nunca pudera amar Henrique iv, a quem censurava o mau cheiro dos sobacos e dos pés. Henrique, pelo contrario, estava ainda tão pene- trado das suaves recordações d'ella, que ao saber do seu consentimento para a sentença do divorcio, exclamou :

Ah! desgraçada! Ella sabe quanto eu a amei, e como a respeitei sem- pre! Não procedeu assim para commigo, e as suas loucuras fizeram com que nos separássemos ha tanto tempo!... (liem. et anecd. des reines et reij. de France, por Dreux de Radier, t. v.)

IMargarida dizia que o bem da França a havia determinado a romper uma união, que não podia assegurar um herdeiro á coroa, e por isso foi a primeira a applaudir o casamento d'el-rei com Maria de Medicis.

Estava ainda n'aquella épocha sob o encanto de um novo amor, ao qual a ausência de Pominy havia cedido o logar. E' provável (]ue olla própria hou- vesse aíTastado esse Pominy, de quem não se importava já, e que mais tarde voltou a reclamar os seus direitos com tal brutalidade, que se viu obrigada a expulsal-o, dizendo «que aquelle mau homem deitava a perder os seus criados».

O successor de Pominy foi a principio um criado da Prjvença, chamado Julião Date, a quem a rainha nobilitara com o titulo de Saint-Julian, deixan- do-o em Usson, quando teve a idéa de voltar á corte, depois de vinte e quatro annos de desterro voluntário.

.No mez de agosto de 160o, chegou repentinamente a Paris c foi hospe- dar-se no palácio de Sens, junto do Arsenal.

No dia seguinte ao da sua chegada, appareceram estes quatro versos es- criptos na porta do referido palácio, que pertencia ao arcebispo de Sens:

Coiiime reine, lu devrais exlre En ton rnyrtle maison; Comine putain, cest bien raison Que tu sois au loyis d'un prestre.

Margarida demorou-se apenas alli alguns dius, e para fazer caiar os ru- mores que a sua repentina apparição havia moti ado, despertando, como diz Estoile, os espíritos curiosos, foi passar seis semanas no palácio de Madrid, no bosque de Bolonha. Henrique tornou a vcl-a com : itisfação, e reconciliaram-se de tal modo, que el-rei lhe pediu dois favores : o primeiro que por causa da sua saúde não fizesse do dia noite e da noite dia; o segundo que restringisse as suas liberalidades e fosse mais económica. Dava-lhe repetidas provas de ca- rinho e interesse, visitava-a de vez em quando e passava alli muito tempo a conversar alegremente com ella, mas quando vob iva ao Louvre, costumava dizer por graça «que vinha do bordel.» (Méin. et ) >urnau.r de Pierre Estoile, no reinado de Henrique iv, cdic. de M. M. t^hampoUion, p. 425.)

Ao estabelecer a sua residência em Paris, a rainha Margarida tivera pro- vavelmente idéa de mudar de vida e de renuncÍE,r á galanteria, «mas, diz o implacável auctor do Divorcio Satijrico, não podendo passar sem homem e não

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HISTORIA

(jUcTendo esiai ociosa, mantlou chamar Date, ou Saint-Julien, lanias vezes re- clamado duranle as suas sensualidailes.»

Saint-Julicn pôz-se immediatamenle a caminho e vciu reclamar de novo o seu jogar de favorito. A rainha, cuja paixão pelo criado se havia exacerbado até ao delírio, despediu Pominy e conservou a <!istancia respeitosa todos os ou- tros do seu serviço interno. Vm d'elles, por nome Vermond, que tinha apenas dezoito annos, faes ciúmes concebeu, que matou o feliz favorito com um tiro de pistola, mesmo junto do estribo da carruagem da rainha.

O as.sassino foi preso immcdiatamente, e «revistando-o encontrarain-lhe, diz o Diário d'Estoile, três talismans um para a vida, outro para o amor e outro para o dinheiro.» O processo foi quasi summario, por isso que a rainha havia jurado não comer nem beber cmquanto justiça não fosse feita,

Ouando o reu foi acariado com o corpo ensanguentado da sua victima, a rainha innundada de lagrimas quiz assistir a este acto.

Oh! como eu estou satisfeito! exclamou o reu olhando para o cadá- ver do .seu rival. Está morto e bem morto, mas se o não estivesse, eu o aca- baria aqui mesmo.

Matem-no! grifou a rainha. Matem esse malvado! Esperem! .\qui es- tão as minhas ligas, estrangulem-no com cilas!

.No dia seguinte, Vermond, condcmnado á decapitação, marchou serena- mente para o supplicio, ([ue se realisou em frente do palácio de Sens. Wzia eom satisfação que morria contente, visto que não existia o seu rival.

Immediatanieiitc depois dVsta execução, a rainha abandonou o palácio de Sens, que lhe recordava a cada passo a perda do seu favorito, e comprou ouiro no arrabalde !c Saint-dcrfnain, á beira do rio, perto da Torre de Nesle, e á entrada do Pré-mir-Clercs. Mandou reconstruir sumptuosamente o edifício, pintar e decorar os aposentos, plantar e aformosear os jardins, tudo isto com o fim de arranjar alli uma espécie de ilha de Cythera, onde Vénus Urania que- ria estabelecer o seu templo e o seu culto.

Não se viam alli elfectivamcnte senão emblemas e divisas de amor, ei-- fras, armas e retratos dos seus amantes antigos e modernos. A rainha, por uma singular faculdade da sua imaginação licenciosa, misturava tão bem o facto material com a recordação, que chamava sem cessar cm auxilio dos seus pra- zeres as emoções e os gosos d'oulros tempos, como se todos os amantes que tivera no decurso da vida estivessem sempre alli como desejo de a satisfazerem, sem a saciarem jamais. Era assim, por exemplo, que Julião Date conservava sempre os seus direitos e privilégios, ainda que por sua morte viesse a occu- par o logar d'elle o joven Hajaumont. Eis como o Dirorcio Satyrico pinta o successor de Date :

«Este liajaumonl, ou melhor í'ajamot, da casa de Duras, novo manjar '''íiqiiclla eterna íaminla, idolo do seu tm;""'". bezerro de ouro dos seus sacri- ''^•i"s f (• mais compiel(. idiota que havia cíieV" '^ ^^ '"'*'' introduzido pela mão ')' Madame Anglure, instruído p„r Madame "Rolan,.', ^''vilisado por Leraayne, '•uradn .1-. c. . i.:i:, . . «^ . , .,,(io por Delin, actual-

,„„ „.,„ medico Pcnna, e depms c»b»t.*. I

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Margarida amou Bajaumonl, como tinha amado Date, Pominy, Aubiao c La Mole. Esteve em gravo risco de o perder lambem, apesar de facilmente se poder consolar dessa perda como das outras. O senhor do Lone lançou mão da espada contra o favorito com intenção de o matar mesmo na egreja. Houve, porém, quem detivesse o furioso, que foi mandado preso para o Forl-1'Évcque, e teve que solFer um processo em que a rainha foi parte.

Bajaumont ficou tão mal d'aquelle susto, que teve uma icterícia de que nunca se limpou completamente. Margarida, ainda assim, não se tirava da ca- beceira do seu amarello amante. El-rei n'estc entretanto foi visital-a e encon- trou-a tão triste por causa da doença do seu favorito, que ao sahir disse ás damas de honor :

Rogae a Deus pelo restabelecimento de Bajaumont, porque se elle morre, Ventre-sainl-gris ! que grande despeza! Preciso de arranjar outro pa- lácio, novo como este! (Journal d'llenri iv por Estoile.)

Bajaumont não morreu, e o amor de Margarida augmentou de vehemencia e excentricidade. Como, por esse tempo a rainha tivesse nas pernas duas ul- ceras malignas, exigiu do seu amante que puzesse nos braços dois cáusticos, para que em questões de chagas nada tivessem que lançar em rosto um ao outro!. . .

«Ao ler estes actos heróicos, a que nunca faltarão historiadores, quem haverá que não admire a sua propensão para a vida dissoluta, e que não os julgue dignos de terem cabimento nos fastos dos bordeis?» pergunta o auctor do Divorcio Satijrico.

Apesar d'isso, o género de vida que se fazia no palácio da rainha Mar- garida não foi descripto nas memorias contemporâneas, a não ser que se pro- cure uma pintura allcgorica n'algum romance do género da Áslrèa. Sabe-se apenas que a rainha não sabia quasi nunca da sua clausura amorosa e que se occupava n'ella tanto de devoção como de galanteria. Edificou o convento dos Agostinhos mesmo ao do palácio, para ter frades á mão, como se dizia. Ti- nha ao seu serviço quarenta presbyteros inglezes, escocezes ou hollandezes, pagando-lhes quarenta escudos por anno. Fazia todos os annos consideráveis donativos a differentes communidades religiosas, dava esmollas com uma prodi- galidade dez vezes maior que os seus rendimentos.

O fim manifesto de todas estas piedosas liberalidades era a remissão de tantos peccados comraettidos com os seus amantes, especialmente com o ul- timo, que foi um musico chamado Villars, a quem se deu o titulo de Rei Mar- got. (Hist. de Tallemant des Reaux.)

Não obstante, alfirma Dupleix «que nos amores de Margarida havia mais arte e apparencias do que realidades. Comprazia-se singularmente em promet- ter amor, em alimental-o com esperanças e discrição, em ver e ouvir os ho- mens apaixonados por ella, o que era uma diversão habitual da corte, onde dilficilmente um homem é tido por hábil se não sabe namorar as mulheres, nem uma mulher por fina e intelligente se ignora a arte de fazer esperar os ho- mens.»

Pôde atíirmar-se que a rainha, apesar das suas obras pias e de empre-

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gar frequentemente grandes sommas para casar donzellas pobres, tinha unia cschola de refinada prostituição no seu palácio do arrabalde Saint-Germain, onde a sua pequena corte, composta de poetas, philosophos, músicos, nobres, libertinos e damas, vivia nos mais lúbricos excessos, vangloriando-sc de lhe imi- tar os exemplos e de lhe seguir as licções.

Henrique iv, no final do Divorcio Satyrico,. desejava rainiia alguma emenda, e podia a Deus que lhe concedesse uma scentelha de arrependimento, «pois que sem elle, diz, os líquidos brancos e vermelhos que lhe escorrem pelo rosto, não podem occultar as suas imperfeições nem o óleo de jasmin com que todas as noites unta o corpo, poderá impedir o mau cheiro da sua reputação, nem a erysipela que lhe cobre os membros poderá mudar-lhe a velha e encar- quilhada pelle.»

Henrique iv, devemos confessal-o, não era inferior em libertinagem á sua primeira mulher nem a nenhum dos maiores dissolutos do seu tempo. Se- jam quaes forem as grandes qualidades d'este principe, um dos melhores reis que tem governado a França, é preciso confessarmos que a historia dos seus amores faz parte integrante da historia da prostituição do século xvi.

«Pôde dÍ7,er-se, observa Bayle, no seu Diccionario histórico e ciitico, que se o amor das mulheres lhe tivesse permiltido applicar todas as suas cxcellentes qualidades, teria excedido ou igualado os heroes mais admirados. Se da primei- ra vez que prostituiu a filha ou a mulher do seu próximo, tivesse sido por isso castigado do mesmo modo que Pedro Abeillard, seria capaz de conquistar a Eu- ropa inteira.»

Sem admittirmos como Bayle que a paixão desenfreada de Henrique iv pelas mulheres o prejudicasse a esse ponto, reconhecemos que este grande rei excedeu todos os seus predecessores em sensualidade e incontinência. Somos de opinião que este fogoso libertino não teria sido um guerreiro mais intrépido nem um politico mais babil, se lhe tivessem applicado o supplicio de Abeillard.

Os seus vicios e as suas virtudes eram inherentes ao seu temperamento, e os seus próprios costumes dissolutos, que não difleriam dos dos seus contem- porâneos senão n'um excesso de impetuosidade e de ardor, não tiveram in- fluencia funesta nos excellentes impulsos do seu coração nem nas bellas mani- festações do seu caracter.

N'uma admirável caria a. SuUij (Oecovomies ro\jales, ediç. in-folio, t.iii, p. 138), el-rei defende-se de amar demasiado as mulheres, as delicias e o amor.

«A Escriptura não ordena absolutamente que não se tenham peccados nem defeitos, porque taes debilidades são filhas da impetuosidade da natureza hu- mana, mas sim que não nos deixemos dominar por ellas nem as deixemos reinar sobre as nossas vontades, que é o (|ue eu faço, não podendo fazer cousa melhor. sabeis por muitas cousas que se teém dado relativamente, ás minhas amantes (que são as paixões que todos tèem julgado mais poderosas em mim) se eu não lenho seguido com fre(|uencia as vossas opiniões contra os seus ca- prichos c phantazias, ate ao ponto de lhes ter dito que antes queria ter per- dido dez amantes como ellas, do (pie um servidor como vós, que tão neces- sário me sois para as coisas honestas e úteis.»

UA HHOSTITUIÇÃO 491

Os liistoriadores e os panegyristas il'ei-i'ei não podiam satisfazcr-se com eslas desculpas, e lodos estão de accordo, quando Irautam de viluperar a pro- digiosa licença da sua conducla.

«Menos ainda poderá perdoar llie a liisloria, diz Mezeray, a sua paixão pelas niullieres, que Ião publica e constante foi desde a sua juventude até ao seu ultimo dia, paixão a iiue nem sequer se poderia dar o nome de amor ou galanteria. {Abrtijc cliron. de 1'hisloire de Franct, t. iv, p. 392).

O douto e venerável bispo de Kodez, Hardouin de Perelixe, que escrevia a liistoria de Henrique, o Grande, para educação do rei I.uiz xiv, não poude deixar de censurar lambem ao seu beroe a fragilidade continua que tinha pelas mulheres :

«.\s vezes, diz eile com uma ingenuidade, que chega a ser indecente, ti- nha desejos passageiros, ([ue não lhe duravam mais do que uma noite, mas quando encontrava beldades que lhe impressionavam o coração, amava até á loucura, e n'estes transportes tudo parecia, menos Henri(|ue, o (Irande.»

Agrippa dAubignc, que na sua Historia Lniversal desde looO até ItíOI, não hesitou em referir minuciosamente algumas das aventuras amorosas do rei de ?íavarra, passa na Cunfissão de Sancij uma espécie de revista ás primei- ras amantes d"este príncipe, mulheres obscuras ou das iiifimas classes, que ape- nas tiveram um reinado ephemero e pouco lucrativo.

Começa por lembrar os infames amores do Bearnez com Catharina de Luc de Agen, «a qual morreu de fome com o tilho que tivera d"el-rei». Falia em seguida de mademoiselle de.Moníaigu, filha de João Balzac, superintendente da casa do príncipe de Conde, joven que o cavalheiro de .Montiuc poz á mercê do príncipe por meio de um nobre gascão chamado Salbeuf, o que lhe foi muito penoso, porque a pobre menina estava enamorada do cavalheiro de xMontluc, a quem havia seguido até Roma, e sentia uma profunda aversão pelo rei, cheio a esse tempo de males, que lhe iiavia communicado a Armandine, ribalda do monteiro Lebrone.

Agrippa dWubigné falia depois d'esta da pequena Tignonville, que foi inex- pugnável antes de casar. Era filha da aia da rainha de Navarra, irmã do joven Henrique. O príncipe enamorou-se loucamente d'el!a, augmentando a paixão com a resistência.

Conta Sully, nas suas Uecuaoinien roíjalex, que no anno de Io70 o prín- cipe foi ao ÍJéarn sob pretexto de vér sua irmã, mas ninguém na corte igno- rava (]ue esta viagem tinha por fim visitar a joven Tignonville, de quem es- lava enamorado. O príncipe quiz encarregar Aubigné de ser medianeiro para com a bella esquiva. Aubigné, porém, não quiz encarregar-se de similhante olTicio, e Henrique leve de dirigir-se a outra parle, para conseguir o seu fim.

Tignonville obslinava-se em não acceder aos desejos do príncipe antes de ter um marido que tomasse a seu cargo as consequências da aventura. O prín- cipe casou-a emfim, e obleve o direito de prioridade.

Henrique não se envergonhava de descer até ás camareiras e criadas mais Ínfimas do paço. Contrahiu uma enfermidade venérea n'uma cavallariça de .\gen com a concubina de um palafreneiro, e logo que melhorou, entrou no

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leito de uma criada, cujos favores disputou a um serviçal por nome Goliat. O criado que não suspeitava ter uin rival tão illustre, esteve a ponto de o matar com um estoque, quando o viu sahir do quarto da sua i'ibalda.

Foi sob os auspícios de similhanfes amores, que se mallograram as tenta- tivas do príncipe contra a virtude de mademoiselle de Rebours, que lhe prefe- riu o almirante Auville.

Aublgné cita apenas summarlamente os amores das Dayelle, Fosseuse e Fleurette, filha de um jardineiro de Nerac, Martine, mulher de um medico da princeza de Conde, da mullier de Sponde, Esther de Imbert, que morreu de fome com o filho que tivera do rei, assim como do mesmo modo morreu o pae de Esther, sollicitando inutilmente a pensão de sua filha.

Vêem em seguida os amores da Moraquin, antiga libertina gascã, a quem deram esta alcunha por ter a pclle granulosa. A estes amores succederam os de uma padeira, os de madame Pelonvilie, os de mademoiselle Duras, os da filha do porteiro, os da forncira de Pau, os da condessa de Saint-Megrin, os da ama de leite de Castel-Jaloux, e emfim das duas irmãs de TEspce.

O maligno auctor da Confissão de Sancy não pretende referir todas as aventuras da mocidade do rei Henrique. Por isso não falia da dama de Nor- manticr, que, segundo as novas memorias de Bassompierre, não era a ultima da lista. (]ita apenas alguns nomes e factos, indignando-se de haver sido tes- temunha ou cúmplice d'elles, o que repugnava grandemente á sua austeridade de huguenotle.

A rainha Margarida nas suas memorias tivera evidentemente a inten- ção de justificar a sua conducta pessoal, accusando a d'el-rei, mas não se sabe porque motivo se deteve em meio do caminho do seu propósito, que devia de- fendel-a. A parte que se publicou apresenta também grandes e sensíveis omis- sões, em que se nota o desejo manifoslo de desfazer ou pelo menos attenuar os aggravos da esposa para com o esposo.

Estas omissões dão-se exactamente nas passagens mais interessantes da historia secreta dos amores d'el-rei. Vc-se que o manuscripto original da rainha soíTreu grandes cortes, que de nenhum modo pôde supprir o livro dos Amores do Grande Alcnndre, que começa no anno de 1389.

Em todo o caso, na Confissão de Snncy encontraremos a rectificação de algumas das passagens truncadas e alteradas das Memorias da rainha ÍHargarida.

Margot, como sabem é este o nome familiar da rainha, estava casada, havia apenas dois annos com o Bearnez, quando seu irmão Henrique iii a in- dispoz com seu esposo.

Pela sua parle, o rei de Navarra indispuzera-se também com seu cunhado, o duque d'Alençon por questões de zelos a respeito de Madame de Lauvé, Car- lota de Beaune de Semblanclay.

Henrique de Navarra amava apaixonadamente esta dama, que ao tempo se inspirava nos conselhos de Guast, não menos perniciosos que as instrucções da Celestina. Os dois príncipes tão intensos zelos vieram a ter um do outro, que apesar da referida dama ser requestada pelos senhores de Guise, Guast, SoHvray e vários outros, não queriam saber d'isso.

DA PROSTITUIÇÃO 403

A rainha não linha ciúmes de seu esposo. O que ella apenas desejava, é «que elic estivesse contente.» Uma noite notou que perdia os sentidos, e apressou-se a soceorrel-o n'aquella syncope, «que lhe provinha provavelmente, diz cila, de excessos com as mulheres.»

iN'aqueIla épocha os reaes consortes não dormiam juntos, e o rei que passava todo o tempo entregue «ao deleite único de gosar a presença da sua concubina, Madame de Lauvre, não entrava na alcova conjugal senão ás duas da manhã, levantando-se logo ao romper do dia para voltar para junto da mu- lher amada».

O rei de Navarra sui)mettia-se a seu pesar aos deveres da politica, au- zentando-se da corte e de .Madame de Lauvre. Bem depressa, porém, esqueceu a encantadora, «pon|ue as seducções d'esta (lirce, diz Margarida, haviam per- dido uma grande parte da sua força com o alTastamento.»

A pequena corte de Navarra foi por esse tempo uma fina eschola de ga- lanteria e prostituição. A rainha-mãe tinha ido lá, acompanhada de sua filha Margarida, alini de entabolar negociações com os protestantes, e demorou-se dezoito mezes em (luvenoe e na (rascunha, fazendo manohrar n'aquellas pro- víncias o esquadrão volante das suas damas de honor. N'uma conferencia rea- lisada em Nerac, entre os deputados huguenottes e (latharina de Medicis, a rainlia procurou seduzil-os com os encantos das suas damas e com a eloquência de Pibrac. Margarida, porém, poz em pratica o mesmo artificio, conquistando os nobres que rodeavam a rainha-mãe, graças ás seducções das suas damas, e ella própria, tomando á sua conta Pibrac, conseguiu perturbar completamente a razão e a vontade do pobre homem.» (flist. iVHenri le Grami, porHardouin de Perefixe.)

Woutra conferencia celebrada no castello de Saint-Brix, perto de Cognac, o rei de Navarra, que por mais de uma vez linha rendido as armas ás bellas damas de honor do esquadrão volante, sentiu-se mais aguerrido contra estes ardis da guerra amorosa. Achava-se então muito incommodado de saúde, em consequência dos excessos praticados com a Maroquin. Catharina de Medicis, rodeada do gracioso estado maior das suas bellas e seductoras damas, pergun- tou sorrindo a el-rei :

Precisa de alguma cousa, meu genro?

Não, minha senhora, não preciso de nada, respondera o Bearnez com tristeza, olhando com alguns suspiros de magua para todas aquellas bellezas que se lhe onereciam e a que se via obrigado a renunciar. (Diccion. hisioriq. et critiq, de Baijle, artic. Henri iv.l

El-rei em tempo estivera seriamente enamorado de uma d'aquellas da- mas tão bem ensinadas pela rainha-mãe a divertir os príncipes e senhores, como diz H. de Perefixe, e a descohrir-lhe todos os seus pensamentos. Esta joven era a Davelie, oriunda da ilha de Chypre, que ganhou o dote nos bra- ços do Bearnez, casando em seguida com João de Hemerits, fidalgo normando. A Dayclle não fora uma paixão tão forte do rei, que podcsse distrahil-o dos seus amores levianos. Emquanto a amou, Henrique requestou a mulher do sábio Martinio, professor de grego, homem bom e simples que teve a ingenuidade

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(ie suppòr que sua esposa e o rei nunca liaviam transposto os limites do gra- cejo, como diz Coloniiez, na sua (laule OrkiUnle, p. 93.

Quando os amores fáceis da Dayelle acai)aram, el-rei comegou a perse- seguir a Rebours, filha de um presidente de Paris, dil-o a própria Margarida, accrescentando que esta rapariga, ladina e astuciosa, não a amava, e que lhe fazia sempre que podia as peiores ausências. A Uebours morreu pouco depois em Chenonceaux, onde Margarida foi vel-a e perdoar-llie, mas tinha dado um rival ao rei, na esperança de fazer d'esle amante seu marido. Chamava-se o novo predilecto, Buade, senhor de Frontenac.

Depois da Rebours, el-rei começou a namorar a Fosseuse, uma criança apenas, mas bella como um anjo. Francisca de Montemorency, chamada a bella Fosseuse, porque seu pae era barão de Fosseux, era dama de honor da rainlia- mãe. Consentiu, porém, em passar para o serviço da rainha Margarida para estar mais perto do rei, que ella amava ardentemente, apesar de não lhe dar ensejo «a maiores liberdades do que a honestidade tolera.» Henrique, porém, leve outra vez ciúmes de seu cunhado o duque de Alençon, que galanteava lambem a Fosseuse, e esta para desvanecer as suspeitas do rei c fazer-lhe co- nhecer que s() o amava a elle, eiitregou-se lanlo á sua vontade e aos seus dese- jos, que d'ahi a pouco estava gravida.

A rainha .Margarida apressou-se a occultar aquella falta, e ella própria se encarregou do filho que a sua rival deu á luz.

A Fosseuse pensava apesar d'isso em supplantar a rainha para casar mais tarde com o pae de seu íilho. A criança morreu, porém, d'ahi a pouco, e a mãe, abandonada como todas as suas predecessoras, ca.sou por intervenção do rei com Francisco de Broc, senhor de Saint-Mars.

Diana, viscondessa de Louvigny c senhora de Lescur, foi a successora da Fosseuse. Lully, fallando nas suas Memoriaa dos acontecimentos do anno de lo83, diz que el-rei de Navarra \<estava então no mais forte do seu amor pela condessa de Guiché.» Diana, casada em 1507 com Felisberto de (iram- mont, conde de fruiche, ficara viuva em 1580, e não resistira por muito tempo as constantes sollicitaçòes do rei, que havia quinze annos a perseguia. Diana não era joven, mas conservava toda a sua formosura.

Agrippa d'Aubigné descreve-nol-a indo á missa a Monl-de-Marsan, ves- tida de verde, e com o mais exlranho cortejo:

^<Vèem a(iuella mulher que domina o rei como lhe apraz? Eil-a indo á missa em dia de fesla, levando atraz de si um macaco, um cão de agua e um bobo.»

A paixão do rei por esta dama, que não tinha menos de trinta e cinco a quarenta annos, durou até 1-389. Em l-iB? escrevia-lhe elle de Marans :

«Alma minha, conservae-me o vosso amor, crede que a minha fideli- dade não tem mancha que a ensombre. Nunca tive paixão como esta. Se isto vos api'az, vivei tran(juilla e ditosa.»

Chegou a paixão do rei a ponto de pensar em divorciar-se para casar com a referida dama, firmando-lhe a promessa de casamento com o próprio san- gup. Atfastou-o d'este louco propósito Aubigné que teve a coragem de lhe dizer:

DA PROSTITUIÇÃO 49Õ'

«Não pretendo que renuneieis á vossa paivão. estive também namo- rado e calculo o que sofírereis. Mas, sire, sede pelo menos digno da vossa fa- vorita,'a quem desprezaríeis, se vos rebaixásseis ao ponto de vos unirdes com ella em matrimonio^

Apesar d'isto, Diana teria triumpbado dos prudentes conselhos de Aubi- gné, se o rei estivesse muito tempo ao d'elia. Os azares da guerra leva- ram-n'o á Normandia, onde teve occasião de ver outra viuva de alta gerarohia, diz o auctor anonymo dos Amores do Grande Alcandre. Era joven e formosís- sima, e pareceu tão amável aos olbos d'el-rei, que deixou immediatamente de amar a dama que o esperava, e que nunca mais o tornou a vèr.

Esta bella viuva era Antonietta de Pons, que fora esposa de Henrique de Filly, conde de Roeheguyon. A casta viuva conservou-se inexpugnável, e soube de tal modo defender a sua virtude, que el-rei viu-se obrigado a fallar- Ihe em casamento como ás outras. Nem assim. Apesar da promessa, tão adian- tado estava o rei como no principio. Olíendeu-se de tão dura resistência, mas sentiu que a amava cada vez mais, e mais tarde a virtuosa viuva casou em segundas núpcias com Carlos de Plessis, senhor de Liancourt.

Cançado d'aquelia lucta improlicua, Henrique resolveu-se a abandonar a sua empreza, dizendo á condessa de Roeheguyon, que «visto ser verdadeira- mente dama de honor, o havia de ser da rainha que elle havia sentado no throno pelo seu segundo casamento. «

Apesar de tanta resistência, ha motivo para crer que a dama de honor teve por tim amores ou cousa parecida com o seu real adorador. Antonietta de Pons teve ciúmes de Gabriclla d'Estrces, dama de Liancourt, favorita d'el-rei, visto que impoz a seu marido a condirão de nunca usar o appellido de Lian- court, «usado igualmente por uma prostituta.»

El-rei acabou com estes escrúpulos, dando-lhe o titulo de marqueza de Guercheville. Amava-a verdadeiramente, mas nem por isso guardava uma fide- lidade que julgava inútil ou ridícula. Consolava-se, pois, dos pesares ipie lhe causava a intractavel condessa de la Roeheguyon, amando Carlota des Rssarts, condessa de Romerentin, filha natural do barão de Santour, seu eslribeiro. Teve d'ella duas filhas que foram legitimadas.

Esta beldade, menos cruel que a viuva normanda, era ao mesmo tempo amante do cardeal de Guise, Luiz de Lorena, filho do duque de Guise, morto de repente nos estados de Blois, mas o rei nem .sequer suspeitava d'esta cobarde infidelidade.

Durante o sitio de Paris em Io90, installou-se com o seu séquito na ab- badia de Montmartre. Conheceu alli uma linda noviça, filba do conde de Saint- Aignan e de Maria Babou de la Bourdaisiòre. Não teve a mienor diíficuldade em possuil-a, sem deixar de se divertir com as demais religiosas, e quando le- vantou o sitio, andou com ella sem o menor escrúpulo de cidade em cidade, ainda vestida com o habito monástico.

Passado este capricho, mandou a freira para o seu convento, onde ia vèl-a de vez em quando, fazendo-a eleger abbadcssa de Montmartre.

«El-rei, segundo diz, déra-se tão bem com a abbadessa, que quando fa|-

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lava d'este convento chamava-lhe o seu mosteiro, e dizia que fora alli religioso.» (Antiquilés de Paris, por Sauval, t. i, p. 154.)

Não se deu el-rei do mesmo modo na abbadia de Longcliamp, onde uma religiosa chamada Cafharina de Verdeur, a quem ainda assim recompensou, no- meando-a ahbadessa de Vernon, lhe deixou, segundo conta Bassompierre, uma recordação de que não conseguiu livrar-se facilmente. Eis o motivo porque se chamou ás abbadias de Longchamp e de Montmartre, Magasins des entjins de l'armée. (Confissão de Sancy, 1. i, cap. 8.)

El-rei tinha então necessidade de um amor mais romanesco e platónico para soíírer com paciência as prescripções dos médicos, que lhe aconselhavam um repouso necessário ao restabelecimento da sua saúde. Os seus antigos ex- cessos haviam produzido fructos fataes, e dizia-se que o rei, cujo sangue es- tava viciado pelo mal de Nápoles, devia entregar-se mais aos boticários do que ás mulheres.

Os pregadores da Liga alludiam no púlpito bastas vezes a este assumpto, que não era positivamente catbolico: Rose, que pregava em Saint-Germain TAu- xerrois, dizia ao seu auditório, «que emquanto aquella santa rainha (a de Na- varra) estava encerrada entre quatro paredes (em Usson) seu marido tinha um harém de p. . ., mas que estava recebendo a paga dos seus feitos. . . »

O editor das memorias dEstoile, em que esta passagem figura com data de 12 de outubro de lo92, accrescenta esta nota:

«A conclusão d'esta phrase, que não pôde imprimir-se, existe na pagina 288 do manuscripto.»

A 6 de junho de lo93, o franciscano Fe^-Ardent, que pregava em Saint- Jean, vomitava mil injurias contra o rei, dizendo que chegaria um dia em que seria ferido pelo raio, ou rebentaria subitamente. «Já elle tem, accrescenta o frade, o baixo ventre podre d'aquillo que sabeis.»

Dissessem ou não a verdade os pregadores da Liga, o certo é que Hen- rique IV era por esse tempo o amante ou o perseguidor de Gabriella d'Estrées. Esta encantadora mulher, uma das filhas de António d'Estrces, marquez de Coeuvres, e de Francisca Babou de la Bourdaisicre, habitava com suas irmãs o castello de seu pae, perto de Compiégne. Roger de Saint-Lary, duque de Belle- garde, estribeiro-mór e favorito d'el-rei, mantinha com ella relações secretas que mais augmentavam o seu mutuo amor.

Maderaoiselle de Coeuvres era admiravelmente bella, e o seu retrato não é menos parecido n'estes versos de Guilherme de Sabbe, do que nas telas de Pedro Dumoustier e de João Babel:

Mon (eil est tout ravij, quatid il cuil el contemple

Ses beim.v cheoeux orins, qui ornenl c/trc/ne temple.

Sou beau et larije fronl et sourcils ébenins,

Son beau nez decorant et l'une et 1'autre joue,

Sur lesquelles Amour à tout heure se joue,

FA ses beaux brillants yeux, deux beaux aslres bènins.

Heureiíx qui peul baiser sa bouche cinabrine. Ses lèoi-es de corail, sa denlure ivoirine,

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Son beau double menlou, l'une des seple benulèa, Le tout acompagné d'un petit ris folaHre, Une gorge de lys, stir un beau sein d'albastre. Ou deux fermes lelins sont assis et plantes.

Guilherme de Sable, aiitifjo cavalleiro da montoria real, que havia feito a sua aprendizagem com Francisco i, c que era grande entendedor em assum- ptos de belleza feminina, segundo lirantòme, não esquece n'este retrato in- serto na sua Musa caradora (Paris, 161 I, in-12) as demais perfeições de Ga- briella a sua mão branca e poliila, os hellos dedos afilados, a estatura es- belta, a sua graça, e Qnalmente

Ces petits pieds ouverts, rendant hon lesmoignage Queí est le demeuranl dii rare personage.

E provável (|ue fosse Maria de Beaiivillers quem fallasse de sua prima de Ca^uvres a Henrique iv, inspirando-lhe assim um violento desejo de a co- nhecer. Diz-se todavia, nos Amores do Grande Alcandre, que lendo uma vez Bellegarde tido a indiscrição de elogiar diante do rei a singular belleza d'aquella donzella, o elogio fizera impressão no animo de Henrique, o qual teve desejos de a ver, e ficou enamorado d'ella, apenas a viu.

Em consequência d'isto, abandonou subitamente a marqueza de Humié- res, que se lhe havia entregado com demasiada leviandade, e declarou-se apai- xonado de Gabriella, o que causou um grande pezar a Bellegarde. Gabriella, que amava este fidalgo, mostrou-se a principio refractária ao novo amor, mas suas irmãs, que eram mais espertas e politicas do que ella, fizeram-lhe comprehen- der, que uma vez que o quizesse, poderia encontrar cem Bellegardes, ao passo que não encontraria em segundo rei de França.

É de presumir que o próprio Bellegarde, pouco disposto também a casar com a filha do marquez de Conuvrcs, nada fizesse para destruir o elleito de taes conselhos, se não é que elle próprio procurou encaminhal-a n'este sen- tido.

Além d'isto, Gabriella tinha uma tia materna, a senhora de Sourdis, da familia dos Bordaisière, a qual era em tudo e por tudo digna irmã da senhora d'Estrées, a quem seu marido apontava com o dedo aos Íntimos de sua casa, dizendo-lhes sem a menor reserva :

Vêem essa mulher? E' capaz de tornar esta casa uma coelheira de ribaldas (putains). (Obserc. sur le Grand Alcandre, no J. d'Henri iii, e Dic. de Leuglet-Dufresno}'. )

A senhora de. Sourdis e o seu amante, o chanceller Haraut de Cheverny, souberam dispor de tal modo o animo da mãe de Gabriella para ouvir as pro- postas d'el-rei, que Bellegarde foi posto fora de combate, e a joven era d'ahi a pouco tempo a favorita.

A tal ponto o rei se namorara d'ella, que não podendo supportar o tor- mento da ausência, deixou um dia o exercito, e disfarçado em camponez atra- vessou a Picardia, com grave risco de cair em poder dos da Liga, para ir ver

Historia da Prostituição. tomo ii— Folba 63.

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a sua amante. As cartas que lhe escrevia diariamente, no meio dos episódios de uma guerra aventureira, transpiram tanta paixão, que desculpam até certo ponto a loucura do real amante. Ainda assim, a correspondência d'el-rei com Gabriella, mais escandalosa torna a conducta d'este homem volúvel e lascivo, que apesar da sua paixão pela favorita, nunca deixou de andar de mulher em mulher.

N"este meio tempo, Gabriella ficou gravida e precisava-se de um marido para encobrir as manchas d'a(|uella reputarão, que Bellegarde e o rei haviam compromettido. Henrique tractou de arranjar o homem de que precisava, e encontrou um fidalgo picardo, por nome Nicolau de Amerval, senhor de Lian- court, que consentiu em acceitar a mão de Gabriella.

A favorita linha obrigado o rei a jurar que mesmo no dia do casamento iria subtrahil-a ao dominio conjugal. O casamento realisou-se, mas um obs- táculo imprevisto impediu o rei de cumprir o juramento, e Gabriella não teve remédio senão sujeilar-se a reconhecer os direitos conjugaes de Liancourt.

«Ainda assim, lé-se nos Amores do Grande Alcandre, Gabriella não se queria deitar. Seu marido julgou então que estaria mais á vontade em sua casa do que na cidade cm que o casamento se realisara, e conduziu a noiva para o seu solar. Ella, porém, fez-se acompanhar de seus pães e das damas que haviam assistido ás bodas, e o pobre marido teve que esperar.»

No dia seguinte chegou o rei e libertou a noiva. Pouco tempo depois, deu á luz um filho, a quem o rei não quiz dar o nome de Alexandre, para que não se lembrasse alguém de o cognominar Alexandre le Grand, por isso que deno- minavam a Bellegarde o senhor le Grand, e o fidalgo podia muito bem dispu- tar a paternidade d'aquella criança.

Não obstante, Henrique iv legitimou f.esar Vendôme no mesmo dia (7 de janeiro de 159o) em que foi annullado o matrimonio de Gabriella de Eslrées com o senhor de Liancourt.

Gabriella, que teve logo a principio o titulo de marqueza de Monceaux, recebeu mais tarde o de duqueza de Beaufort. El-rei, que nas suas cartas lhe chamava coração meu e outras ternuras similhantes, denominava-a publica- mente meu bello anjo, o que deu logar a esta quadra:

N'est pas une chose étrange De voir un grand roy serviteur, Les femmes vivre sans honneur, Et d'un putain se faire un ange ?

A conducta da duqueza de Beaufort era pouco regular ; no emtanto, ainda que os seus costumes fossem muito diflamados pelo povo, que chamava á il- lustre dama putain dii roy, denominação que lhe davam também no púlpito os pregadores da Lúja e especialmente Guarni, não se podem tomar á leltra as accusações que se amontoaram contra cila nas Novas Memorias de Bassom- pierre, publicadas pela primeira vez cm 1803.

Segundo estas memorias, cuja authenticidade está longe de ser provada, Gabriella prostituiu-se na cdade de dezcseis annos por conselhos de sua mãe.

Gabriella d'Estiies (segundo um retrato da Historia de França de II. Martins)

DA PROSTITUIÇÃO 499

que a lançou nos braços de Henrique iii, mediante uma somma de seis mil escudos, e Montigny, corretor d'este negocio por parte do rei, fçuardou para si a terça parte d'esta quantia. Em seguida, o marquez de Cneuvres vendeu-a a Zamet, rico proprietário, c a outros ainda. Pouco depois, Gabriella, vendida a di- nheiro de contado ao cardeal de Guise, entregou-se de boa vontade e gratui- tamente ao duque de Bellegarde, e a vários outros (ilalgos das immediações de Copuvres, faes como Brunct e Stenay ; finalmente Bellegarde acabou por lan- çal-a nos braços do rei. {llist. de l'aris, por Dulaure, t. v, p. 183 e se- guintes.)

Facilmente poderia provar-se que Bassompierre, ou o auctor das Novas Memorias, impressas com o seu nome, confundiu os personagens, os factos e as épocbas. Attribuiu talvez a Gabriella todas as galanterias e desordens de que suas irmãs e parentas ei-am responsáveis, por isso que na casa de Bour- daisière, diz Tallcmant des Reanx, «a raça mais fecunda cm mulheres galan- tes, que houve jamais em França, contam-se unias vinte e cinco ou vinte e seis, entre religiosas, casadas e solteiras, entregues publicamente a amores fá- ceis e libertinos. I)'aqui vem que as armas desta familia são um punhado de ervilhas, emblema de mulheres de vida, por isso que se descobre por uma agudeza satyrica haver n'cstas armas uma 7não semeando ervilhas». A este res- peito fez-se a seguinte quadra:

.V(;íis dccons hénir cette iiiain, Qui séine avec lant de largesses, Pour le plaisir du genre huniain Quantilé de si belles vesses.

Apesar de ser concubina do rei, Gabriella mantinha ainda relações se- cretas com o seu antigo amante, Bellegarde, a quem nunca deixou de amar. Em todo o caso, despediu terminantemente todos os galans que a chronica es- candalosa lhe attribuia. Neste numero entrava o duque de Longueville, que lhe devolvera a esse tempo todas as cartas d'ella recebidas.

Não obstante, Henrique iv tinha ciúmes de Bellegarde.

«Itez vezes ordenou el-rei que o matassem, diz Tallemant des Reaux, mas bem depressa se arrependia, quando se lembrava que fora elle quem lhe entregara a dama.»

Uma noite, o senhor de Praslin fui avisar o rei de que a duqueza de Beaufort estava fechada com Bellegarde nos seus aposentos. El-rei, tremulo de cólera, levanta-se, vesle-se a toda a pressa, toma a espada e segue Praslin muito aíllicto. Ao chegar, porém, á porta do aposento da sua amante sentiu remorsos e parou :

Nada! exclamou elle. Podia aííligir-se com isto.

E foi novamente deitar se sem perturbar a entrevista dos dois amantes.

De outra vez Bellegarde e a duqueza estavam juntos também, e descan- çadissimos, porque não esperavam o rei. Henrique chega á porta, e manda abrir. Não havia uma única sabida por onde o amante podcsse escapar-se. A duqueza inventa em vão toda a espécie de pretextos para que o rei se retire.

oOO HISTORIA

Henrique insiste, ordena e encolerisa-se. A camareira de (labriella, matrona conhecedora do seu oiilcio, fa/ entrar Bellegarde, meio nú, n uma pequena dispensa, onde se costumavam guardar os doces.

Abre-se a porta, e el-rei entra, procurando qualquer vcsfigio accusador deixado peio seu rival ao fugir. Senta-se sem dar palavra, e d'alii a pouco pede que llie sirvam doce. \ae direito á porta da dispensa, pede a chave, que não lhe dão, e ameaga metter a porta dentro.

Bellegarde, a esse tempo, vesíira-se como pudera, no seu estreito recinto, e saltara pela janella, que deitava para a rua. Foi então que a camareira ap- pareceu com a chave, desnorteando as suspeitas d'el-rei :

Meu senhor, disse-lhe Gabriella, recuperando toda a sua tranquillidade, vejo que me quereis tractar como a todas as mulheres que haveis amado. O vosso génio volúvel procura apenas um pretexto para romper commigo. Pois bem, sire, vou anfecipar-me aos vossos desejos, rompendo desde comvosco... e para sempre I . . .

Dizendo isto, as lagrimas cabiam-lhes pelas faces em torrentes. El-rei apressou-se a encliugar-lh'as carinhosamenle, supplicando-lhe que lhe per- doasse.

Assim refere a aventura o auctor dos .i mores do Grande Alcandre.

.4 tradicção popular accrescenta, porém, alguns traços mais em harmo- nia com o caracter de Henrique iv. Segundo esta tradicção, Bellegarde tivera de esconder-se debaixo do leito de Gabriella, e o rei, occupando o logar que o seu estribeiro acabara de deixar, pediu alguns doces que a camareira se apressou a servir-lhe. El-rei então, pegando n'uma caixa d'elles, atirou-a para debaixo da cama, dizendo :

Toma, Bellegarde, é preciso que todos vivam!

Correra o boato de que o nascimento de César, duque de Vendòme, não podia attribuir-se ao rei, e uma anecdola que Sully não hesitou em escrever nas suas iVlemorias parece ter dado origem a este boato calumnioso. Alibour, primeiro medico d'el-rei, visitara Gabriella, que eslava indisposta, e foi an- nunciar a Henrique iv, que a doença teria felizes consequências.

E' preciso sangral-a? perguntou el-rei.

Não, meu senhor, a doença terminará ao cabo de alguns mezes.

Que queres dizer, bomein de Deus' disse o rei encolerisado. Estás .sonhando! Não se Irada de gravidez, e ou não entendes nada disso, ou então outros peores do que tu te fazem fallar assim 1

Senhor, replicou Alibour, eu ignoro as vossas contas, mas o que sei perfeitamente, é que antes de sele mezes se verificará o que tive a honra de vos dizer.

A prophecia realisou-se. CTabriella deu á luz um lillio, mas Alibour não sobreviveu a este acontecimento, dizendo-se que fora envenenado.

Tallemanl des Heaux deu a explicação d'esta anecdola, tantas vezes in- vocada contra a memoria de (labriella, n'esta passagem que Mr. l'aulin Paris faz figurar na sua edição, colhendo-o no manuscripto original:

«A verdade da anecdola de Alibour, jirimeiro medico d'el-rei, é que Hen-

UA PROSTITUIÇÃO oOI

rique iv linlia umu gi)iioriii('i;u|iio lhe produziu uma carnosidade e cm seguida retenção da urina, qu; o poz ás porias da morte em Monceaux. Alibour dizia que ei-rei não podia proerear na constância d'este incommodo. Era uma questão de medicina, mas a gravidez de Madame de Beaufort estava muito adiantada^ quando surgiu esta questão.»

O primogénito de fialjriella nem por isso deixou de ser legitimado, assim como seu irmão Alexandre e sua irmã Catliarina Henriqueta. A mãe chegaria a ser esposa d'cl-rci, se não tivesse morrido envenenada, em quanto em Roma se tractava de annullar o matrimonio de Henrique iv com Margarida de Valois.

Mr. de Sancy cahiu em desgraça por haver ousado dizer ao rei, que o consultara a respeito do seu projecto de casamento com Madame de Beaufort, que, desavergonhada por desavergonhada (puiain por putain, diz o texto) me- lhor estaria sua magestade com a filha de Henrique ii do que com a de Madame dEstrées, que havia morrido n"um bordei. (V. a historieta de SuUy em Talle- mant des Reaux.)

Sully, que não era menos contrario do que Sancy a este vergonhoso enlace, mas que sabia combatel-o com muito mais politica, afTirmou todavia nas suas Memorias que «el-rei nunca se poderia resolver a casar com uma mulher de vida.»

Quanto mais apaixonado se mostrava Henrique iv pelo seu bello anjo, mais se pronunciava a opinião publica contra a favorita, que nem mesmo o casamento poderia reliabilitar. Os seus amores com o duque de Bellegarde eram tão conhecidos, mesmo nas Ínfimas classes sociaes, que se ouvia com frequên- cia este dito proverbial:

«As bellas espadas {belles gardes) andam sempre nas bellas bainhas.»

Os parisienses entre os quaes fermentava sempre o espirito de revolta da Liga, detestavam a duquezade Beaufort, p)r causa dos maus costumes que lhe atlribuiam, e o ódio que esta favorita havia excitado recahia também em el-rei.

«O povo, escrevia P.de TEstoile com data de 23 de abril de 1396, é de seu natural teimoso, inconstante e volúvel. Começou a dizer tanto mal d'el-rei, como havia dito bem, tudo por causa dos seus amores com Gabriella.»

IS"uma satyra muito escandalosa, que ao tempo corria, havia versos em que el-rei não era menos atacado que a sua favorita.

Todas as pessoas honradas, todos os bons cidadãos se indignavam contra a ideia da união d'el-rei com uma mulher sem honra, que se dava ares da rai- nha. Um safyrico publicou esta oilava a propósito de um casamento, que existia na promessa firmada pela mão d'el-rei :

Mariez-vous, de par Oieu, sire! Volre héritier esl loul cerlain, Puisqu'ausí<i bien un peu de cire l.égilime un fils de putaiti : Putain, dont les stivurs xonl putantm, La grand' mère le fiU jadis, La nière, cousines el tuntes, Hunids Madame de Sintrdis.

502 HISTORIA

Madame de Sourdis como dissemos, era a amante do velho chanceller ou guarda-scllos, de Cliaverny, de quem teve um flllio que o rei levou á pia do baptismo em Saint-Germain FAuxerrois.

Sirc, disse-llie a parteira, entregando-llie a criança, tende cautella, que é muito pesado.

Não admira, respondeu o rei, provavelmente são os sellos, que traz pendurados do c. . .

Gabriella não teve tempo de ver realisadas as suas aspirações, porque suecumbiu quíisi de repente, ferida de uma enfermidade extranha, com todos os symptomas de um envenenamento. Os seus inimigos nem mesmo depois de mor- ta lhe perdoaram. Dirigiu as ceremonias fúnebres seu cunhado, o marechal de Balagny, filho natural de um bispo de Valence, e assistiram as suas seis irmãs, mais dissolutas ainda do que ella.» O poeta Cigogne compoz este versos que Sauval archivou nos Amoiirs des róis de France:

J'ai vu passer sous ma fénHre Les six péchés mortels vivants, ConduiU par Iv halard ifitn prètre, Qui tous ensemble allaienl chantants Un reqxíiescal in pace Par le septième trespasse.

Henrique iv não podia viver sem uma amante effectiva e permanente, o (]ue não o estorvava de ter outras volantes, quando a oecasião se apresentava. Madame de Beaufort estava apenas enterrada, e as cortezãs andavam á por- fia na lucta de apanharem a herança da graça do rei, ganhando em fim a vic- loria Margarida d'Entragues.

Teria n'esse tempo dezenove ou vinte annos a nova favorita, edistinguia- se não menos pelo talento do que pela belleza. Tão recomniendada fora a el-rei pelas pessoas que desejavam eleval-a á dignidade de favorita, que el-rei «sentiu desde logo o desejo de a ver, em seguida o de a tornar a vèr, e afinal o de a amar.»

Amou-a el-rei, e Mademoiselled'Entragues, fiel aos conselhos de soa mãe, e sobre tudo aos de seu irmão, deixou-se amar de boa vontade. Segundo era fama, não estava na a|)rendizagem da arte, não (distante, regateou o mais que poude os últimos favores, que Henrique iv reclamava com todo o ardor de um amante e com toda a auctoridade de um rei.

l)eu-se n'esle caso um dos mais monstruosos tráficos de prostituição (|ue nos ministra a historia dos amores dos reis. A familia d'Entragues, o pae, a mãe, os amigos e os conselheiros todos intervieram mais ou menos n'estas vergonhosas negociações, que tinham por fim a venda impura.

Pediam cem mil escudos pela virtude da Entragues. Algumas memorias referem que a somma foi reduzida a cincoenta mil. Em todo o caso, foi com- binado o preço, mas o preço era o menos. Mademoiselle d'Entragues, por con- selho de seus pães, exigia promessa de casamento, sob a extranha condição de dar ao rei um lilho varão no praso de um aiino.

BA PROSTITUIÇÃO 503

«Sou de tal modo Yi^'iada, dizia Henriqueta ao seu amante, que se me torna absolutamente impossível conceder-vos todas as provas de reconheci- mento e de amor, que não posso negar ao maior rei do mundo. E' preciso es- perar a occasião, e creio que não teremos nunca liberdade, se não contarmos com meus pães.»

Estes consentiam em fechar os olhos, logo que tivessem na mão a pro- messa de casamento, firmada e sellada em forma.

«Esta astuta e hábil mulher soube de tal modo seduzir el-rei, diz Sully, que a promessa foi escripta e dada pela conquista de um thcsouro, que talvez el-rei não encontrasse.»

Sully teve a coragem de fazer todos os esforços possíveis para desviar o rei d'esta loucura amorosa, que ameaçava custar-lhe mais de cem mil escudos. Chegou até a rasgar a promessa de casamento que el-rei lhe mostrou.

«Sire, disse-lhe elle, se quizesseis recordar o que n'outros tempos me dissestes d"essa jovcn e de seu irmão, o conde dWuvergne, em vida da duqueza de Beaufort, as conversações que por es.sa épocha tivemos e as ordens de que me encarregastes para fazer sahir de França essa gentalha, levaríeis mais longe ainda a duvida que tendes, esperando encontrar menos do que desejaes. Con- siderae, sire, que a peça não vale cem mil escudos, e Deus queira que mais tarde não vos seja ainda mais pesada!»

Estes conselhos do bom e leal servidor eram auxiliados pela refinada ga- lanteria imaginada e posta em acção pelo partido contrario aos Entragues. To- dos os dias se recommendavam novas donzellas, que apesar de escolhidas en- tre as mais bellas e seductoras não faziam senão excitar cada vez mais a paixão do rei por mademoiselle dEntragues.

«Quando não possuía ainda a Entragues, diz Bassompierre, nas suas Me- morias, desenfastiava-se com uma bella rapariga, chamada a (tlandée.»

Ia passar a noite ao palácio de Zamet, para onde a levavam. A (llandée foi bem depressa desthronada pela Fanuche.

Tallemant des Reaux, que nos revelou tão novas e curiosas particulari- dades a respeito de Henrique iv, recorda uma boa anecdota, ainda que um tanto livre, d'este príncipe a propósito da Fanuche, que lhe haviam apresen- tado como donzella, apesar de ser casada.

Esta Fanuche era uma cortezã celebre, no estylo da grande Imperia e e das cortezãs italianas, e era robretudo famosa pelas suas bellas formas e per- feições secretas. Um quartetto impresso cm 1637, na segunda parte das poe- sias do senhor de Neuf-Germain, poeta de Gastão d'Orleans, prova-nos que a Fanuche, que n'aquella épocha tinha mais de quarenta annos, era ainda digna das homenagens dos seus adoradores e dos elogios da poesia galante.

Henrique iv não se contentava, porém, com estes amores passageiros. Queria amores mais permanentes, e teria dado metade do seu reino para pos- suir mademoiselle d'Entragues. Possuiu-a emfim, mediante a solemne promessa de casamento e a doação de cem mil escudos. Esta quantia foi a credito, mas quando chegou a épocha do pagamento, pagou, não sem grande pezar. Antes de entregar a somma, quiz vèl-a reunida e mandou que a levassem ao seu ga-

504

HISTORIA

binete. As moedas corriam no solo como um rio de ouro, c quando o' rei viu a seus pés aquelie monte de escudos, não poude deixar de dizer :

Venlre-sainl-íjris ! E' o que se pôde chamar uma noifo bem paga!...

Desde esse dia cada vez se alíeiyoou mais á sua conquista, que tão cara

lhe custara, e elevou a Entrngues á dignidade de favorita, sem deixar por isso

de commetter algumas infidelidades, que ainda assim, não o tornavam menos

terno e sollicilo para com ella.

Quando a còrle de Roma pronunciou a sentença de divorcio, o rei, por maior que fosse o seu amor, acceitou uma alliança politica, e casou em 1600 com Maria de Medicis.

A Entragues oppozera-sc cm vão a este enlace, e depois delle empregou todos os esforços para conservar o titulo e as fu noções de favorita, renunciando á coroa de França que lhe havia sido ollerccida. Henrique iv fel-a marqueza de Verneuil, e apesar do seu casamento não parecia muito disposto a renun- ciar a umas relações que elle preferia a outras quaesquer.

Apesar d'isso, Henriqueta de Balzac d'Enfragues, cujo caracter violento, flexível e dominador a um tempo tamanha influencia soubera sempre exercer sobre o rei, não lhe poupava censuras e reprimendas, a propósito da sua falta de palavra. Um dia chegou a dizer-lhc, que lhe valia apenas a fortuna que ti- vera de ser rei, porque se não fosse isso ninguém o poderia .soflrer, por chei- rar mal como um porco. (V. Tallemanl des Reaux). Charaava-lhe o capitão Bon-vouloir, porque estava sempre disposto a amar todas as mulheres ao mesmo tempo.

A marqueza de Verneuil, que habitava no palácio da Force, perto do Louvre, compartilhava por assim dizer com a rainha as attenções d'el-rei e as lisonjas dos cortezãos, e não perdia a esperança de deixar um dia no segundo plano a Italiana, ou a grande Banqueira, como ella chamava a Maria de Me- dicis. Esta installação pui)lica de uma concubina real em frente do Louvre, era um escândalo que fazia murmurar o povo e allligii- os leaes servidores d'el-rei.

Para o separarem d'esta mulher astuta, que aspirava sem cessar á coroa de França, puzeram-se em obra muitas combinações e intrigas amorosas, des- tinadas a diminuir o pi'estigio da marqueza de Verneuil. Henrique iv, porém, aeceitando todas as aventuras que se lhe otíereeiam, nunca deixava de voltar cada vez mais apaixonado, para junto da marqueza.

Em 1600, segundo Bassompierre, (antigas e novas Memorias) enamorou-se de uma das damas da rainha, por nome Bourdaisière, em seguida de madame Boinville, de madame Cleni, da esposa do conselheiro Quelin, da condessa de Lamoux, de outra dama de honor, chamada Foulebon, ctc, etc.

A marqueza de Verneuil nem por isso era despresada. O exemplo do rei, porém, ensinou-a por certo a gosar também a vida, e é de crer (juc não lhe faltariam adoradores.

lim dito de Henrique iv, referido por Tallcmant des Keaux, a entender que não tinha tantos ciúmes da marqueza como tivera de (labriella d'Estrées:

«Disseram-lbe um dia que o duque de Guise estava enamorado de ma- dame de Verneuil. O rei não se incommodou por isso e disse:

Heiii'<(iirt;l dl' Ikil/.íU' .1 lMitr:i;;-UL'S (/>(• um vdrato da ípoclut)

DA PROSTITUIÇÃO 505

« Coitado! Deixemos-lhe o pão e as pécoras, que lhe tiramos tan- tas cousas

Razões tinha a marqueza de Verneuil para não se temer da influencia das ephemeras amantes de el-rei, mas ainda assim uma dVllas houve, que esteve a ponto de a derribar. Foi Jacqueline de Bueil, filha de um honrado fidalgo bretão, Cláudio de Bueil, senhor de Courcillon. N'um d'esses arrufos que o rei costumava ter frequentes vezes com a sua favorita, procurou distrahir-se com a joven e encantadora Bueil. A nova amante ficou logo gravida. Tractou-se de remediar o incidente com a responsabilidade de um marido.

«Quarta-feira, o do mez de outubro, refere ingenuamente P. de TEstoile no seu liegistre-Journal, ás seis horas da manhã, mademoiselle de Bueil, ca- s)u em Saint-Main des Fosses com o joven fidalgo Chanvallon, excellente mu- sico, tocador de alaúde. Teve a honra de dormir com sua mulher mas allu- miado, segundo se dizia, por velas e guardado por gentis-homens, obedecendo ás ordens d'el-rei, que no dia seguinte dormiu com a mulher do seu próximo em Paris, no palácio de Montauban, permanecendo no leito até ás duas da tarde. Dizia-se que o pobre marido dormira n'um quarto que ficava no pavimento su- perior da camará d'el-rei, estando assim em cima de sua mulher, mas com um tecto de permeio.»

Esta nova concubina ameaçava supplantar a marqueza de Verneuil, com- tudo a antiga favorita descobriu o meio de attrahir o seu real amante. Para este fim valeu-se do próprio coração de Jacqueline de Bueil, por meio do joven príncipe de Joinville, irmão do duque de Guise, que namorava também a fa- vorita e desejava servil-a. Quando o príncipe logrou possuir Jacqueline, o rei foi avisado, e sua magestade queixou-se amargamente da velha duqueza de Guise.

iSão me importa que casem com as minhas amantes, mas que m'as disputem e se atrevam a ser seus galans, isso é que eu não posso telerar!

E teria mandado prender o príncipe, se este rival demasiado favorecido não houvesse renunciado immediatamente á posse de Jacqueline, affastando-se d'ella e da corte.

Henrique iv perdoou. Mademoiselle de Bueil foi feita condessa de Mo- ret, e o filho que deu á luz, depois da partida do príncipe de Joinville, foi le- gitimado como o haviam sido antes os de Gabriella d'Estrées.

A marqueza de Verneuil tinha sempre sob o influxo dos seus encantos o seu capitão Bon-wuloir, deixando-lhe impressões que o attrahiam continua- mente para junto de si, apezar de toda a sua volubilidade. Quando foi accusada de haver entrado n'uma conspiração contra el-rei com seu pae, seu irmão e ou- tros senhores, a Entragues riu a bandeiras despregadas. Quando foi condem- nada, bastou-lhe ver o rei para obter o perdão de todos os condemnados. Ape- sar de n'essa épocha haver perdido o seu logar de favorita, Henrique iv ia vél-a muitas vezes, e não se mostrava menos galante para com ella.

A marqueza divertia-o mais que ninguém, e a rainha tinha sempre mui- tos ciúmes d'ella. Em março de 1607, foi com a corte a Chantilly, onde es- tava Madame de Verneuil, levando na sua companhia uma dama chamada La

Historia da Prostitdicão . Tomo ii— Folha 64.

506 HISTORIA

Haya, a quem fazia amor, diziam, e que o seguia para toda a parle. A mar- queza disse-llie, sorrindo :

Sire, os vossos mordomos não sabem doseuofficio. Mandam-vos para La Haya, ao vento e á chuva.

La Haya perdeu o real agrado no anno seguinte e tomou o veu na aii- badia de Fontevrault, «retiro finai e habitual das damas do oIReio, diz Es- toile, e onde algumas vezes não deixavam de o continuar a exercer.»

Uma anedocla, referida nas notas de Lenglet-Dufresnoy, diz-nos que el- rei levava a toda a parte no seu séquito, tanto nas viagens, como nas devo- ções, uma multidão de mulheres da corte. Assim, quando ia ouvir os sermões do padre jesuita (ionthier ás egrejas de Paris, estas damas accudiam em tro- pel para trocarem um olhar e um sorriso com el-rei.

Um dia pregava o jesuita em Saint-dervais. A marqueza de Verneuil e mui- tas outras damas foram collocar-se perto do sitio onde o rei estava sentado. Emquanto algumas d'ellas cochichavam, a marqueza fazia alguns signaes a el- rei, que a muito custo podia reprimir o riso.

Sire, disse-lhe com amargura o jesuita, não deixará jamais vossa magestade de vir com um serralho ouvir a palavra de Deus, e dar similhante escândalo n'cste santo logar ?

El-rei ouviu com resignação christã a reprimenda Ião justamente mere- cida, mas nem por isso foi mais reservado no seu proceder, nem deixou de dar escândalo aos seus súbditos.

O seu derradeiro amor, o que talvez puzesse o punhal na mão de Ravail- lac, mostra até onde podia chegar a depravação dos seus costumes, e é um dos episódios mais extraordinários da historia da prostituição na corte de França.

«!N'aquelle tempo el-rei, escrevia Estoile, no seu diário com data do mez de junho de 1609, perdidamente namorado da princeza de (2ondé, que passava pela mulher mais bella não da corte, mas até de toda a França, deu assum- pto aos curiosos e maldizentes, que mesmo sem este caso fatiavam muito licenciosamente de Sua Magestade e da corrupção da corte.»

A joven Carlota Margarida, filha de Henrique, duque de Montmorency, marechal e condestavel de França, apparecia n'aquelle anno pela primeira vez na corte.

«Era tão joven, diz o auctor dos A)nores do Grande Alcandre, que a|íe- nas havia sabido da infância. A sua belleza era milagrosa, as suas maneiras tão graciosas, que parecia uma maravilha. Alcandre viu-a dançar com uma seta na mão, porque n'aquella dança ella e as damas da rainha representavam as nymphas de Diana, e sentiu o coração trespassado com tanta violência, que a ferida nunca mais poude cicatrizar-se.

O condestavel havia posto os olhos em Bassompierre para o casar com sua filha, mas el-rei que vira aquclle milagre de belleza e de encantos, não va- cillou em procurar-lhe outro commodo, que deixasse o campo livre aos seus vergonhosos desígnios.

Um dia el-rei disse a Bassompierre, que era o seu conjpanheiro favorito de meza e de libertinagem:

DA PROSTITUIÇÃO 507

Estou mais do que namorado, eslou furiosamente apaixonado por Ma- demoiselle de Montmorency. Se casares com ella e fores amado, ficarei teu ini- migo. Se ella chegar a gostar de mim, não me poderás ver com bons oliios. O melhor é evitar este motivo de contendas entre nós, porque gosto de ti, e tenho-le verdadeira amisade. De resto, tenho pensado em casal-a com meu sobrinho, o príncipe de (2ondé, para a ter assim na minha família. Esta mulher será a consolação e o entretenimento da velhice em que vou entrar. A meu so- brinho, que gosta mil vezes mais da caça do que das mulheres, dar-lhe-hei cem mil libras annuaes, e por mim contentar-me-hei com o allecto d'ella, sem pre- tender outra cousa.

Bassompierre obedeceu sem demora a uma ordem tão peremptória, e ma- demoiselle de Montmorency casou com o príncipe de Conde.

Desde então el-rei entregou-se sem pudor a todas as extravagâncias da sua paixão, «que era tão grande, diz Estoile, que el-rci Henrique, o Grande, mudou dentro de pouco tempo de trajo, de barba, e até de aspecto.»

O poeta Malherbe prestava indignamente a sua musa á glorificação d'este amor adultero, e se dermos credito a algumas estrophes escriptas sob o nome de Alcandre, Orante, a nympba inspiradora do rei, não era insensível a esse amor.

Tão enthusiasmado andava el-rei na caça de sua sobrinha, que pôz em movimento um numero prodigioso de pessoas, inclusive a mãe do marido. O príncipe de Conde, indignado dos manejos d'el-rei, ousou dirigir-lbe as mais vivas censuras, chegando até a chamar-lhe os nomes mais injuriosos. {Ilegis- tres-Journaux, de P. Estoile, ediç. de Champollion, pag. 547, reinado de Hen- rique IV.)

O príncipe de Conde, quando soube que el-rei se valia de sua mãe como da medianeira mais efficaz para corromper a virtude de sua esposa, dirigiu também as mais justas censuras a essa dama venal, exprobando-lhe ter que- rido deshonral-o. Na sua indignação justíssima, o príncipe chegou a chamar a sua mãe proxeneta {miuinerflle.)

Este extranho caso que nos mostra a própria mãe collahorando na des- honra de seu filho, é um dos mais deploráveis testemunhos da degradação mo- ral dos cortezãos n'aquclla épocba.

f^edro de TEstoilc mais um traço neste horrível quadro, atlribuindo á própria rainha uma cerla cumplicidade n'esta cabala de tantos illustres per- sonagens contra a honra da princeza de Conde.

Sei perfeitamente, dizia Maria de Medíeis, que ha trinta proxenetas em acção para esta intriga amorosa. Se eu entrar n'ella, ficará havendo trinta e uma.

O príncipe de Conde conseguiu livrar a sua honra conjugal das violên- cias que contra ella el-rei e os cortezãos premeditavam. E para não ser victima, teve de tirar de França sua esposa, levando-a para Bruxellas, onde a poz a bom recato.

Henrique iv tel-a-hia ido buscar com as armas na mão, se o punhal de um regicida não tivesse destruído de chofre com a vida do monarcha a sua torpe intriga.

508 HISTORIA

A paixão frenética de Henrique iv pela princeza de Conde, dera grande incremento ao numero e á actividade dos intermediários da prostituição, que se dedicavam a promover os prazeres do rei. Um dos caracteres mais notáveis da prostituição n'aquella époclia é o zelo da gente da corte no desempenho d'estes papeis indignos, não em proveito dos soberanos, como também no dos principes e dos grandes. O senso moral estava de tal modo perdido, que os fidalgos não tinham escrúpulo em prestar-se a estes papeis, quando se tra- ctava de satisfazer os desejos de um poderoso protector.

Ninguém se importava de ser, em caso de necessidade, um vil alcovo- teiro, a troco de merecer as graças do seu protector. Todos se consideravam fejizes, honrados e orgulhosos de descobrirem uma nova belleza destinada ao leito real. Assim, o estigma da infâmia cabe muito mais a estes vis medianei- ros, do que ao mesmo rei, embora elle fosse incapaz de poder resistir ás suas impuras sollicilações.

O typo mais completo do proxenetismo, o principal cúmplice dos exces- sos de Henrique iv, foi o italiano Sebastião Zamet, simples sapateiro no tempo de Henrique ni, que chegou bem depressa a ser senhor de um milhão e sete- centos mil escudos, conselheiro do rei, administrador de Fontainebleau, supe- rintendente da casa da rainha, barão de Bllly c Murat, etc, etc.

Zamet, a quem Henrique iv chamava familiarmente o seu Sebastião, apreciando muitíssimo os seus gracejos e a sua abnegação servil, tinha sido o medianeiro de quasi todos os amores de seu amo. Era elle que desempenhava as mysteriosas funcçóes de superintendente dos prazeres do rei. No seu magni- fico palácio da rua de (Jerisaie, era onde o rei costumava dar-se ás grandes ex- pansões com os seus companheiros de orgia. Era alli também que passava a noite com as mulheres que Zamet se encarregava de lhe fornecer. Finalmente, todas as favoritas reaes alli tinham começado as suas aventuras com el-rei.

O italiano teve dois competidores no vil otRcio que exercia com tanta aptidão como cynismo em serviço d'el-rei, o duque de Bellegarde e o marquez de la Varenne. O primeiro, conhecido até pelo titulo de maqaerel orcUnaire de Sa Magesté (Tocsin des Massacreurs, ediç. de 1579, p. 47) sobresabia na arte de escolher e preparar bons manjares para a mesa d'el-rei. Sabia egualmente preparar as mulheres destinadas aos reaes prazeres. Fora elle «que introdu- zira (labrieila d'Estrées, e em seguida Jacqueline de Bueil.»

O segundo começara por ser cosinheiro da irmã d'el-rei. Ganhou, porém, tanto no favor do monarcha, que chegou a ser administrador geral dos correios e conselheiro de estado. Era o mercúrio del-rei, encarregado especialmente de levar e trazer os bilhetes e mensagens de amor, e denominavam-no : ministro dos reaes prazeres. [Víe de M. Plessis-Mornaij, lib. \\.)

«Os alcoviteiros são agora marquezes!» exclamava Aubigné, na Confis- são de Sancy, faltando de Varenne, que havia passado da arte culinária, para as intrigas do amor e do estado.

As mais illustres damas intervinham também n'este infame trafico, que lhes assegurava o favor e a projecção d'el-rci. Vimos ainda agora a piinceza de Conde associada a este galan de barba branca contra a castidade de sua nora

IIA PROSTITUIÇÃO 509

e a honra de seu próprio filho. Vimos também que Madame de Sourdis favo- rei'ia o commerclo ailultero de sua sobrinha, (iabriella d'Estrécs. A prineeza de (Jonli, .Mademoisellc de (iuise, que fora lambem uma das favoritas do Grande Alcandre, não cessava de lhe procurar divertimentos d'esta espécie, e tornara-se a corruptora das suas rivaes.

Poderíamos mencionar um grande numero de mulheres illustres, que es- tavam sempre dispostas a secundar as phantazias licenciosas do mais libertino dos reis. .

Na nihliotheca de M. Gnillaame, sal\ ra cilada frequentemente nas notas da Confissão de Sancy, mencionavam-se as duas obras seguintes : Os sete li- vros de castidade, feitos por La Varenne e dedicados a Madame de Retz : e os Preceitos do ]'roj-enetismo, compostos por Madame de Villers, commentados por Madame de Vitry e dedicados a La Varenne.

Outra satyra do mesmo género, que não possuímos, mas de que encon- tramos um extracto no Journal d'Estoile Qulho de IG09), caracterisa ainda me- lhor o escandaloso lenocínio (|ue se praticava em proveito do rei Henrique iv. N'uma suppjica dirigida a ei-rei, o chamado ("-havelle allega que exercera me- lhor que Duret, de quem se diz companheiro, o oílicio de maquereau, «um dos principaes do mundo, e no qual o espirito do homem se revela melhor.» Accres- centa que levara a cabo emprezas muito dilficeis, com excellente resultado e menos azar que Duret, pelo que o desafiava a eile Duret, e ao mais famoso na matéria em questão. Como prova d'esta verdade citava as conquistas tal e tal, «das quaes, diz elle ao rei, vós mesmo, sire, podeis dar testemunho, levadas a eíTeito por minha diligencia, conquistas tão dilficeis que o mais hábil no meu olficio teria perdido completamente o seu tempo.»

Tallemant des Reaux conta que o marechal de Roquelaure, que era torto, andando um dia com ei-rei Henrique iv, passara por uma vendedora de sar- gos {maquereaux) e lhe perguntara para rir:

Como distingues tu os machos das fêmeas?

E' muito fácil, meu senhor: os machos são tortos.

«Boa resposta, accrescenta Tallemant, porque o marechal era accusado de haver servido mais de uma vez de alcoviteiro de seu real amo.»

A palavra maquereau significa o peixe sargo, N'outra accepção, como tantas vezes temos visto, designa o nlcoviteiro e o rufião.

Os amores innumeraveis da rainha Margarida e do Grande Alcandre, referidos summariamente, como neste capitulo fizemos, constituem o mais curioso e característico episodio da historia da prostituição no fim do século xvi.

CAPITULO XXXIX

SUMMARIO

Annaes da corte no tempo de Ueuii(|ue iii e de Henrique iv.— A bella Cliateauneur.— A ceia dos três reis com Nanlouillet.— O casamento da favorita d'el-rei.— Assassínio de Madame Villei|uier por seu marido.— Indi,;nas vio- lências de Henrique iii e dos seus favoritos.— A cocui^dia do Paiaiso do nmor.—.\ bitiliolbeca de Madame de Mont- pensier.— U manifesto das damas da coite.— As damas de honor da ramha. .Malherbe e o senhor de la Loue.— A Sagonne e o barão de Termes.— Indulgência de Henrique iv.— Principies da bella galanteria.— Consequências do lu- .10. O lenço de 19:000 escudos de Gabrieila d'EslréBS.— A tapeçaria de um palaciano e a noite de uma pnnceza. Os mysterios dos deuses.

ULAURE uiz com razão na sua Historia de l'aris (ecli^. in-li. t. IV, p. 492) que as scenas de sensualidade descriptas por Bran- lòme, para dar uma ideia dos costumes da corte «parecem iguaes ás que poderiam fornecer os annaes de uma casa de prostituição.» O licencioso chronista, que viveu até ao anno de 1614, teve de abandonar a corte em I'i82, refugiando-se nas suas propriedades, onde escreveu as famosas memorias a que tantas vezes nos temos socorrido. Nem todas elias, porém, chegaram ao nosso conhecimento. Sua sobrinha. Ma- dame de Duretal, teve o cuidado de queimar as mais escandalosas. Podemos perfeitamente calcular o que ellas seriam, pelo que a sobrinha do chronista nos conservou.

Brantôme não poude vér, portanto, o fim do reinado de Henrique lu nem cousa alguma do de Henrique iv. Sabia apenas o que se passava no Louvre pela correspondência com os amigos que alli deixara, e por isso absteve-se de referir acontecimentos de que não fora testemunha, e cuja authenticidadc não podia assegurar. Não podemos pedir ao engraçado chronista dos escândalos da sua épo<;ha noticias a respeito da prostituição da corte de Henrique ui e de Henrique iv.

Brantôme, a julgar por algumas paginas em que se mostra inimigo im- placável da libertinagem italiana, sentia immensamente a vergonhosa aberração em que havia cabido o ultimo dos Valois, rodeado de vis mancebos. Julgava o chronista que, sob a iniluencia d'estes horrores estrangeiros, havia cessado a galanteria franceza, e que o amor das damas, tão recommendado pelas tradic- ções do paiz, existia apenas entre os antigos cortezãos c n'alguns fidalgos in- corruptíveis.

Não devemos suppòr, todavia, que a abominável seita dos mancebos e

512 HISTORIA

hcrmaphrodilas dcstruisse de lodo a galanteria da côrle, a ponto de se haverem tornado as damas niillas ou indilíerentcs n'uma questão em que sempre ha- viam sido as primeiras interessadas. Diremos até em honra dos mignons, que elles não eram tão insensíveis aos encantos do bejio sexo, como se poderia julgar por causa da sua péssima reputa(,'ão. Henrique m tivera amantes e os seus mancebos lambem, e muitos d'elles que acabaram tragicamente, não po- deriam accusar da sua morte senão as mulheres.

Quando Henrique iii era apenas duque d'Anjou, amou Renata de Rieux, conhecida pela alcunha de bella Chatemineuf. Renata era uma das damas de honor de Catharina de Medicis, as quaes o famoso iibello hugucnolte, intitulado o Tocsin des Massacreurs, não calumniou decerto, marcando-as com o sello da prostituição.

«Ninguém ignora, lè-se n'eslc Iibello [p. 49, da edição de loTO) o im- pudor das damas da rainha mãe. Sirva de exemplo a Rouet, a Montigny, a Chateauneuf, a Atry e outras, cuja castidade é tão duvidosa, que dilficilmente acharia um defensor entre todos os cortezãos.»

«Quando o duque d'Anjou partiu para a Polónia onde o chamavam os votos da nobreza d'aquelle paiz, que lhe ofíerecia a coroa, quiz deixar um ma- rido a mademoiselle de Chateauneuf, á qual dera por eseripto, segundo se di- zia, promessa de casamento, e procurou-lh'o entre vários fidalgos da corte. Mademoiselle de Chateauneuf era, porem, de um caracter muito orgulhoso e inlícxivel para se submeltcr a este trafico mairimoniai. Apesar d'isso, o duque d'Anjou pòz os olhos cm Nantouillet, preboste de Paris, um dos seus compa- nheiros de meza e de prazeres.

Nantouillet declinou immediatamente a honra que pretendiam fazer-lhe, respondendo ao novo rei da Polónia, que para casar com uma mulher perdida, esperaria que el-rei Carlos ix estabelecesse bordeis no Louvre.

Esta digna resposta chegou aos ouvidos de Carlos ix, que guardou sem- pre por este motivo um certo rancor a Nantouillet.

Poucos dias depois (setembro de 1573), interceptou-se uma carta escripta em Paris por um cortezão, na qual se faltava nos termos seguintes d'um es- cândalo recente, que estava dando assumpto ás conversações da corte e da ci- dade:

«Vi, dizia o auctor da carta, os três reis, que chamam o Tyranno, o da Polónia e o de Navarra, que para darem graças a Deus pela paz e pela sua li- berdade, não deixavam um momento de o oilender com os seus lascivos e asque- rosos prazeres. Estes bons monarchasfizcram-se servir n'um banquete, que ul- timamente deram, por prostitutas nuas. .

M. M. Champollion, na sua edição do Diário de Henrique iti, ahstive- ram-se de reproduzir certas jjassagens obscenas, que l'edro dT-stnile inseriu iiitegralmenlc no seu manuscr^ipto.

O banquete não fora mais do í|uc o preludio de scenas muito mais es- candalosas. Os três reis, não sabendo como passar o resto da noite, avisaram Nantouillet de que iriam visital-o ao seu palácio de Hercules, situado ao fim da rua dos Agostinhos. Nantouillet excusou-se em vão de receber os reaes hos-

DA PROSTITUIÇÃO oin

pedes, mas viu-sc obrigado a issn por ordem expressa de el-rei. e por fanto mandou preparar a eollação.

Os convidados meios ébrios baviani resolvido saquear o palaeio de Hei- cules, e por tanlo, feito o signal previamente combinado, apoderaram-se da baixella de prata, arrombaram os cofres e os armários, e tiraram tudo (|uantn encontraram de precioso, retirando-se carregados com a presa opima, apesar das queixas e supplicas do proprietário.

No dia seguinte, correu o boato de que uma somma de cincocnta mil es- cudos, roubada dos cofres de .\antouillel, fora entregue cem uma prodigio.sa ri- queza de jóias á bella Chateaunef, para a indemnisar e vingar do despre/.u feito da sua mão pelo desgraçado preboste de Paris.

Este queixou-se do roubo ao primeiro presidente do parlamento, i|ue an- tes de instaurar o processo, deu conhecimento do i|ue se paçsava a el-rei Car- los IX.

Não faça caso d'isso, respondeu el-rei. Diga a .Nantouillel que repe- tiremos a brincadeira, se voltar a pedir uma indemnisação

.Nantouillet, avisado pelo presidente, apressou-se a retirar a sua (juerella.

O duque d'Anjou havia a esse tempo rompido com mademoiselle de Cha- teaunef, ou pelo menos dava-lhe publicamente uma rival, a princeza de Conde, cujo retrato trazia ao pescoço. O amor de Henrique por esta encantadora re- sistiu ate mesmo à ausência. Ao voltar da Polónia para succeder a Carlos ix, tornou a encontrar a sua amante, mas teve o pezar de a perder, d'ahi a pouco tempo.

.Mademoiselle de Chateauneuf tentou ainda fazer valer os seus antigos di- reitos sobre o coração do príncipe, que não cessara de lhe mostrar afFeclo, e ainda que os. costumes de Henrique houvessem soUrido uma triste metamor- phose, foi por um momento sua amante. A bella era, porém, tão pouco tole- rante para com os mitjnons, que el-rei voltou n<n'amenlc á ideia de a casar para se vér livre d'ella.

El-rei casou também com Luiza de Vaudemont, sabendo que esta prin- ceza havia sido requestada pelo conde de Brienne, que nunca deixou de estar enamorado d'ella.

Conde, dissera-lhe el-rei em tom peremptório, ai;abo de lhe tirar a sua amada. Em compensação, vou dar-lhe a minha: caso-o com a Chateau- neuf.

Não era um gracejo de seu amo, eo conde de Brienne, por assim o enten- der, fugiu precipitadamente da corte, para se eximir a esse ridículo casamento. A bella Chateauneuf teve com isso grande prazer, pois nada desejava menos do que um marido, aspirando unicamente a conservar o seu titulo de favorita. Commetteu, porém, a imprudência de se pòr abertamente em guerra com ajo- ven rainha; e Catharina de Medíeis prohibiu-lhe que voltasse á corte.

El-rei absteve-se cuidadosamente de a defender. A pobre favorita, ven- do-se abandonada do príncipe, que os mignons indispuzeram com ella, pra- ticou uma tolice, pelo despeito que tinha, mas d'ahi a pouco arrependeu-sc amargamente.

BUTOaU Dá. PBMTTrOIçIo. TOMO n— FOLHA 65.

3 I 4 HISTORIA

«Esta joven tão orgulhosa e cheia de desdéns, diz Brantõme, que ti- nha palavras arrogantes para os galans que d'ei!a se aproximavam, entrega- va-se d'ahi a pouco a um, que obteve d'ella tudo quanto quiz, poucos dias antes de se casar.

«Era um italiano chamado Altoviti, muito abaixo em tudo e por tudo dos esbeltos fidalgos que a requestavam.»

Dois annos depois, tendo-o surprehendido n'uma infidelidade, matouo varonilmente por a sua própria mão.

A esse tempo, Henrique iii não precisava, nem sabia que fizesse de uma favorita official, e bem satisfeito ficou de se vèr assim livre das eternas censu- ras da Chateauneuf, que a cada instante lhe exprobrava os seus infames hábi- tos. Desde então não tornou a cahir sob o predominio de nenhuma mulher, mas apezar dos seus perfumados mignons, voltava de vezes em quando às primei- ras inclinações da sua juventude.

Accusaram-no de haver impellido o seu favorito Renato de Villequier a matar sua mulher, (agosto de 1377) gravida de cinco mezes, ainda que liavia mais de dez que seu marido não tinha relações com ella.

Esta dama tinha por amante o senhor de Barbizi, bello parisiense, que ella não queria sacrificar aos ciúmes d'el-rei.

«Este assassinio, diz Estoile {Journal d'Henri iii, antiga edição) foi jul- gado por todos como cruel, por ser perpetrado n'uma mulher, gravida de dois gémeos, e como deveras estranho por ser praticado no palácio real (em Poitiers) estando alli sua magestade e a corte, onde a libertinagem se pratica publica e notoriamente entre as damas, tendo-a ellas como virtude.

«A facilidade, porem, do perdão que Villequier obteve sem demora, levou a crer, que em tudo isto houvera uma ordem secreta d'el-rei, talvez para pu- nir a dama de algum desaire similhante, ou de um insulto qualquer.»

Esta ultima phraze pertence a Pedro Dubry, que melhor informado do que Estoile, a introduziu na sua copia em vez da que encontrara no original.

N'um epitaphio satyrico, que ao tempo corria a respeito d'essa tragedia, a mulher impudica era tão atacada como o marido infame :

«>'em a ira, nem a honra, nem os ciúmes o fizeram derramar o sangue de sua esposa. A honra! Tem-n'a elle porventura? Como poderia também ter ciúmes de uma mulher, que sabia muito bem ter pertencido a lodo o mundo, e a quem elle próprio havia prevertido com mil baixezas, torpezas e infâmias? Oh! vós que ides passando, esta mulher teve o justo castigo de uma adultera, e o infame carrasco serei sempre amaldiçoado, visto que foi o seu alcoviteiro.»

A coUecção de Sauval publicada em 17.39, sob o titulo de Memorias his- tóricas relalicas aos amores dos reis de França, contém muitas anecdotas que provam o seguinte facto curioso: Os mignons foram sempre mais inclinados ás mulheres do que el-rei. «Um dia Henrique iii teve a velleidade de conquis- tar a esposa de um conselheiro do parlamento, tão bella como virtuosa, e ha- vendo-o conseguido emfim no seu próprio gabinete, abandonou-a em seguida aos seus mignons. A pobre senhora, desesperada pelo ultrage e pela vergonha, teve um accidente c morreu nos braços d'elles.»

DA PROSTITUIÇiO 515

Dc outra vez, sabendo que um dos seus favoritos estava enamorado de madame de Mirande, senhora de virtude provada, el-rei não julgou impróprio da sua dignidade desempenliar o papei de alcoviteiro, e atlraliiu-a ao Louvre, sob pretexto de lhe conceder certa gra^a, por cila cm tempo sollicilada. Madame de Mirande chegou ao paço á hora em que el-rei estava á meza, e foi introdu^ zida n'um gabinete secreto, onde em seguida Henrique foi interceder pelo seu favorito La Guiché . . .

«A dama era inflexível, c para se subtrahir ao perigo em que a sua am- bição a havia posto, allegou uma indisposição comnium ás pessoas do seu sexo, que a impedia n'aquelle momento de acceder aos desejos d'el-rei. Henrique iii ordenou que dois criados a segurassem. . . e facilmente se adivinha o que suc- cedeu n'aquelle gabinete em que tomaram parte no crime o rei e os seus mi- gnons. Quando aquelles infames Tarquinios deixaram em paz a sua Lucrécia, moslraram-se indilíerentes ás lagrimas do sangue com que ella deplorava a violação de que fora victima, e aos grilos e lamentos que commoveriam as pró- prias feras.»

Outro dia mandou levar a Saint-Cloud as mulheres mais batidas de Pa- ris. Logo que chegaram, mandou que as despissem, e que os suissos da guarda fizessem o mesmo, auctorisando-os então a atacal-as, para o que as mandou espalhar pelos jardins. As ribaldas obedeceram, soltando gritos indecentes. El- rei, acompanhado dos seus favoritos e dos seus mais Íntimos confidentes, di- vertiu-se por muito tempo a vèr o que se costuma praticar sob a pudica pro- tecção das trevas, ou do isolamento.»

Scenas como estas não eram raras na corte, mas em escala infinitamente mais restricta, e nem sempre eram actores exclusivos os suissos e as ribal- das.

Brantòme falia com uma reserva que n'elle não é muito habitual, (Dames galantes, iv discours, De rainour des filies) de uma bella comedia intitulada,

0 Paraizo do Amor, que fora inventada por uma joven dama da corte e por ella própria representada na sala de Bourbon, á porta fechada, não havendo outros espectadores, além dos que tomavam parte na representação. Os perso- nagens eram seis, três homens e três mulheres, a saber: um príncipe e a sua amante, um senhor e uma grande dama, uin fidalgo e a auctora da peça.

Era joven, mas soube desempenhar o seu papel melhor do que as casa- das, porque sabia mais do que de ordinário as mulheres costumam saber n'a- quella edade.

As damas da corte haviam progredido muito desde o tempo de Francisco

1 n'aquella eschola de prostituição, que não suspendia nunca as suas licções escandalosas. As suas loucuras e excessos, por muito tempo occultos á sombra do throno, revelaram-se de súbito á indignação publica, quando a Reforma e a Liga fizeram cahir successi vãmente todos os véus que envolviam a vida par- ticular dos reis e dos grandes. O olhar indiscreto do povo penetrou em abys- mos de depravação até então desconhecidos, e quando a terrível verdade se apresentou por toda a parte, todos se esforçaram por arrancar-lhe os muitos farrapos que a encobriam.

•3IG HISTORIA

Assim, pois, n'um libello satyrico, que começou a circular em Paris em 1587, sol) o titulo de Bililiolhera de. Madame de Moiilpensier, e que foi apro- veitado então |)or Estoile para os seus Registres- J o nvnauT, muitas das obras de pliantazia, (jue faziam parte desta bihliotheca, àlludeui á conducta das damas da corte.

Eis os titulos d'essas obras, cuja explicação nos abstemos de fazer, visto que elles S() por si são demasiado eloquentes:

Maneira de medir rapidamente os t/randes prados ((^irandprez, era o nome do seu estribeiro), por Madame de Nevers.

Seijredos da desflorarão dos pagens, por Madame de Sourdis.

\ avios pratos de amor, obra tradazida do Itespanhol, pela Marecliala de Retz, e dedicada ao senhor de Uunes, seu escudeiro.

Modo '/'' trabalhar iio roxo com o primeiro que chega, por Madame de .Montpensier. (Esta dama era coxa.)

I ribaíderia da corte, collegida pelo senhor de JÀncourt, a instancias de (laboclic.

Ó gancho das donzellas da córie. pela dama de honor de Saint-Martin.

Tractado das truanices e do pro.renetismo da corte, pelo conde Maulevrier.

Historia da donzelía .loanna, por Mademoiselle de Bourdeille.

A rhelorica das pro.veneles, por Madame de la Chastre.

Ámanach das entrevistas amorosas, por Madame de Pragny. . As damas da rainha, com lettra e musica, por Madame de Sainl-Marlin.

Tomámos estes titulos da edição de Leuglet-Dufresnoy, da de Cham- pollion, sem nos preoccuparmos com as variantes que uma e outra oíTerecem.

lina peça do mesmo género e da mesma épocha, o Manifesto das da- mas da corte, pode servir de commentario a alguns d'ai|uelles titulos de livi'0S inaginarios. Este manifesto é a confissão de uma das maiores peccadoras, a começar pela rainha-mãe, que se desculpa de haver educado seus lilhos nos maiores vicios, blasphemias e perlidias, e suas filhas n'uma liberdade im- pudica, permittindo c auctorisando um bordel na corte.

O manifesto, publicado em Charcheau, na viagem de Nerac, e lirmado por Pericart com licença do senhor arcebispo de Lyon, termina d'este modo:

«As damas Vitry, Bordeille, Sourdis, Birague, Surgère e outras da corte (ia rainha, dizem todas a uma voz: Ai, ai, ai, meu Deus! (jue será de nós, se não estendes sobre nossas culpas o veu da lua misericórdia! Clamamos em alta voz e rogamos-te que te dignes perdoar tantos peccados da carne, commel- lidos com reis, príncipes, cardeaes, gentis- homens, bispos, abbades, priores, poetas, e outra muila gente de Iodas as classes e condições, taes como, pd- lafreneiros, pagens, lacaios e até leprosos, immundos e asquerosos. E digamos com o senhor Villcquier: Deus meu, misericoiilia, que bem precisamos d'ella, e se não pudermos encontrar maridos, entraremos nas Arrependidas!»

Quantas aventuras escandalosas não constituiriam por esse tempo a chro- nica de uma crtrie, em que os velhos não eram mais regulares e prudentes que os jovens! Fosse qual fosse, de resto, a relaxação dos costumes não se perdoava aos desgraçados, que se deixavam surprchendcr in-llagrante. O próprio Hen-

DA PROSTITUIÇÃO 3 I 7

rique lu inoslrava-se rij^ido c honesto, digamol-o assim, quando por alguma imprudência se revelava o invslerio dos seus amores illicilos. Uma vezquiz mandar decapitar o senhor de Loue, que tinha impuras rela(,'óes com a Malherbc, dama de honor da rainha-mãc. C.ontentou-se, poi-ém, de o ohrigar a casar-se de bom ou mau grado com a sua cúmplice, mandando-os passar a lua de mel á prisão de Vincennes, «por causa, diz Estoile (22 de março de 1578) do ultrage feito á casa da rainha, sua esposa, tendo tido o atrevimento de deixar gravida uma das suas damas.»

Henrique iv, que tantos niotivos tinha para ser a este respeito indulgente, esteve a ponto de castigar, com o maior rigor, o barão de Thermes, irmão do duque de Bellegarde, que eslava exactamente no mesmo caso do senhor de Loue, «tendo sido surprehcndido uma noite, diz Estoile (fevereiro de 1604), na ca- mará das damas de honor da rainha, deitado com a Sagonne, a quem amava havia muito tempo, tendo de fugir em camisa. A dama estava gravida.»

Tallemant conta a mesma aventura com as seguintes variantes:

«Causou grande escândalo por esse tempo o caso de uma dama da rainha- mãe, chamada Sagonne. O galan foi passar a noite ao Louvre com ella. A go- vcrtiadora deu o signal de alarme, e o pobre teve de saltar pela janella, aban- donando o casaco ás puas das grades, para melhor descer. Os guardas das por- tas deixaram-n'o fugir. Era muito estimado, e de mais a mais, crimes de amor facilmente se perdoam.»

Maria de Medíeis, apesar de italiana, ticou tão olfendida com este escân- dalo, que pediu a cabeça do barão de Thermes. Henrique iv desterrou-o apenas por alguns mezcs, sem o obrigar a casar com a Sagonne, a qual foi ignominio- samente expulsa com madame de Drou, mostrando-se a rainha inllexivel, «como faz sempre, diz Est(jile, quem tem honestidade e virtude.»

Henrique iv não tinha o direito de ser demasiado severo em similhantes assumptos. Por isso, fingindo associar-se á causa da rainha, e participar da sua indignação, não usou de grande rigor para com os pobres amantes que se dei- xaram surprehender. Julga-se até que, lendo este caso chamado a sua altcn- ção para a tal Sagonne, mostrara desejos de a conhecer, e aproveitou para isso a ausência do barão de Thermes.

Segundo Leduchal, a Sagonne era aquella Bourdaisière, que figura entre as favoritas de Henrique iv. Esle princi|)e via com prazer que os seus corte- zãos lhe imitavam os exemplos, mas exigia que as cousas se fizessem scíu es- cândalo, e á imitação de Francisco i mostrava-se sempre, ao menos nas pala- vras, o fidalgo mais sollicito da honra das damas da sua corte.

«Henrique iv, diz Bassompierre {Nouveaux Mem., p. 171) tinha o fraco das mulheres, e apesar de não gostar de as arrebatar aos pacs ou aos maridos, dava comludo muitos maus exemplos e escândalos, tornando públicos certos vieios que a decência manda occultar.»

Vimos no capitulo anterior como el-rei sacrificava os pães e os maridos aos seus caprichos. Os costumes da corte não podiam ser diflerentes dos seus. Deve agradecer-se-lhe todavia o ter diminuído consideravelmente na sua corte a prostituição italiana, que Henrique iii deixara como uma lepra terrível na mo-

518 HiSTORIA

cidade franceza. Quando os Hermaphrodiías foram publicados, Henrique appro- vou essa terrível salyra, e o mesmo fez ao libello de Tliomaz Artus, que, se- gundo Estoile, «descobria os costumes da corte e fazia vêr claramente que a França era n"essa époclia um albergue de vicios e impudencias, emquanto que n'outros tempos fora uni honesto seminário de virtudes.»

E' preciso notarmos, todavia, que a bella galanteria começa no reinado de Henrique iv, e que n'este reinado, se o fundo dos costumes da corte era geralmente detestável, a fcjrma d'essa corrupção, se assim nos podemos expri- mir, era quasi sempre honesta e elegante.

Os prazeres sensuaes n'aquella épocha pareciam constituir o principal assumpto. Tomavam, porém, uma apparencia mais refinada e mais decente, rodeavam-se de delicadezas moraes e até mesmo de uma espécie de mysticismo. A Aslrêa, de Honoré d'Urfé, poeta de estylo alambicado, servia de código a todos os amantes.

O luxo excessivo, que havia invadido a corte de Henrique iv, bem que este monarcha possuísse em summo grau o amor da simplicidade, não podia também deixar de ser prejudicial aos bons costumes. As favoritas do rei, ape- sar do seu real amante, davam leis á moda, que vinha a ser então um funesto auxiliar da libertinagem. Quando se sabe que Gabriella d'Estrées deu ura dia a somma de 19:000 escudos por um lenço bordado, comprehende-se perfeita- mente quantos esforços as suas rivaes não envidariam para possuírem lenços iguaes. Daqui uma multidão de compromissos secretos, que deshonravam as pobres mulheres, a quem a garridice e a vaidade impelliam á perdição e ao abysmo.

Sauval refere, nos Amours des i-ois de Prance, uma singular anecdota, mostrando o vergonhoso trafico a que o amor do luxo levava as principaes da- mas da corte.

Vm preboste do paço, cujo nome não menciona, perseguia ha muito tempo certa princeza.

O galan obtivera apenas da sua amada recusas e desdéns. Um dia, po- rém, chegaram a entender-se, e decidiu-se que uma famosa tapeçaria que o pre- boste possuia seria o preço da noite que a princeza lhe outorgava.

O preboste estava de fé, e no dia seguinte, recusou-se a dar á dama a tapeçaria promettida, «porque a noile passou-se de modo, por culpa d'elle, que sahiu do leito como havia entrado.»

Isto deu logar a uma espécie de litigio entre as duas partes, e para o re- solver, nomeou-se como arbitro a mulher de um secretario de estado, a qual decidiu a pendência, resolvendo que ambas as partes haviam de carregar a ta- peçaria aos hombros de um moço de esquina, e que a dama concedesse outra noite ao queixoso galan.

Não temos n'este extranho caso uma das mais repugnantes phases da prostituição, n'uni tempo em que os bordeis estavam abolidos por uma ordena- ção real ?

Henrique iii irritou- se em extremo contra Buscelay, por este fidalgo ter ousado dizer-lhe, a propósito da epidemia de 158i, que a corte era uma peste

DA PROSTITUIÇÃO 519

mais funesta, ainda e á qual desgraçadamente a outra não podia atacar. (Journal d'Henri iii, 19 de outubro de loSí.)

Henrique iv, em igualdade de circumstancias, teria rido, e o mesmo faria o jovial monarclia, se podesse ter lido nos Registres-Journaiix, de Pedro d'Es- toile (outubro de 1609), por oceasião do escândalo causado pelos amores do príncipe de Joinville com a condessa de Moret, estas palavras :

«Os que na corte se tinbam por mais sensatos, e penetravam melhor os sagrados mysterios dos deuses (ainda que muitas vezes parecessem tão humil- des como os outros) diziam haver n'este caso um plano occulto do rei, que ti- nha mandado fazer á condessa o que ella linha feito, e que a respeito d'estas cousas havia pouco escrúpulo na corte.»

Lipsio o dizia nas suas epistolas :

Mores jam vocentur, nec in veniam modo veniant, sed in Imidem.

CAPITULO XL

SUMMARIO

Corrupi'ão do povo nos fins ilo serulo xvi. Perniciosa influencia da Liga nos costumes. Gravuras ob- scenas. — Prostituição da linguagem - As procissões dos nús.— A prostituição da linguagem do tempo. O padre Pigenat. A Sainte-lieuve. Retraio de um partidário da Liga. Violações e excessos dos homens de guena. Violações de crianças em Paris. liestialidades. Supplicio de Guillet-Goulard. Supplicio de homens e animaes. Crime de sodomia. O medico Sylva. Progressos do vicio. Haplos e seducções.— Penalidades. Castigo do incesto. O presidente de Jambeville. Imliflerença dos trilumaes a respeito de certas excitações á libertina- gem. — Os amores dos deuses. O tractado de Sanchez, De matrimonio. —A Swnma peccaloruni , do Padre Be- nedicti, sequestrada. Le Moyeii de Parvenir, de Beroaldo de Vervíile. As arrependidas.— Desordens e exces- sos das communidades de mulheres, durante a Liga. Amores freiraticos.

M NENHUMA époclia cl França se havia deshonrado com maiores torpezas e sensualidades, nem o povo havia jamais descido a tão immundo lodaçal da libertinagem. O exemplo fatal da corrup(,-ão dos costumes havia prevertido o senso moral da nação inteira. A Liga acabou de destruir os restos de pudor que ainda existiam nas classes médias e na plebe, apesar dos excessos de Henrique de Valois e dos seus favoritos as haverem n'outro tempo levantado em massa contra o throno envilecido.

Nos Registres-JournauT de Pedro de TEstoile, esses fieis memoriaes da chronica escandalosa de Paris, durante mais de trinta e cinco annos, encontra-se a expressão franca e simples dos excessos da sociedade franceza no fim do sé- culo XVI.

Pedro de TEstoile, que vivera também no tempo de Carlos ix, não hesita em denunciar á posteridade a decadência dos costumes no reinado de Henrique IV, apesar de amar e respeitar este monarcha, que elle sempre considerou um grande rei. Em muitos logares da sua coUecção, este homem honrado clama com pesar e indignação contra os vicios de sensualidade e impureza, «que es- tavam então mais espalhados do que em tempo algum.» (Journal dlhnri iv, fevereiro de 1907.)

«N'um século tão prevertido como o nosso, diz elle n'outro logar (agosto de 1610) pouco trabalho ser homem de bem, ainda mesmo que se lenha nm pouco de sensual e bastante de atheu ou mesmo de parricida. Ainda assim, ninguém deixa de ser pessoa honrada.»

Não pôde calcular-sc bem quanto a inlluencia da Liga foi perniciosa aos

HuToaiA PaosTiTinçÃo. tomo n— Folha 66.

522 HISTORIA

costumes. O povo que havia censurado a Henrique iii e á sua corte tantas abominações, inventadas ou exaggeradas pelo espirito de partido, tanto dos da Liga como dos huguenottes, não teve escrúpulo de incorrer nos mesmos ex- cessos e de os manifestar escandalosamente á luz do dia. Durante o tempo em que a capital esteve em poder dos Dezeseis, os olhos e os ouvidos dos seus habitantes foram a cada passo escandalisados com canções, libellos e gravuras obscenas, que tinham sempre por pretexto a politica da Santa União.

«As galerias do paço, diz Aubigné, na sua Historia Universal (t. ui, lib. II, c. 20,) estavam cobertas de retratos do rei, acompanhados de diabos ves- tidos com calções nas posições do Aretino, e de cousas peiores ainda,» porque desde o assassínio dos Guises, Henrique iii, diz o commentador da famosa Sa- tyre Menippée (ediç. de Ratisbonne, 1726, t. ii, p. 346) passava na opinião do povo não por um monstro dotado de toda a classe de vicios e de aber- rações sensuaes, mas também por um abominável feiticeiro.

As memorias d'Estoile estão cheias d'estas torpezas da Liga, que lucta- vam á porfia em immoralidade com as mais atrozes calumnias dos huguenottes. A língua havia-se aviltado, arrastando-se pelo lodo das ruas suspeitas; os pre- gadores nem respeitavam o púlpito nem a santidade dos templos, misturando as suas blasphemias com palavras obscenas e imagens repugnantes. Não havia sermão em que o Bearnez não fosse apodado de filho da p. . . e alcagote.

N'uma recepção solemne em que os personagens mais importantes da Liga foram em corporação cumprimentar o cardeal de Perevé, um delles, o conselheiro Sermoise, disse que talvez o rei de Navarra abjurasse da heresia para voltar ao seio do catholicismo. O cardeal interrompeu-o, dizendo-lhe:

Não sei se o illustre conselheiro c casado ou viuvo, mas se é ou foi casado, e se sua mulher se tivesse prostituído n'um bordel, admittil-a-hia por ventura quando ella quizcsse voltar aos seus braços ? Pois, sr. conselheiro, a heresia é uma p. . .

n'outro logar tractamos do escândalo que produziram as procissões dos disciplinantes, ás quaes o próprio rei presidia, acompanhado de toda a cor- te. O povo tomara gosto por ellas, e quando el-rei se retirou em consequência das Barricadas, deixou de haver escrúpulos n'este género de devoções, que to- cava muito de perto a mais vergonhosa sensualidade.

«Em 30 de janeiro de 1589, Ic-se no «Resumo das cousas acontecidas em Paris, desde 23 de dezembro de lo88 até ao ultimo de abril de 1589», obra citada por Dulaure, fizcram-se na cidade varias procissões a que assistiram muitas crianças, homens e mulheres, todos em camisa, de tal modo, que nunca se vira, mercê de Deus, cousa tão bella, Freguezias houve, onde se contaram umas quinhentas ou seiscentas pessoas nuas.»

No dia 3 de fevereiro, novas e bellas procissões, em que se viam mui- tos nús, levando bellas cruzes.»

«A li de fevereiro, outras ainda, principalmente na freguezia de Saint- Nicolas-des-Champs, a que assistiram mais de mil pessoas nuas, contando-se n'este numero os padres de Saint-Nicolas e o seu parocho, Francisco Pigenat, o qual apenas levava uma espécie de capuz.»

DA PROSTITUIÇÃO 523

Estoile, que foi testemunha occular d'estas famosas procissões, refere par- ticularidades tão abomináveis, que a pagina 452 do seu manuscripto foi arran- cada pelos jesuítas de Saint-Aclunil, em cujas mãos estiveram por muito tem- po depositados os papeis d'Estoile.

Não obstante, os jesuítas deixaram na sua integra uma passagem multo importante, que nos edificará a respeito das procissões da Liga.

«Tão enthusiasta era por esse tempo o povo, diz elle, a respeito d'estas procissões, que muita gente levantava-se de noite da cama, para pedir aos sa- cerdotes que mandassem fazer procissões, como fizeram com o parochode Santo Eustáquio. Muitos dos freguezes d'este sacerdote dirigiram-se alta noite a sua casa, pedindo-lhe que os levasse em procissão. Como elle lhes fizesse algumas observações, apodaram-no de hereje, de maneira que o parocho viu-se obrigado a fazer-lhes a vontade. Em verdade, este bom parocho e mais dois ou três da ci- dade condemnavam estas procissões nocturnas. Para fallarmos com franqueza, aquillo não era mais do que um carnaval, em que homens e mulheres, noves e velhos, completamente nús, faziam scenas muito diversas d'aquellas para que devotamente se reuniam. Assim, perto da porta de Montmartre, a filha de um chapelleiro teve de dar á luz um fructo, que não era de benção, ao cabo de nove mezes; e um cura de Paris, que dissera n'um sermão que em taes pro- cissões os pés brancos e delicados das mulheres eram muito agradáveis aos olhos de Deus, preparou também o seu fructo, que chegou á maturação no mesmo prazo de tempo.»

Não seria a peior das prostituições esta que se cobria com o manto das cousas sagradas e se insinuava perfidamente nas practicas da devoção?

Sauval desfigura, nas suas Memorias históricas e secretas dos amores dos reis de França, um trecho do Journal d'Henri iii, e por isso attribue a este rei as procissões da Liga e os escândalos que ellas occasionavam. Estoile dis- sera eflectivamente que o cavalheiro d'Aumale, que fazia scenas carnavalescas n'estas procissões, «costumava assistir a ellas para se divertir, e tanto na rua como nas egrejas, atirava por meio de um canudo bolos aromáticos ás bellas penitentes, excitando-as em seguida com as excellentcs collaçôes que lhes pre- parava, na ponte de Change, na de Notre-Dame ou na rua de Saint-.íacques, onde a santa Viuva não era esquecida. Esta mesma santa Viicva, coberta de alto a baixo com uma riquíssima tela transparente, aberta no seio, andou um dia pelo braço d'elle na egreja de S. João a galantear e a tentar com grande escândalo as pessoas devotas, que iam de boa a estas procissões.

Mademoiselle de Sainte-Beuve, denominada por Estoile a santa Viuva, era filha de André de Hacqueville, primeiro presidente do parlamento e prima do cavalheiro d'Aumale, que por fim a tomou por concubina.

Esta joven, tão notável pela sua formosura, como pela leviandade da sua conducta, representava um papel bem pouco decente n'estas procissões noctur- nas, que serviam de preludio a verdadeiras orgias. Era ella quem dizia a res- peito das mulheres honradas do partido realista que tinha um singular prazer em vêr metler essas miseráveis na Rastilha, para irem remendar os calções de seus maridos.

o24 HiSTORIA

Estoilo parece haver copiado, quasi palavra por palavra, de um libeilo da époclia, intitulado Conselho salutar de um bom francez aos parisienses, tudo o que diz da Sainte-Beuve no seu Journal (FFIenri in.

Da fíraiide analogia textual das duas passagens referidas, poderia indu- zir-se também que o Conselho salutar fora devido à penna d'Estoile.

Seja como fòr, a aventura da Sainte-Beuve na egreja de S. João, «onde nem o respeito do lugar nem das pessoas impediu certos toques impudicos,» causou tanto escândalo, e deu tanto que fallar, que as procissões acabaram por essa épocha.

Tornaram a organisar-se a 24 de janeiro, mas o numero dos nús fora singularmente reduzido, vendo-se apenas os meninos do collegio dos Jesuítas «os quaes iam todos nús» em numero de trezentos. (V. o Journal des Occ. de l'aris, citado por Dulaure.)

Os partidários da Liga, que tanto haviam invectivado os costumes disso- lutos da còríe, eram agora os primeiros a dar o exemplo da mais deplorável immoralidade.

«Hoje em dia, escreve o honrado Pedro de FEstoile em abril de 1589, roubar o próximo, assassinar os irmãos, roubar os altares, profanar as egrejas, violar as mulheres, atropellar todo o mundo, são cousas vulgares n'um parti- dário da I-iga, e os signaes indispensáveis de um zeloso catholico.»

O auctor do Conselho salutar repete, quasi nos mesmos termos, esta im- pi^ecação de Fedro de TEstoilc contra os heroes da Liga.

«As violências contra Ioda a classe de mulheres, nas próprias egrejas, os sacrilégios dos altares, são para elles brincadeiras, uma delicada galanteria, um habito naturalissimo em todo o bom partidário da Liga.»

A maior parte dos pormenores relativos aos excessos incríveis commet- lidos pelos da Liga encontram-se alternativamente no Conselho salutar, e no Journal d'llenrl iii, como se estas duas obras fossem eseriptas pelo mesmo auctor.

Quando o duque de Mayenne, á frente do exercito da Liga, invadiu os arrabaldes de Tours, e ameaçou esta cidade (8 de maio de 1589) «umas qua- renta ou cincoentas mulheres, que se haviam escondido n'um subterrâneo, fo- ram todas violentadas. O mesmo siiccedeu a muitas outras dos arrabaldes e alé ás que tinham ido refugiar-.se na egreja, julgando-se alli em .segurança. Estas ullimas soílVeram aquella infâmia em presença de seus maridos e de seus paeç, que aquelles grandes preversos obrigavam a assistir a sirailhante espectá- culo, para maior uUrage. Eu próprio, accrescenta o auctor do Conselho salu- tar, vi ainda no dia seguinte os leitos que cobriam o pavimento da egreja, e para onde o iiarociío me disse ter visto arrastar as mulheres pelos cabellos.»

Quando o cavalheiro (rAumalc, primo do duque de Mayenne, fazia as suas correiias, saqueando as povoações dos arredores de Paris, «entrou n'algu- mas casas em que encontrou senhoras honestas, (|ue violou na ausência de seus maridos, entregando-as em seguida á soldadesca.»

De resto, n'aquelles desgraçados tempos, a gente de guerra, fosse qual fos.se o seu partido, liuguenotles ou catl)olicos, do partido da Liga ou do d'el-rei,

DA PROSTITUIÇÃO 525

consideravam como a melhor parte da presa as mulheres que encontravam n'uma cidade saqueada, e era impossivel impedir a soldadesca de exercer hor- ríveis violências nas desgraçadas que lhe cahiam nas mãos.

Succedia frequentemente cahir n'um curto periodo uma povoaçtio qual- quer em poder de amhos os partidos belligerantes, e cada occupação da praça trazia novos ullrages ao pudor, de maneira que os habitantes não faziam senão mudar de verdugos.

O exercito real, que em 1389 occupava os arredores de Paris para blo- quear a capital, commetteu talvez as mesmas atrocidades que o exercito da Liga. No Discurso cerdadeiro da extranha e súbita morte de Henrique de Va- lois, (Troyes, J. Moreau, 1589, in-8.°, o auctor, que se intitula um religioso da ordem dos Jacobinos, accusa o rei de derramar o vomito da sua raiva em todas as cidades, taes como Pontoise, Poissy, Etampes, Saint-Cloud, etc. etc, invadidas pelos seus soldados.

«Creanças de tenra edade, religiosas e mulheres do povo, todas foram violentadas, diz elle.»

Cinco annos mais (arde, quando o duque de Mayenne quiz ter o seu exer- cito junto dos muros de Paris, para estar preparado para o sitio e para dar ba- talha ao inimigo (dezembro de lo93), «os arrabaldes da cidade, diz Estoile, en- cheram-se de soldados, que fizeram mil abominações, violando crianças e ve- lhas, do que se fizeram numerosos inquéritos, mas sem castigo para os crimi- nosos.»

Os tribunaes não tinham nem acção nem força contra a gente de guerra, que devia a sua impunidade á cumplicidade dos chefes, e que, de resto, teria Iractado os seus juizes com tão pouco respeito como as victimas dos seus ex- cessos. Quando, porém, a lei marcial não vigorava exclusivamente e a aucto- ridade civil voltava a funccionar com liberdade, os actos de violência e de es- cândalo que se commettiam entre o povo e chegavam ao conhecimento dos ma- gistrados, eram prompta e severamente punidos.

Não pôde negar-se que o exemplo dos abomináveis excessos da soldadesca exercia a mais corruptora influencia nas naturezas preversas, que se julgavam auctorisadas em plena paz, do mesmo modo que em tempo de guerra, a abando- nar-se ao impulso das suas paixões brutaes. Assim, a violação era um dos cri- mes mais frequentes n'aquella épocha e tomava ás vezes, segundo certas cir- cumstancias, um caracter particular de ferocidade.

Nunca este crime a tal ponto manchou os costumes, como na épocha em que, para os depurar, se aboliu a prostituição legal. Foi preciso que o parla- mento de Paris redobrasse de vigilância e de rigor, para fazer diminuir o nu- mero de aftentados contra o pudor das mulheres e sobretudo das crianças.

«Quarla-feira, 23 de dezembro de 1603, ié-se nos Regislres-Journaux, de P. de TEstoile, foi enforcada na Greve a criada de um tal Depras, por- teiro da quinta sala da justiça, por ter vendido a um certo libertino uma encan- tadora joven de nove ou dez annos, que este miserável violou preversamenie, com grande magua e dòr do dito Depras, seu pae, e de toda a sua familia.»

Não consta, porém, que o auctor de tão repugnante stupro fosse desço-

526 HISTORIA

berto e castigado. A justiça, cm casos tacs, não costumava ter indulgência nem consideração para com pessoa alguma, pois que em 1607 um labellião de Pa- ris, chamado N. de Nesmes, «tendo violado uma menina de cinco ou seis an- nos, filha do boticário Pufresnoy,» teve que fugir para Flandres, onde se jul- gava ao abrigo de qualquer perseguição criminal. El-rei, porém, que tanto se interessara no castigo de tamanha atrocidade, reclamou e obteve a extradicção do culpado.

O tabellião foi submettido á tortura ordinária e extraordinária, mas, ape- sar d'isto, não quiz confessar o crime de que era arguido, e como não hou- vesse mais do que uma testemunha de accusação, apenas o poderam condem- nar a desterro.

Durante os horríveis soffrimenlos da tortura, o tabellião protestava sem cessar a sua innocencia.

Calla-te, infame! disse-lhe encolerisado o conselheiro Faideau, que o estava interrogando. Assim Deus me livrasse a mim de todo o peccado, como estou certo de que és culpado d'esle crime. O que te vale é a arte que tens de saber occultar a verdade, mesmo á custa do soffrimentoi. . .

Eram por esse tempo muito vulgares attenlados d'esta espécie, na cidade de Paris, mas nem todos se conheciam, porque frequentes vezes os pães das victimas con.sentiam em desistir da sua queixa perante os tribunaes, mediante uma sonima convencionada, tornando-se d'este modo cúmplices do stupro com- mettido na pessoa de seus pioprios tilhos.

Pedro de TEstoile diz-nos que em agosto de 1607 «fora preso dentro do seu mosteiro o prror dos Fralri-uinorantes , por ter stuprado uma menina de cinco annos e meio de idade, filha de um tintureiro do arrabalde de Sainl- Germain-des-Prés». Não nos diz, porém, o erudito chronista se este miserável frade recebeu o premio condigno dos seus feitos.

Quando a parle queixosa cedia a preço de dinheiro, e se declarava sa- tisfeita, o tribunal costumava sobre-estar no processo, para evitar o escândalo.

Ontro crime, mais abominável ainda, e para o qual não havia perdão nem misericórdia, quando a voz publica o denunciava aos tribunaes, era o de bestia- lidade. Este odiosíssimo crime, cuja absolvição se fixava em 90 libras tornezas, 1 2 escudos e 6 carlinos, no Licro das Taxas da cúria Romana, produzia sempre em França a pena de morte. E, comtudo, esta abominação, que devia ter desap- parecido com os tempos de barbárie, mu Itiplicava-se extraordinariamente ainda nos fins do século xvi.

A jurisprudência era a mesma em todos es tribunaes de França, a res- peito d'esta monstruosa sensualidade: homem ou mulher eram queimados com o animal, seu cúmplice.

Cláudio Lebrun de la Rocbette, sábio jurisconsulto, na sua obra intitu- lado Les 1'rocés civil et criminal (Ruan, 1647, in-4.°) explica nos termos se- guintes os motivos da sentença c o supplieio do animal:

«Os animaes, dizellc, não são punidos pela sua culpa, por isso que não a téem, mas sim por haverem sido cúmplices de uma execravel aberração hu- mana, pela qual se lira a vida ao ente racional. Como depois de tão revol-

DA PROSTITUIÇÃO 527

tante maldade, o animal recordaria o actn impuro que c preciso eliminar e ris- car para sempre, por isso a sabedoria dos Iribunaes ordenou que até mesmo os processos de tão impuros delinquentes com elles sejam queimados, afim de que não reste memoria em tempo algum de tão nefandas abominações.»

Nem estas prudentes precauções, nem o espantoso apparato do suppHcio, nem o horror que rodeava a condemnavel e brutal cohabitação do homem ou da mulher com a besta», nem o inilexivel rigor dos juizes indignados, nada, fi- nalmente, podia extirpar crime tão execravel, que continuava a praticar-se tanto no isolamento dos campos, como no interior das cidades.

Nas Contas do Preboslado de Paris, insertas em continuação das Anti- quilés, de Sauval (t. iii p. 387) cncontram-se curiosos pormenores a respeito da execução de um chamado Gil Soulart, que foi queimado em Corbeil junta- mente com uma porca em 1645.

Dulaure na sua Histoire de Paris (t. iv, p. 06.3), aíTirma que este Sou- lart era um sacerdote, mas tal asserção não é de modo algum justificada pelo extracto a que Dulaure se refere. Diz-se alli somente que Soulart fora execu- tado pelos seus feitos, e que as despezas da execução attingiram a quantia de 9 libras, 16 soldos e 4 dinheiros, parisis, justificada do seguinte modo:

LIBRAS SOLDOS DINHEIROS

Pelo processo do dito Soulard, que foi levado á presença do Con-

sellio O 22 O

Por duas pintes de vinho (quasi um alraude), levadas ao patí- bulo da cidade de Paris, para os que arranjaram as cordas para atar a porca O

Pela corda para o referido animal, que era de 14 pés de com- primento O

Por duas viagens a Corbeil, feitas por Henrique Cousin, execu- tor da justiça . 6

Por mais irespintes de vinho, fornecidas á justiça com um pão

para o réu e para o executor O

Pela comida da porca e sua guarda por espaço de 11 dias, a 8

dinheiros, parisis, cada um O

Por 500 molhos de lenha, comprados a Robinet e a Henriet, chamados os irmãos Fouquières, na ponte de Morsant, esua conducçâo á justiça de Corbeil . ........ O 40

Total 9 ir.

2

0

2

0

0

12

2

1

7

4

Dulaure cita ainda outros dois supplicios por crime de bestialidade, ex- trahidos dos Registros 84 e 105 da Tournelle criminelle :

Guyot Vuide foi enforcado e queimado, a 26 de março de 1546, «por ha- ver cohabitado com uma vacca, a qual foi queimada antes da execução do cri- minoso.»

João de la Souille foi eguaimente queimado vivo, a 5. de janeiro de 1556, juntamente com uma burra, que também foi morta, por compaixão, antes de ser arremessada à fogueira.

Pedro de TEstoile não cita uma única execução deste género no seu Jonr~

528

HISTORIA

nal íFUenri iii, mas diz que houve muitas no reinado de Henrique iv. Deve conciuir-se d'aqui que a policia dos costumes se fazia então com maior cui- dado, e que os tribunaes, compostos de homens illustrados e respeitáveis, ten- tavam corrigir a immoralidade e corrupção dos tempos.

«Touco depois, escrevia Estoile em agosto de 1607, occorreu um caso prodigioso, que excedeu em abominação todos os precedentes. Um homem teve dois filhos de uma égua, e por isso foi condemnado a ser queimado vivo com o animal, e tendo appellado para Paris, alli foi a sentença confirmada por de- creto do parlamento, e devolvida logo para se realisar a execução, e a res- peito dos filhos, ordenou-se que a Sorbonna se reunisse para decidir o que havia a fazer.»

Estoile esqueceu-se infelizmente de referir a sentença da Sorbonna, e não sabemos se os filhos do homem e da égua foram queimados como os au- ctores dos seus dias. Devemos, porém, nutrir algumas duvidas, não da boa do chronista, mas sim da realidade do caso extraordinário, por eile registrado nas suas memorias.

Em novembro do mesmo anno escreve o seguinte: «.. .Um rapaz, condemnado este mcz na Tournelle a ser enforcado, por ter tido copula carnal com uma égua, que foi morta ao do patibulo.»

Varias outras sentenças, relativas ao mesmo crime, vem citadas nos cri- minalistas francezes, especialmente em Papou, coUecção de decretos notáveis dos supremos iribunaes de França. Lebrun de la Rochetle, ao redigir o seu tractado do Processo criminal no tempo de Henrique iv, registra uma sentença do parlamento de Paris, proferida em IfiOl «contra Claudina de Culan, natural de Rozay, em Bride, accusada c convicta de haver commettido bestialidade com um cão, sendo enforcada e queimada com elle. E no anno passado de 1609, accrescenta, por outra sentença do parlamento de Doubes, foi executado, em Trevols, um camponez convicto de bestialidade com uma vacca.»

A frequência d'estes vergonhosos processos e das suas horríveis execuções prova que a magistratura franceza, espantada da corrupção dos costumes, tra- balhava sem descanço por lhe procurar um remédio opportuno, inspirando um terror salutar aos libertinos e a todos os inimigos da moral publica. Assim, a sodomia e outros crimes análogos, bem que se reproduzisem na corte, á som- bra da impunidade, eram castigados com extremo rigor, quando cabiam sob a Jurisdicção da justiça civil ou ecciesiastica. Parece, todavia, que durante o rei- nado de Henrique iii e dos seus favoritos, a pena de morte nunca foi applicada como expiação de um crime, que se abrigava, por assim dizer, á sombra do throno.

Pedro de 1'Estoile refere, com data de 30 de janeiro de lo86, que um medico piemonlez, chamado Sylva, casado em Abberville, eslava preso havia mais de um anno na (^oncicrgerie, «por causa de sodomia, crime de que sua própria mulher o accusou», quando assassinou um dos seus companheiros de prisão, á mesa do carcereiro. Por isso, furioso, encerrou-se n'um calabouço e afo- gou-sc, engulindo novellos feitos com farrapos da própria camisa. Não obstante, o cadáver do desgraçado não deixou de sollrer o castigo que seus crimes inere-

DA PROSTITUIÇÃO 529

ciam, pois foi arrastado á cauda de umcavallo pelas ruas de Paris, e conduzido a um monturo, onde ficou dependurado pelos pés.

Nas Rémontrances tres-luimbles auroi de France et de Polotjne, publi- cadas em 1388, o auctor, que era um bom realista, exclamava com amargura:

«Failarei das sodomias, que vulgarmente se commettem?»

Henrique iv ordenou ao parlamento que procedesse sem piedade na per- seguição de taes torpezas, e foi elle quem poz em vigor a penalidade antiga.

«Terça-feira, 12 de novembro de lo96, diz Estoile, foram queimados em Saint-Germain-en-Loye dois sodomitas, que haviam seduzido dois pagens do príncipe.»

Este odioso vicio, apesar do exemplo dos cortezãos, fez poucos progres- sos no povo, que timbrou em preservar-se do que denominava a mancha ita- liana. Henrique iv, apesar do horror que tinha a estas torpezas, não poude conseguir limpar delias a sua corte.

«A sodomia, que é a maior das abominações, escrevia Estoile em 1608, reina aqui de (ai modo, que é uma ignominia. Deus deu-nos um príncipe que não é egual a Xero, porque é bom, justo, virtuoso e temente a Deus, e que detesta cordealmenle esta abominação. Não se encontra, porém, pessoa alguma na corte, nem cardeal, nem bispo, nem esmoller, nem confessor, nem sacer- dote, nem jesuita, que tenha força para abrir a bocca, apesar de ser esta a sua obrigação, para fallar e representar a sua magestade, temendo incorrer na desgraça de certos grandes, a quem chamam os deuses da côrte.í>

O mal aggravou-se no reinado seguinte, sem encontrar remédios mais •'Ificazes. 4 nação, porém, protegida por um nobre sentimento de dignidade humana, nunca se degradou, entregando-se a esta infame prostituição.

As leis destinadas a garantir os costumes e a castigar todos os delictos de impureza eram muito rigorosas, mas nem sempre se applicavam com equi- dade. Algumas podiam dizer-se atrozes, como se o pensamento do legislador fosse deixar ao juiz o harmonisar a pena com as circumstancias que podiam fa- vorecer ou prejudicar o interessado. Assim, o rapto e a seducção podiam ser castigados de morte, ainda mesmo quando o cuifiado propozesse reparar o seu crime por um casamento que lhe destruísse o eífeito.

Em 1383, o parlamento de Paris condemnou á forca um viajante que havia seduzido a filha do presidente do conselho real, apesar d'csta, que tinha vinte e cinco annos, haver declarado que queria casar com o seu seductor.

Um empregado dos impostos, que Pedro de TEstoile não nomeia, dizend<i apenas qne era de Rennes, na Bretanha, foi condemnado por sentença do par- lamento a casar com uma viuva a quem havia seduzido com promessa de ca- samento.

«Dizia-se na sentença (coisa notável!) que havia de casar immediafa- mente, ou que de contrario seria decapitado ás duas da tarde. O homem pre- feriu casar esta manhã (18 de setembro de 1604) na egreja deS. Bartholomeu, ás I I horas. O presidente Mo!é pronunciou a sentença n'esles termos : «Ha-de casar ou morrer; tal é a vontade do tribunal.»

N'esta ciasse de processos, a justiça mostrava-se sempre accessivel a in-

BiSTORU DA PHosTmncio. Tomo ii— Folha 67.

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fluencias de diversas naturezas. Bastava o prestigio de um grande senhor para pesar na balança de Tlierais, fazel-a subir ou descer, segundo se traclava da satisfacção de uma vingança, ou de outro qualquer interesse. Nas causas rela- tivas á policia dos costumes, a prostituição servia 'com demasiada frequência de móbil á sentença do juiz, que d'este modo, ou comprazia á vontade de qual- quer poderoso personagem, ou obedecia em segredo ás suas próprias pai- xões.

Pedro de TEstoile cita um deplorável exemplo d'estas prevaricações da justiça. Em 1609 viu na Conciergerie uma pobre mulher, que havia mais de doze annos perseguia em vão perante os tribunaes o violador e assassino de sua filha. Tinha esta menina cinco annos apenas, quando foi violada por um ho- mem, a cuja guarda a pobre mãe a confiara, e a pobresinha contagiada de ve- néreo pelo monstro, morreu nas mãos dos barbeiros e cirurgiões.

A desolada mãe não poude conseguir o castigo do infame criminoso. Mais ainda, foicondemnadaainda em cima á pena de açoites como culpada, na ma vi- gilância de sua filha, havendo-se-lhe recusado toda a indemnisação pecuniária pelos prejuízos que lhe causara a perda da pobre criança.

Além d'isfo, o conselheiro Baron, que era o relator d'este processo, não receiou dizer «que a própria mão, com o dedo ou com outro qualquer instru- mento, havia cstropeado e corrompido sua filha, apesar de por este modo não se poder communicar o venéreo, o que liça provado pelas declarações dos ci- rurgiões e das parteiras, em 24 de julho de lo99.»

Pedro de TEstoile, que tivera conhecimento d'estas declarações, conser- vara-as, diz elle, «para memoria da boa justiça do nosso século.»

O mesmo chronista registra nos seus diários outro exemplo mais notável ainda das prevaricações da justiça do seu tempo. E' um precioso documento para juntarmos ao capitulo em que tratamos da prostituição na clemência :

«Na quarta feira, 8 de julho de 1609, foi enforcado na praça da Greve em Paris, um verdadeiro patife chamado Lanonc, alcagote de profissão, casado com uma ribalda, pelo crime de incesto cornmettido com a irmã de sua mu- lher, que era também ribalda, a qual bem que merecesse occupar outra forca, junto da de seu cunhado, foi apenas condemnada a desterro e açoites, que rece- beu ao do cadafalso. Dizia-se que o presidente de Jambcville, impressionado pela grande belleza e juventude d'esta rapariga, que tinha uns quinze ou dezesseis annos, lhe salvara a vida contra a opinião dos juizes, que quasi to- dos pediam a sua morte. E c de notar também, que logo que soffreu a pena a metteram n'uma carroça, que a estava esperando e que expressamente lhe mandaram. A's mulheres d'aquella espécie nunca lhes falta protecção e boas fortunas.»

A carruagem que esperava a ribalda e que a recebeu ao sahir das mãos do carrasco, era, por corto, uma fineza do presidente de .lambeville, a quem a bella prostituta devia a vida. Esto magistrado, cujo rigor o integridade até o próprio Mezeray elogia, distinguira-sc sempre pelas suas torrivois sentenças contra as mulheres de vida.

Foi elle quem faltando dos cscriptos mysticos de Santa Thereza, que ao

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tempo começavam a traduzir-se para francez e a circular por toda a França, di- zia ao presidente Séguier :

«Nós dois temos feito açoitar em Paris cincoenta alcoviteiras, que não o mereciam tanto como essa Madre Thereza, actualmente tão fallada.» {Journal d'Henri iv, 30 de julho de 1008.)

O parlamento de Paris, que não perdoava aos fornecedores da prostitui- ção, e que castigava severamente as excitações á libertinagem, parecia, no em- tanto, fechar os olhos para com os livros e gravuras obscenas, que se vendiam publicamente, até nas próprias galerias do palácio da justiça. Nunca a penna e o lápis haviam sido tão licenciosos, e não obstante não havia perseguição al- guma contra os auctores de tão impudicas exhibiçôes. Todos tinham direito a publicar, sem que pessoa alguma os incommodasse, escriptos ou figuras que ultrajavam o pudor e escarneciam a moral publica, sempre que em laes obsce- nidades não houvesse o menor vestígio de heresia ou alheismo. Dir-se-hia que a honestidade das pessoas honradas não se escandalisava com as indecencias da arte. Assim, pois, viam-se a cada passo nas vitrines dos livreiros as poesias obscenas de Sigognes, de .Marin, de Theophile, etc, que foram depois reunidas em volumes, sob os litulos de Musa brincalhona, Musas aleyres, Gabinete sa- tyrico, etc, etc.

O honesto Pedro de TEstoile não se envergonhou de deixar esta nota nos seus Registres-Journaux :

«Quarla-feira, 19 de agosto de 1608, troquei com o augmento de 60 sol- dos umas miniaturas que tinha, por nove figuras do A retino, feitas por Tempeste, em Roma, obscenas, sórdidas e impudicas em extremo, que se vendem aqui sob o nome de Amores dos Deuses.

«Quatorze d'ellas todos as acham bem feitas, ainda que o bem não possa estar onde está o mal. Troquei-as a D. L. N. com pezar, mas conservo-as como uma amostra da honestidade deste pudico século.»

Estoile colligia também com muita curiosidade todas as composições obs- cenas em prosa ou verso, que se imprimiam livremente e se expunham nas ruas e praças publicas, especialmente na rua Hauphine, ha pouco tempo construída.

A policia não tractava de evitar a circulação d'estas innumeraveis publi- cações obscenas, que faziam as delicias do povo e da nobreza. Longe de o fa- zer, deixava até vaguear pela cidade alguns loucos libertinos, taes como o cha- mado conde de Permission e Mestre Guilherme, que oíTcreciam aos transeun- tes, a troco de alguns soldos, vários livrinhos da sua lavra, cheios de chocar- rices e de gravuras infames. O consummo d'estas obras chulas era considerável, e ninguém se importava com o seu espantoso atrevimento.

Não obstante esta complacência das auctoridades e do publico, encontra- mos nas chronicas de Pedro de TEstoile a noticia de haver sido sequestrado o livro De matrimonio, de Sanchez, que uma ordenação do parlamento ana- thematisara em 1011, «por ser um livro abominável e de leitura e per- niciosa.»

Um dia Estoile estava por acaso na loja do livros de Adriano Perrier, quando o commissario de policia Langlois foi alli prohibir a venda, fosse a quem

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fosse, (l'esse grande volume, que havia sido ultimamente reimpresso e vendido a esmo, até que se descobriu ser uma obra de sodomia.

Estoile apressou-se a comprar o livro prohibido, e confessa que o jesuíta Sanchez «tractava alli da arte da sodomia, mas de um modo tão obsceno e abo- minável, que este papel em que estou a escrever se envergonharia. O jesuíta falia como homem de grande experiência no otficio.»

O livro de Sanchez não teria sido prohibido, apesar da doutrina que con- tinha, se o auctor em vez de jesuíta fosse franciscano, ou capucho. Em todos os livros publicados, porém, pelos jesuítas, descontiava-se sempre de máximas perigosas para o poder e auctorídade dos reis, sendo geral a preoccupagão con- tra a companhia de Jesus, suas doutrinas e escriptos.

Assim, Estoile, que acaba de comprar por 8 libras inirísis o grosso vo- lume de Sanchez encadernado em pergaminho, porque (josto dos jesuítas, diz elle sarcasticamente, justifica a sua compra, dizendo que quer possuir este li- vro, «não porque o assumpto me agrade, mas para provar melhor a boa vida e santa doutrina d'esses novos prophetas, condemnados pelos seus próprios es- criptos, dos quaes tenho uma boa collecção.»

Ao mesmo tempo que a Sorbonna mandava sequestrar em Paris a obra de Sanchez De matrimonio, reimprimia se pela terceira ou quarta vez a Sítmína peccalorum do franciscano bretão .1. Henedicti, que apparecera em Lyon em lo8t, sem excitar de modo algum os escrúpulos da cgreja ou da magistratura. Este tractado mystico, (jue o auctor tivera a imprudência de dedicar á Virgem Maria, continha muito mais obscenidades e infâmias que o tractado De malri- inonio. E' verdade que o Padre Benedicti, na sua impura locubração, se havia mostrado menos indulgente que Sanchez a respeito da sodomia, por isso que enumera entre os peccados mortaes o caso de um marido que se portara para com sua mulher como os rabinos auctorisam. O frade serve-se d'estes termos, que vamos citar na traducção latina, porque o vulgar, que chegou a escanda- lisar o próprio Brantòme, soa mui desagradavelmente aos ouvidos honestos :

Ihwhus niulieribus apud Synagojiam conquesiis se fuisse a viris suis coita sodomico cognilas, responsum est ab illis rabbinis: Virum, esse uxoris dominuni, proinde posse uti ejus utcunque libuerit, non aliter quain is qui pisoei}! emil ; ille enim Iam anterioribus qaam poslerioribm partibtis, adar- bitrium vesci potest.

A maior parte dos (iuias da coíi^s.sào e dos tractados canónicos a respeito dos ca.sos de consciência eram um diluvio de obras obscenas, que circulavam com profusão não em Paris, mas lambem nas províncias. Os prelos de Uouen, dí' i-yon, de l*oitiers e de muitas outras cidades não cessavam de vo- tnilar uma (pianlidade espantosa de libellos sórdidos e licenciosos, que os ven- dedores ambulantes compravam e vendiam até mesmo nas aldeias c nos toga- res mais remotos c obscuros.

Estes monumentos da antiga jovialidade gauleza tinham uma influencia funesta nos costumes, tanto mais que andavam de mão em mão sem distiiic(,'ão de sexo nem de edade. A policia na<la prohibia, emíjuanto não fossem atacados nos seus princípios fundamentaes o tliiono ou a religião.

As arrependidas

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Mm d'esles livros licenciosos, o mais foiuoso ilo todos, o Meio de conse- finir {Mot/en de Parcenir), que sahiu á luz ahi polo anno de lOOÍ) ou 1610, teve duas ou tivs edições simultâneas, e apesar da audácia de muitas das suas proposi(,'õcs hcielicas, cheirando pronunciadameiíle á fogueira, esta collecção de contos livres c dcsliragados não íoi supprimida pela censura ecciesiastica, nem por decreto do rei, tien) por sentença do parlamento. O auctor, Beroaldo de Verville, apesar de ser cónego de Tours, manifestava uma certa sympalhia peia Reforma e pelos reformados, e nem sequer foi incommodado pela sua obra. O nome do cónego não vinlia no fronlespicio do livro, mas toda a gente sabia quem era, e o cabido de que Beroaldo era membro nem sequer precisou de denunciar ao arcebispo de Tours o libertino, que se havia inspir.ido nos es- criptos de Kabclais, t- que até mesmo, segunda corria, se apropriara de uma obra inédita do mestre.

O Moyen de Paroenir, collecção de contos licenciosos, não é menos audaz que o Ganjaniiui e o PanUujruel. E' ainda muito mais obsceno e cynico, e apesar de tudo isto, nunca despertou as cóleras da Sorbonna ou do parlamento. Foi decerto a este impudor e cynismo que o livro e o auctor deveram a sua salvação. Se a épocha fosse menos propensa a satyras e contos licenciosos, tanto um como o outro teriam sido infallivelmente (|ueimados.

Estes contos em que os frades e as freiras eram os personagens obriga- tórios, desempenhando os papeis ordinários que a malicia do vulgo lhes attri- buia desde a origem dos conventos, não eram decerto, força é dizel-o, mais estranhos nem mais escandalosos que os factos succedidos todos os dias á vista dos leitores do Moyen de Parvenir. Assim, Pedro de TEstoile, que se presava de escrever a historia contemporânea, quando não fazia mais que recolher e archivar os rumores da còrtc e da cidade, consignava com data de fevereiío de l()IO, uma aventura, que Beroaldo poderia ter transcripto, sem lhe mudar uma palavra, no seu engraçado Motjen de Panenir:

«Uma dama desta cidade, que pouco antes bavia sido niettida nas Arre- pendidas, disse e confessou passados dias a um amigo meu que foi visital-a, que, desde a segunda noite que para alli entrara, tivera por companheiro um sacerdote, que dormia com ella e com outra arrependida, e não cessavam de se dar alli a estes prazeres, uma vez que fosse com sacerdotes e gente de egreja, pelo que as denominavam consagradas. O mesmo amigo contou-me que um ho- mem distincto d'esta cidade tentara muitas vezes leval-o a esta communidade de mulheres, assegurando-lhe que bem depressa lhe proporcionaria o meio de gosar á sua vontade as que elle quizesse, em Longchamp e em (lif, onde se pec- cava mais livremente que no mais afamado bordel da cidade de Paris.»

Apesar de de TEsloile dar inteira ao testemunho do seu amigo a quem linha por homem temente a Deus, pôde qualilicar-se de exaggerada uma nar- ração que se baseia simplesmente em um dicilur. E todavia cousa averiguada que as communidades de mulheres estavam tão relaxadas n'aquella épocha, que foi preciso reformar a maior parte d'cllas no decurso do século xvii.

Esta relaxação e as desfordens que eram a sua consequência necessária datavam do tempo das guerras civis e sobre tudo das da Liya, quando a gente

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fie guerra se alojava nos conventos, entrando ás vezes n'elles como n'uma ci- dade tomada de assalto. A maior parte das vezes, os da Liga parlamentavam com as religiosas, c estas offereciam-lhes uma hospitalidade inteiramente fra- ternal. A abbadessa, ou superiora, dava o exemplo ás suas filhas no Senhor, e quando não era nem demasiado velha nem feia, depressa se punha de accordo com o chefe das tropas. Realisado o accordo, não cessavam os banquetes, até que as tropas evacuavam a casa do Senhor. Os amantes separavam-se, depois daqueila vida encantadora de alguns dias, indo os soldados atraz do inimigo, e voltando as freiras novamente á sua vida religiosa, em que haviam aberto, pela força das circumstancias, um delicioso parenthese de gozos niateriaes.

No dia seguinte, passava por alli outro corpo das tropas catholicas, e o mosteiro acolhia os seus novos hospedes com a mesma sollicitude e deferência. vimos como Henrique iv e os seus cortezãos se estabeleceram com todos os direitos de guerra nos conventos de Maubuisson, de Longchamp e de IVlont- martre.

Comprehende-se á primeira vista quanto esta vida passada entre soldados devia comprometter gravemente a castidade monástica. As freiras davam-se tão bem com esta vida volupiuosa e mundana, que não receiavam infringir os vo- tos e abandonar a disciplina claustral. Emquanto Paris esteve em poder da Liga, em 1593, «não se via no Paço e por toda a parte, diz Estoile, senão frei- ras e soldados, fazendo amor á vista de todo o mundo.»

Estas freiras libertinas, que passeavam com os seus amantes nos logares públicos, «Ião impudicas e cynicas em suas palavras como em tudo o mais», traziam debaixo do veu, que conservavam como único indicio da sua profis.são, verdadeiros trajos de p. . . e de cortczãs, arrebiques, pós e perfumes.»

Os pregadores trovejavam em vão contra taes escândalos, e o Padre Com- molet, que se revolvia no púlpito como um energúmeno, chamando p. .. des- caradas áqucllas desgraçadas peccadoras, e vis ruliões aos seus cúmplices, di- zia que o povo devia apedrejal-as e atirar-lhes á cara com a lama das ruas, como faria ás mulheres de vida e aos seus libertinos amantes, se elles se atre- vessem a olfender a castidade publica, sahindo á luz do dia dos seus immun- dos asylos de prostituição.

CAPITULO XLI

SUMMARIO

A tclerancia ilo,< loirares de prostituição.— Inconvenientes deste systema de administração politica.— Opinião de Montaig-ne a respeito d'este assumpto.— O ministro Cayet to:na-s o advogado dos bordeis.— Seu discurso con tra a libertinagem publica. -Setpicstro da ob a .■m casa do impressor Roberto Estienne.— Cayet deposto pelu con- sistório. —Accusações dos protestantes por lhe haverem attribuido o livro. Aubigné pretende que o padre Cayet escrevera dois livros infames em vez de um.— A upiuião de Cayet appoiada p-la auctoridade de um Papa.— jrdena- ção real de 1588 contra os bordeis.— Ordenações prebostaes de 1619 e 163.T para a e.wcução do edito de 1560.— Os libertinos de Paris no fim do século xvi.— O conselheiro ,loão Levv.l.t e a sua concubina. -O capitão Richelieu —De- sordens da policia dos costumes em 161 1.— A casa do pre-idente de Harlay.

ORDEN.Aç.vo de l}6(), que luivia preseripto a abolirão do.s bor- deis, continuava em vigor, apesar de não ser estriclameiite observada. De vezes em quando, porém, uma série de medidas rigorosas, exercidas contra a prostituirão, vinha provar ener- gicamente que o principio da lei prohibiliva não seria aijandonado facilmente pelos magistrados, que julgavam interessada a moral publica na existência d'esta lei. Não- obstante, o systema de prohibii,-ão absoluta a res- peito dos bordeis, havia produzido elTeitos tão deploráveis como os da prote- cção legal, que por tanto tempo se concedeu a estes antros do vicio. O nu- mero de mulheres perdidas não havia diminuído; pelo contrario, parecia ter au- gmentado. Os grandes bordeis primitivos haviam desapparecido, mas milhares de outros, occultos nas trevas, ou disfarçados sob honestas apparencias haviam- se formado secretamente a expensas dos antigos feudos da prostituição, que não haviam tido senão uma existência reconhecida e patente.

E' fácil de suppòr que os cognards, como então se chamavam, não es- tando sob a vigilância de administração municipal, eram perigosas embosca- das, onde os desgraçados que alli cabiam, perdiam frequeiilemeiíle a bolsa, a capa e ás vezes a vida. Quanto ao estado sanitário, nada ha que dizer, por- que bem claramente se comprehende o que seria aquilio : a s\philis mais ter- rível, contagio.sa e incurável, fermentava n'aquelies antros immundos.

Houve eITectivamente muitas prostitutas açoitadas, marcadas com o ferro infamante, tosqueadas pela tesoura do verdugo, desterradas perpetuamente. Houve muitas proxenetas passeadas em burros pelas ruas da cidade, amarra- das aos pelourinhos e condemnadas a grandes multas. Iniiumeros rufiões o li- bertinos foram presos e condemnados ás galés, mas o castigo de uns não tor- nava os outros mais honestos, e por mais que se trabalhava para extirpar o cancro da prostituição, ella augmentava sem cessar pelas povoações, e como a

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peste parecia apostada a arrostar todos os esforços da previsão e da sabedoria humana.

Os próprios factos mosli^avatn de um modo palpável a necessidade de res- tabelecer a prostituição legal, para extinguir a prostituição secreta. Os legisla- dores besitaram perante o escândalo desta necessidade, e não ousaram tocar na ordenação de Carlos ix, mas, ao mesmo tempo, como vimos, mantendo o principio da lei, chegaram á tolerância dos bordeis. Ignoramos em que épo- cha foi admittida esta tolerância local. Devemos suppòr, no emtanto, que es- teve em practica em Paris no reinado de Henrique iii. Nos escriptos do fim do século XVI, encontra-se a menção formal de certos bordeis, que tinham bas- tante fama, para que podessem existir como estabelecimentos públicos sem a auctorisação tacita do prebostado do Chatelet de Paris. Pedro de TEstoile, n'uma passagem dos seus Hegistros-diarios, que anteriormente citámos, allude ao mais celebre dos bordeis da capital, embora não o nomeie.

Ignoramos também em que logar havia assentado o seu domicilio a pros- tituição tolerada. Estamos, porém, dispostos a crer que as mesmas ruas e pra- ças, já n'outros tempos destinadas para estes estabelecimentos, ivcab iram pouco a pouco sob o seu domínio.

No emtanto, estes locaes, cujo numero era Ião restriclo, e que estavam sujeitos a certas condições de vigilância interior, não bastavam agora para o desenvolvimento das paixões vergonhosas e para os excessos da lubricidade. A prostituição, em vez de se encerrar no estreito espaço, que lhe era concedido, em vez de acceilar o patronato occullo da municipalidade parisiense, não co- nhecia limites, e invadia todos os dislrictos, todas as ruas e todas as casas da cidade. Os centros mais contagiosos eram, porém, as (".orles dos milagres, onde se estabelecera um asylo inaccessivel á lei. Era alli onde o vicio podia desafiar impunemente o pudor publico, onde o crime podia cobrir as suas manchas san- grentas com o lodo da libertinagem.

A abolição dos bordeis não tora completamente extranha a este deplorá- vel estado de cousas. Muitos homens illustrados e pios o pensavam assim, em- bora tivessem o cuidado de o não dizer. Miguel de Montaigne, que não se aco- bardava jamais de dizer tudo, não se atreveu ainda assim a dar-nos a conhe- cer a sua opinião a respeito d'csta grave questão de moral e de policia. Deve presumir-se todavia que o illusfre pensador era da opinião do maior numero de homens notáveis do seu tempo, e ha mesmo quem assevere que pôde applicar-se a esta questão o que se nos seus Essais, publicados pela primeira vez em 1580. (Bordéus, Millanges, 2 vol. in-S."):

«O que chamamos honestidade, diz elle no livro ii, cap. 12, e que con- siste em não se fazer ás claras o que.se nos pcrmitte fazer cm segredo, cha- mam elles (os stoicos) necessidade . Ser uma pessoa delicada, occullando e des- approvando mesmo o que a natureza, o coslumc c o próprio desejo publicam a respeito das nossas acções, era por elles julgado vicioso. D'a(iui dizem alguns que supprimir os bordeis públicos é não estender a Ioda a parte o vicio, que estava circumscripto á(|uelles logares, mas excitar a eilc, pela diíliculdade, os homens de maus costumes e os vadios.»

DA PROSTITUIÇÃO 0.37

Montaigne, na sua qualidade de antigo membro do parlamento de Bordéus, não podia pronunciar-se abertamente contra uma lei, que passava a esse tempo peia melliorda jurispudencia fraiiceza, e que diariamenteestava tendo applicai^-ão em vários pontos do reino. Tinha, porém, elevados intuitos tanto na pliilusopiíia como na politica, para não deplorar, pelo menos em segredo, um remédio peior que a doença.

Não foi elle, por tanto, quem ergueu a voz para defender a causa da pros- tituição legal no interesse dos costumes públicos, e para pedir o restabelecimento dos antigos privilégios da libertinagem. Foi, segundo parece, um sábio ministro da religião reformada, Pedro Victor Cayet, que julgou útil dar ao vicio um domí- nio circumscripto e limitado, onde podesse destillar o seu veneno, sem infestar a parte da população.

Cayet, filho de pães pobres e obscuros, e natural de Montrichard, na Tu- renna, tinha adquirido conhecimentos vastíssimos em todas as sciencias e ainda n'aquellas que se chamavam diabólicas ou occultas. Tinha-se occupado de ma- gia e gabava-se de ter intelligencia com o diabo, que lhe havia dado o dom das línguas. O seu immenso saber, melhor ainda que a sua dcmonomania, grangeou-lhe o titulo e o exercício de pregador da princeza Catharinu de Na- varra. Havia composto muitos tratados de magia, de polemica religiosa e de historia, quando pensou em tornar-se reformador dos costumes, e redigir um Discurso, que continha o remédio contra as dissoliK^ões publicas, para ser apre- sentado ao parlamento.

Este discurso não era, segundo elle dizia, mais que a traducção ou pa- raphrase de um opúsculo italiano, impresso quinze ou vinte annos antes sob o titulo de Discorso dei remedie delle publiche dissoluzioni, com o nome do celebre Nicolau Perotto, arcebispo de Siponto. E' provável que Cayet não se limitasse a traduzir o Discorso, e que inserisse muita coisa da própria lavra n'esta apologia da prostituição legal.

Houve quem dissesse que Cayet não tinha por essa épocha vida muito regular, tendo até tido uma aventura com certa dama. Esta accusação formu- lada por Coloniés na sua Gallia Orientalis, (p. lií) não tem relação muito directa com o projecto que o pregador de Catharina de Navarra ruminava po'- esse tempo, de se fazer o restaurador dos bordeis. A memoria que n'este in- tuito escrevera, continha considerações moraes, económicas e pornographicas, bem pouco em harmonia com o caracter e modo de vida do auctor. Habitava, segundo corria, n'uma trapeira da rua da Huchette, e alli permaneceu mais de três mezes com um famoso mago, a quem chamavam o Juiz de Condon. Succedia isto no decurso do anno de 139.5, e n'essa épocha os reformados tinham a Cayet por suspeito de querer converter-se ao catholicismo por cálcu- los de ambição.

Tendo Cayet concluído o seu livro a respeito dos bordeis e da necessi- dade de os estabelecer de uma forma sensata e bem regulada, mandou-o co- piar a um secretario, accrescentando na copia pela sua própria mão grande numero de citações gregas e latinas.

Preparado assim o manuscripto, foi confiado a um impressor protestante,

HUTOKU DA PaotTITOIçIo. TOMO U— FOLHA 68.

338 HiSTORIA

Roberto Estienne, que, segundo parece, hesitou em imprimil-o, e resolveu consultar um amigo commum. Suppõe-se que esse amigo fora Pedro de TEs- toile, com quem Cayet tinha relações da maior intimidade.

Succedeu, no emtanto, que o manusíripto foi subtrahido das mãos do impressor, e Cayet foi accusado de libertinagem ante o consistório de ministros reformados, que inquiriram testemunhas, interrogaram o accusado, e o con- demnaram como auctor de um livro execravel, ainda que o pobre Cayet sus- tentasse com energia que esse livro estava cheio de bons remédios contra a in- continência.

Havendo censurado a Roberto Estienne a sua traição, o impressor res- pondeu :

Não foi traição, engana-se. Eu mesmo fui illudido por uma pessoa em quem tinha toda a confiança. A ninguém disse que era o sr. Cayet o auctor do livro, por isso mesmo que lhe havia prometlido não o mostrar a ninguém. (Chronol. novenn. por Cayet, 1o9õ.)

O ministro protestante, que acabava de ser solemnemente deposto pelo consistório, declarou immediatamente que voltava á religião catholica romana, e deixou o serviço da irmã d'el-rei. O tractado a respeito dos bordeis não foi impresso, e os ministros evangélicos que tinham o manuscriplo original fize- ram d'elle uma ameaça contra a honra do convertido, que veio a ser doutor da faculdade de theologia, sem deixar de se consagrar ás sciencias occultas.

Dizia-se á bocca pequena que se havia consagrado ao diabo e que tinha firmado com o próprio sangue um contracto com o príncipe das trevas. Os pro- testantes perseguiram-no com calumnias e salyras, em que era assumpto obri- gado o famoso livro, que ninguém vira, a não ser o impressor Roberto Eslienne, Pedro de TEstoile, e os membros do consistório.

Eis como Estoile, que muita gente suppoz ser o auctor d'esse livro, falia d'elle nos seus Registres-Journaux :

«N'este tempo (fins de looo) um ministro evangélico da princeza Catha- rina, chamado Pedro Victor Cayet, abjurou a religião e deixou o ministério a que pertencia para se fazer sacerdote catholico romano. Este homem escreveu muitos cadernos de papel conlra os ministros, seus*collegas, que o accusavam de ter começado a sua conversão pelo bordel, reproduzindo um livro que elle havia escripto, pedindo permissão e tolerância para os referidos estabelecimen- tos, a respeito do que se compoz a seguinte copla :

Cayet se voidanl faire prêtre, A montré qu'il a bon cerveau ; Car il veiilt, avant de Vitre, Faire rétablir le bourdeau.

Esta passagem a entender que Pedro de TEstoile conhecia o livro, e que houvera alguém que tirara copias d'clle. Cayet, porém, nunca declarou que este livro fosse obra sua, o que nos a entender (|U(" se envergonhava de o ter escripto.

DA PROSTITUIÇÃO 539

Agrippa d'Aubigné, que nunca perdoou a Cayet a sua apostasia, refere o seguinte na sua Hisioire Liniverselle (l. iii. I. iv, cap. 1 I :

«Succedeu também que o tal ("ayet, por se dar ao estudo da magia, foi deposto por algum tempo, e accusado em seguida de haver escripto dois livros, um para provar que o sexto mandamento não prohibe nem a fornicação nem o adultério, mas somente o peccado de Onan (sola masfurbatio) e outro sobre a necessidade de restabelecer os bordeis.»

Aubigné não cessou de vilipendiar Cayet a respeito d'estas duas obras, que não faziam mais do que uma, na opinião do auctor das notas da Confissão de Sancfi (p. 58 da ediç. publicada por Lcduchat em 1746, em continuação do Journal d'Henri iii.)Na Confissão de Sancij, porém, Agrippa d'Aiibigné volta à sua teimosia dos dois livros, de forma ((ue parece ter a este respeito uma convicção profunda.

O heroe d'Aubigné, o senhor de Sancy, diz estas palavras:

«A fornicação e o adultério por amor não são peccados, segundo o dou- tor Cayet, no seu erudito livro a respeito do restabelecimento dos bordeis, e na sua douta disputa sobre o sexto mandamento. Este sexto mandamento, que diz i\on mcechaberis, prohibe S(ímente o peccauo dos filhos d'Onan.»

No Barão de Foenesle, Aubigné volta ainda á carga contra os dois livros, posto que esta satyra fosse escripta depois da morte de Cayet :

«Despediste-o por magia ? pergunta o barão.

«A principio, responde Enay (que é o próprio Aubigné), não foi accu- sado senão por dois livros, um em que sustentava que nem a fornicação nem o adultério eram o peccado prohibido pelo sexto mandamento, mas sim o vicio dOnan, pelo que se inimisou com a sagrada sociedade (a companhia de Jesus); o outro livro é uma memoria para o restabelecimento dos bordeis.»

O capitulo termina com um abominável soneto, que se encontra também no final da Confissão de Saiici/, sob o titulo de Syllogismo e.rposiúco da con- trovérsia sobre se a Eyreja é dos escolhidos. Este soneto, cujo verso final é uma imitação de uma passagem de Passatant, de Theodoro de Béze, applica á Egreja Romana as palavras do propbeta Ezechiel acerca da mulher, qiuv di- varicaiit libias suas sub oinni arbvre. E uma composição poética inspirada pela apostasia de Cayet, e recorda que, se o apóstata «quiz dar franquias e exem- pções às prostitutas>\ quando era ainda huguenotte:

Catholiqiie. il poursuil encore son entrepise.

Agrippa d'Aubigné, que era inimigo pessoal do pobre Cayet, nunca dei- xou de arremessai' á sua memoria as mais atrozes injurias. E assim que elle o qualifica:

Uavocat de$ ptitainu, syndic des mai^uereaux.

Finalmente, n'outro logar da Confession de Sancy, Aubigné apresenta outra vez em scena um dos livros de Cayet, fallando do papa Sixto v, «que supprimiu os bordeis de mulheres e mancebos, por não haver lido a obra de M. Cayet.»

340 HISTORIA

Bastar-nos-ha osta plirase para inferirmos com toda a probabilidade que o cscriplor Cayet, no Discurso, que tencionava apresentar ao parlamento e que havia soi)recarregado de citações gregas e latinas, tractava das diíTerentes es- pécies de libertinagem em todos os povos e em todas as épocbas, citando em appoio da sua opinião a auctoridade do papa Sixto iv, ao qual se attribuia o estabelecimento dos lupanares de um e outro se\o. Lupannria utrique Veneri erexit, havia dito o sábio Cornelio Agrippa de Netlesheim, n'uma das primeiras edições do seu celebre tractado De tanilate et incertiludine scienliarum (c. 64, De lenocinio). Verdade seja que pouco depois teve de modificar esta asserção um tanto arriscada, contentando se de recordar que aquelle papa desbragado havia estabelecido em Roma um lupanar nobre: Homce nobile admodum lupa- nar exíruxit. (Bayle, Dicdonn., art. Si-rte iv.)

Os planos pornograpbicos de Cayet não foram submettidos ao exame do parlamento nem á apreciação de juizes competentes; não houve, porisso, ne- nhuma reforma, nenhuma innovação na policia dos costumes, e alguns bordeis permaneceram abertos com tacita permissão dos magistrados civis e criminaes. Não obstante, p(5de suppòr-se que houvera graves abusos n'esta tolerância de certos asylos de prostituição. 'ístamos inclinados a crer que os commissarios ou agentes de policia recebiam ás vezos dinheiro ou presentes da parte dos mi- seráveis especuladores da liberlinagcm, pois que uma ordenação de Henrique III, promulgada a lo de outubro de IoH,S, dá-nos a entender que em muitas cir- cumstancias os magistrados se esqueciam de applicar o edicto de 1360, relativo aos bordeis, mostrando-se favoráveis aos impuros interesses das pessoas depra- vadas, que viviam á casta da prostituição.

N'esta ordenação contra «os blaspbemos, taberneiros, barqueiros e outras pessoas dadas a costumes dissolutos,» devem notar-se os dois paragraphos se- guintes :

«Fica prohibido a toda e qualquer pessoa ter bordeis e jogos de dados. Os infractores serão punidos extraordinariamente, c sem dissimulação ou con- nivencia dos juizes, sob pena de privação dos respectivos officios.

«Fica prohibido a todo o proprietário alugar as suas casas, a não ser a gente de bom nome e boa reputação, não permittindo nellas bordel publico ou particular, sob pena de setenta libras parisis de multa, pela primeira vez, e de cento e vinte pela segunda, e pela terceira de confisco das referidas casas.»

Tinha, portanto, havido conRÍvencia entre os juizes e as parles interes- sadas, por isso que el-rei admoestava estes magistrados para que evitassem qualquer dissimulação ou tibieza na perseguição dos bordeis públicos ou secre- tos. Esta ordenação real não foi, porém, mais bem observada (iLie as outras, e a prostituição, essa chaga necessária das paixões vergonhosas, que de continuo fermentam n'uma grande cidade, continuava ao abrigo dos banheiros, barbei- ros, taberneiros, estalajadeiros e outra gente do mesmo estofo, apesar das suas ca.sas, mal afamadas sempre, estarem expostas a visitas domiciliarias de dia e de noite, que os commissarios visitadores do Chatelet eram obrigados a fazer, ainda que não as fizessem com frequência.

«Houve sempre, diz Delamare (Tractado ile policia, t. i, pag. 323) muitos

DA PROSTITUIÇÃO S41

particulares, bastante corrompidos ou interesseiros, que alugavam as suas casas, todas ou parte dVilas, para este infame commercio. O magistrado da policia providenciava, renovando de vezes em quando a publicação dos regulamentos, acompanhando-os de novas ordenações para seu mais fiel e exacto com- primento.»

Delamare cita uma d'estas ordenações, datada de 19 de julho de 1619 e promulgada por mes; ire Henrique de Messues, senhor de Irval, conselheiro do rei, tenente civil da cidade, preboste e visconde de Paris. O procurador do rei havia-se queixado de «que muitas pessoas de mcá vida tinham bordeis públicos, que davam occasião a muitos roubos e assassínios», e o tenente civil prohibia expressamente «a toda a pessoa, de qualquer classe e condição que fosse, o alu- gar suas casas a gente de vida, sob pena de perder o aluguer, que seria distribuído em esmollas pelos pobres e presos, sendo ainda além d'isso as ca- sas alugadas por diligencia do mesmo procurador do rei, e a importância dos alugueres distribuída pelos pobres presos.»

Ao mesmo tempo o tenente civil ordenava «a todos os vadios e prosti- tutas que desoccupassem a cidade e os seus arrabaldes, dentro das vinte e quatro horas seguintes à publicação da presente ordenação, sob pena de prisão e de processo.»

Todos os habitantes de Paris eram obrigados a prestar auxilio ao pri- meiro agente do Chalelet e mais agentes de justiça encarregados da execução da referida lei, a deter os contraventores e a conduzil-os á esquadra do com- missario do bairro, sob pena de cem libras parisis de multa. Esta ordenação parece haver sido reproduzida muitas vezes, e pouco mais ou menos nos mes- mos termos.

Outra de 30 de março de 1635, promulgada por Miguel Moreau, tenente civil do preboslado, continha prescripções mais rigorosas, a julgar por estes três artigos, que Delamare insere na sua obra :

1 ." Mandamos, segundo as ordenações e decisões do Tribunal, ante- riormente publicadas, que todos os vagabundos, rapazes, aprendizes de barbeiro, de alfaiate e outros officios, e as mulheres licenciosas, tomem serviço ou modo de vida dentro de vinte e quatro horas, e no caso contrario que saiam da ci- dade e seus subúrbios, sob pena de cadeia e galés para os homens e açoites e desterro para as mulheres, sem outra forma de processo.

2." Fica prohibido a todos os proprietários, e principalmente inqui- linos das casas d'esta cidade e subúrbios, arrendal-as ou sub-arrendal-as a pessoas de fama; outrosim permittir n'ellas actos deshonestos e jogos 11- licitos sob pena de multa de sessenta libras pela primeira vez, perda dos alu- gueres de três annos pela segunda, e confiscação da propriedade pela terceira, em proveito do Hotel Dieu d'esta cidade.

3." Igual probibição se faz aos taberneiros, banheiros e estalajadeiros, os quaes não poderão admittir nem de dia nem de noite nenhuma das pessoas supramencionadas, nem ministrar-lhes viveres ou alimentos de qualquer es- pécie, sob pena de um castigo exemplar.

Vários successos trágicos, consignados nas memorias de P. de TEstoile,

542 HISTORIA

revelam-nos quanto eram perigosos para a segurança pessoal estes libertinos, rufiões e outra gente perdida, que estava sempre disposta a commetter um crime, comtanto que lli'o pagassem. A' maneira dos braiú italianos, tinham sempre no bolso um punhal, uma navalha, ou um jeton. Esta ultima arma cor- tava como uma navalha aliada, e era com ella que retalhavam o nariz a um adversário, ou lhe picavam a cara, com uma destrezaprodigiosa. (Journal cVHenri III, ediç. de Champollion, pag. 131.)

Em 1581, João Levoix, conselheiro do parlamento de Paris, quiz vin- gar-se da sua amante, que era mulher do governador do Chàtelet, chamado Boulanger. A adultera, que mantivera com o amante relações publicas, reíle- ctiu sobre o seu estado escandaloso e resolveu emendar-se. Por isso, rogou ao seu corruptor que a deixasse ir em paz, e resistiu d'ahi por diante com tena- cidade a todos os esforços por elle empregados para a fazer voltar ao antigo caminho.

«O amante, vendo que nada conseguia d'ella, disse-lhe mil injurias, e ao sahir ameaçou-a de a marcar com um ferrele indelével, como mulher de condição depravada.»

Pouco tempo depois, na véspera de Pentecostes, a pobre mulher foi ao campo acompanhada de seu marido, e João Levoix, quando o soube, seguido de alguns ruliões de bordel, surprehendeu-a n'um logar descampado, e obri- gando-a a apear-se, ordenou aos miseráveis que o acompanhavam que lhe cortassem o nariz com o jeton.

A victima de tão bárbaro tractamento perseguiu perante os tribunaes o conselheiro João Levoix, que foi obrigado a compôr-se com a parte queixosa, mediante a somma de dois mil escudos.

Depois d'esta decisão do tribunal de Rouen, a mãe do culpado foi agra- decer a el-rei.

^Não é a mim que deveis agradecimentos, respondeu-lhe el-rei, mas sim ás más justiças d'este reino, porque se boas fossem, vosso filho não vos daria taes desgostos.

E' provável que os libertinos, que haviam mutilado a mulher de Boulan- ger, fossem menos poupados. Foi gente d'esta espécie, que matou em lo7G na rua Lavandières o capitão Richelieu, denominado, o Frade, «homem de nota, famoso pelos seus furtos, roubos e blasphemias, sendo de mais a mais rufião e freguez de todos os bordeis.»

O capitão, irritado pela gritaria e bulha que faziam n'uma casa da visi- nhança d'elle alguns homens e mulheres de vida licencio.sa, invectivava da ja- neild toda aquella gente, ameaçando ir pòl-os fiira a ponlapés, se não entras- sem na ordem, dizendo que «lhe parecia muito mal aquelle escândalo de vida licenciosa tão próximo da sua morada, e por assim dizer nas suas barbas.» Os rufiões, ouvindo estas invectivas, desafiaram o capitão a sahir á rua. Não se fez este rogar, confiando no seu braço e na sua espada, mas não teve tempo de a desembainhar, cabindo logo ferido com mais de cem |)unbaladas. (^Journal iVllenrí iii, |). 55.)

Em IG()7, outro fidalgo a (|uem Estoile não nomeia, foi morto n'um bor-

DA PROSTITUIÇÃO 543

dei de Paris, pelo filho do baillio de Roclicfoit, por causa de uma ri\a entre os dois.

Este ultimo facto, referido por Pedro de TEstoile. conselheiro do rei e escrivão da camará da chancellaria de França, prova que, não obstante as or- denações de rei e os regulamentos da policia, os bordeis de Paris, tolerados se não auctorisados, tinham uma notoriedade tão escandalosa, que chegavam mui- tas vezes a originar a prisão ou expulsão das mulheres perdidas e dos liberti- nos que alli passavam a vida. Pedro de TEstoile caracterisa muito melhor a extranha desordem dos costumes d'aquella époeha :

«Quarta feira, 13 de abril de 1611, celebrou-se a Mercuriale ('), na qual o presidente de Harlay obteve um grande successo, discorrendo sobre a neces- sidade da reforma em todas as classes, e principalmente sobre os grosseiros abusos e corrupção da justiça e da policia de Paris, ao que era mister pôr or- dem, como tencionava fazer. Receio, porém, que isto não passe de bons desejos.

«O presidente fallou muito contra as casas de jogo e bordeis tolerados pu- blicamente, que era necessário supprimir.

«Quanto ás casas de jogo, não era muito difficil, apesar de se dizer que havia muitas em Paris. Entre ellas, porém, quarenta e sete havia auctorisa- das, tão celebres e tão publicas, que de cada uma recebia o tenente civil uma pistola diária (perto de âiJOOO réis), o que era um bom lucro, pouco honesto, na verdade, mas limpinho, e livre dos azares do jogo.»

O que se dava com as casas de jogo, succederia também naturalmente com os alcouces, que decerto não deixariam de pagar tributo para não serem supprimidos. Não nol-o diz Estoile, e temos de suppòr que o tenente civil ti- rava, pelo menos, outra pistola diária de cada bordel, que vinha a ser em caso de necessidade uma ca.sa de jogo, assim como a casa de jogo servia ás vezes de bordel.

«Quanto aos bordeis de Paris, accre.scenta Estoile, penso que poderíamos justamente applicar a esta cidade o dito de Stratonico, o qual sahindo de Heraclea, olhou para todos os lados, como que para ver se alguém o estava observando, e como um dos seus amigos lhe perguntasse a razão d'isto :

« E' porque me envergonharia de que me vissem sahir de um lupanar.» Esta resposta denota o grau de corrupção d'aquella cidade. EfTecti vãmente em Paris até os moços de esquina e os remendões o diziam e cantavam em alta voz, e as más linguas do Palácio da Justiça (que também pertenciam á classe liberti- na,) diziam que o presidente devia começar a reforma por sua casa.» {Journal d'Henn iv.)

(1) Reunião do parlamento de Paris, que se celebrava na primeira qiiarta-feira de- pois da Paschoa e do S. Martinho, e na qual n procurador geral faltava dos abusos da administração da justiça, etc.

CAPITULO XLII

SUMMARIO

Malhiirin Rf saíei , u eraniti' poeta ria pioslituirãn.— Sua |ibilosopUia epirurista.— Caraotep- e costnincs Ho puela.— A hoa lei naluial.— A íiupolt-ncia— L'nia das suas aventuras nocturnas.— A cama.— Discurso de uma ve- lha proxeneta— A boticária Joanna.—Macette.— Epistola ao senhor de for luevauj .-Ooeuía e morte de lic^iiier.

oMos procurar a plivsionomia da prosfiluição cio scculo xr aos poetas d'aquella cpoclia e sobretudo ás poesias de Francisco Villon, que não receiava deshonrar a sua miisa, passeando de braço dado com eila de taberna cm taberna, e dando-ihe um cortejo de homens perdidos e mulheres publicas. Façamos agora um trabalho similhanfe de investigação especial nas poesias do principio do sé- culo XVII, c sobretudo nas de .Mathurin Régnier, que do mesmo modo que Villon, traçou o quadro da prostituição do seu tempo, consagrande sem es- crúpulo algumas das suas obras á descripção dos costumes depravados.

Villon era, como vimos, um estudante vadio, que vivia nas tabernas e nos bordeis mais immundos. Régnier era quasi um cíirfezão, (juasi um fi- dalgo, quasi um ecclesiastico, que, arrastado pelo Ímpeto das suas paixões, es- quecia ás vezes o seu nome, o seu nascimento e a sua posição, para visitar incógnito os mais repugnantes asylos da libertinagem publica. Em Villon, ha- via o habito da degradação moral. Em Régnier, pelo contrario, havia, por assim dizer, o capricho do mau procedimento, o gosto das aventuras do prazer eró- tico em todas as suas phases.

Régnier vae pois conduzir-nos, sahindo da corte de Henrique iv, onde o seu talento poético lhe havia grangeado um logar honroso, aos repugnantes al- bergues em que se refugiava a prostituição livre, tal como a haviam feito as leis prohibitivas e as medidas variáveis da tolerância municipal.

Mathurin Régnier, filho de um administrador da cidade de Chartres, so- brinho por sua mãe do poeta Desportes, tonsurado desde os onze annos de edade, destinado ao sacerdócio e aggregado desde muito cedo, na ijualidade de secretario, ao serviço do cardeal Francisco de la Joycusc, que o conduziu a Roma, e o teve alli por espaço de dez annos, nunca poude dominar as tendên- cias libertinas, que o levaram aos mais escandalosos excessos. >"ão pode di- zer-se bem se a poesia o predispoz á libertinagem, ou se foi a libertinagem que despertou no seu espirito a inspiração da poesia. Régnier, a quem «o» evces-

HuTORiA DA Prostituição. Tomo n— Folha 69.

546 HISTORIA

SOS do amor fizeram embranquecer o cabello antes do tempo», reconhecia de boamente aos trinta annos que o seu temperamento de poeta o arrastava na corrente suavíssima da vida epicurista. «Este temperamento, c que torna o poeta ardente e impetuoso, submettendo-o de ta! modo ao prazer, que detesta o vulgo e as coisas vulgares, e desprezando os favores, fal-o zombar da for- tuna. E' um fogo e enthusiasmo que o enlouquece, que o arrasta aos precipí- cios, e o sujeila mais aos seus caprichos que aos dictames da razão.»

E' o que o poeta canta n'estes versos. «O temperamento fogoso, dizelle:

. . . rend le poete ardent et chaiid, Subject a ses plaisirs, de courage si haut, Qu'il inéprise le peuple et les choses communes. Et bravanl les faveitrs se mocque des fortunes ; Que le fait débauché, frénétique, rêvant, Porter la tête basse et Vesprit dans le vent. Egayer sa fiireur parmi les précipices. Et pliis qu'à la raison síibjecl à ses caprices! . .

Tal era a desculpa que dava de não mudar de conducla, apesar das cen- suras que a cada passo lhe faziam :

Cesl (jue mon huineur libre á Vamour esi subject.

Era lambem esta a única censura que se podia irrogar ao joven Régnier, que fora d'isto possuia as mais distinctas qualidades de espirito e de corai;ão, aperfeiçoadas pelo estudo, pela convivência com pessoas distinctas e pela pbi- losophia. No emtanto, a incorrigível libertinagem do poeta prejudicava-lhe a for- tuna, apesar das alias protecções e sympatliias que a doçura do seu caracter lhe grangeára. O cardeal .loyeuse não ousou dar-lhe uma prebenda ou uma ab- badia, e quando Régnier deixou o serviço d'este prelado para ir ser secretario de legação, sob as ordens de Filippe de Bethun, embaixador de França em Roma, estava tão pobre e enamorado como á sua chegada de Chartres, sob os auspícios de seu tio, o abbade Desportes. Tudo quanto havia ganho, deixara-o nos antros immundos da prostituição romana.

O poeta retrata-se a si próprio com uma ingenuidade e franqueza, que fa- zem d'este retrato o typo do libertino do seu tempo. (Satyre iv, aii marquis de Coeuvres.) Declara que a inclinação para com as mulheres é n'elle tão forte, tão violenta mesmo, que lhe faliam ab.solutamente as forças para resistir a uma paixão exclusiva e dominanle. «Não tenho, diz elle, tino para guiar a minha barca, n'estes arrebalameritos de uma paixão dominante. A corrente arrasta-me ao abysmo do prazer. Tal como um cavallo dur(j de bocca, eu obedeço ao ca- pricho. . .»:

Ah goiífrr du plaisir la couranlc m'eiiiporle ;

Toul ninsi qu'un cheval qui a la bouche [orle.

J'obéis au caprice . .

Régnier abandona-se deliciosamente a este extranho ardor dos sentidos. A sua culpa é voluntária, e o poela, conleiíle do seu mal, julga-se ditoso «de

DA PROSTITUIÇÃO 547

ser, como a nalurcza o foz, um eterno enamorado: e como milliarcs de cousas o convidam a amar, mil bellezas não bastam para saciar a sede do seu amor. Procurando aventuras por toda a parte, encontra a cada passo assumptos novos, novos amores»:

Et comme it bien aimer mille causes minvilent, Aussi mille beaiités mes amoiirs ne limitenl ; El coiiranl çà et lá, je Irouie tous lesjours Et de siibjects nouveaux et de nnuveaux amours.

O poeta ama a torto e a direito, sem escollia nem escrúpulo. Novas e velhas, bellas e horrendas, todas lhe servem, sustentando a thcse singularis- sima de que a creatura mais feia e repugnante pode também desempenhar o seu papel na eterna comedia do amor. E' um refinamento da sua sensualidade monstruosa e depravada. De todos os eróticos antigos e modernos, talvez Ré- gnier seja o único que tenha emittido similhante paradoxo : «Tanto enfeitiça os homens o cego desejo, que ainda c|ue uma mulher cause medo ao amor, porque o ceu e Vénus a vêem com desgosto, é certo que, como mulher, terá as suas delicias, saberá substituir os ausentes encantos, com artifícios, que a farão manter no estado do amor, e lhe permittirão reter os amantes por meio de al- guns attractivos» :

Tant Vaveugle appetit ensorcelle les hommes, Qu'encore quiíne femme aux amours fasse peur, Que le ciei et Vénus la coient a conlre ca'ur. Joules fois, étant femme, elle aura ses délices, Relevera sa grace avec des arlifices, Qui dans Vélat d'amour la sauront maintenir. Et par quelques altraits les amanls relenir.

Como homem de talento e de convicções, desenvolve em seguida a sua theoria das compensações no amor, e põe cm relevo os méritos occultos, que po- dem enconlrar-se em uma mulher, capazes até mesmo de compensar a falta de outros dotes plásticos e a sua apparente inferioridade. De accordo com Ovidio, toma também a defeza da ignorante e da néscia :

Je crois qu'en fait d'amour elle será savante, Et que Nalure, habile h courrir son défaut, Lni aura mis au lil tout resprit, qu'il lui faul.

Como elle sabe desculpar essa pobre creatura ignorante, ou completamente destituída das bellas qualidades de espirito e de intelligcncia, que tanto fazem brilhar algumas feias! «E' ignorante? Que tem isso a final?

«Aposto que em questões de amor saberá desempenhar cabalmente o seu papel!... A natureza, tão iiabil em encobrir defeitos, deu-lhe no leito o espi- rito e a graça, que lhe faltam fora. A natureza! Como eila é boa e previ- dente! Poderia recusar isto a alguém, ella que tudo ordena tão previdente- mente»,

548 HISTORIA

Ue petir ifue nulle femme, nu fiH luide ou fúl belle, Ne vccul sans le faire et ne mourút pucelle. . .

Depois cie haver jiistificado (]'este modo Iodas as imperfeições que pôde ter o sexo feminino, volla á sua cega e irresistive! necessiilade de experimen- tar as forças e o ardor da sua incontinência, e o seu estro libidinoso espande- se em manifestações ardentes do seu fogoso temperamento. O poeta arde con- stantemente em desejos, a paix.ão rouba-lhe o juizo. E' um furioso, correndo loucamente atraz de mil aventuras, não escolhendo nunca o objecto do seu amor. Todas lhe agradam, não escolhe, nem sequer pensa em ter preferencias. Aquillo não é amor, é uma sensualidade brutal, sem delicadeza, sem freio, sem lei . . . Ouçamol-o :

Ur, iiioi (jui suis loul jlainme, et de nuil el de jour, Qtti nliitleine que feu, ne respire qu'amour, ■le me lai^se empnrter a mes ardeurs communes Et conrs sous divers vents de dioerses forlune.s. Ravi de mes objects, i'aiwe si vivement, Que je n'ai pofir Vumour ni choix ni jugement, De toute election mnn Ame. esl depourvue. Et nul ohject certain ne limite ma rue. . . Tuute fem iit e m'agrée

E' impossível mostrar-se mais complacente com o vicio.

]N'esta continua febre de prazeres illicitos, Régnier teve mais de um en- contro perigoso para a sua saúde e para a sua magra algibeira de poeta. Elíe- ctivamente todas as pragas de Vénus cahiram sobre elle e o encheram de en- fermidades precoces. Valeu-lhe o seu Mecenas, Filippe de Bethun, que lhe obteve uma prebenda na egreja de Nossa Senhora de Chartres, e um beneQcio de duas mil libras na abbadia de Vaux-Cernay, ende seu tio Desportes havia sido titular.

Régnier, aos trinta annos apenas, era um velho mortificado pelo rheu- matismo e pela gotta, alquebrado pelos remédios e continuamente nas mãos dos médicos, que desesperavam de o curar. Em muitas das suas poesias, de- plora o funesto resultado a que o havia reduzido o que elle chamava a boa lei natural, á qual obedecera sempre cegamente, «A dòr, diz elle, coberta de setlas envenenadas, cingc-me o corpo com um cilicio, tortura horrível ! !\Ieus bellos dias traiisformaram-se em noites, e o coração vencido |)clii desgosto, apenas es|)era a scpullura :

La douletir aux traits vénimeux, Comme d'un hahit spineu.r. Me ceint d'une horrible torture; Mes beaux jours snul cliangés en nuits, El mon cwur, loul /lélri dennuis, N'iilte)id plus que la sépulture! . . .

Énirré de cent maux divers, Je chuncelle et cais de travers,

«

Uma casa de prostituição no tempo de Luiz XIII, do França

DA PROSTITUIÇÃO 549

Tant innn âme em regorge pleitie : .Fen ai Vexpril toul hébelé Et si peu íyHí m'en est reste, Encor >ne jait-il de lapeine.

Os solTrimenlos (jiie lhe maceravam o -urpo, os penosos traclamentos a que tiiilia de submetter-se, as operações dolorosas a que estava condemnado, não eram ainda assim o maior dos marlyrios do poeta. A impotência, a vei'fío- nha de se sentir incapaz de vtltar ao vicio que por tanto tempo amara, era o que mais o penalisava. N'uma das suas elegias refere eni versos esplendidos, dignos dos eróticos gregos c romanos, a allronta que uma das suas amantes teve um dia de sollrer, em premio do deleite que havia tentado proporcionar- Ihe. O poeta envergonha-se de encontrar as suas faculdades tão hostis aos seus desejos, e indigna-se contra si próprio.

Esta impotência era provavelmente transitória e dependia de circumstan- cias excepcionaes, mas Ré^nier que se lisongcava de poder amar mesmo de- pois de morto, esquecia facilmente uma humilhação, que devia attribuir at) abuso dos prazeres venéreos e aos estragos das moléstias obscenas. Pouco de- pois, começava novamente a procurar aventuras pelas ruas suspeitas, e a con- sumir as poucas forças que lhe restavam na vida da prostituição. Sigamol-o um pouco por essas excursões pornographicas.

Ima noite, depois de uma orgia, em que tomou parte por convite de al- guns amigos, e que terminou por um desaforo indecente, uma verdadeira ba- talha impudica, sahiu da casa, sem que ninguém desse por isso, e dirigiu-se para a sua morada. Vivia, porém, muito longe, e não sabia bem o caminho; além d'isso a noite estava escuríssima e chovia a cântaros. O poeta caminhava apres- sado, encostando-se ás casas, embuçado na sua capa, mas de súbito escorrega. Procura segurar-se á parede. iNão é, porém, a parede o que a sua mão tre- mula encontra, é uma porta apenas encostada, e que se abre. O poeta perde o equilíbrio, por lhe faltar tão deploravelmente o appoio, e vae cahir ruidosa- mente de bruços no limiar de uma casa fedorenta e tenebrosa:

«Lá de dentro perguntam o que é. . . Levanto-me conforme posso, e en- tro. O cão não ladra, e os gonzos da porta não fazem bulha. O que será? Uma criada, que mostra e esconde a luz ao mesmo tempo, e que ri a bandeiras des- pregadas, faz-me desconfiar de tudo aquillo. Pergunto, respondem-me .sem flores de rhetorica, e dahi a pouco estamos todos de accordo. Reconheço a historia: cahi n'um logar non sancto...

«Puxo pela bolsa, passaporte indispensável n'estas casas, e ponho uma moeda sobre a meza, para captar a boa vontade da dona do bordel. Ao ver bri- lhar o escudo, ama e criada apressam-se a scrvir-mc, julgando-me um grande personagem ...»

I\'este momento. Ires vetustas mulheres approximam-se a passos caden- ciados, e vão sentar-se junto do lar, onde fumegam uns míseros paus verdes. Dir-se-hiam três phantasmas, fugidos do inferno. Uma d'ellas tinha um aspeclo ameaçador de Eumenide de theatro, outra é mais decrépita e enrugada que uma feiticeira do sabbai, a terceira é tão magra, amarellae transparente, que se lhe

550 HISTORIA

poderiam contar os ossos. As três horríveis veliias, cobertas de emplastos e de chagas, gemiam soh o látego de cruéis enfermidades, ganhas no campo da honra. Uma quei\a-se dos rins, outra da bocca, outra de um cáustico.

«Eram três, como disse, mas os ollios d'ellas sommados faziam apenas dois. Eram três, mas entre ellas poderia apenas reunir-se meio nariz e qua- tro denlcs tão movediços, que bastava um sopro para os fazer osciilar. Eram três monstros. Cada qual podia representar com vantagem o idolo da febre, da peste e do veneno.»

Taes eram as mulheres que exploravam n'essa époclia a prostituição le- gal. A' vista de tão odioso e repugnante quadro, o poeta teve horror do seu vicio, c dispunha-se a retirar-se, quando de súbito, sahiu de um quarto visi- nho uma rapariga com aspecto de boneca, bem vestida e cuidadosamente pen- teada, que disse ao poeta :

—Tenho tanto medo dos homens de espada, que se o senhor não me pa- recesse um sujeito socegado, preferiria deixar-me matar a apparecer aqui. Meu marido é boticário. Viva o amor! Não haja medo da policia!. . . Ao que vejo, o senhor é amigo de se divertir, mas eu não tenho medo, visto que paga bem e adiantado. . .

Vê-se que entre as mulheres de vida, havia algumas casadas, ou que pelo menos o fingiam ser, para causarem mais furor ou inspirarem mais confiança aos amantes.

Meu caro senhor, dizia a mulher do boticário ao enamorado poeta, com a maior amabilidade e cortezia, ceiou ?

Je vous prie, note: 1'hcure. Eh bicnl Que vous ensemhleí Êtes-vous pas d'avis que nous couchons ensemhle !

Régnier estava cheio de lama até á cintura e molhado até aos ossos. Pre- cisava de uma cama e s(') desejava dormir. A dona da casa oíTercceu-lhe então um quarto, onde podesse descançar commodamcnte. O poeta acceita, e a me- gera, caminhando diante delle p;ira o conduzir, vae fazendo o elogio das duas raparigas, Joanna e Macette, o beijinho do estabelecimento.

Par le vray Dicu! ijue Je.anne étail et claire et nelle, Claire comine un bassin, nelle coinnie im denier ; Au reste, hors Monaieur, que j'élaisi le premier.

Era Joanna a mesma rapariga que Régnier acabava de ver, mas todos os elogios que a respeito d'clla ia ouvindo, não o animavam a tractal-a mais de perto. Era mister subir uma escada tortuosa para chegar ao tal quarto que lhe haviam olíerecido :

«A escada, estreita c tortuosa, ollereeia uma subida bastante dilficil. Tudo tremia debaixo dos nossos pés. De degrau em degrau, como um pássaro na gaiola, era pi'eeiso ir subinilo, agarrando-me como uma cabra que trepa por um rochedo. Depois de muitos sustos, chegamos emlim ao tal ([uarlo, que para di- zer a verdade não cheirava a âmbar. A poria era baixa e estreita, e linha por única fccliadura um gancho.»

DA PROSTITUIÇÃO 551

Apesar de ter dobrado o corpo, o poeta não calculou bem as dimensões da porta, e ao entrar no asqueroso ninbo, deu com a cabeça uma tão violenta pan- cada, que se deixou caliir para traz, e rolou pela escada abaixo. Na queda, Rég- nier arrastou comsigo a desgraçada, que ficou ainda mais maltractada do que elle, chegando a perder os sentidos.

Ao espantoso ruido d'este desastre, accodem as outras mulheres da casa, trazendo luzes, e levantam a directora do prostíbulo, que ao voltar a si cobre de impropérios Joanna e Macelte, a quem altribue a culpa de tudo. Régnier, pela primeira vez em sua vida talvez, não pensa em tolices, e o que deseja é ficar para se subtrahir ás suas imparas tentações. Pede uma vela, torna a fazer a perigosa ascenção da escada, c toma finalmente posse do quarto infecto que lhe dão para dormitório. Não havia cama, porém, apesar de existirem outros moveis esquisitos e cousas deveras curiosas de que passa a fazer inventario :

«Em primeiro logar encontro a meus pés uma caldeira rota, a bolsa de um relógio, quatro caixas de pomada, duas luvas desirmanadas, três frascos de agua de cheiro, uma seringa pequena, uma esponja, uma sonda, uma escova para ir ao sabbal, uma lanterna velha, um tamborete de palha, um barril sem fundo, duas garrafas sem gargallo, uma bolsa cheia de de mercúrio e uma capa de côr parda, muito desbotada.»

Emquanto o poeta passava revista a estes miseráveis e nojentos despojos da prostituição, chega Joanna trazendo debaixo do braço a roupa da cama. E o leito onde estava? Depressa é improvisado. A um canto havia uma velha porta e dois bancos immundos e coxos. Arma-se tudo aquillo, e põe-se-lhe em cima uma cousa, que poderia com alguma boa vontade parecer um colchão. l*rom- pto!. . . Joanna, que acaba de ser reprehendida e espancada ate pela dona do alcouce, indemnisa-se vomitando contra a fúria sapos e cobras, e queixando-se amargamente da sua triste sorte.

Ao passo que fallava, ia fazendo a cama, estendendo os lençoes, muito curtos e cheios de manchas equivocas. . .

Dieu sait queU lacs d'ainour, quels ci/fres, quels jleurs. De quels compartiments et combien de couleurs, Rélévaient leur maintien et leur blancheur naive, Blanchie en un civet, non datis une lessive.

Está a cama prompta. Joanna convida, o mais seductoramente que pôde, o poeta a deitar-se, mas, apesar de cahir de somno, Régnier não se mostra muito resolvido, porque a cama não o tenta mais que a dama. . . A rapariga não o larga, porém, e começa logo a despil-o, apesar da resistência que encon- tra... Que diabo! Para que foi então lá, se queria fazer-se tão fino! ... O poeta dá-lhc razão, e tem de resignar-se com a sua sorte. Desata um sapato, des- aperta uma liga, e continua lentamente a despir-se. Prompto! Era dilhcil outra cousa ainda, mas que remédio?. . . O poeta faz das fraquezas forças e, procu- rando dominar o nojo, vae metter-se entre os immundos lençoes, onde a sua Vénus o estava esperando já. . .

Ciosava pouco tempo havia aquellas delicias de Capua, quando ouviu bsi-

552 HISTORIA

ter á porta da rua. Joanna apagou logo a luz, que fóra provavelmenle o quo ha- via chamado a atlenção de algum transeunte devasso, e fez ouvidos de merca- dor, como toda a gente da casa. Dahi a pouco, redobravam as pancadas á porta, batendo até com os pés o nocturno pretendente. dentro, silencio completo: fóra, o freguez pretendente grita, ameaça, jura, e d'ahi a pouco junta-se ou- tro, e outro e outro, um bando de desaforados libertinos, que fazem um mo- tim diabólico á portal. . .

Entretanto, Joanna censura asperamente o pobre Régnier, que se amo- fina por aquelle transtorno imprevisto. A culpa fora d'elle... Porque não se deitara mais cedo?... Estivera para aiii, como um parvo, perdera um tempo precioso... Os que batem á porta não cansam apesar do silencio, e passam das ameaças ás supplicas... Nem assim abrem. Os de fóra mudam logo de maneiras, e faliam com a arrogância de uma patrulha, ou dos agentes da po- licia municipal. <iAbra em nome d'el-rei!» Uma ronda que ia passando ouve esta intimação solemne e approxima-se da casa. Os libertinos largam a correr e desapparecem nas ruas visinhas.

Houve um momento de tréguas, durante o qual Régnier se levanta da cama, e procura ás apalpadellas a roupa para se vestir. . . Ouanto mais se apressa, porém, menos adianta, por isso (|ue nada encontra em ordem. Em vez do chapéu, encontra um sapato, e quando procura o gibão acha apenas uma meia.

Joanna não se erguera, e jicde ao poeta que, se tiver de se apresentar á ronda, não a compromelta:

Si mon compère Pirrre eH de garde aujour d'hMÍ,

Nnn, ne vous fachez point, rou.f n'aurez pnint d'enmii-

Mas o perigo renasce. I.á fóra a ronda, a verdadeira ronda, bate á j)orta com auctoridade, e não ha remédio senão abrir uma janella para parlamentar. Régnier, meio vestido apenas, sáe timidamente do seu infecto asylo, e desce a escada com um calçado e outro descalço. Esconde-se a um canto, no mo- mento em que a porta se abre e a patrulha entra de roldão pela casa dentro com ares de hostilidade. Não tendo sido visto, Régnier poude safar-se sem dar as boas noites a ninguém. . .

Uma vez na rua, aílasta-se d'aquelle infame albergue do vicio a pas.sos largos e sem olhar para traz. . . O infortúnio continuava, porém, e o poeta foi cahir n'um monte de argamassa. Despontava o dia, quando o libertino entrava em casa, cheio de lama como um porco, jurando e tornando a jurar não tor- nar a metter-se outra vez em taes aventuras!. . .

Mas, apezar dos seus juramentos, Régnier não podia resistir ao vicio que tanto amava. Todos os caminhos o conduziam á proslituição, cm (|uc tantas ve- zes havia deixado a saúde, o dinheiro e a honra.

I'm dia leve os seus dares c tomares com um antigo amigo, (|uc ellc chama 1'liilíin, '■ para cs(|uccci' estas zangas resolve ir iioniedialamenle ao seu templo favorito, ao i)ordel,

DA PROSTITUIÇÃO .'WÍ3

Dans un iiett de maurais rcnotn. Ou jamais femme na dit non.

Enfra cfTectivamcnle no antro impuro, mas que foiílrafompo ! onconlra apenas a dona da casa. A velha é, porém, muito complacente e serviçal, c diz- Ihe sorrindo, com a máxima allabilidadc :

Desculpei Hoje é dia de festa, c por isso não tenho ninguém. Demais a mais, prometti a mim própria não me tornar n'este dia culpada de simi- Ihante peccado. Mas, como o senhor c amigo, tudo se poderá arranjar. Veio de tão longe, coitado, que não quero deixal-o descontente! Vou mandar n'um mo- mento alli ao Escudo de Sahoija. E um pulo, e encontra-se decerto o que deseja . . .

A criada recebe as convenientes ordens da ama, e corre ao Escudo de Saboya, que era uma hospedaria de lama, onde havia sempre fornecimento de ribaldas. Este pormenor prova-nos que as liospedarias, tabernas e banhos eram n'aquelle tempo os logarcs privilegiados da prostituição, e que as des- graçadas, tendo de exercer clandestinamente o vergonhoso ofíicio que as leis haviam prohibido, estavam constantemente n'aquelles logares, onde as attra- hia a concorrência dos libertinos. Nada, po.-cin, succedia alli que despertasse a desconfiança da policia, sob cuja vigilância estavam os logares públicos. Nas ruas próximas era onde os intermediários da prostituição franqueavam as suas casas ao commercio clandestino dos amores mercenários.

N'estas casas, e graças aos manejos d'estas velhas proxenetas, prosti- tuiam-se as solteiras e ás vezes as casadas, com o risco de serem presas c cas- tigadas como culpadas de tão vergonhoso co;nmercio. Deve suppòr-se que estes castigos eram raros, e que a policia tinha ordem de fazer, segundo costuma dizer-se, a vista grossa. As casas das fornecedoras de bordeis, como então as chamavam, não eram propriamente fatiando, estabelecimentos públicos, aber- tos a todo o mundo, e a applicação da lei encontrava difliculdades quasi insu- peráveis, a respeito d'estas casas de passe, que não recebiam permanentemente as mulheres publicas, sendo como que um terreno neutro da prostituição.

Voltando, porém, a Régnier, a quem vimos entrar n'um d'esses antros impuros, como a criada d'ahi a um quarto de hora voltaria, a dona da casa convidou-o a sentar-se, e começou a dar á lingua, com um grande palavreado, para que o tempo não parecesse tão longo ao freguez. Depois de ter procurado em vão entabolar uma cavaqueira, que o poeta não queria sustentar, a velha, sempre no intuito de entreter o poeta, abaiançou-se á empreza de lhe contar, tim íim por Hm tim, a sua historia, que não era afinal senão uma reminiscên- cia do poema, de outra vez aqui citado, da Corlezã prefertiiln, por .íoaquini Dubellay. Com esta narrativa, procurava a dona do prostíbulo entreter a impa- ciência de Régnier

Começou por passar em revista os seus numerosos amantes, desde a épocha remota em que a mãe vendera três ou quatro vezes as primícias da filha. Não occultou que aprendera o seu vil oflicio, traficando comsigo própria, como de- pois traficava com as suas viclimas, por não poder, por causa da idade, conti-

BuToau DA PRosTiTuiçia. lOHO n— Folha 70.

554 HISTORIA

nuar a vida alegre dos seus bons tempos. Gabava-se de ser mais hábil do que as suas companheiras, e de ler em sua casa o beijinho da freguezia de Paris.

Eu conheço perfeitamente toda essa gente fina, porque tenho tido mui- tas occasióes de lhe receber as confidencias. Ha muitas grandes damas, que o senhor ir á Egreja, parecendo umas virtudes, e que afinal de contas são o que PU sei, e mais nada. Conheço-lhe os amantes. Algumas dizem que vão commungari . . . se fòr com os chischibcus, como Helena com o Troyano! . . .

Mais ia por diante a velha com a fiel narração da sua vida aventurosa, quando acertou de passar um commissario-visitador , ura desses agentes de policia, que tinham debaixo da sua vigilância as casas suspeitas. Como a porta estivesse entre-aberta, o homem entrou. Régnier teve apenas tempo de sahir por outra porta que conhecia, e como elle diz

Moitié figue, moilié raisin, N'ayant ni trislesse, ni joie, Pour n'avoir trouvé la proie.

Apesar de ter procurado satisfazer os seus appelites depravados em todos os bordeis da cidade, o poela nunca se lembrou na sua obra de censurar a abjecção das desgraçadas com quem tractava, e que por certo devia de despre- zar, logo que saciasse os seus brutaes desejos. Apenas n'este verso encontra- mos a expressão d'esse desprezo :

St moins qu'une putain nn eslimait ma muse I

Devemos notar, todavia, que nas poesias d'eslc vate libertino, apesar do modo como descrevem rudemente a relaxação dos costumes do seu tempo, não se encontram os nomes das escandalosas companheiras da sua vida dissoluta, exhibidos com essa descarada ostentação que os poetas do seu tempo usavam nas suas obras, ao fallarem dos seus amores, fossem elles quaes fossem. Ré- gnier, ainda assim, respeita-se bastante para erguer um altar poético aos entes abjectos, que apenas considerava como instrumenlos materiaes do vicio, e não como tristes victimas das paixões. Nomeia apenas MadeAon e Toinette em dois epigrammas, um dos quaes é obsceno, emquanto que o outro caracterisa hem a mulher de vida alegre, typo franco e audaz da prostituição.

Damos uma amostra d 'este ultimo .

Madclon n'est point difficile. Comine un las de mignardes sonl : Boiírgeois et gens sans dnniicile, Sans beaucoup marchander, lui foni,. . . Pour raison elle dit ce poinl : Qu'il faut êlre ptUain lout outre Ou bien dii toul ne iêlre point.

O poeta envolve no vcu da piedade c do silencio as desgraçadas que eram innoccntcs dos seus erros, causados por uma madrasta indigna, ou aconselha-

DA PROSTITUIÇÃO . OOO

dos por uma infame proxeneta. Km fompensa^ão, não perdoa, poráii, ás media- neiras da libertinagem, a essas velhas devassas e beatas, (jiie não podendo vi- ver já á custa da sua gasta beileza, procuravam grangear a subsistência, cor- rompendo raparigas solteiras, alfastando as casadas do cumprimento do seu de- ver, e sendo n'uma palavra, as inimigas implacáveis do pudor do seu sexo. Foi Rcgnier quem fez o admirável retrato de .Macettc, esse Tartufo feminino, ao qual de certo Molière quiz fazer pemlanl com a sua famosa comedia Tartuje.

A satyra de Macette, nome proverbial que designa talvez uma famosa cortezã dos fins do século xv, era provavelmente uma vingança pessoal do poeta. Em todo o caso, foi considerada como a expressão de uma indignação meritória contra as medianeiras do amor, e houve quem agradecesse a Régnier, apesar de ser tão libertino, o havcr-se arvorado em defensor enérgico da opi- nião das pessoas honestas contra as abomináveis corrupturas, (|ue se haviam multiplicado até ao inlinito, espalhando por toda a parte o veneno da sua pre- versidade.

Eis os primeiros versos d'essa famosa satyra :

La fameuse Macette à la cour si conniie, Qui s'est aux lieux d'honneur en crédit mainleniie. Et qui depuis dix ans jusq'en ses derniers jours, Á sotitenue le prix en 1'esctime d^inwurs; Lasse, eiifin, de seroir au peuplf de quintaine, ffétanl passe-rolant, soldai, ni capiíaine, Depuis les plus chetifs, jusqii,es aux plus feudans, Qu'elle n'ait descnnfit et mis dessus les dents, Lasse, dis-je, et non sóule, enfin s'esl retire.

Esta cortezã que não conhecia outro ceu, senão o do seu leito voluptuoso, faz-se beata, e mostra grande arrependimento dos seus peccados. Veste com simplicidade, jejua, resa, visita as egrejas e os conventos, usa rosários e a(//ius- dei, e praclica muitas obras pias. Encontram-na muitas vezes ajoelhada ante os altares, chorando como uma Magdalcna, c batendo rudemente no peito; c uma santa a quem todo o mundo admira, e cujo infame passado desapparece. sob o veu de uma austera penitencia.

Régnier, que recorda os altos feitos d'esta grande peccadora, duvida muito da sua conversão, e não se deixa enganar pelas apparencias. Um dia, estando em casa de uma joven a quem fazia a corte, ficou muito surprehen- dido de ver entrar esta velha infame, que vinha a passos lentos e compassa- dos, com palavras modestas e olhar humilde, saudando os circumstantes com uma Avè-Maria. Régnier foi esconder-se detraz de uma porta, sem que a velha desconfiasse, e d'alli prestou ouvido attento á conversação da beata, que de- pois dos logares comnuins de moral edificante, entrou descaradamente no as- sumpto da sua visita, dizendo á rapariga, que visto ser tão bella, devia ter bellos vestidos.

A velha conhece um homem rico, enamorado da donzella, e que não de- seja senão fazer despezas para a obsequiar. Portanto, logo que quizer, terá se-

■)06 HISTORIA

(las, pérolas o, rubis, o fudo quanto concorre paia f.i/.i-r realçar a belleza de uma mulher.

A namorada de Régnier escuta com espanto os conselhos da beata, que ella estava bem longe de esperar. A velha é uma execravei corruptora, que sabe expor com a máxima impudência toda a doutrina da prostituição. O que é a honra ?

La sage le sail vendre, ou la soUe le donne.

A mulher prudente sabe vendcl-a, a néscia cede-a gratuitamente. E, con- tinuando a disertar sobre este thema, a pérfida conselheira desenvolve sem pu- dor algum os horríveis mysterios da prostituição, empregando toda a sua ha- bilidade e eloquência, com grande espanto da rapariga, que apesar de não po- der dizer-se uma vestal, não era todavia uma prostituta. Despoja-se, portanto, de toda a sua hypocrisia, mostrando-sc tal qual era, para deslumbrar a sua victima, para fascinar a pobre, que assim vae ensinando na arte de enriquecer por meio da deshonra.

Minha filha, óiz-lhe ella com a sua voz mais doce e acariciadora, en- Iregue-se ao amor, e saiba vcmder por bom preço os seus favores. E' gloria para nós acceitarmos o que nos oflerccem aqueiles que conquistámos. Venda esses doces olhares, esses sorrisos, esses attractivos :

«Yenda-se a si própria sem se sacrilicar.

«Conserve a sua liberdade e o seu orgulho. Conquistando o mais que pu- der, não se deixe conquistar nunca.

«Receba a duas mãos e não se esqueça de que o lucro é agradável, ve- nha elle d'onde vier.

«Estime os amantes na proporção do que renderem : aquellc que mais dér seja o preferido.

«Não os avalie pela cara, mas sim pela algibeira; um villão rico vale mais (|uc um fidalgo pobre.

«Eu nunca aprecio os homens pelo que são, mas sim pelo que têem.

«(Juando o dinheiro se mistura, quem poderá saber qual foi o do es- cravo ou o do senhor?

«Os pintalegretes da corte não são mais do que vento e fumo. Belios, bem vestidos, cuidado.samentc penteados, isso é verdade: tracla-sc de pagar ? Oesfa- zem-sc em cortezias c galanteios.. . e nada mais!

«Quem SC deixa embair pelas suas maneiras, arrisca-sc a morrer de fome.

«(Juem joga a credito está de mal com o dinheiro.

«Acceite prelados, filhos de capitalistas e demais galans d'esta polpa : é uma seara em que ha sempre que ceifar.»

Minha filha, continuou a velha, depois de ter expendido estas theorias, sei de muito boas pes.soas que suspiram por si . . . A menina é tão gentil! olhe, para lhe faiiar com Iraijueza, tantos tidalgos me teem fallado, a seu respeito, que nen) sei por onde começar!. . .

llégnier eslava furioso, e não poude conter um movimento de cólera. A

DA PROSTITUIÇÃO 5^7

velha vollou-se, surpreliendida de ter ouvido aquelle ruido inesperado, e notou com espanto que havia alli uma testemunha. Levaniou-se no mesmo instante, e apressou-se a sahir, dizendo á rapariga em voz baixa :

A'manhã voltarei, adeus!. . .

A primeira ideia do poeta foi tomar alli mesmo cruel vingança daquella perigosíssima adversaria da sua felicidade. Não quiz, porém, envergonhar a sua amada, provando-lhe que ouvira os bellos conselhos e máximas da asquero- sa e repugnante sereia. Contentou-se com amaldiçoar em segredo a velha me- dianeira, que se propusera arrebatar-lhe o coração da sua amada, corrom- pendo-a.

E, com elíeito, o coração da rapariga, até então nobre e generoso, em- briagara-se agora de ideias de ambição, e estava em muito bom caminho de se deixar arrastar ao abysmo. Macette triumphára, e Régnier, pouco depois, fu- rio.so de se ver supplantado por um rival, cujo mérito não passava além da al- gibeira, stygmatizou cruelmente nos seus versos a velha abominável que o de- mónio da luxuria trouxera a casa da sua amada.

Vamos dar algumas das sextilhas do poeta, que decerto perderiam na pa- raphrase uma grande parle da sua vehemencia :

Esprit errant, âme idolatre, Corps verolé, couvert d'emplâti'e, Aveuglé d'tin lascif baudeau ; Grande nyinphê à la harlequine, Qiti s'esl brisé lanl Veschine, Dessus le pavé d'uii bordeau ! . .

Je veiix que parUmt on fappelle Louve, chienne el oursc cruelle, Tant dérlt que délà des iiwnts ; Je veux que de plus on ajoiUe : Voila le grand diable qui joule Contre 1'enfer et les démons.

Je veux qit'on crie ainsi la rue : •iPeuple, gardez-vous de la prue, Qui délruit tous les esguillons. Démandant si c'est aventure Ou bien un effecl de nature. Que d'aecoucher de cardillons.»

De cent dons elle fui formée, Et puis, puur en êlre animie, On la frolla de vif argent : Le fer fut première malière, Mais meilleure en fut la dernière, Qui fil son cul si diligeiíl. Depuis, honorant son lignage,

Elle fit voir un beau ménage, D'ordure et d'iiiipudicilés, Et puis par Vexcés de ses flanimes, Elle a produil filies et femmes Au chanip de ses lubricilés.

558 HISTORIA

Vieille sans dents, grande hallebarde. Vieuxbaril d mettre moutarde, Grande inorion, vieu.r pol casse, Plaque de lit, corne à lanterne, Manche de lut, corp de gxdterne. Que n'est-tu déju in pace?

Vous tous qui, malins de naUire, En désirez voir la peinture, Allez-vous en chez le hourreau: Car, s'iln'esl touché d'inconstance, II la fait voir à la potence. Ou dans la salle du bordeau.

A vingança de Régnier immortalisou assim o nome de Macette, que foi desde então synonimo de Maquerelle, palavra que a lingua erótica, tanto a fal- tada como a escripta, conservava ainda.

N'essa épocha, o poeta, apesar de todas as decepções porque tiniia pas- sado, estava longe ainda de ser prudente. E, no emtanto, estava cheio de achaques e dobrara-lhe o corpo uma velhice prematura. No emtanto, apesar de o dominar ainda a paixão das mulheres, não ia procural-as aos mesmos loga- res. Evitava entrar nos bordeis e antros de corrupção. Attendia mais alguma cousa á sua saúde, e deixara de correr ás cegas, como até ahi, atraz dos pra- zeres.

Na sua Epistola ao senhor de Fourquevaux, que não é, como muita gente suppoz, o pseudonymo do senhor d'Esternod, ou Desternod, desenvolve com um cynismo, que não é completamente destituído de ingenuidade, a sua nova theoria de amor. Tem, como sempre, uma decidida aversão pelas damas de alto cothurno, porque diz elle que não gosta de se servir de chapéu na mão. Não quer estar sempre ao remo, como um forçado, o que prefere é ser livre, e com o dinheiro na mão escolher á vontade o género, na vasta feira do amor:

La grandeur en amour est vice insupportable. Et qui sert hautement est toujours misérable ; II n'est que d'être libre, et en deniers comptants, Dans le marche d'ainour acheter du bon teitips, El pour le prix cominun choisir sa marchandise.

Violet-Leduc, na sua edição de Régnier (Paris, P. .lannet, 1854) diz com razão a propósito d'esta epistola :

«Seria tão diíhcil desculpar a Régnier a escolha do assumpto, como a maneira por que o tractou. Esta obra não pode dar senão muito ideia da de- licadeza e dos costumes do seu auctor.»

Régnier sentia-se velho, apesar de não ter ainda quarenta annos. Come- çava a ter medo também dos perigos futuros, e deixava de boa vontade em lierança aos seus successores :

Les boutuns du prinlemps et les autres fleurelles, Que l'on cueille au jardin des douces amoureltes.

DA PROSTITUIÇÃO 559

O poeta tinha um pronunciado horror pelos remédios e ingredientes de botica, detestava o mercúrio, a agua forte, e os sudoriferos, que lhe haviam rou- bado as forças. Tinha um braço e uma perna dormentes e «como um mari- nheiro, que se houvesse livrado de uma tormenta» jurara não tornar a embar- car no mar da prostituição. O seu sonho dourado era então uma concubina, em cujos amores pacíficos e seguros podesse descançar as suas paixões eróticas. Mas o pobre poeta não podia realisar este roubo, senão depois de sahir das mãos dos seus refundidores.

«Régnier, diz Tallemant dcs Reaux, na historieta de Desportes, morreu aos trinta e nove annos de edade cm Rouen, onde tinha ido curar-se com um tal Sonneur. Apenas obteve algumas melhoras, resolveu obsequiar os seus mé- dicos com um banquete, em que se serviu vinho novo de Hespanha. Os médi- cos deixaram-lh'o beber por condescendência, mas o resultado foi acommettel-o uma pleurisia, que o arrebatou em três dias (22 de outubro de 1613.)»

O eminente poeta satyrico, apesar da sua libertinagem foi muito feste- jado pelos seus contemporâneos, sem que pessoa alguma lhe censurasse a li- cenciosidade das suas poesias, que não eram ainda assim tão livres como as de Sigogne, Desternod, Motin e Theóphile. Ainda mesmo que Régnier possa con- siderar-se o mais notável poeta da prostituição, devemos citar aqui as palavras de Viollet-Leduc, na sua Historia da Salijra em França: «No tempo de Ré- gnier, só a palavra Satyra envolvia um sentido obsceno.»

O austero Boileau, não attendeu decerto aos usos e costumes da épocha, ao dizer de Régnier, na sua Arte poética :

Heureux, si dans ses vers, pleins de verve et de sei, II ne menait souvent les muscs au bordel, Et si, du soii hardi de ces rimes cyniques, II n'alarmait souvent les oreilles pudiques.

Caso digno de notar-se. O critico para não cahir no defeito que censurava ao cantor de Macette, depurou a forma dos dois primeiros versos, attenuan- do-os, mas sem mudar cousa alguma á sentença que havia publicado a res- peito do mestre da satyra :

Heureux, si ses discours, craints du chaste lecteur, Ne se sentaient des lieux, que fréquentaient Vaucleur.

CAPÍTULO XLIII

SUMMARIO

Os imitadores de Rtígnier.— O senhni- d'Esteruo(] r o seu Expadon.—Vmn lioa fortuna rio poeta satyrico.— O paranympho da velha beata.— A bclla Magdalena.— O senliorde Courval-Sounet.— A eensura das inulberes. CoDselbos a uma i'oitezã. Cs exer cicios d'ai|ueile tempo. U baile. O passeio. O libertino. —O processo de Tlieophilo Viaud.— Collecçõcs de versus satyi icos O Pariiusn satyrico.— A vingaufa do l'aiire Uerasse e dos jesuí- tas.—Nova jurisprudência contra os maus livros e discuríos i bscenos.

ATHURiN Rógnier não foi o

nico poela (rafiiiolla ('•pocha cm i|iie SC encontra uma viva c fra.ica piíilura da prostituição. A maior |)arlc (los poetas, seus contemporâneos e imitadores, não recoia- vam deslionrar-se frequentando tabernas e bordeis. Era muito natural, pois, que a licenciosidade dos seus costumes se refle- ctisse nus suas obras. Além d'isso o género de poesia mais grata por esse tempo aos leitores da boa sociedade era a satyra. bem que muitas vezes as diversas composições não inscrevessem este titulo.

«Os auctores e provavelmente o publico, diz Violet Leduc, na sua His- toria da Sati/ra em Fra)iça, tinham por esse tempo a opinião, talvez por causa da meã orientação dos seus estudos, de qu ' o estylo da satyra devia ser con- forme com a supposta linguagem dos satyros, divindades lascivas dos gregos.» D'aqui a obscenidade, ou pelo menos a licença, da maior parte dos ver- sos satyricos.

Não é nosso intento ir buscar aos poetas da esciíola de Régnier todos os dados, que alli se possam encontrar a respeito da historia da moralidade pu- blica nos princípios do século xvii. Procuraremos tão somente escolher n'al- gumas collecções de satyras, publicadas por ;ujuelle tempo, diversos quadros de costumes, que completarão o que Régnier pintou do natural na sua Macette e no seu Mauvais íjite.

Estes novos dados, colhidos cm livros raros e bem pouco conhecidos, re- produzirão sob novas phases a physionomia essencialmente móbil da prostitui- ção, embora se reconheça sempre nas satyras, que sob este ponto de vista va- mos citar, a evidente intenção de luctar com vantagem contra o auctor de Ma- cette, n'esses domínios verdadeiramente escabrosos do seu génio libertino.

O senhor d'Esternod é o primeiro a apresenlar-se com uma imitação muito inferior, embora notável, da Macelte. E.sla satyra de Uégnier obtivera tantos applausos, que tirou o somno aos poetas contemporâneos.

HUTOKIÀ DA PaOSTITlUpÃO. TOMO II— FoLHA 71.

562 HISTORIA

Cláudio d'Esiernod, ou Desternod, não era, como alguns suppuzeram, o pseudonymo de Francisco de Fourquevaux, amigo de Régnier, nias sim um fidalgo de Salins, que não cultivou as musas, senão depois de haver passado a sua juventude na carreira das armas. A sua poesia resentia-se, portanto, da rudeza e licença da sua primitiva profissão.

Apesar de ser governador do castello d'Ornans, na Borgonha, este cargo militar deixava-lhe muito tempo livre para ir a Paris, onde as suas relações com os poetas o levavam muitas vezes á libertinagem. Embora, porém, os poetas seus companheiros de prazer fossem na sua maior parte atheus ou epicuristas, como Theóphile e Berthelot, Desternod continuava sempre a harmonisar os seus costu- mes licenciosos com uma grande piedade c até mesmo com uma e.specie de zelo fanático pela religião.

N'um dos capítulos do seu Espadon, livro satyrico, impresso pela primeira vez em Lyon em 1619, Desternod verbera com uma energia brutal, de caserna, a hypocrisia de uma mulher, que se fingia devota e deu atinai em prostituta Esta mulher, que o poeta não nomeia, era d'essas que encobrem as suas torpe- zas com a mascara da virtude, e que são tão estimadas geralmente, quanto se- riam desprezadas, se ,se conhecesse melhor a sua conducta. N'aquelle tempo abundavam mais do que hoje as hypocritas d'esta laia, e Desternod não se dei- xava enganar pelas apparencias.

«Ha mulheres, diz elle, que passaiu o dia inteiro na egreja, depois de eu próprio as ter visto toda a noite no bordei. Uma d'eslas conheço eu que é uma Lais e que se faz uma virtude:»

Et telle est aii sermoji, tant que le jour riDUx luil. Que j' ai vu au bordeau tniit le long de la nuit: Or une j'en. coimais de semhlable farine. Qui est une Lais et fait de la Pauline.

Esta mulher, devassa e hypocrita, esmola quando a vêem, falia em cousas santas, taes como agua benta, indulgências e jubileus, passa e repassa sem cessar as contas do rosário, e parece não pensar nas vaidades do mundo nem nas obras do diabo. Uma noite Desternod sahiu de casa triste e pensativo e com a algibeira completamente vasia. Era esta afinal a causa da sua tristeza, porque havia perdido ao jogo até o ultimo escudo.

Caminhava de fronte abatida como um velho, retlectindo na sua penúria, que o não deixava ir a um d'esses sitios onde tudo se paga. Caminhava ao acaso, por assim dizer, arrancando os cabellos, sem descobrir o meio ou de arranjar dinheiro, ou de passar sem elle. .

De repente, ouve o ruido de uma (iua<lrilha de ladiíies, ((ue ao tempo infestava aquelle bairro.

Para evitar o encontro, apesar de nada ter que perder, além da capa, entra n'uma ruasita eseu.sa e tenebro.sa, <■ esconde-se no vão de uma porta.

Ao mesmo tempo, quasi, abre-se unui janella por cima da sua cabeça.

O passeador nocturno imnie liatamenle um pulo para o lado, receiando um banho, (|ue não scvria por cerlo de agua de rosas...

DA PROSTITUIÇÃO 563

A LTÍada, porém, aprossa-se a traiiquillizal-o, dizondo-llie da janclla:

Olá, meu caro senhor! Queira esperar que eu desço n'um momento. O poeta não responde, suppondo que talvez não se entendessem com

pile aquellas palavras, e ia relirar-se discretamente, quando a porta se entrea- bre e a criada lhe diz em voz baixa :

Entre, meu senhor, mas não faça bulha, e desculpe não ter luz, mas assim c preciso.

O poeta não pôde duvidar de que o tomam por outro, e hesita em conti- nuar aquella estranha aventura. A criada (juebra toda a hesitação de Desternod, empurrando-o para dentro e fechando a porta logo em seguida.

Resigna-se, e deixa-se guiar pela mão até ao leito de uma dama, que o esperava, ou esperava por outro, metlida entre os lençoes. A beldade dirige-lhe a palavra, como se fora um antigo conhecimento. . . O poeta tinha ido muito longe para retroceder.. . Deita-se, portanto, sem dar palavra.

Não havia luz, recordam-se ?

E Desternod d'ahi a pouco arrepende-se de não a ter pedido, porque co- meça a ter grandes suspeitas de que está deitado com uma velha!. . .

Quando, à força de apalpadellas, chega a convencer-se da sua desgraça, resolve abandonar a partida, sem mais cumprimentos nem delongas.

A velha, surprehendida d'aquellas maneiras, chama a criada, que traz fi- nalmente luz.

A dama, reconhecendo o seu detractor, quer esconder-se debaixo da roupa. Enganara-se; não era aqueile homem quem ella esperava!...

O poeta, reconhecendo a beata, diz-lhe sarcasticamente :

Deus, nosso senhor, nos muito boas noites, mamã!. ..

Quem diabo o trouxe aqui? perguntou a beata, desesperada.

A minha fortuna maldita, responde o poeta:

Ma fortune maudite, Qui vnulait que je susse qu'étiez une hypncrite.

A beata desolada supplica-lhe que seja discreto e não queira perder uma pobre mulher a quem acaba de deshonrar.

O poeta, sempre irónico, tranquillisa-a o melhor que p<5de.

Descance, diz-lhe, lenho ainda mais interesse que a senhora em que este caso não transpire.

E porque? pergunta a velha, muito surprehendida.

Porque a sua conquista serôdia seria para mim uma grande vergonha! No emtanto, faz pagar o silencio pedido, e não sahe d'aquella casa, sem

obter dez escudos pelo serviço que prestara á pobre velha, sem ter mesmo o pudor de lhe fazer suppòr que pretendia distribuir aqueile dinheiro pelos pobres. O deplorável e infame desenlace d'esta aventura não nos deixa conceber uma opinião muito lisongeira da moralidade do senhor Desternod. De resto, apenas se apanhou fora, a primeira cousa que fez foi revelar o segredo pro- mettido, e demais a mais pago. Parece até que nem mesmo occultou o nome

Ò6Í HISTORIA

da dama, por isso que compoz em verso o jiardiiiimiiho da vellia, em recom- pensa do favor que llie devia:

«Unia vez que tantas finezas te devo, oii velha, que por alguns instantes me tiveste amor! Serás o meu eondestavel, no dia cm que me fizerem rei!...

«Nunca a tinha ou a sarna, a cn\ai[ucca ou os laparões te persigam, velha de Satanaz ! Quando a morte vier Í5uscar-te, oxalá que dois burros te levem ao paraizo n'uma liteira !. . .

Este senhor Desternod, que havia feito as suas primeiras armas poéticas, com a armadura de soldado envergada, conservava nos seus costumes e lin- gungem toda a grosseria da sua antiga pr lílssão, e não contava com a algi- beira, quando queria com|)iar género, mais ou menos avariado, no mercado da prostituição. Vinga-se com versos acres e venenosos de uma mulher a quem chama a.hella Magdalena, que não se lhe quizcra vender por cincoentas pistolas. Por algumas passagens d'esta composição poética, pôde julgar-se que esta mu- lher era um manjar destinado ao appetite sensual de um grande fidalgo, se- gundo corria, a ponto das vellias provenetas, que tinham descoberto a mina, contarem fazer com ella um bom negocio. Vigiavam-na de perto, e Desternod bíilia em vão áquclla porta.

Irritado con> a resistência, o poeta vomita todo o seu despeito n'uma poesia de bordel, em que enche de invectivas a desgraçada, que não quer recebel-o. Chama-lhe velha, diz que não tem amantes, porque todos a abominam, de- clara-a miserável, atormentada pela recordação das boas fortunas que desdenhou, e que nunca mais voltarão.

A veliiicedas mulheres dissolutas era decerto pouco respeitável. Desternod, a este respeito, era um poeta implacável. Não perdoava nunca, sobre tudo ás vcdlias peccadoras, que em vez de fazerem penitencia pelas culpas da mocidade, procuravam ainda, graças ás ficções do toucador, continuar na mesma vida. A essas é que elle de preferencia açoita com o látego da satyra :

Ces láches demoixelles, Qui repaírenl Icurx fronl :, du)xissent leiírs mainelles, l{everdis.<ent leitr .tcin, Ictir peaii vont corroyanl, Alignent leurs sourcils, li'urs chereux vont poudranl, Vermillonanl Icur joue, cncroiislanl letir.f visages.

Desternod tomava por modelo a Rcgnier, e todos os poetas de taberna e de bordel, seus cmulos e seus amigos. O mesmo género de vida ociosa e des- regrada devia produzir o mesmo género de poesia. De Régnier a Desternod havia, porém, a mesma distancia, que vae di' Paris ao castello de Ornans.

O auctor do Espadon satyrique encontrou também nos logarcs suspeitos esses achaques vergonhosos que foram sempre os satellites da prostituição. A exemplo de Rcgnier, não teve escrúpulo de cantar as suas desventuras. Mas n'esla ode obscena e torpe, em que brilha um csiro digno de melhor emprego, Régnier liça muito atraz do poeta da Borgonha. Desternod tinha a brutal franqueza de um soldado, c valia-se (rdla para denunciar ao publico a ovelha ranhosa, que pretendia c\pul.sar do rcdil da prostituição. Não se arrepende de ter vivido de-

DA PROSTITUIÇÃO 565

saforadamontp, mas accusa-sc de ter confiado n'uma miserável, que tantos ha- via iiludido.

Não era uma verdadeira loucura procurar alli os meus amores ? diz o incorregivel libertino.

A satyra eslava em moda n'a(]uellc tempo, e os satyricos, sem se im- portarem com o pudor dos leitores, perseguiam cruelmente a libertinagem, procurando fazer envergonhar a prostituição.

Um d'esscs salj^ricos, Tiiomaz de Courval Sonnet, era um pobre fidalgo normando, que tendo vivido em Paris no tempo de Maria de Medicis, para es- tudar medicina, teve a ideia de fazer versos contra os costumes da capital. A leitura das suas poesias, em que o poeta se mostra grandemente animado do ódio do mal e do amor do bem, dá-nos uma favorável ideia do seu caracter e sentimentos, apesar das expressões triviaes e das imagens cynicas, que pulul- lam na sua obra, dedicada á rainha. Era o gosto do século, e a linguagem dos próprios cortezãos parecia inspirada nos costumes das Cortes dos Milagres. Deve suppòr-se, todavia, que Courval Sonnet não vivia na crápula como a maior parte dos seus collegas, podendo mesmo afiirmar-se que tinha uma vida regu- lar, que nunca manchara no lodo dos bordeis.

A sua primeira collecção, que appareceu em 1G2I, (Paris, Rolet-Boutonné, in-H.") prova a aversão e a desconfiança que o auctor tinha contra as mulhe- res em geral. Na satyra sexta, intitulada Censura das mulheres, faz uma des- cripção muito desfavorável do bello sexo, ao qual atira com muitos punhados de injuriosas metaphoras.

«Inferno dos espíritos, diz elle, paraizo do olhar, sepulchro dos fracos, purgatório da bolsa, porta do hospital, etc. etc.»

Sonnet, na sua qualidade de medico, pretende curar a libertinagem com o quadro dos estragos materiaes que as mulheres licenciosas produzem quasi sempre aos seus cúmplices.

«Essas mulheres, diz elle, desfolham as flores da juventude, empanam o brilho da belleza, antecipam a velhice, arrugam e murcham a pelle. O que suceede, sempre que se abusa das mulheres publicas do bordel.»

O poeta abre uma excepção respeitosa a favor das damas virtuosas, de- clarando que se dirige tão somente ás mulheres de maus costumes. Se lhe der- mos credito, porém, a prostituição existia em toda a parte, e as damas mais illnstres não desdenhavam entregar-se a este oíTicio. Compara a mulher leviana com uma barca, em que se navega pelo rio da juventude.

«Ainda, se a barca apenas servisse a um só! Mas es.se sexo infiel, pér- fido e inconstante, entrega-se de ordinário, ao primeiro que deseja passar a tor- rente dos prazeres do amor. . . (Juantas não vemos por ahi, servindo de barca de aluguel, vendendo-se como mercenárias, e para que? Para terem uma jóia um annel, um collar, ou outra qualquer vaidade :

liien que méchanceU ne sort de leur boutiiiiie, Et rare est le bienfait qu'une pulain pratique.

N'este ponto Courval Sonnet intcrroinpc-se, porque receia ter ultrajado

566 HISTORIA

todas as mullieres, revelando assim as desordens de algumas, e por isso vae reparar o seu erro, particularisando d'esle modo os seus epigranimas, que ti- nham uma tendeneia demasiado geral e pareciam dirigidos a todo o bello sexo:

Ce discours seulevtent s'adresse atix vicieuses.

O poeta entende por viciosas as mulheres de maus costumes, que não se importam cora os meios, quando se trácia de ganhar dinheiro.

Na sua Censura das mulheres, muilo inferior á celebre satyra de Boileau sobre o mesmo assumpto, Courval caracterisa especialmente duas classes de prostituição, muito vulgares n'aquclla épocha : a prostituição das mulheres e a dos homens, não tendo tanto uma como a outra por fim senão sustentar as exi- gências do toucador. As mulheres, cuja ambição não vae além de uns tantos escudos por conquista, entregam-se a todos os que podem |)agar-ihes; os ho- mens desprezíveis, que se dão a tão abjecto modo de vida, se dedicam a uma que pôde pagar-lhes e sustental-os. O papel dos galans d'esta espécie não se limita a satisfazer secretamente as brutaes paixões das velhas libertinas. O complacente mercenário, ao serviço de uma dama viciosa, deve leval-a aos bai- les, dançar toda a noite com ella, e acompanhal-a a casa, para alli concluir o seu serviço diário e receber a paga :

Le ba.i de soie, ou 1'habit de satin. Les jarretiers denteies, 1'écharpe en broderie.

A expensas da sua amada, o galan apresenta esplendidos trajos, sem gas- tar um ceitil.

Parece inacreditável que uma collecção de versos, escripla n'cste eslylo, fo.sse dedicada á rainha-mãe, a Maria de Medicis, que apesar de italiana, foi ir- reprehensivel nos seus costumes. Surprehende lambem egualmente que Cour- val Sonnet, fidalgo de boa casa, introduzisse nas suas poesias moraes a infame gyria dos bordeis. Temos de dizer, em sua dcfeza, que a esse tempo as pala- vras mais obscenas tinham entrada até mesmo nos sermões, e mais ainda na poesia, que fazia uso dos .seus antigos privilégios, atrevendo-se a dizer tudo

Courval Sonnet exaggera a miúdo os factos. Assim, fallando dos cônju- ges, descreve-nol-os.

Se iiiettant en hasard des bourdeaux aux dlaples, De gagner, par argent, le royaume de Naples.

Não sabe, porém, dos limites da mais escrupulosa verdade, quando faz com mão de mestre o retrato de uma corfezã famosa, que ao envelhecer voltou ao primitivo ponto de partida, obscuro e miserável.

A Satyra xxv é dedicada a esta cortezã.

«Os freguezes desgostosos dirigem-se a outra parte, e vcs diminuir todos os dias o .seu numero. Fecha o estabelecimento. E'preciso que tomes outro gé- nero de vida, uma vez que não pertences ao bcllo sexo. A mulher que chega aos trinta annos, lorna-se feia; as rosas lambem se transformam em lixo.»

DA PROSTITUIÇÃO 567

Courval Sonnet aconselha á antiga ribalda que aproveite bem os seus der- radeiros dias. Adquira dinheiro por todos os meios possiveis, coinmova as suas victimas, dizendo-ihes que teme a justi\,'a e tem a roupa empenhada, reúna em- fím um pequeno pecúlio que liie pcrniitta viver nos dias da velhice. Ella, porém, não altende estes conselhos, nem prevê a chegada do tempo em que os recursos da prostituiçcão lhe hão de fallar completamente. Nem mesmo nota que vae en- velhecendo e enfada-se com o importuno que lhe faz advertências.

«Ninguém espere vêr-me fazer rendas ou tapetes, o trabalho mais leve ó para mim um supplicio. Uma vez que tenho com que viver, fallem-me em rir e não em trabalhar. U que eu quero é andar bem vestida, e passar alegremente o tempo. A mulher que vive de amores licenciosos não pensa no dia de ama- nhã!...

Courval deixa de lhe fallar a linguagem da razão e da prudência. O vi- cio n'aquella mulher é incurável. Por isso convida-a ironicamente a seguir a senda em que se perdeu; nada de remorsos, nada de pezares. Cada qual tem n'este mundo o seu destino: o de uma cortezã é morrer cortezã !

«Ostenta, zombando de mim, todos os utensílios de bordel que possues. Não tens, por ventura, um pente, um espelho, uma meza de três pés, um leque, um copo, agua de ílòr, alvaiade, pós, um par de luvas, que foram novas, uma caixa de unguento, um par de ligas, uma tigella, um prato, um guardanapo

Esta descriprão do ménatie de uma mulher publica em princípios de século xvu seria ainda exacta hoje em dia, se a referíssemos á maior parte das mulheres publicas da classe inferiur. Estas desgraçadas conservam a sua phy- sionomia e modo de ser, como o ollicio que as avilta. Courval continua a pintar do natural os traços característicos da cortezã, que chegcára ao limiar da edade da decadência:

«Já não podes saciar a fome com bons bocados. Apenas te resta, por man- jar delicado, pão duro e agua suja. Foi lempo em que comias à regalada do bom e do melhor; foi tempo cm (|ue te vias rodeada de amantes jovens e gen- tis? Como tu sabias captivar toda essa gente, para em seguida a expulsares, logo que maior interesse te seduzia! impudente! O teu olficio é infame e doce ao mesmo tempo! E'por isso que tanto te custa a deixar!. .

Courval Sonnet deixou Paris, logo que obteve o grau de doutor na fa- culdade de medicina. Não era novo então, e havia sabido incólume de todas as tempestades da juventude. Partiu para Hnuen, onde ia exercera sua profissão. AUi, ao passo que assistia aos enfermos, compunha satyras, que tinham ainda por fim corrigir os costumes, segundo parece, tão corrompidos na província como na metrópole. Publicou, sob o véu do anonymo, os Exercidos d'esle tempo, que mereceram a honra de muitas edições successivas, sem que o poeta pensasse em expurgar a sua obra das incorrecções e grosserias de eslyio que a afeiavam. Este livro é um bosquejo curiosíssimo de costumes deveras inte- ressantes para a historia da prostituição.

«Courval não imitou Régnier, senão no qu í este tinha mais digno de censura, diz Violet-Leduc, e nem mesmo se deu ao trabalho de dissimular os seus plagiatos. O seu Libertino e o seu lijnoranle foram calcados sobre as su-

568 HISTORIA

Ivras X c XI de Régnicr. Na sua qualidade de medico, abusou das palavras e das descripções, tão impuras e torpes como repugnantes.»

Occupar-nos-hemos aqui tão somente das Satyras i, ii e xi.

Intitulam-se o Baile, o Passeio e o Libertino. A primeira prova-nos que no século xvii havia l)ai[es públicos, análogos aos que actualmente estão em moda em Paris, e em todas as grandes cidades da França, exercendo uma in- fluencia perniciosa nos costumes do povo. No tempo de Courval Sonnet, ia-se a estes bailes procurar aventuras amorosas. Eis o que a este respeito nos diz n'uma satyra, em que elle próprio se põe em scena :

«Os desejos depravados entram em acção no baile, templo libertino, onde outr'ora a mocidade ia como ao bordel procurar uma prostituta. Vede : Lustres, brilhantes, espelhos, bellezas, Cu|)ido em campo, amores por toda a parte! Se um vae alli para dançar, outro tem outros intentos. Um procura uma mulher outro procura amantes I . . . »

Como se vê, (lourval Sonnet não mudara de linguagem ao regressar ao seu paiz natal; n'esse tempo, todavia, o poeta não dedicava os seus ver- sos á rainha, que decerto não apreciaria em grande cousa a dedicatória da primeira collccção. O poeta medico dedicou a segunda á crilica dos cos- tumes normandos. O baile licencioso cm que introduz o leitor assimclha-se muito aos dos músicos da Holianda, e presumc-se que eslava estabelecido em Rouen, terra da residência do poeta.

Sonnet encontra n'esse baile uma mulher com quem entabola uma con- versação, que d'aiii a pouco escorrega para assumptos liceiuiosos. IN'esle de- clive, o poeta f.iz-lhc propostas muito transparentes, que a principio a dama recusa, atíectando uma indignação calculada.

(]omo ! exlama ella, cheia de pudor. Atreve-se a dizer-mc essas cou- sasl Sou uma mulher honrada, senhor!

E não obstante estas phrases, diz o poeta :

. . .deu.r heure.t devanl, auprés des chambrières, Un jeune rAtoalier lui tallait des croupières .'...

Depois de alguns momentos de airosa resistência, a dama concede a maior familiaridade ao seu namorado poeta, acceitando o cinvite que lhe fez, e comendo e bebendo como se tivesse jejuado dois dias. A gula fcl-a encher tão desmedidamente o estômago, que teve de sahir do baile para se livrar de uma parte d'aquella indigesta carga. Apenas ficou algum tanto alliviada, volta á sala do baile, e pouco depois ao gabinete. IVesta vez retém melhor o que come, e liça pre|)arada para supportar as fadigas da noite. Feito isto, sabe do baile com o poeta, dizendo:

Si chasl on en revienl, c'est graiid coup d'avcntiire: De la lable á la danse, el de la danse nu licet.

Tal era o Haile, e o Passeio não é muito dittcrente. O nosso poeta en- contra outra beldade a quem pretendia, sem ler jamais obtido d'ella nem se-

DA PROSTITUIÇÃO B69

quer uma esperan(;a. DVsla \n convicla-o a ir passar o dia a uma casa de re- creio, onde devem reunir-se alegres convivas. Courval não resiste á seducção, e acceita o convite. Entra n'uma carruagem com a sua sereia, e deixa-se con- duzir a olhos fecliados a um retiro campestre, onde encontra reunidos vinte ou trinta pares de namorados, que não fazem outra coisa em todo o dia senão en- tregarem-se ao prazer nos massissos de dores. E' uma alegre saturnal, que o poeta nos descreve com o seu cynismo costumado, sem esquecer o pittoresco do sitio,.

Ok respire d'Àinour, ou Vénus prit naissance.

Não nos conta .se também se entregou aos excessos do mau exemplo, mas admittindo mesmo que fosse bastante senhor de si, para se subtrahir aos perigos d'aquelle logar voluptuoso, foi pido menos testemunha dos escandalo- sos actos de prostituição que alli se priticaram ao ar livre. Todos aquelles amantes impudicos e desavergonhados renovavam entre si as scenas vergonho- sas dos antigos mysterios d'Isis!

Oiurval Sonnet nada omittiria de tu lo quanto viu n'aqelle i'eeinlo, (|ue poderíamos denominar da prostituirão publica, se não IIkí tivessem faltado pa- lavras para todos os quadros, se tivesse sabido pintar d'uma maneira viva e piltoresca as singulares recordações d'aquelle seu passeio ao campo. De resto, lembra-se com tristeza e repugnância d<! um espectáculo que o fez indignar contra o belio sexo, e termina assim a sua satyra, recordando os famosos ver- sos de João de Meung- contra as mulheres:

Ainsi s'accerait le lice et pulliile en l.ous lieu.v: Si l'une fait du mal, Vautre ne fait pas mieux, Car tnutes vous serez, oous ctes, mi vous fútes, De fait, ou de puissance, ou de volante, puies ! .

Na satyra intitulada o Libertino, ('ourvai Sonnet traça em versos esplen- didos um episodio da prostituição vagabunda, que não devia ser rara n'aquella épocha, em que as províncias eram continuamente atravessadas por bandos de ciganos, que viviam fora da sociedade sem conhecer rei nem roque, entregues desde a infância á prostituição. .4 estas tribus errantes iam frequentemente os homens viciosos procurar prazeres mercenários e depravações precoces.

Todas as mulheres, que faziam parte d'esta população nómada, eram desde os dez annos exercitadas no infame trafico, e tanto os costumes como a saúde publica soflriam a perniciosa influencia d'aquella gente vil, que deixava por toda a parte um largo rastro de manchas vergonhosas.

Sonnet, no Libertino, dá-nos talvez uma scena da sua juventude, para contar como foi castigado na sua primeira campanha, a qual serviu, ((uando menos, para o tornar prudente, inspirando-lhe além d'isso o horror do vicio.

«Oiado sob a vigilância de uma mãe severa, filho familia, sem dinheiro nem credito, e ainda por cima cheio de dividas, inchado de ambição, de vai- dade, de orgulho, mas sequioso de amor, sahi um dia de casa de meu patrão, BuTOBU t)k PnosTiTinçÃo. Tomo n— Folha 72.

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com a roupa debaixo do bra^.'!), tros ducados e dez soldos na algibeira, e uns sapatos novos nos pés, para andar melhor.»

Era esta toda a fortuna do pobre rapaz, que se aíTastava alegremente de Rouen, ou d'outra cidade qualquer da Normandia, para ir procurar fortuna a outra parte. Cbega de noite ao logar de Saint-Martin, e encontra um bando de ciganos, que pernoitavam alli, vagabundos e charlatães, ciganos, jogadores, prostitutas, alcoviteiras, mulheres, crianças, pagens, macacos sábios, carroças cheias de drogas, perfumes, ouropéis e mercadorias de toda a espécie, que formavam o commercio d'aquelles vagabundos.

O recem-chegado approxima-se de uma das carroças «para vêr os uten- sílios» d'aquelle commercio, e especialmente uma das raparigas, que «lhe ca- ptivara o coração com o encanto dos olhos». E', porém, mal acolhido pela es- quiva beldade, que o repelle, ameaçando-o de lhe fazer levar uma boa sova. Bem depressa se mostra mais accessivel. Vem ter com aquelle novato, que mal sabe fallar de amor, e leva-o para um quarto da estalagem onde podem fallar a sós.

Apenas chegam, sentam-se n'uma tarimba, e a rapariga desata a chorar amargamente, lamenlando-se da sua sorte, e dizendo que é uma mulher de boa familia, roubada por aquellcs charlatães, e retida alli à força, n'uma vida, tão pouco adequada ás suas ideias c ao seu nascimento.

O nosso galan enterncce-se e fica mais enamorado ainda do que estava. Jura á sua bella libertal-a d'aquella odiosa escravidão e restituil-a á sua familia.

Ajustam uma nova entrevista para a meia noite, e á hora combinada os dois amantes encontram-se a cem passos da estalagem.

«Ella traz debaixo do braço um cofrezinho, em que mettera dois lençoes, um pente, um cinto de prata, umas luvas c umas ligas. Era todo o seu en- xoval.»

Esta passagem prova que as mulheres de vida, expulsas das cidades pela ordenação de 1560, se haviam acolhido ás companhias de mercadores am- bulantes, de cómicos e charlatães, entre os quaes nunca deixava de figurar a prostituição mais crapulosa.

A chegada de uma d'estas companhias a uma cidade era assignalada pe- las maiores licenciosidades e quando a auctoridadc civil ou ecciesiastica conhe- cia estes excessos, que se manifestavam de repente n'uma povoação honesta e pacifica, os auctores do escândalo haviam levantado arraiaes, sahindo de uma terra, onde tantas victimas tinham feito.

A joven e seu raptor, (emendo ser perseguidos pelos ciganos, caminham toda a noite, muito leves de roupa e de dinheiro, e chegam de manhã a uma aldeia, onde se julgam ao abrigo de qualquci- perseguição.

Param defronte da ultima casa da aldeia e batem á porta. E' uma mise- rável tasca, onde costumam parar os carroceiros e outros homens de estrada, mas os dois amantes não se teriam julgado mais felizes n'um palácio, do que n'aquella casinha rústica, livre de visinhos e longe da estrada:

Ecarléc du rhcmiii cl loiíi dii voisinagc.

DA PROSTITUIÇÃO 571

Dão-llies um qiiartd indcpcndonto, para onde a rapariga manda levar vi- nho e presunto. Comem e beliem, e deitam-se d'ahi a poueo. O libertino não tarda muito em adormecer profundamente. A sua companheira não pensa em o imitar, c ao despontar do dia, foge com o dinheiro do incauto amante, que diz a este respeito,

Ah sortir du couclier, Ayant tire de moi ce qui m'esl le plus cher, Endormi de Iravail. las de Irop longue veille, Icre de ses appas, et d'excés de bouteille, Elendu dans le lit, sans poul, sans sentimenl. . . Troiisse qiiille et bcujage, et iu'enlève »i« bourse ; ['uis, droit oii je Vai prit, s'en rctnurne a la course.

Quando o pobre diabo acorda, c estendendo a mão, não acha ninguém a seu lado, chama, espera e desespera por fim, notando que a sua bolsa seguira o mesmo caminho da aventureira, que nem sequer lhe deixou com que pagar a despeza. i\ão pôde, portanto, sahir da estalagem sem deixar parte da ba- gagem.

Desgostoso da vida errante, e envergonhado de haver tropeçado logo ao primeiro passo, entra num convento que encontra no seu caminho, e pede alii hospitalidade.

O seu pensamento era fazer penitencia e consagrar-se a Deus. Tranquil- iizaria d'este modo a sua consciência perturbada, e teria esquecido a cruel de- cepção que havia recebido ao entrar na senda do peccado, se o não tivessem impedido dores agudíssimas. .\ prostituta que lhe havia roubado a bolsa, ape- sar de ser mulher de bem, como ella dizia, deixara-lhe bem cruéis recordações dos seus amores, recordações que de dia para dia peioravam de aspecto, to- mando um caracter grave. O infeliz não podia sequer occultar as vergonho- sas consequências da sua loucura, e viu-se obrigado a renunciar á vida reli- giosa, e a sahir do convento.

O seu mal era demasiado grave para ser tractado n'uma cidade de pro- víncia, e o pobre não tinha dinheiro para ir a Paris. Foi então que reflectiu a sério na sua imprudência e deu a todos os diabos a miserável que d"aquelle modo lhe viciara o sangue!

X doença teve tempo de fazer progressos horríveis, antes que o pobre libertino, que soíTria como um martyr, tivesse tempo para se entregar nas mãos dos médicos de Paris.

O tractamento foi tão doloroso como o mal, e quando o paciente poude julgar-se curado, não era mais do que um esqueleto, uma sombra, um velho decrépito e repugnante.

Voltou em tal estado a casa de seu patrão, que este compadeceu-se d'elle e consentiu em rccebel-o. Por experiência própria, e bem custosa na ver- dade, o rapaz sabia demasiado quão funesta é a libertinagem para a saúde da alma e para a do corpo, e leve todo o cuidado d'ahi cm diante, para não cahir de novo nas redes da prostituição.

572 HISTORIA

Escrevendo as suas salyras com uma pcnna molhada quasi sempre em lodo, Courval Sonnet, estava animado pcl» menos de boa intenção, ejactava-se de corrigir os costumes do seu tempo, que os poetas celebres tanto haviam contribuído .para tornar cada vez mais viciosos e corrompidos. Pode dizer- se que nunca a poesia franceza foi mais li(;enciosa, mais obscena e mais abo- minável do que na regência de Maria de Mcdicis. Parece que o seu único fim era exaltar até ao deiirio os sentidos, e celebrar escandalosa e impunemente os ditos e os feitos da mais infame prostituição.

A juventude da corte era quem animava esta degradação da poesia, e quem dava sempre com as suas desordens e loucuras assumpto para as composições impudicas.

É de notar, todavia, que as primeiras perseguições exercidas contra um mau livro, que ultrajara os bons costumes e o pudor publico, datam d'essa épocha em que os Sigognes, os Motin, os Berthelot e os Théophile manchavam a lingua franceza, fazendo-a exprimir horríveis obscenidades, que antigamente se costumavam occulfar sob o véu das priapicas latinas. O processo de Théo- phile e dos seus collegas, a propósito do l^nrnaso satyrico, é o ponto de par- tida de uma jurisprudência complelaineiitc nova, que põe as obras obscenas na cathegoria das excitações á libertinagem, e que pede contas aos auctores d'es- las culpáveis tentativas de desmoralisação publica.

Esta jurisprudência, porém, ainda que baseada em razões de alta sabedo- ria, achou grandes dilíiculdades para se estabelecer em França, porque aflfe- ctava os hábitos liltcrarios e restringia as liberdades do espirito francez. Ainda ninguém havia suspeitado sequer que podesse existir delicto na publicação de uma d'essas obras yaiilardes, que não estavam sujeitas a nenhuma lei de de- cência, logo que não tocassem nem na religião nem na politica.

Théophile, porém, e os seus amigos commelteram a imprudência de allu- dir á religião, e de fazerem o que então se chamava atheismo ou epicurismo, compondo poesias livres. Estas poesias foram publicadas por livreiros, que ou- .saram pòr os seus nomes no frontespicio dos livros, que vendiam á vista dos magistrados no Palácio da Justiça. Tão obscenas eram essas poesias, que a gente chega hoje a perguntar com assombro, como os auctores e os livreiros- editores não se pejavam de se expònin assim á vergonha dos seus contempo- râneos e da posteridade !

No cmlanlo, livros taes eram o manjar predilecto da corte, e Théophile Viaud, (jue viera a Paris em 1610 para se tornar conhecido como poeta, re- cebeu maiores honras e applausos quando se fez o cantor d'eslas iníamias, do que todos os poetas que haviam empregado os seus talentos em composições lionestas e moraes.

Temos necessariamente de concordar com Violet Leduc que n'aquelle tempo .se entendia por satvra uma poesia livre e quasi .sempre obscena, e que os poetas sal\ ricos eram os (|ue dedicavam o seu cslro desaforado aos assum- ptos da prostituição. N'este conceito, Tlicupliilc era um mestre, e os seus cos- tumes licenciosos relralavam-se perrcilamenlc nos seus e.scriptos.

As pessoas honestas viam com indignação pullular estas poesias liceu-

DA PROSTITUIÇÃO 573

ciosas, que preverliam a juventude, dando pasto ás paixões sensuaes. Em 1617 o livreiro António Estoc deu á luz um volume intulado Colleci;ão dos mais ex- celleníes (sic) versos satyricos d'esle tempo, enconlra(h)s nos gabinetes dos se- nhores Sigognes, Régnier, Motin e outros poetas dislinctos d'este século. Esta coUecção, em que o desaforo do pensamento corre parelhas com o da linguagem, teve um êxito ruidoso entre os amadores, e a policia que não se oppozéra á venda d'esla primeira edição, não se oppoz também a que fosse reimpressa.

Billaine foi um dos livreiros mais em voga, que então fizeram uma edição augmentada d'estes versos licenciosos, (em 1618) sob o titulo de (iabi- nete satyríco ou collec^ão de poesias livres d'este tempo, compostas por Sigo- gnes, Régnier, Motin, etc. Ambas estas edições appareceram com privilegio d'el-rei. O editor declara n'esta edição de 1618, em uma espécie de prologo. que se esmerara em tornal-a mais perfeita e bem ordenada que a outra, em que havia desegualdades, misturas e confusões em tudo.

A primeira edição esgotou-se em ti'es mezes, a segunda desappareccu n'um periodo quasi igual, tendo o livreiro António Estoc de fazer uma nova edição em 1620.

Até então nem auctores, nem livreiros, nem editores, haviam sido in- commodados. Théophile, é verdade, foi condemnado a desterro temporário, em razão mais dos seus costumes, que dos seus versos, e em maio de 1619 rece- beu ordem de sahir do reino, mas ainda assim não permaneceu muito tempo em Londres, onde a sua reputação de poeta e as recommendações dos seus amigos da corte de França lhe mereceram o melhor acolhimento. Censurava- se-lhe, bem como aos seus amigos, Sigognes, Motin e outros satyricos, o haver deixado publicar uns versos licenciosos, que os amantes das lettras haviam ap- plaudido. Théophile, era subvencionado pelo rei e pela casa de Montmorency, Motin tinha uma prebenda em Bourges, Sigognes era governador do Havre.

Théophile teve a desgraça de se malquistar com o jesuita Gerasse, que na sua Doutrina curiosa dos melhores engenhos da épocha, o atacou do modo mais violento, apodando-o de libertina e atheu. O padre Gerasse levou o seu ódio e ao extremo de falsificar alguns versos do seu inimigo, aos quaes attribiiia um sentido anti-religioso.

Théophile chamou aos tribunaes o jesuita e o seu livro, que fez seques- trar e supprimir, depois de haver, provado com o manuscripto na mão que os versos por elle citados para o perder estavam singularmente desfigurados.

O jesuita não se deu, ainda assim, por vencido e publicou a sua Apolo- gia, em que não perdoava a Théophile, nem aos bons engenhos da épocha, ou pelo menos tidos como taes.

«Nunca, dizia elle (cap. xii, p. 132) foram tão vulgarisadas na Grécia as obscenidades de Carpocras, como as torpezas de Viaud, as blasphemias de Lucilio e as impiedades de Charron são conhecidas hoje em França.»

Atraz de Gerasse, porém, estava a companhia de Jesus, que havia jurado a perda de Théophile, tendo os jesuítas feito causa commum com o seu irmão em Christo, que ateava nelles o seu èspiril(» bellicoso.

Entretanto saliia em livro uma nova collecção de versos obscenos inli-

574 HISTORIA

Uilada : O Parnaso dos poetas salyricos, ou coUecrão de versos lyricos e sa- lyricos do nosso tempo. Esta collecção continha muitas composições poéticas sob o nome de Thcopiíilc, que não linha conhecimento d'esta inserçcão. Correu, no emtarito, o boato de que toda a collecção sahira das mãos de Théophile, e antes que os primeiros exemplares do Parnaso houvessem circulado, o poeta que soubera do caso que lhe attribuiam, foi o próprio a ir denunciar o livro ao preboste de Paris, declarando que se iiaviam incluido n'clle, a seu pesar, varias poesias que elle realmente compozera, mas que não haviam sido desti- nadas á imprensa.

Em virtude d'esta espontânea declaração, o preboste passou um man- dado de prisão contra o editor e o impressor, fazendo ao mesmo tempo seques- trar e destruir a tiragem. Parece, porém, que esta destruição não se levou a eflcito, e os exemplares, para os quaes se fizeram novos frontespicios, sem nome de imprensa, circularam subrepticiamenie em Paris, tendo uma grande pro- cura da parte dos libertinos.

O livreiro preso, que segundo nos parece, era Billaine, declarou que Thcophile não era estranho á publicação do Parnaso Saiyrico, e o parlamento, que tomou conta do processo, procedeu contra o supposto auctor da obra con- dem nada.

Outro jesuita, o padre Voysin, amigo do Padre tlerasse, foi também o denunciador de Thcophile, cuja cumplicidade oHereccu provar por meio de tes- temunhas. Théopiíile era aecusado não de olTensas aos bons costumes, mas até de atheismo, e esta segunda parte da accusação dominava todas as outras, bem que se fundasse em alguns versos mais philosophicos do que sacrí- legos.

O poeta, debaixo d.n ameaça de um processo criminal, apenas motivado pela perfídia dos seus inimigos, julgou mister homisiar-se, c a sua fuga, como elle próprio disse, «não sendo mais do que medo, corroborou as suspeitas do crime.»

O processo foi seguindo os seus tramites á revelia, e Gerasse e os seus amigos perseguiram o fugitivo cada vez com maior encarniçamento, tanto nos seus livros como nos seus sermões, increpando-o especialmente de haver cor- rompido a juventude com os seus versos, com os seus discursos e com o seu exemplo. Davam-no como o único auctor do Parnaso satyrico, apesar d'esta collecção conter versos dos mais distinctos poetas contemporâneos.

Eis aqui o modo coino o jesuita Raynaud falia d'esta obscena publicação, no tractado De Theophilis, pag. 229:

«Opus item, cui lilulus esl «Parnasus satyricus», supra quasús Ápu- leii, Liiciani, liomanlii a liosa, ac similiam scriptorum, camarinas grave olen- tíssimum, et adjuvenilis pudoris cladem ac lotius honesli exlerminium in dia- boli incudi [abre faclum, hujus potentissimi ingenii foediis est, etc. etc.»

Ainda que o Parnaso salyrico .seja um livro execravel, merecendo jus- tamente a honra (pie se lhe concedia de ter sido diclado pelo demónio da luxu- ria, não bastaria, ainda assim, para motivar a condemnação de Théophile, visto que a impressão e a venda dos livros obscenos eram por essa épocha toleradas.

DA PROSTITUIÇÃO 575

havendo até alguns tledicaclos á rainha, e publicados com privilegio d'el-rei. Te- mos de confessar que outras accusayõcs mais serias se ergueram contra o poeta. Dizia-se que Théophiie havia proclamado o seu athcismo, no Iractado da immortalidade da alma, que não era senão uma imita(,'ão do Phédon, de Platão. AíDrmava-se que havia organisado uma sociedade secreta de atheus e liber- tinos, que tinham por fim preverter a mocidade com os seus escriplos e propó- sitos. Apresentarara-se finalmente muitas testemunhas, que declararam ter ou- vido ao poeta cantar canções livres n'uma orgia, e que diziam ter aprendido da sua bocca alguns vers )s Ímpios e sacrílegos.

O parlamento teve então de se occupar, pela primeira vez, dos livros de- testáveis que ultrajavam o pudor publico, e viram-se envolvidos no processo de Théophiie muitos amigos do poeta, que mais ou menos haviam collaborado na pu- blicação do Parnaso sadjrico e de outras publicações do mesmo género. Passou-se pois, mandado de prisão contra Berlhelot, Colletet e Frenicle, mas não poude ser cumprido senão por este ultimo, que sendo o menos culpado, não procu- rou subtrahir-se á acção da justiça. Berthelot e Colletet esconderam-se, como Théophiie. E para extranhar que Destcrnod, tendo escripto tantas vezes versos muitos mais obscenos que os d'estes poetas, não fosse envolvido no processo. Assustou-se o parlamento com os perigos que corria a mocidade, exposta ás perniciosas excitações da poesia obscena, e não vacillou em estabelecer me- didas protectoras da moralidade publica, incluindo na cathegoria dos crimes de lesa-magestade divina e humana, a composição e publicação de maus livros. Em 19 de agosto de 1623 os três tribunaes reunidos, a Coar, a llraiid' C/iamfrí-e e a rowrneí/e, promulgaram uma sentença contra Théophiie, Berthelot, Colletet e Frenicle, <\auctores dos versos que contém as impiedades, blaspbe- 'mias e abominações mencionadas no livro perniciosissimo, intitulado Parnaso satyrico.v Théophiie, Berthelot e Colletet, verdadeiros contumazes, julgados e convictos do crime de lesa-magestade divina eram «conderanados a ser con- duzidos n'uma carroça á poria principal da egreja de Notre-Dame d'esta cidade de Paris, desde as prisões da Conciergerie, e alli, descobertos, descalços e de joelhos, com uma corda ao pescoço, e na mão um círio de duas libras de peso, dizerem e declararem, que mal e abominavelmente compuzeram, fizeram im- primir e puzeram á venda o livro intitulado Parnaso satyrico, que contém tantas blasphemias, sacrilégios e abominações contra a honra de Deus e da sua Egreja, assim como contra a honestidade publica, do que se arrependem e pe- dem perdão a Deus, ao rei e á justiça. Feito isto, serão conduzidos á praça da Greve d'esta cidade, e alli o dito Théophiie será queimado vivo, o seu corpo reduzido a cinzas, c estas deitadas ao vento, sendo também queimados os seus livros; e Berthelot, estrangulado n'um patíbulo, que para esse fim se levantará. Isto no caso de poderem ser havidos em suas pessoas, no caso contrario em ettigie. Todos os seus bens serão confiscados.»

Quanto a Frenicle, que estava preso, o procurador del-rei devia infor- mar contra elle mais circumstanciadamente, a respeito dos factos mencionados no processo. Além d'isso, o tribunal «probíhia a qualquer pessoa, seja qual for a classe a que pertença, possuir qualquer exemplar do Parnaso salyrico, ou

o76 HISTORIA

de qualquer oulro livro do referido Thcophile; ficando outrositn intimados oS que os possuírem a entregal-os dentro de vinte e quatro lioras nas mãos do es- crivão, para os reduzir a cinzas, sendo considerados e punidos os contravcnto- res, como se fossem auctores do dicto crime.»

Finalmente, «quatro livreiros, Estoc, Sommeville, Billaine e Quenel, que tinham editado as obras de Tliéophile, deviam ser constituídos em custodia, ou- vidos e interrogados sobre alguns factos constantes do processo, e se não fossem encontrados, seriam emprazados ao som de trombeta ou voz de pregoeiro, para comparecerem dentro de três dias, e os seus bens embargados, até obedecerem aos mandados da justiça.» {Hist. de nolre temps, por Malingre, Paris, João Petitpas, 1624, t. iii, p. .330 e seguintes).

Esta memorável sentença pode considerar-se como o primeiro acto de repressão e castigo contra os delictos de imprensa a respeito dos costumes. A sentença foi executada no mesmo dia da sua data.

«Fez-se um espantalho, ou boneco, vestido cemo Théophile, diz Malin- gre, e metteu-se n'uma carroça que foi até á porta de Notre-Dame para fazer a retracfação, sendo em seguida levado á praça da Greve, onde foi queimado.»

Quando Théophile, que se havia refugiado no castello do barão de Panat, soube da sua execução em etfigie, resolveu abandonar a França, c conseguiu chegar disfarçado á fronteira. Os signaes do poeta e o mandado de prisão ha- viam-se, porém, antecipado no caminho, e o pobre, sendo recohhecido na estrada de Catelet, foi preso pelo prebostc Leblanc. Ataram-no a um cavallo, e condu- ziram-no assim a Saint-Quentin, onde permaneceu muitos dias incommunica- vel, até que, algemado de pés e mãos, foi transferido para a Conciergerie de Paris.

Encerrado no calabouço de Ravaillac, decorreram para elle uns longos dezoito mezes antes do parlamento se dignar começar a revisão do processo. O poeta tinha amigos poderosos, interessados em seu favor, mas os seus prote- ctores nada podiam contra a sanha implacável dos jesuítas.

O réu negava obstinadamente a accusação que lhe faziam de ser o auctor ou editor do Parnaso salijrko, base do processo, porque nas outras accusações elle tinha provado a sua innocencia sem a menor dilliculdale.

O parlamento queria, porém, descobrir a todo o custo e castigar com rigor exemplar os Ímpios e libertinos, que haviam tido a audácia de publicar aquella escandalosa collecção de poesias eróticas e obscenas. Os livreiros ha- viam tido a fortuna de justificar a sua innocencia n'esta publicação. Berthelot e Colletet, condemnados á revelia, estavam auzentes de França, e Frenicle havia sido posto em liberdade.

Thcophile continuava a negar a sua accusação, e o procurador geral ob- teve auctorisaçãn para ordenar que se lesse em todas as egrejas, por occasião da missa conventual, uma monitoria ecciesiastica de 4 de outubro de 1623, na qual se exhortavatn os lieis, sob pena de excommunbão, a denunciar «os mal- feitores, que haviam composto ou escriplo, feito escrever ou publicar, muitos maus sonetos, satyras, estancias, elegias e outras composições poéticas, inser- tas num livro então impresso e publicado sob o nome e titulo de Varnaso Saly-

UA PROSTITUIÇÃO o77

/•(Po, O t|iial cdiilóm rnuilas blasphcmias (.'oiili^a Deus c os sons santas, o mui- tos sacrilégios, ini|jicclad('s c oulras abominações eonlra a iionia de Deus e da sua Egreja, e eonlra a honestidade publiea. Aquelies (|ue souberem, quando, cm que tempo e em que logar se imprimiram o l^arnaso siUtiriro c oiili'os livros do mesmo género, quem os eompoz, ou deu as copias para a sua im- |)ressão, e (|uem reviu as provas de imprensa, são obrigados a deciaral-o, e o mesmo se entende com os (|ue si)ubi'rem o paradeiro dos criminosos, (|ue, advertidos peias diligencias judiciaes, instauradas eonlra elles, fugiram (festa corte para illudirem a execução da senten^,;a do tribunal. Os que souberem também de ([ualquer pessoa, que haja recitado ou publicado algum dos ditos sonetos, salyras ou qualquer outra poesia, como cousa sua, ou haja proferido as mesmas blasphemias e impiedades ri'elles contidas, ou subornado, sollicitado ou corrompido o espirito da mocidade para a induzir a crer nas mesmas im- piedades ou blasphemias, são egualmenlc obrigados, etc. etc.»

Esta monitoria, [)oréni, provocou \ agas e ridículas denuncias, que ne- nhum novo capitulo deaccusação apresentaram contra Thcophile. O poeta defen- dia-se com tanto vigor como habilidade, o que animou muitos homens de lettras a tomarem tanlbetn a sua defeza com uma multidão de composições em verso e prosa. Os seus inimigos, especialmente os jesuítas, distinguiram-se por sua [)arte lambem n'esta guerra de penna e papel, (|ue apenas serviu para azedar a (|ueslão e tornar mais critica a situação do accusado. Estava elle ainda preso, e esperando a sua sentença, quando o desejo do lucro instigou alguns impres- sores (ia província a reimprimirem as obras satyricas, que haviam feito nascer este ruidoso processo.

Em Lyon e em Kouen foi d'on(le sahiram subrepticiamentc as reproduc- (;ões do Espadou saltjriqae, do llaliinete saljirico e d(j l'arna.so sal ij rico. Estas rcimpress(jes, feilas em mau [lapel, estavam crivadas de incorrecções e eri-os grosseiros, e tinham no logar do nome da imprensa a data de I(i2-"). O Par- naso sabiu com o titulo augmcniado d'este modo: Parnaso satírico de .][. Tlicopliile, como que para dar mais uma arma contra o desgraçado poeta, (|ue era assim publicamente denunciado no fronlespicio do livro, que os seus inimi- gos lhe altribuiam. Seria uma perhdia da parte de um inimigo occullo, ou en- tão o vergonhoso resultado de uma especulação de editor?

Seja como (òr, o caso de Th(!'ophile estava quasi de todo esquecido, quando a revisão do processo foi favorável ao pobre paeta.

«E' um caso, que, segundo o costume, fez grande ruido a principio, es- crevia Malherbe a Racan, n'uma carta de 4 de novembro de IG2o, mas depois, ipiasi que não se tornou a fallar cm tal. O que me faz presagiar mal de tudo isto, c a condição das pessoas {|ue o pobre homem tem contra si. Pelo (|uc me diz respeito, penso ter-lhe dito que não o julgo culpado, senão de não ter feito cousa que preste no ollicio em que se metteu. Sc elle morrer, não tenha receio algum, porque ninguém o tomará por seu cúmplice.»

Esta cruel perseguição acabou cnilim. Tluniphile, na defeza da sua causa, confundiu as testemunhas (|ue depunham contra elle, destruindo a maior parte da accusação que a principio lhe faziam. O parlamento revogou a sentença, li-

BiaTOKU ProstitdiçIo. tomo ii— Folha 73.

378 HISTORIA

mi(ando-se a desferrar o poeta da capital. Assim foi inaugurada a lejiislação criminal contra os maus livros, prejudiciaes aos bons costumes e attentatorios da honestidade publica.

O pobre Théophile morreu alguns mezes depois, em consequência da sua longa e dolorosa perseguição, a 2o de setembro de 1626. Acabava de ser in- dultado por el-rei, e poderá voltar a Paris, para a convivência dos seus alegres amigos, que admiraram a sua morte edificante. .Ainda assim, o arrependimento do poeta não impediu o jesuita Raynaud de sustentar que o auctor do Parnaso satijrico havia morrido na impenitencia final, e que tinha ido em linha recta para o inferno!. . .

Apesar da jurisprudência estabelecida pelo processo de Théophile Viaud, o parlamento deixou passar impunemente muitos livros do mesmo género do Parnaso satyrico, antes de renovar as perseguições contra os auctores e edi- tores d'estas poesias obscenas, não dando nem sequer mostras de saber que as reimpressões das obras satyricas, por elle anteriormente perseguidas e con- demnadas, se multiplicavam por toda a parte. A Musa brincalhona (Muse fò- lalre), que não cedia em obscenidade ao Parnaso salijrico, reimprimia-se to- dos os annos em formato mais commodo. As Musas alegres, a Quinta essência salyrica, e outras collecções análogas, espalhadas com profusão, atacavam gra- vemente a moral c alentavam sem cessar os impuros germens da prostituição. Não vemos, porém, nos annaes da justiça, que os poetas ou os livreiros fossem incommodados por causa das suas publicações licenciosas, até á. maioridade de Luiz XIV, em cuja épocha começa, no interesse dos bons costumes, uma serie de medidas de rigor contra toda a classe de corrupção.

Théophile não foi (|ueiiiin(lo, nem Berthclot enforcado, no tempo de Luiz xiii, mas outro satyrico, Luiz Petil, auctor de versos menos abomináveis (|uc os do Parnaso salijrico, morreu na fogueira em pleno século de Luiz xiv!. . .

CAPITULO XLIV

SUMMARIO

A prostituiçãu no theatru. Hisljiria do thealio francez, sob o piintu rie vista dos costumes. Os histriões inrames im tempo de Carlos Magno. Fundação da ronfrarm da Paixão.— fls niysterios em si-ena, e a nua inde- reucia.— Ilni milairre de Santa Genoveva A vida de Madame de Sainte-Barlje.— Obscenidade dos trajos dos panto- miniiros - Os diattos e os anjos.— A illuminaoão da sala— Companhias cómicas.— A censura Iheatral.— Desordens dos cómicos. Épocha em que as ujuiheres cíuueyarani a pisar o tablado.— Os Gelosi e its actores h'Spanbces. As mais antiíras actrizes francezas.— O parlamento proliibe a representação dos mysterios.— As farças do século xvi. A sua obscenidade.— De como a roaior parte delias foram destruirias.- As que nos restam.— A cnllccção de Londres e a do duque de La Valliére. Cullecção de muitas Parcas antii.>as e modernas. A farça de Frei-Guilherme e o seu sermão jocoso As calças de S. Francisco.- Grande numero de farças. Tolerância da auctoridade civil a respeito lio iheatro. Titulos de muitas farças licenciosas. Us piinuiros comediantes do Uotul de Borgonha.— Turlupin.—

Guillaume.- Taultier Garçuille.— As canções.— Os ditos chistosos de Bruscambille.— Os theatros campestres.— Os

jogos da pella.— Theatros do PoDt-Neuf.— Tabaiin e o barão de Giatelard.

in.sTORiA no THEATRo, nas suas r('la<,'ões com a prostiluição, não devia ser feita n'nm capitulo, mas sim n'um volume in- teiro. iNa sua origem, o tlieatro exerceu nos costumes uma in- fluencia perniciosa, que em certas époclias de depravação so- cial cliegou a tomar o caracter de uma verdadeira provocação a lihertinageui. Nos primeiros séculos da Egreja cliristã, esta classe de espe- ctáculos chegou aos últimos limites da indecencia, e por isso encontramos em cada pagina dos escriptos dos Padres um protesto de pudor contra os abomi- náveis excessos daqucila horrível eschola de escândalos.

E devemos confessar que o horror dos philosophos christãos pelo thea- tni era justilicado pelo abuso, que n'outros tempos se fazia da arte scenica.

Quando o christianismo substituiu o culto dos deuses falsos, o theatro não sobreviveu por muito tempo aos idolos e aos templos pagãos, e por espaço de muitos séculos não houve em França outros vestígios da comedia antiga, além das mascaradas de terça feira gorda, da Festa dos loucos e da dos Diáconos, dos mysterios e procissões religiosas, das entradas de reis, príncipes, bispos, abbades, etc, das danças c cançcjes dos truões, e das narrações dos trovadores. Se algumas representações dramáticas, imitadas de Terêncio e de Flauto, se fa- ziam ás vezes nos conventos, não se livravam jamais dos anathemas ecclesias- ticos, .senão servindo-se de um pretexto lilterarío, e cercando-se da maior dis- crição e reserva. Estas raras reminiscências da comedia latina não constituíam, porém, hábitos Ihealraes na nação, ijiic nem sequer sabia que tinha existido o

Õ80 HISTUtllA

Ihealro, antes dos simples e grosseiros liDsquojos dos Confrades da Paixão, nos íiiis do seeulo xiv.

A doutrina da Egreja contra os espectáculos estava invariavelmente es- tabelecida pelos Padres e pelos ctneilios, e pôde dizer-se que havia sido aucto- risada pelas odiosas orgias, que assign.ilaram a decadência do tlieatro pagão. As capitulares e as ordenações dos reis estavam conformes com o sentimento dos doutores catholicos, a respeito do theatro e dos histriões. Estes eram clas- sificados de infames pelo facto de exercerem o seu ofBcio. Nas capitulares de 789, lé-sc : Omnes infamim macuiis. aspersi, id est, histriones, sicut viles persona;, noji habeanl poleslat.eni accumndi. As pessoas honradas deviam es- lar lillastadas d'esles infames, e os ecclcsinsticos deviam abster-se de ouvir pa- lavras obscenas c de ver gestos impudicos.

Não obstante esta severidade da lei, havia sempre histriões que arrosta- vam as exconimunhôes da Egreja e actcilavam a nota de infâmia inherenje á sua profissão, por isso que havia também vi)ln|)luosos e libertinos para paga- rem a todo o custo um prazer Ião sfriclamenle pi^obibido. O ollicio de cómico era, pois, considerado como uma espécie li" prostituição, e S. Thomaz não va- cilla em pòr ao mesmo nivel a cortezã (jue trafica com o seu corpo e o come- dianle que se proslilue em publico, vendendo, por assim dizer, os seus gestos f altitudes licenciosas.

Os bens adquiridos d'este modo panciam ao douto casuisla bens mal ad- quiridos, que ei'a |)reciso restituir, dislribiiindo-os em esmolas. Eis o motivo porque Filippe Augusto, convencido de que <<dar aos histriões era .) mesmo que dar ao diabo», os expulsou da sua corte, prohibindo-lhes que voltassem a ella, e applicando a obras pias o dinheiro (|ue teria empregado em sustentar as es- candalosas dissoluções do theatro.

O theatro não teve uma existência legal em França, senão atravez do piedoso véu com que se apresentou a Carlos vi. Os costumes d'aquella épocha eslavam muito relaxados, como dissemos, e a alfcição ao luxo havia predis- posto (js espirites a apai\onareiii-se por todas as novidades sensuaes. Os Passou dos Confrades da Paixão foram, pus, acolhidos como uma espécie de furor, (juando se representaram pela \m\\. ira vez ás portas de I'aris, na aldeia de Sainl-Maur.

Em i:i!>S, uma companhia de cómicos ambulantes, que se inliluiavau) os Confrades da Paixão, porque^ ropreseniavam os myslerios da morte ili- .Icsus. dialogados, começaram a dar reprcsenlações, ás (|uaes a multidão acendia de Ioda a parle. Estas representações, inleiMueadas de rezas c de cantos, eram, por cerlo, muito edificantes, a avaliar pelo assumpto. No emianto, o prebuste de Paris receiou que degenerassem em graves desordens, e por uma ordenação de :{ de junho de 1398 probibiu a todos os habilantes de Pai'is, aos de Sainl- Maur (! aos de todos os logares sujeitos á sua jurisdicção «repi'esenlar Passos de personagens, tanio da vida de (^brislo como da dos sanios, sem permissão d rirei, s(d) pena de incorrerem na sua indignação.»

Estas rigorosas probibiçues pro\am (|ue nos Passos. representa<los em Saint-iMaur, houvera algum escândalo, ou (jue, segutxlo uma o|)inião, (|ue não

DA PROSTITUIÇÃO 581

conlradiz a nossa, uma antiga lei de Filippe Atifiiislo ou de S. Luiz havia abo- lido o tlieatro e proiíibido o e\crcicio c a prolissão dos comediantes.

Seja como fòr, as representações não se renovaram até l'i()2, em que Carlos VI teve o gosto de assistir a elias, e saliiu de tal maneira edificado, que outorgou aos Confrades da Pai.rno um privilegio, (jue os auclorisava a repre- sentarem os seus myslerios, tantas vezes quanlas lhes aprouvesse. Em virtude d'este privilegio, os confrades estabeleceram o seu tbeatro perto da porta de Saint-Denis, no rez-do-ehão do Hospital da Trindade, onde os peregrinos c viajantes pobres encontrav;un um asylo para passarem a noile, (juando chega- vam depois de fechadas as portas da cidade.

Estes mesmos confrades haviam fundado na egreja d'este hospital a confraria da Paivão e da Hesurreiçrio de Christo.

Parece-nos poder inferir da fundação d'esla confraria que os primeiros cómicos da aldeia de Saint-Maur costumavam recrutar os seus confrades entre os artilices da capital. Desde essa épocha a alTeição pelo tbeatro propagou-se phreneticamente pela população, que nos dias de festa acendia em tropel a as- sistir á representaçã > dos mysterios e milagres, deixando á companhia fundos bastantes para occoirer a todas as suas despezas.

Esta curio-sidadc e este enthusiasino nada tinham de devotos, ainda que o lim apparente de taes espectáculos fosse elevar as almas á contemplação das cousas santas e dispol-as á oração. Pôde ter-se como certo que, apesar do ca- racter mystico dos Passos, que se representavam, e apesar mesmo da pi'olecçãõ que o clero outorgava a estes piedosos espectáculos, o tbeatro n'essa épocha era um auxiliar da prostituição. Basta imaginar por um pouco o que seria uma d'essas representações, n'uma sala estreita e mal illuminada, cm que os especta- dores se reuniam n'uma promiscuidade piltoresca, uns sentados, outros em pé, mas agglomerados e compactos, sem dislincção de edade, nem de sevo, nem de condicção.

A .sala tinha 31 toezas e meia de comprimento, por 6 de largura. De al- tura teria, quando muito, quinze a vinte pés, havendo uma arcada que sus- tentava o andar superior. Do comprimento total temos de descontar, peio menos, l-ia 20 pés, para o scenario e seus accessorios, ponjue além do tablado em que se representava, havia ao fundo do tbeatro outros tablados, que pareciam ser os dilíercnles jogares em que se passava a acção, e que communicavam uns com (IS (uitros p{ir escadas.

No tecto do tablado em que se moviam os diderentes actores, o Paraizo, envolto em nuvens, abria o seu largo pavilhão azul celeste, marchetado de estrellas de latão. Em baixo, a boeca enorme de um dragão temivel, moven- do-se sem cessar, indicava a entrada do inferno, (ronde sabiam os demónios entre goljdiadas de chammas e acres rolos de fumo. Ao centro, muitas deco- rações, toscamente pintadas, e que se alternavam devidamente, quando a acção ia, como o seu protogonista, de Herodes para Pilatos.

D'esta maneira tinham aqnelles ingénuos e primitivos espectadores diante dos olhos a physionomia local do ingénuo poema, que s(> passava alternativamente no ceu, na terra c no inferno.

582 HISTORIA

Oiilro pormenor inlcrcssante : Emquanto durava o espectáculo, os acto- res estavam sempre á vista do publico, vestidos com os trajos apropriados, dentro de uma espécie de varanda gradeada, que corria á direita e á esquerda do scenan Alli esperavam o momento de entrar em scena, assistindo no em- tanto á i.. presentação como simples espectadores. Cada qual vinha por sua vez desempenhar o seu papel, voltando logo em seguida para o seu posto de re- serva. D'este modo não deixavam nunca ile estar em evidencia, a não ser nos momentos solemnes em que o papel exigia que o actor desapparecesse para d e- traz das cortinas de um aposento especial, que servia para subtrahir aos olha- res do publico certos pormenores delicados da peça, taes como os partos de SanfAnna, de Santa Isabel e da Virgem Maria.

Este aposento mysterioso aguçava no mais alto grau a imaginação do publico, o qual esperava com impaciência que se corressem as cortinas, quando estavam descidas, e que descessem quando estavam corridas. U espectador não deixava de adivinhar tudo quanto se occultava por decência, e seguia com o pensamento as mais escabrosas peripécias da acção; d'aqui essa locução pro- verbial de íicar uma cousa detraz da cortina, para exprimir que não deve ex- por-se á vista, por causa do escândalo.

Escasiciam-nos dados precisos para narrarmos as immoralidades e inde- cencias, que desde os primeiros tempos acompanharam o renascimento do thea- tro. E' certo, porém, que estas representações piedosas eram causa e occasião de graves perigos para os bons costumes. O mysterio da paixão e outras com- posições dramáticas do mesmo género, que se representavam aos domingos e outros dias festivos no thealro da Trindade, não tinham evidentemente outro (im senão excitar os sentimentos religiosos, e pôde presumir-se que o auctor d'esse immenso drama, que abrange o nascimento, a vida, a morte e a resur- reição de Jesus-tihristo, fizera uma obra de devoção, sob a forma de uma obra litteraria, em que forçoso é reconhecer grandes bellezas.

Efíectivamente esta obra mereceu ser retocada e refeita em grande parte por João Miguel, bispo de Mans, que viveu no século xv, mas não obstante, segundo a Índole do Iheatro n'aquella cpocba, grande numero de scenas do Myslerio da Paixão e dos mysterios análogos, arraslavam-sc nos togares com- muns da obscenidade, e o dialogo dos personagens subalternos tomara da lin- guagem popular uma multidão de imagens e palavras licenciosas, torpes e im- mundas. Os próprios apóstolos, os santos e até mesmo as santas, pareciam ás vezes gente que tinha vivido no convivio das mulheres perdidas e dos mais viciosos libertinos.

Entre uma multidão de exemplos, escolheremos uma scena do Myslerio de Sania llenoveva, onde se via unia freira de Hourges, (|ue por li-r ouvido a fama dos milagres da santa, linha ido visilal-a.

Santa (lenoveva pergunla-lhe :

Qual é o teu estado?

Virgem, responde-lhe a freira.

Virgem tu! exclamou a sanIa com desprezo. £ continuou :

DA PROSTITUIÇÃO 583

Non pns vierge, non, mais ribaude,. j Qui fustes en avril si baude,

Le tiers joiír, entre chien et loitp, Qit,'au jardin Gaultier Chanlelou, Vous souffrites que son berchier Vnus des/lorast sotis un péchier!

A poética dos mysterios desprezava ordinariamente as tímidas restricçõcs da narrativa, e separava da vista do publico certos jogos scenicos, que te- riam sido demasiado vivos e nús para serem executados fora da cortina. A ac- ção dramática era levada até ao ponto extremo em. que a intelligencia do es- pectador se encarregava de acabar um episodio, cujos prelúdios de si oden- diam o pudor menos assustadiço. Ainda mesmo corridas as cortinas, o auclor linba sempre o cuidado de interpretar com os seus gestos e visagens o que o poeta deixara sob um transparente véu.

Na Vida e. historia de Sania Barbara, que foi representada e impressa em Io20 (V. o catai, da Biblioth. dram. de iM. de Soleine, pelo biblioph. .la- cob, t. I, p. 107) ainda que o mvsterio começa por um sermão .sobre um texto do Evangelho, a scena abre n'um bordel, em que uma prostituta canta uma canção, fazendo gestos impudicos (siijna amoris illiciti, diz o editor em guisa de rubrica). O imperador ordena a esta mulher que seduza a santa, e eis como a conselheira impudica falia a Santa Barbara, (|ue se encommenda a Deus :

Eu nunca perco o dia. Ainda hoj(! nem descancei. Conheço perfeita- mente o jogo do amor. .Mostro boa cara a todos os galans, e deveis fazer o mesmo. Nunca vi mãos tão bellas como as vossas, nem pernas mais seduelo- ras. Havemos de ganhar muito dinheiro, porque tendes um corpo bellissimo!

Os auctores de mysterios tractavam de uma maneira completamente pro- fana os assumptos mais santos e mais respeitáveis, mas longe de imitarem o antigo theafro latino, não conseguiam jamais dar amplo logar ao anior meta- physico. Nada entendiam do que nós chamamos drama apoixonado, expressa- vam quasi sempre sem rodeios nem circumioquios os appetites da carne, com- praziam-se em tractar brutalmente as cousas da luxuria, e raras vezes bo- quejavam um idyllio portátil em que se notavam as vagas inspirações do co- ração, como um dialogo dos dois pastores do Mjisterio da Paixão:

Melchy As juvenis pastoras cantarão.

AcHiN E os jovens pastores encararão amorosamente n'ellas ....

Melchy As nymphas virão escutar o canto, e nos bosques as drya- das dançarão com as oréadas.

AcHiN Pan virá dançar á festa. Dos (limpos Elyseos virá Orpheu com a sua musica divina, c não faltarão as bailadas de Mercúrio!

Melchy E nos prados .serão de súbito abraçadas as pastoras I. . . .

Eram ainda excitações ao amor, que podiam perturbar o coração terno e simples de uma joven, mas que, ainda assim, não poderiam corrompel-o ou cm- briagal-o com o veneno do vicio. Os adores, mais por exigência do olficio, do que por cálculos de preversão pessoal, tractavam sempre de accrescentar ao seu papel uma pantomima licenciosa, (|ue o poeta não preverá, e (|ue o publico ce-

o8.i

HISTORIA

Icbiava com risada e applausos. Assim, a comparseria de (liai)os, não se dislin- guia menos pelas suas mascaras iiorriveis e por seus exlrahos disfarces, do (jue por suas atlitudes indecentes e gestos impudicos.

Os diabos, cujos retratos mais ridiculos do que espantosos, nos onerecem as miniaturas dos manuscriptos, as antigas pinturas muraes e as vellias estam- pas gravadas em madeira, costumavam apresentar cabeças de satyros com a iingua de fora, postas no sitio das partes naturaes, e outras vezes tetas pen- dentes. Satanaz, ou Lúcifer, era quem especialmente apresentava estas cabeças grotescas, cujos olbos provocantes se revolviam, e cuja Iingua era muitas ve- zes um emblema de impureza. Alem d'isso o rabo de certos demónios tomava ás vezes formas e proporções obscenas.

Toleravam-se nos comparsas diabólicos estes escândalos de excentri- cidades libidinosas, visto que, segundo a tradicção da E.íreja, o espirito do mal é sobretudo o agente da sensualidade. As representaçõi-s tiniiani logar sob a vigilância da policia, que tinha a seu cargo a decência e a onleni puldica.

Esta vigilância tinlia por certo muito onde se exercer, tanio enire os ac- tores como entre os espectadores. Os primeiros, por exemplo, não seguiam ne- nhuma regra de arte e entregavam-se a todas as phantazias do seu capricho ou da sua inventiva. Cada qual vestia-se a seu modo, e imaginava o que podia fazel-o mais notável entre os seus companheiros, lisongeando o gosto ilo pu- blico. D'este desejo de sobresahir pela excentricidade, d'isla emulação entre os artistas, resultavam as mais extravagantes creaçôes e os chistes e gestos mais licenciosos.

A comparsaria diabólica (diablerie), como dissemos, perinitlia-se os mais graves ultrages ao pudor, mas taes ultrages eram sempre adribuidos ao diabo. ' INtão era mais decente o choro dos anjos, os quaes, por vezes, chegavam a es- quecer o seu papel mudo. Anjos e diabos eram comparsas, que caniavam cân- ticos, recitavam orações e faziam ruidosos alaridos, a um signal dado. .As suas evoluções, danças, gestos e truanices dependiam S(imente do capricho e do ta- lento de cada qual. I'mas vezes, um eherubim, ao voltarão seu logar, arrega- çava a sua larga túnica branca, deixando vèr por baixo d\ lia o avental de um sapateiro da rua de Saint-Denis, outras vezes um anjo, ao cahir das altu- ras, ficava pendurado dos bastidores de cabeça para baixo, até que iam soccor- rel-ó e pôr em ordem a ampla túnica descomposta, que lhe cobria a cabeça. Estes episódios burlescos encontram-se até pintados nas miniaturas de alguns Passos.

De resto, a mulher não apparecia em scena. Os papeis femininos eram desempenhados por mancebos, cuja presença não desdizia do papel, e que af- fectavam maneiras de mulher. Este disfarce era um attractivo particular para certos libertinos, que não deixavam de se interessar pelos efeminados, e (|ue à força de os admirarem em scena, acabavam |)or procuial-os e encontral-os talvez fora d'ella. Deve, pois, suppòr-se que, apesar da vigilância da auctori- dade civil por meio dos seus delegados, a policia dos costumes não podia fa- zer-se bem no interior da sala, onde os espectadores formavam uma massa compacta e impenetrável, e nas escadas ou corredores, que nunca estavam

DA PROSTITUIÇÃO 385

desertos nem silenciosos diininle iis roprcsentações, e (|Ut' não foram illumi- nados até fins do século xvi.

Um regulamento do preboste relalivo ao llieatro do Hotel de Bori^nmha, datado de 12 de novembro de 1609 {Traitc' de la police, de Delamare) diz :

«Os ditos comediantes serão obrigados a ter luz de lanterna, ou oulra qualquer, assim no pateo, escadarias, e galerias, como também nas portas, á sa- bida, sob pena de um castigo exemplar e de cem libras de multa. Recommen- damos ao commissario de policia a maior vigilância n'este ponto, dando-nos conta das contravenções.»

Apezar d'este regulamento e dos da miasma natureza que o precederam, consta-nos, de um livro publicado no tempo de Luiz xiv, que a illuminação das escadas e dos corredores, era muito descurada n'aquella épocba, e que aquelles logares obscuros serviam para proteger as entrevistas e encontros amo- rosos durante o espectáculo, porque o auctor que citamos, sem nos podermos recordar agora do lilulo do seu livro, 1 )mentava-se de que, clicgando um pouco tarde ao tlieatro, isto c, de|)ois de ter começado o espectáculo, qualquer mulber bonesta arriscava-se a tropeçar na obscuridade com algum par ([ue llie estorvava o passo.

O interior da sala era apenas illuminado por duas ou três lanternas es- fumadas, suspensas do tecto e por uma fila de velas de cebo ao longo do proscé- nio, que ficava ás escuras, ao menor descuido do encarregado da illuminação, Não nos demoraremos mais a respeito dos actos de libertinagem que se commettiam especialmente no pateo, durante as representações. Basta dizer-se (|ue este escândalo quotidiano, que não contribuiu pouco para dar armas aos inimigos do tbeatro, durou até que Voltaire conseguiu que os espectadores do pateo se sentassem. O Padre f^atour, nas suas llelle.ròes moraes, politicas, liix- torica.s e litterarias a respeito do theatro, queixa-se ainda em 17(32 das desor- dens e escândalos do pateo. (Lib. ix, t. v, p. 6.)

Apesar d'isto, ó tbeatro teria escapado ás excommunhões da Egreja, ás recriminações dos parlamentos e ás correcções da policia, se tivesse conservado sempre o caracter exclusivamente religioso, que havia favorecido o seu resta- belecimento, sob a protecção de Carlos vi.

Quando, porém, outras companhias similhantes à da Paixão se estabe- leceram nas provindas è representaram também mijsterios e milagres, com o concurso dos mestres e operários dos grémios, a mocidade bem depressa se can- çou de um espectáculo, que parecia um sermão em acção. A antiga hilaridade gauleza não se contenva com representações piedosas, onde ainda assim ha- via muito de que rir, e nasceu então a comedia franceza.

Companhias de cómicos, denominados os Eiifans-sans-souci e os vieres de la Raroche, í'undaram-se bem depressa em Paris, e representaram farças, ((ue não requeriam a pompa thealral dos mystei'ios, e que tinham necessi- dade de alguns cómicos com uma certa aptidão.

Este novo theatro jocoso era a principio ao ar livre, nas feiras, nos mer- cados e nas praças das cidades. Dois ou trcs farçantes, subiam a um tablado, cobertos d'ouropeis, com o rosto enfarruscado, e dialogavam com estro licencioso

HisTOUA DA Prostituição. tomo ii— Folha 74.

586 HISTORIA

algumas scenas de costumes populares, que tinham invariavelmente por assumpto o amor e o matrimonio. Estes esboços pouco decentes prestavam-se maravilhosa- mente a improvisos mais indecentes ainda.

Mais tarde, aos improvisos succederam peças escriptas em verso, ou me- lhor em linhas rimadas, que não impediam o actor de ir improvisando, e que davam margem à sua pantomima licenciosa. Não foi mister mais para arreba- tarem aos seus coUegas dos Paxsos da Paixão a maior parte dos seus especta- dores, e com elles os seus lucros.

Em vão intentaram estabelecer competência com os seus temíveis ri- vaes, intercalando nos mystcrios certos episódios burlescos, certos personagens ridículos, que davam uma espécie de amenidade aos assumptos sérios. Nada lhes valeu. Os actores das farças eram sempre muito melhor acolhidos que os confrades do Hospital da Trindade, e o publico a quem divertiam tomou par- tido contra elles, quando foram perseguidos pelo prebostado de Paris, que pre- tendeu oppòr-se á installação permanente do seu theatro. Era tarde para re- primir um género de espectáculo, que tanto lisongeava as aíleições do espirito francez. Poude apenas conseguir-se que se contivessem em certos limites, su- bordinados, por assim dizer, ao privilegio concedido por Carlos vi aos Confra- des da Paixão.

Em consequência d'isto, os Confrades formaram com os Enfans-sans- sotici um tratado de alliança, pelo qual se obrigavam a explorar de commum accordo e na mesma scena os dois géneros dramáticos, que ao tempo constituíam o domínio ainda bem restricto da arte. Ficou, portanto, estatuído entre as duas companhias alliadas, que se fariam valer uma á outra, e que representariam alternadamente a farça e o mysterio para variarem o espectáculo.

O povo, que parecia ter sido chamado como testemunha do contracto, apreciou-lhe devidamente a importância no interes.se dos seus divertimentos, e designou, pelo nome de Jen des pois piles, aquella associação de géneros tão oppostos, o sagrado e o profano, o trágico e o cómico, o mystico e o escanda- loso. Esta expressHo tie pois piles, que significa mistura de feijão e grão, mis- cellanea, Irapalhaiín. allude evidentemente a alguma farça muito conhecida n'outro tempo, na'(|ual um gracioso misturava n'um guisado tremoços com grão de bico.

O theatro de Paris, que foi sempre o theatro modelo das demais cidades da França, apresentou esta physionomia singular, até melados do século xvi, tendo sempre duas companhias distinctas, a dos Confrades e a dos Enfans, que representavam simultânea, ou alternadamente, .segundo convinha. As re- presentações eram ao domingo entre a missa e as vésperas, isto c, do meio dia ás quatro da tarde, pouco mais ou menos. E como seria impossível representar n'cste espaço de tempo um mysterio, que tinha ás vezes trinta actos, quarenta mil versos e duzentos ou trezentos actores, era mister limitar o espectáculo a algumas scenas, ou a um acto completo, (|ue acompanhado de uma farça, ou de uma arenga, ou monologo, constituía a futicção.

Raríssimas vezes, especialmente nas províncias, se representava um mys- terio completo, e ijuando se representava, durava o espectáculo muitos dias se-

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guidos. A representação fazia-sc, não n'uma sala fechada, mas sim nas minas de um amphitiíealro romano, como em Douai, ou n'um theatro aberto, arran- jado na praça publica, ou mesmo n'um vasto largo para esse fim apropriado.

A'estas solemnes circumstancias, todos os habitantes de uma cidade, de uma comarca, ou de uma província, contribuíam para as despezas communs, dando esmolas, viveres, armas, trajos, etc, e tinham o direito de assistir ao espectáculo. Imagine-se que bello ensejo encontraria a prostituição, em simi- Ihantes reuniões de povo, que punham em jogo tantas paixões diversas, tantas vaidades, tantas concupiscências, tantos prestígios e seducções!.. .

A representação de um Myslerio dava inevitavelmente logar a numero- sas orgias e desordens de toda a espécie. Em Paris, pelo menos, as represen- tações hebdomadai-ias dos Conjradea e dos Enfans, se bem que egualmente pe- rigosas para os costumes, não podiam ainda assim produzir taes excessos. Obra- vam com lentidão sobre a moralidade publica, e alteravam insensivelmente a candura das almas, dissolvendo pouco a pouco os laços sociaes.

No emtanto, apesar de obsceno, corruptor e escandaloso, o theatro não incorreu no ódio das pessoas honestas de Paris, nem nas censuras e repressões da auctoridade civil, ou ecclesiastica, antes do reinado de Luiz xi.

Dissemos n'outro logar que, ahi pelo anno de 1512, os Enfans-sans- isouci se viram ameaçados de expulsão, e obrigados a suspender as suas repre- sentações, até que. um delles, Clemente Marot, os restabeleceu nas boas graças d'el-rei. Ignora-se o motivo do desagrado real, mas é provável que não ti- vesse por motivo nenhuma questão de moralidade ou pureza de costumes. Talvez que esses audaciosos farçantes se permittissem, a exemplo dos seuscol- legas da Bazoche, algum chiste contra a avareza d'el-rei, contra a sua poli- tica, ou mesmo contra a rainha Anna de Bretanha. Foi sem duvida pelo tempo cm que Luiz xii se empenhou em fazer respeitar a honra das damas, dizendo que havia de fazer arrepender todo aquclle que ousasse oITendel-as. E muito provável até que os aggravos, allegados por aquella épocha para se fazer fe- char o theatro dos Enfans, fossem a origem de um uso, que existia no de- curso do século XVI, e que se perpetuou até nossos dias. Para a representa- ção de qualquer peça nova, era mister que o emprezario, ou director das far- ças, depositasse no prebostado os manuscriptos e obtivesse prévia auctorisação.

Muitas vezes, porém, os auctores e os actores recusavam ^ubmetter-se a esta espécie de escravidão, e muitas farças obscenas, que passavam por impro- visos, escapavam assim ao exame dos censores, que de outro modo não as te- riam auctorisado.

O tenente civil, no seu regulamento de 22 de novembro de 1609, reno- vou a prohibição de se representar «farça alguma, sem que os comediantes a houvessem primeiramente submettido ao exame do procurador d'cl-rei, afim de obter a auctorisação competente.» Não podemos crer que os prólogos de Brus- carabille, as arengas de Tabarini, as canções de (lauthier-Garguille, e tantas outras, tivessem sido submettidas á censura, ou tivessem obtido a auctori.sação dl) procurador d'el-rei.

Paliámos da vida desordenada dos farçantes e de todos os jovens li-

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bertinos, que abraçavam esta profissão bem pouco honrosa, para mais livre- menle se entrefíarem á vagabundagem e á sensualidade. Vimos que os poetas, á imitação de Villon e de Clemente Marut, tinham uma inclinação irresistível para o tbeatro. Conccbe-se, pois, facilmente que o enthusiasmo religioso não era já, como nos primeiros tempos, o laço que unia os Confrades da Paixão. A Egreja, no emtanto, não os havia ainda anathematisado, por maior que fosse a preversão dos seus costumes e o escândalo da sua conducta privada.

Os Ibeoiogos, nos seus escriptos dogmáticos, diziam que sem infringir as leis canónicas, não podia administrar-se a eucharistia aos liistriões, que es- tavam sempre em peccado mortal. (Trnclado histórico e dogmático dos «Pas- sos» dos tkealros, pelo Padre Lehrun, p. 2Ú2) e o famoso casuista, Gabriel Biel, que estudava este caso de consciência nos fins do século xv, no pmprio mo- mento em que se fundava a Confraria da Pairão, comprchendia a arte sce- nica entre as artes malditas e prohibidas.

Os estalutos da Universidade de Paris ordenavam que os comediantes fossem allastados para das pontes, c não viessem nunca installar-se no dis- Iricto ou bairro das escholas : tão perigoso pareiíia o seu mister, sob o ponto de vista da moral. (Lndi. . . (inibas lasciria, pftulanlia, procacilasque e.rci- tenlur. Stat.. 29 e 23.)

.Apesar d'isto, nunca se applicava de um- modo geral e rigoroso a dou- trina da Egreja contra os cómicos, os qtiacs eram enterrados em logar sagrado, <'omo provam os epitaphios e sepulluras de alguns d'ellcs, ([ue se viam em va- rias parocbias de Paris.

Pelo que respeita ás cómicas, não foram menos anathematisadas que os cómicos, quando appareceram em scena, mostrando-se sem mascara no rei- nado de Henrique iii, ou Henrique iv. Estas mulheres eram, a principio, as concubinas dos cómicos, e viviam conio elles na libertinagem, a tal p:jnto (iiic, .segundo Tallemant des Reaux, eram communs a toda a companhia. Haviam cm todo o tempo formado parle ilas companhias de actores, tanto nómadas, como sedentários, mas o publico ainda não as conhecia, e as suas attribuiçòes, mais ou menos deshonestas, occultavam-se nos bastidores do tbeatro. Quando, porém, reivindicaram os papeis de d. mias, até ahi desempenhados sempre por homens, a sua apparição em scena Ijí considerada como utna odiosa prostitui- ção do seu se\o.

As primeiras actrizes tiveram, pois, que luctar com a animadver.são do publico, que não se mostrava muito disposto a toleral-as em scena, e os ()ro- prios cómicos lhes disputavam com fi'equencia os seus papeis, que segundo a opinião communi, não desempenhavam com direito.

(Iremos que ao exemplo das companiiias bes|)aniiolas e italianas se deve esta innovação na scena franceza. ,4 companhia italiana veio de \eneza a Pa- ris, chamada por Henrique iv, e tanto esta como outra hespanhola, causaram muitas desordens, de que foram accusadas as actrizes, as quaes com o desplante dos .seus gestos e com a deshotiestidade dos seus trajos, pretendiam accrescen- lar um novo allractivo ás rcprcscnlaçòcs Iheatraes.

«Domingo, 11) de maio de loT", dl/ Pedro de lEsioilc, os comediantes

DA PROSTITUIÇÃO 589

italianos, chamados í Gelofii, caineoiram a represenlar comedias na sala do l'alacii) de llourbon, em Paris. Recebiam (lualro soldos por espectador, e iioiive tanta concorrência para os vèr trahaliiar, (pie os quatro pregadores mais fa- mosos de Paris nunca tinham visto auditório tão numeroso, quando ensinavam a palavra de Deus.»

n'outro logar indicamos o encanto particular que tinham para os li- bertinos estas representações. Concorriam enthusiasticamente a ellas para admi- rarem as damas, cujo seio, completamente descoberto, «elevava-se e abaiva- va-se a compasso, como um relógio.» O parlamento julgou dever pòr termo a estas impudicas exhibições, e seis semanas depois da inauguração do thea- tro italiano, ou dos Gelosi, prohibiu-lhes as representações, sob pena de 10:000 libras parisi.t, applicaveis á caixa dos pobres.

Os italianos não se deram, porém, por vencidos, e no sabbado 27 de julho, tornaram a abrir o theatro de Bourbon, com a permissão expressa d'el- rei, sendo tanta a corrupção do século, diz Estoile, «que os farçantes, os truões as prostitutas e os luancebos tinham na corte o maior lavor e estimação.»

A companhia bespanhola estabcleceu-se em ItíOi- na feira de Saint-Oer- main, e a sua permanência em Paris foi assignalada pelo supplicio de dois dos actores, por ordem do bailio de Saint-dermain, por terem assassinado uma comediante da sua companhia, cujo cadáver arremessaram ao Sena.

«A victima d'este crime, diz Estoile, era uma formosa bespanhola, de 22 annos, que por muilo tempo tivera relações secretas com os dois comii-os, (jue a mataram, mais por ciúmes, do que para a roubarem.»

Tal é em nossa opinião a origem da apparição das actrizes na scena IVan- ceza. Não pôde dizer-se qual foi a primeira que ousou expòr-se aos olhares dos espectadores. Encontra-se o nome d'uma tal Dafresne manuscripto n'um exem- plar da União do amor e da castidade, poema pastoril em cinco actos e em verso, inventado por A. (laulhier. lista obra dramática, impressa em Poitiers em 1006, foi lambem representada na mesma épocha. (Bibliot. drnm. de M. de Soleinne, t. i, p. 189.)

N'um exemplar de outra peça de theatro da mesma épocha, a Trafiedia de Joanna d' Are {Jeanne d' Arques,) cliamadn a IJonzella d'Orléans) impressa em Rouen, Por B. de Petitzal, em 1603, encontram-se os nomes de duas actri- zes, também manuscriptos. O redactor do catalogo da Bibliotheca drjimatica de M. de Soleinne (Suppl. ao t. i, p. :i0) |i'u 1. h-oneuplie e Marthon Plus. So- mos de parecer que deve lèr-se Fanucbe, que era uma cortezã celebre do tempo de Henrique iv, e, como vimos, conhecida também d'este monarcba.

Finalmente, o Padre Marolles, nas suas Memorias, (t. i, p. 59 da edição publicada em 1735) cita com elogio a um actor do Palácio de Borgonha, que desempenhava os papeis de mulher em 1616, sob o nome de Perrine, com ("lauthier-darguille. Falia também da famosa cómica Laporte (Maria Vernier,) que a esse tempo representava, merecendo com \aleran os applausos de todos os espectadores.

O que podemos alíirmar com segurança, é que as mulheres nunca ligu- raram nos Mysterios. Não deve, pois, attribuir-se a prohibição d'esse género

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(Ic espectáculos a um escândalo qualquer por ellas causado. Foi em 1540 que o parlamento julgou necessário intervir pela primeira vez na questão do thea- tro, visto que o interesse dos bons costumes reclamava havia muito tempo a sua intervenção. O parlamento começou por dar ao liospital da Trindade a sua antiga a j p li cação e por fazer saliir d'elle os' Confrade.i, que por este motivo foram para a egreja dos Jacobinos, na rua de Saint-Jacques, estabelecendo o seu theatro no palácio denominado Hotel de Flandres.

Pouco tempo depois, em seguida ás re|)resentações de um novo Mij-tíe- rio, o do A7itigo Tesíamento, que subiu á scena em loil, o parlamento orde- nou que se fechasse o theatro, pelos motivos seguintes:

«1 ." Que para divertir o publico se misturam ordinariamente com es- tes sagrados Passos farças e comedias irrisórias, o que é gravemente prohibido pelos sagrados cânones.

«2.° Que os actores de similhantes peças, representadas com a mira no lucro, deviam passar por histriões ou pantomimeiros.

«3." Que as reuniões de taes espectáculos davam logar a muitas des- ordens e escândalos.

«4." Que estes espectáculos obrigam a despezas escusadas os artífices e as outras classes populares».

{Discurso sobre a comedia, ou Traclado histórico e doumatico dos «Pas- sos» dõ theatro, pelo Padre Lebrun, Paris, viuva Delaubre, 1731, p. 214.)

Os Confrades da Paixão fizeram valer os seus privilégios, outorgados por Carlos vr, e confirmados repetidas vezes pelos seus successores, e para esse fim dirigiram um requerimento ao parlamento e uma supplica a el-rei, «expondo que desde tempos immemoriaes os Mysterios haviam contribuído para a edifica- ção do povo, sem offensa nem geral nem particular.»

O rei deu as convenientes ordens, e o parlamento revogou a sua decisão por decreto de 27 de janeiro de 1541 (1542, segundo o novo estylo). O tribu- nal, em vista do real privilegio que permittia a Carlos Leroyer e collegas re- presentarem o Mijsterio do Antigo Testamento, «outorgou-lbes a mesma per- missão, com a condição de fazerem bom uso d'ella, sem permittirem fraudes, nem a interposição de cousas profanas, lascivas ou ridículas.»

Dizia mais ainda o referido documento :

«Que de entrada no theatro não poderiam levar mais que dois soldos por pessoa, e trinta escudos por cada camarote, durante a representação. As func- ções r(!alisar-se-hiam somente nos dias festivos, não solemnes, começando á uma hora da tarde e acabando ás cinco. Teriam sempre o maior cuidado em não provocar escândalo ou tumulto, c, porque o povo se distrahirá do serviço divino, o que diminuirá as esmolas, entregarão aos pobres a somma de mil libras, sem prejuizo de qualquer outra quantia mais avultada que seja neces- sária.» Vemos aqui, segundo parece, a primeira applicação do direito dos po- bres, que se fez a principio em beneficio dos orphãos.

Dfsde então abriu sempre o parlamento os olhos a respeito da inconve- niência dos mysterios e da obscenidade das farras, (|ue os acompanhavam. O Myslerio da Paixão, emendado e corrigido por Arnaldo (Ircvan, tinha ainda ai-

DA PROSTITUIÇÃO bd\

giins personagens intoleráveis. O Miisterio do Antigo Testamento, o ultimo que se representou e imprimiu, tinha ainda scenas que ultrajavam a moral ea re- ligião.

Quando el-rei ordenou a demoliçcão do Hotel de Flandres, os Confrades da Pai.rnn fit-aram novamente sem asylo. Fora provavelmente um meio de os obrigar a abandonar a protissão. Elles, porém, compraram o velho palácio de Borgonha, na rua Mauconseil e fizeram alli construir um novo theatro. Estavam as cousas n'este ponto, e os cómicos preparavam-se para continuarem as suas representações, quando o parlamento, ao qual haviam pedido a conlirmação dos seus privilégios, lhes prohibiu e\|)ressamente, por aceordam de 17 de novem- bro de 1o84, «que puzessem em scena os Mysterios da Paixão do .\osso Sal- vador, sob pena de multa arbitraria, permiltindo-se-lhes todavia que represen- tem mystcrios profanos, honestos e licitos, sem injuriar, nem olVonder a nin- guém.»

Os Mijsterios haviam tido a sua épocha. Ileimprimiam-se ainda alguns, mas se representavam no fundo das provindas. O parlamento, prohibin- do-os, conformava-se com o gosto do publico, ao qual este género de espectá- culos só inspirava já, ou inditTerença ou indignação.

A tragedia e a comedia partilharam entre si a successão dramática dos Mlislerios. O género favorito, porém, do século xvi, aquelle que as pessoas ho- nestas reprovavam, c que o parlamento não ousava prohibir, era a farça dos Enfans-san-f-sotici , o género cómico e licencioso, que punha em scena os vi- dos e os ridículos do povo.

«As farças, diz Luiz fiuyon, nas suas Dimrsas lições, (Lyon, Ant. Cha- rol, 162.5, 3 vol. in-8.") não difTerem das comedias, senão em introduzirem per- sonagens que representam gente de pouca importância, que faz rir o povo com os seus ditos e esgares. Entre outros, introduziram um ou dois persona- gens, chamada Zanis e Pantalons, apresentando rostos muito contrafeitos e ri- dículos. Em França, chamam-se bodins, (graciosos), e vestem do mesmo modo.

«Na maior parte dos casos, não se tracta senão das partidas que certos es- pertalhões pregam aos pobres incautos, que se deixam enganar ingenuamente. Ou então, introduzem-se personagens voluptuosos, que enganam os maridos simples para abusarem de suas mulheres: e outras vezes são as mulheres que inventam artimanhas para gosar os prazeres do amor, sem que ninguém por tal.

«Estas farças estão cheias de impurezas, grosserias c deshonestidades, en- sinando ao povo como se pôde enganar a mulher do provimo, aos criados como SC podem enganar os amos, e partidas simiihantes, pelo que as pessoas discre- tas as acham más e as reprovam.»

Apesar (Pisso, as farças, a maior jiarte das f|uaes ficou inédita descendo ao tumulo com os velhos comediantes, estiveram cm voga até ao reinado de Luiz XIV, em que as mais celebres se transformaram em comedias.

Desde a suppressão dos Mysterios, o theatro, em vez de se depurar c tender a um fim moral, abandona-se a uma licença, capaz de justificar as amar- gas queixas dos seus inimigos. Corrompera mocidade c ensinar a libertinagem,

592 HISTORIA

parecia o seu único fim. Eis em que lermos o denunciava cm 1588 um zelo.so catliolico ao horror dos fieis e ao casfii^o dos magislrados, nas suas Ohxerca- rões kumillimas a el-rei de França e de folonia, Henrique iii, a respeito das desordens e misérias do reino:

«N'essa cloaca e casa de Salanaz, chamada Palácio de Borgonha, cujos actores se chamam descarada e abusivamente Confrades da 1'aixão de .lesus- Chrislo, commettem-se mil escandalosos peccados, em prejiiizo da honestidade e do pudor das mulheres e das famílias dos pobres artificcs, que enchem o pa- teo, duas horas antes do espectáculo, e entreteem o tempo íaliando de cousas impudicas, jogando jogos de azar, comend<i e bebendo até á gula c a embria- guez, e resultando de tudo isto desordens e pendências deploráveis. .. No ta- blado, apparecem altares com cruzes e ornamentos sagrados, vindo á scena em faryas impudicas sacerdotes revestidos, para fazerem casamentos ridículos... Em conclusão, não ha fari^-a que não seja obscena, suja, escandalasa, e própria para corromper a juventude, que vae assistir a esses espectáculos.»

As fardas do século xvi foram a deslionra do thcatro íVancez, e contri- buíram deploravelmente para a desmoralisacão social. Não as conheceriamos, porém, senão pela tradicção, se duas publicações recentes não livessem tirado do do olvido umas cento e cincoenta, que escaparam assim a uma destrui- ção .systhematica.

«Não poderia dizer-se, escreve R. de Verdier, senhor de Vauprivas, na sua Ribliolheca francesa, impressa em 1584 em Lyon, com certeza o numero de farças, compostas e impressas, porque c infinito. Nos tempos antigos todos se davam ao njister de as fazer, e ainda hoje os histriões, chamados Enjans sans-souci as representam. A íarça não é mais do que um acto de comedia, e a mais curta é a melhor, ou a mais apreciada, pelo enfado (|iie causa aos es- pectadores a prolixidade e demasiada extensão.»

Verdier accrescenia que, segundo a arte de rhetorica de Graciano l)u- pont, a farça não deve passar de quinhentos versos. Além d'i-;fo, a farça pro- priamente dita, tinha também diálogos jocosos, monólogos e sermões alegres, recitados por um estudante.

Apezar do assombroso numero d'ellas, apenas umas vinte lograram es- capar ao naufrágio universal, por isso que os ecciesiasticos e as pessoas devo- tas iam destruindo sempre quantos exemplares podiam d'aquellas composições obscenas e livres. Nem de outro modo se explica como tantas farças impres- sas e tantas edições successivas desappareeeram, sem nem sequer deixarem vestígios.

Ha poucos annos ainda descobriu-se na AUemanha uma collecção de 64 farças, diálogos, monólogos e sermões jocosos, impressos pela maior parte em Lyon em 154.'). O Uritish Museum. de Londres, adquiriu esta c(dleeçâo única, em que se encontram seis ou sele peças e<Md\eiidas por edições ditVeren- les. Esta collecção de farças é a que publicou Violei Ledue, sob o titulo de Antigo tliealro frnncez (Paris, P. .lannet, 1854.)

Anteriormente, François Michel havia publicado, por um manuscrípto (juc possuía o duque de la Vallíère, e que pertenceu depois á Biblioiheca im-

UA PltOSTITLItÃO o93

perial, scssenia e qualni f.u'(,-as ila ims;na époclia, cujas antifías cilivões ha- viam, como lautas outras, sido aniquillacias. Estas duas collccgões, tão precio- sas para a historia do tiíeatro antigo, bastam para nos fazerem coniiccer o pe- rigoso que eram para a moral c para os costumes públicos as represenlaç,'õcs d'estas farças, cuja indecencia de assumpto e de dialogo os actores decerto ainda exaggeravam.

A guerra implacável feita ás fardas impressas havia conseguido lornal-as raríssimas no principio do século xvii. Tin bibliophilo, alTeicoado, porém, a este género de iittcratura, teve o cuidado de salvar algutnas do naufrágio, fa- zendo reimprimir desde IG22, por Nicolau Bousscf, impressor de Paris, uma Collecrão de muitau fairaa antigas e modernas, an qíiaes foram postas em me- lhor ordem de linguaiiem do que de antes. Os auctores da IUbliotlieca do Thea- Iro francez (o duque de la Valiicre, Marin e Mercier de Saint-Leger) analysa- ram as sete farças contidas n'esta curiosa collecção, provando-nos que no thca- tro d'aquclle tempo não se cuidava do decoro do publico, que perdoava todas as inconveniências, comtanto que o fizessem rir.

Uma d'estas fabulas, que La Fontaine imitou no conto do «['aiseur de oreilles,y põe cm scena uma mulher gravida, a qual pergunta ao medico se dará á luz varão ou fêmea. O medico observa-lhe a mão, e diz-lhe que a criant^-a não terá nariz. A mulher amofina-se muito cora esta prophecia, mas o doutor consola-a, promettendo-lhe arranjar as cousas de modo que possa reparar aquella lacuna, e para isso retira-se cora ella. A mulher vem d"ahi a pouco ter com o marido, que a esperava á porta, e pare um momento depois.

Porque será, mulher, pergunta-lhe o bonacheirão do marido, (]ue ha- vendo treze mezes que não me junto comtigo, tens agora ura filho, em(juanto que no primeiro anno do nosso matrimonio tiveste ura aos dez mezes?

Ora, meu homem! responde logo a esposa infiel, é porque da primeira vez a criança ficou mais perto da porta que da segunda.

Fazer parir em scena era cousa vulgar no theatro antigo, onde frequen- temente se viam os esposos, ou os amantes deilarem-se e continuarem o seu papel entre lençoes.

Era também vulgar pa.ssar-se a acção detraz da scena, n'um aposento fe- chado, ou coberto com cortinas, mas, para evitar qualquer interpretação er- rada, havia sempre o cuidado de advertir o publico do que occorria dentro.

Na Farça jocosa e recreativa de uma mulher que reclama o dote ao ma- rido, os dois esposos, que chegam a ponto de armar uma grande ri\a por causa d este capitulo matrimonial, compõem-se por (im, e sabem juntos da scena para o tal gabinete reservado. Ura visinho, que tinha intervindo na reconciliação das duas partes, explica aos espectadores:

Foram alli dentro sellar o seu accordo, como podem suppòr. . . para que dure por mais tempo. E' sempre assim que se devem amansar as mulhe- res, quando estão em maré de levantar contendas!. . .-

Na Farra nora da ri.ia de um frade noro e de um soldado velho, por uma questão de amores, uma rapariga (lue é a causa da contenda, vera e\pòr o caso perante o throno de (Uipido. A rapariga senlc-se perturbada pelos dese-

UUTOIUA DA Pkostitdicão. Tomo n— Folha 75.

o94 HISTORIA

jos c necessidades amorosas. Cupido, n'cstc lance, aconselha-llie que procure um amante, sempre melhor para estas cousas do que um marido, e promelte conceder-ihe um á medida dos seus desejos. Um frade moço e robusto e um soldado velho disputam a posse da moeetona, e Cupido, para os harmonisar a todos trcs, convida-os a cantarem juntos uma canção. Todos elles se desculpam qual melhor, allegando motivos, que afinal não passam de dichotes equívocos e grosseiros. Em conclusão, depois de outras inconveniências do mesmo género impudico, o deus arbitro resolve qui' mais vale para as faltas da sensual mo- eetona um frade novo e robusto, do que um soldado velho e trôpego.

Seria mister citar todas as farças (|ue nos restam do século xvi, para ava- liarmos bem os innumeraveis recursos da sua immoralidade e para comprehen- dermos ate que ponto favoreciam a prostituição. Uma mulher honesta e reca- tada, depois de haver assistido a estas representações impudicas, ficava fatal- mente com a alma prevertida e com a vontade inclinada á luxuria.

As mais impuras imagens, as palavras mais obscenas, máximas immo- ralissimas, era o ijue sobresahia a cada plirase dos diálogos dos cómicos, e alem d'isto, a pantomima e o gesto exaggeravam a maldade do sentido, provocando deplorável mente á libertinagem.

E' impossível fazer ideia do que eram as farças d'aquelle tempo, sem se ter lido algumas d'ellas. A Bibliotheca do iheatro francez, pelo duque de la Vallicre, Marin e Mercier de Saint-Leger, a Historia do iheatro francez pelos irmãos Parfaict, e a Historia universal dos iheatros, por uma sociedade de homens de lettras, dão uma analyse circumstanciada de muitas d'estas peças licenciosas. O leitor que desejar, porém, estudar com maior exactidão as ori- gens da litteratura dramática franceza, deve recorrer á preciosa collecção de farças, que Paul Jannet reimprimiu, na sua Bibliotheca, intitulada Antigo thea- Iro francez.

Entre as sessenta e quatro farças, historias, moralidades, debates, diálo- gos, monólogos e sermões jocosos, que compõem esta collecção, indicaremos especialmente a [•'arra de Frei (iniUebert, que o antigo editor qualificou de muito bella e divertida. E' effectivamente muito cómica, e comprchcndem-se bem os applausos com que a sua representação era acolhida, sendo a mais li- vre de todas ellas, ou pelo nrnos das que chegaram ao nosso conhecimento. Começa por um d'aquelles sermões jocosos que formavam a raiudo o entreacto das comedias e tragedias.

Tal era o theatro popular no principio do século xvi.

A analyse d'esta farça celebre demonstra a deplorável influencia (|ue de- via exercer nos costumes. As farças dVsta espécie eram innumeraveis, como diz Du Verdier. Em França representavam-se até nas |)equenas aldeias, e ser- viam de Ihema, por assim dizer, á panloinima mais indecente, oíVendeiuIo ao mesmo tempo os ouvidos e a vista dos espectadores, que alentavam com os seus applausos e risadas a impudica acção dos farçantes. Comprehende-se, pois, que o clero catholico condemnasse com indignação este deplorável abuso da arte scenica, c em presença de obscenidades similhantes não é para exíranhar que o theatro e os cómicos fossem excommungados pela Egreja. S. Francisco

DA PROSTITUIÇÃO 595

de Sailcs, que eompunha por esse (empo os seus escriptos de moral religiosa, comparava as reprosentavõrs tluMlraos «com as selas, que nem as meliiores (loivam de ser pri'judiciacs.»

i\o eintanto, a auotoridadc civil que tinha por missão velar pelos coslu- mes, não parecia assustar-sc muilo com a espaniosa licença d'cllcs, durante o reinado de Luiz xiii. Algumas disposições houve relativas aos cómicos, prohi- bindo-llios que representassem peças deshonestas, mas os eommissarios e agen- tes não cumpriram estas ordens tão íavui-avcis á decência publica.

Em compensação, a repressão era tão severa como prompta, a respeito das salyras dirigidas a pessoas notáveis. i>"este caso, prendia-se e castigava-se sem KÍrma de processo qualquer cómico (|ue se permiítissc o menor ataque á respeitabilidade das pessoas ou ao segredo da vida privaila. Quando não esta- vam escriptas de modo que satyrisassem determinadamente este ou aquelle in- dividuo, ninguém se importava que as farças fossem deshonestas, tanto mais que os espectáculos d'esle género faziam o encanto do povo, que encontrava n'elles a pintura dos seus grosseiros costumes, a expressão fiel dos seus sen- timentos e a copia da sua linguagem.

Dissemos que nem todas as farças se imprimiram, e que a maior parte das impressas desappareceram. Ha, todavia, bastantes na colleeção do firitlsh MuseuDi, de Londres, e na Bibliothcca Imperial de Paris, para se poder fazer uma idéa exacta do excesso de depravação que era preciso haver n'um povo, para se tolerar a representação de tão repugnantes peças.

Eis os titulos de algumas d'ellas, as quacs estão perfeitamente em har- monia com o que esses titulos promettem :

Farça nova e muito divertida das mulheres que pedem o dote a seus ma- ridos. Tem quatro pessoas, a saber: o marido, a mulher, a creadae o aisinho.

Farra nova e muito divertida das mallieres que jazem limpar as caldei- ras e prohibem que se deite atjua na pia. Tem três pessoas : a primeira mu- lher, a segunda e o amante.

rar§a nova, muito boa e divertida, de Jeninot, que nomeou rei ao seu (jdto, á falta de outro companheiro e subiu para cima da sua ribalda para a levar á missa. Tem três pessoas, etc.

Taes são os titulos que dão uma ideia exacta das peças que o cartaz an- nunciava ao publico, e que tinham uma extraordinária acceifação.

Estas farças aprendiam-se de cor, e qualquer estava no caso de desem- penhar n'ellas um papel, quando á falta de cómicos de profissão, um grémio, ou uma sociedade alegre se conslituia em companhia de curiosos dramáticos. As associações d'estes actores curiosos, que eram quasi sempre artistas, multi- plicaram-se em todo o reino no principio do século xvi, e a prostituição, que era sempre o móbil da desenfreada paixão do thcatro, multip!icou-se egual- mente na proporção do numero dos cómicos de ambos os sexos, que viviam na mais crapulosa desordem.

«Havia então em Paris, refere Tallemant des Reaux, duas companhias, compostas na sua maior parle de ratoneiros, cujas mulheres viviam na maior dissolução.»

396 iiisTdRiA

N'(tulro logar aecrcsconia :

«A comedia não era espectáculo ciccenfe, cm quanto o cardeal de Richo- lieu n<ão se occupou d'clla (lOS-i) e aníes d'isto lião assistiam ás funccões do thealro as mulheres honradas.»

Os três mais haheis comediantes d"afjuell,i épocha, conhecidos pelos seus nomes de theatro, Turlupin, (laultier-darguille e (iros-(Vuillaume, representa- vam sem mulheres e cxaggeravam o burlesco até ao eynismo e ao desaforo. Tailemant des Reaux diz, todavia, que (laultier-darguillc «fui o primeiro que comc(,-oii a viver com mais alguma decência (|ue os outros, e (jue Turlupin, excedendo a modéstia de (laultier-tiarguille mobilou muilo bem os seus apo- sentos, pois que os outros, dispersos por aqui e por alli, nã<» tinham nem casa nem arranjo algum.»

Siuivai, que escrevia a Fíisíoria das Anthjuidiuht; de Paris ao mesmo tempo que Tailemant as suas Historietas, não passa certificado de bons costu- mes a estes celebi-es truões, e accrescenta, fallando de (inulticr-darguiile, que o aclor nunca teve amores, senão nas ultimas camada« ile prostitutas.

O epilíiphio dos três companheiros, enterrados jiuiliis na egreja de S. Sal- vador, alludc lambem á immoralidade da sua associai.ão :

tJauUier, Guillaume et '1'urlupin, Ignoram en grec e latin. íirillèrp.nl Unis troix smr la scène. Sans recourir au séxe (éminin, Quils dinaient un peu trop walin : Faisanl nublier toule peine, Leur jeu de lliéatre badin, Oisáipail le plus fort chagrin. Mais la mort, en une semaine. Pnur venger son séxe viulin, PH à lous Irois trouoer leur fin.

(luillaiime representava com a cara descoberta, mas os seus dois compa- nheiros usavam sempre mascara.' t'a(la um d'ellcs tinha um trajo característico, que nunca mudavam na farça. Anles*de entrarem na compatihia do Hotel de jiorgoiilin, linhnm estabelecido o si ii thealro n'um jogo da pella, que não podia conter todos os curiosos altrahidos i)cias representações. Õ cardeal Riehelieu leve desejos de v(M-os trabalhar, e julgou-os dignos de figurarem no Hotel de lior- gonha, para onde os populares actores levaram as suas farças c canções.

Suppòmos que estas farças eram devidas ao talento cómico dos dois acto- res Turlupin e (luillauinc, por isso que a denominação de Turlupinades, ficou d'ahi por diante consagrada ás facécias que clles improvi.«avam, como os cómi- cos italianos, (".onsla alem disto (jue as canções dos três amigos. Ião aprecia- das pelo publico, eram devidas ao eslro de (íaultier-tlarguillc, que as impri- miu em \{VM (Paris, Turga, in-li), obtendo para is.so, sob o seu verdadeiro nome, um jirixilcgio do rei, outorgado aí) nosso mniia aniadn lliKjit Ilueni, um dos nossos rohticos ordinários, para (jue não reniiam (iniros onresrentar rnnròps mais dissolutas. A Cani-ão de (iaullier-liarfjinlle, por mais dissoluta

UA PROSTITUIÇÃO 597

que fosso, lornou-sc imiilo cclel^T n'aquellc tempo, e liavia miiilo (|uom so di- rigisse ao tliealro do P,ilai"io norfjonlia para a ouvir.

Quaiilo ás fardas em (|iie 'ruiiupin (^Henri(|iie Legrand) se distinguia pe- las suas laeeeias engenhosas e dilos engraçadíssimos, não tiveram eilas prova- velmente as honras da imi>ressrio, e si) as eonheeemos hoje por algumas see- iias, reproduzidas nas antigas enlleeções de estampas de .Marielle c IJosse. De resto, estes illusires eomieos haviam famhem tentado a comedia lieroiea, (|ue por vezes descia ás vulgaridades da larça.

O Palácio de Borgonha, onde se representaram farças propriamente ditas até meiado do século xvi, linha no principio do século um actor cómico tão ta- moso c distincto, como o Coram mais tarde Turlupin, (laultier e Ciuillot-Cioi ju. Era e!le um tal Deslauriers, que havia adoptado a alcunha, ou nome, de guerra, de Hruscamhille, soh o qual compunha e publicava peças que representava, como uma espécie de entremezes, que tinham o publico entretido entre as duas peças, e que, por assim dizer o preparavam para fazer um bom acolhimento aos disparates da farça.

O uso d'estes intervalios cómicos e licenciosos remontava |)or certo aos espectáculos dos pois pilrs, de (|ue falíamos, e o gracioso que vinha recitar ao publico um monologo ou um sermão burlesco, aproveitava todos os meios, ainda mesmo os mais indecentes, para despertar a hilaridade dos espectadores, que não coravam nunca, por mais obscena que fosse a phrase, ou por mais li- cenciosa que fosse a pantomima. Assim, chegaram os cómicos á audácia de recitarem em pleno thealro o Sennoii jaijeux liun (Irpuceleur de nourrices, e muitos outros monólogos em verso ou prosa, não menos divertidos nem menos indecentes.

No tempo de Henrique iv, Bruscambille tornou-se celebre pelas arengas jocosas que dirigia aos especladorcs antes ou di'pois da comedia, e (juc se ba- seavam sobre toda a espécie de assumptos, extravagantes ou ridículos. Ora na demanda do piolho, imitava as formas judiciacs e a eloquência pcdantesca do foro, ora n'um panegyrico cm favor dos grandes narizes paraphraseava sen- tenças esdrúxulas cm latira macarronico. Umas vezes esforçava-se por desco- brir debaixo das saias das mulheres, os niysterios do salto das pulgas : outras, contava ao publico as peripccias de uma viagem ao ceu ou ao inferno para interrogar os manes sobre esta grande questão : 1'ter vir an mulier se maijis de.lectet in copulatione. Na sala sabia-se o latim sufficiente para comprehender o de Bruscambille, c o [)ub!ico perdia-se de riso, ainda mesmo quando não o compreliendia, porque a acção dizia tanto como as palavras do cómico.

A's vezes Dcslauriers começava a tractar jocosamente assun)[»tos sérios, que agradavam muito menos aos frequentadores do theatro de Borgoniia. Fazia o elogio do theatro, procurando expurgal-o da nota de infâmia que pesava soi)re o cómico, mas via-se obrigado a voltar bem de|)ressa á sua eloquência bur- lesca e licenciosa, accumulando, por exemplo, as torpezas c obscenidades mais excêntricas.

,0 marquez de Boure cita, na sua Ámúecla llihlion, (t. ii, p. I;)2 e se- guintes) alguns dos provérbios obscenos, pbanlazias, e paradoxos impudentes.

598 HISTORIA

que Deslaiiricrs recitava cm sccna. Remctlcmos o leitor, que desejar cscla- recer-sc meliior sobre o assumpto para as yúurp.ltes el plaisantes iiiKKjinalions íle liruscambille, que o auctor ousou dedicar a Momeigneur le l'iince, quer di- zer, a Henrique de Bourbon, príncipe de Conde.

E tudo isto se imprimiu e i-eimprimiu com privilegio d'el-rci ! E tudo isto se representou, não no theatro de Borgonha, como também em todos os denominados Théatres de Campagne, que seguiam o seu repertório!. . .

O mal não seria nuiilo para deplorar, ainda assim, se o publico, que fre- quentava estas obscenas representações, se compozesse apenas de libertinos, be- bi iiões, prostitutas e outra gente perdida; mas não succcdia assim, infeliz- mcnli'1 O homem lujnesto levava ao Ihealro, como hoje succede, sua mulher e suas lilhas; os rapazes novos tinham paixão por esta classe de espectáculos que os conduziam á libertinagem, e assim o theatro vinha a ser um seminário de amores fáceis, uma eschola de voluptuosidades, em que os maridos iam apren- dei- a enganar as mulheres, estas os maridos, a juventude a corromper-se e as proxenetas a explorar toda aquella gente, n'esse fecundo campo de prostituição!

O povo perdia-se alli c jm o mau exemplo e com a seducção do mau exem- pla. Mas, ainda mesmo que não fosse ver as farças ao Hotel de Borgonha, tinha as do Hotel d'.4rgent, as da feira de Saint-fiermain, e as que se repre- sentavam nos jogos da pella, para se preverter á vontade e por preços módicos. Tinha ainda uma larga eschola de desmoralisação nas exhibições do Pont-Neuf, ao ar livre, e nas da praça Dauphine. Podia alli ir ver e ouvir de graça as phan- tazias do grande Tabarin e do barão de Gratelard, que vendiam as suas dro- gas, unguentos e perfumes serelos, com o auxilio d'essas farças joviaes, im- pressas e reimpressas tão repetidas vezes para corresponder á sollicitude do pu- blico, (|ue não se assustava com a escabrosidade do assumpto, nem com a li- cença e obscenidade da linguigem.

Tabarin e os seus émulos tinham o direito de dizer tudo do alto dos seus tablados, e os transeuntes tudo podiam ouvir lambem. Se por acaso andava por alli algum ommissario de policia nunca se lembrava de interromper os pra- zeres do jiublico, impondo silencio áquelles desaforados actores das farças de Tabarin, que muito mais tarde foram prohibidas por decreto do parlamento.

IIM DO 2." VOLUME

INDICK DO TOMO SKGUNDO

II

III

IV V

SEGUNDA PARTE

PAG.

Capiliilo 1 -T

15

23

31

43

VI 55

vil . (lÕ

VIII 73

IX 85

X 97

XI 109

XII 119

XIII 129

XIV 141

XV 153

XVI 1B7

XVII 181

XVIII 195

XIX 209

XX 225

XXI 237

XXII 253

xxm 203

XXIV 271

XXV 281

XXVI 297

xxvii 315

xxviíi 325

xxii 335

XXX 349

XXXI 3ii3

XXXII 377

XXXIII 389

600 índice

l'AG.

Capitiilo XXXIV ^ 401

" xssv 417

xxxvi 437

" XXXVII 457

" XXXVIII 477

» XXXIX 511

XL ,521

iLi 535

» XLii 545

» iLiii 561

» xLiv 579

-c<^^^>o-

^

IIsTIDIOE

OKAVURAS r>0 X03I0 «EOUIVOO

OltAVinAS TAC.

Fronti'spicio : A sediic.;io 1

A Corte dos Milagre? 115

Castigo de uma adul e a cm Tolosa 147

Castigo de uma proxeneta na Edadf-Jlédia 158

Castigo de uma adultera uo Berry 203

O duque d'Orleans e Mr. le Cany 341

Coutineiicia de Carlos viii 355

Catiiariíia de .Medíeis e Dian.i Je Tniliers 391

Margarida de \'aIois, rainhn de Navarra 479

Gabriella d'Eslrées - 499

Henriqueta de Baixar d'Eiitragues 505

As arrependidas 533

Uma casa de prostituição no reinado de Luiz xiii 549

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HQ 111 1,219 1885

t.2

Lacroix, Paul

História da prostituigão

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UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY

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